Boa noite a todos.
Boa
noite a todas.
Boa
noite a quem nos acompanha aqui na sala zoom.
Boa
noite a quem nos assiste online.
Cumprimento,
também, a quem venha assistir este curso em outro momento.
Meu
nome é Valter Pomar.
Sou
professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC.
E
integro a equipe de professores voluntários da Escola Latinoamericana de
História e Política.
Neste
momento damos início a mais um curso da Elahp, desta vez um curso intitulado “TROTSKY
e STALIN: polêmicas sobre a luta pelo socialismo na URSS e no mundo”.
A
Revolução de 1917, seus antecedentes, seus desdobramentos, a União Soviética e
o movimento comunista internacional, são assuntos envoltos em imensa polêmica.
Esta
polêmica começou já na época e prossegue até hoje, envolvendo desde inimigos
declarados do comunismo, até cada uma das tradições vinculadas direta ou
indiretamente a própria revolução, como é o caso dos anarquistas, dos
socialistas revolucionários, dos socialdemocratas e dos comunistas.
Entre
estes últimos, a Revolução de 1917 e seus desdobramentos também foi e segue
sendo objeto de intensas polêmicas.
São
inúmeros os protagonistas desta polêmica, que já dura mais de um século.
Entretanto,
por diversos motivos, grande parte das pessoas salta a complexidade do debate, das
alternativas e das personalidades envolvidas e, quando fala em Revolução Russa,
pensa apenas ou principalmente em Lenin, em Trotsky e em Stálin.
Levando
isto em consideração, neste ano de 2020, por ocasião do sesquicentenário do
nascimento de Vladimir Ilich Ulianov, a Escola Latinoamericana de História e
Política e a Caixa de Ferramentas ofereceram um curso intitulado LENIN, VIDA E
OBRA.
Evidentemente,
cuidamos de situar a pessoa Lênin, no contexto histórico. E cuidamos de afirmar
este contexto, em particular a luta entre as classes, na sociedade russa, e a
luta entre os Estados, em âmbito mundial, como as variáveis centrais.
No
mesmo espírito do curso Lênin, vida e obra, a Elahp decidiu oferecer um
curso sobre as polêmicas acerca da luta pelo socialismo na URSS e no mundo, tendo
como fio condutor, desta vez, as posições defendidas por Trotsky e por Stalin,
respectivamente.
Evidentemente,
como fizemos no caso de Lenin, nosso propósito é abordar as polemicas que
envolveram estas duas personalidades, no contexto mais amplo e determinante da
luta entre as classes e da entre os Estados.
Evidentemente,
este curso é feito neste momento específico, também porque foi num 21 de agosto
de 1940, há 80 anos, que Trotsky foi assassinado no México, como parte de uma
operação decidida pela cúpula do Partido Comunista da URSS, então encabeçada
por Stálin.
A
programação do curso “TROTSKY e STALIN: polêmicas sobre a luta pelo
socialismo na URSS e no mundo” inclui 12 aulas, que terão 2 horas de
duração, sempre começando as 21h e terminando as 23h, oferecidas
simultaneamente na sala zoom e através do youtube.
Hoje, 24 de agosto, segunda, a aula terá como tema: A Revolução
Russa de 1917, a história e a dissolução da União Soviética: contexto,
personagens e múltiplas interpretações. O “lugar” de Stálin e Trotsky nesta
história.
Esta primeira aula, introdutória, será ministrada por mim, Valter
Pomar.
Amanhã, 25 de agosto, terça, a aula terá como tema: Trotsky,
vida e obra e será ministrada pelo professor Valério Arcary.
Na quarta, 26 de agosto, a aula terá como tema: Stálin, vida e
obra e será ministrada pelo professor Breno Altman.
No dia 27 de agosto, quinta, trataremos de O debate sobre a
revolução permanente, antes e depois da Revolução de 1917. Neste caso, a
aula será do professor Raul Pont e os comentários serão feitos por mim, Valter
Pomar.
Na sexta-feira, 28 de agosto, o tema será O debate sobre o
socialismo em um só país, nos anos 1920 e depois. O professor será o Antonio
Eduardo, professor da UFRB e colunista do Diário Causa Operária. Os comentários
ficarão a cargo de Breno Altman.
No sábado, 29 de agosto, falaremos de A história da Terceira
Internacional. As polêmicas sobre a revolução alemã, sobre revolução chinesa e
a guerra civil espanhola. Serei eu, Valter Pomar, quem ministrará esta
aula.
No dia 30 de agosto, domingo, o tema será O programa de
transição. A aula correrá por conta do professor Osvaldo Coggiola e os comentários
ficarão a cargo do Breno Altman.
No dia 31 de agosto, segunda, falaremos de O debate sobre a
natureza da URSS. Contaremos nesta aula com a professora Gloria Trogo,
advogada e militante do PSOL. Os comentários serão, mais uma vez, de Breno Altman.
Na terça-feira, 1 de setembro, a professora Tatau Godinho falará de:
A criação e a história da Quarta Internacional. As várias correntes
do “trotskismo”.
No dia 2 de setembro, quarta-feira, o professor José Reinaldo de
Carvalho falará de: O “stalinismo” depois de 1953.
Na quinta-feira, dia 3 de setembro, o professor Osvaldo Coggiola
falará de O trotskismo na América Latina.
Finalmente, no dia 4 de setembro, sexta-feira, o curso será encerrado
pela professora Iole Iliada, que nos falará de: O debate sobre Stalin e
Trotsky nos tempos atuais.
O curso será encerrado, mas obviamente o debate prosseguirá.
Aliás, como vocês podem perceber, pelo temário e pela relação de professores
e professoras, a Elahp buscou garantir a pluralidade.
Infelizmente, nosso convite não foi aceito por todos os que gostaríamos
que participassem, como professores e professoras, deste curso.
Reafirmamos aqui, entretanto, nosso convite, cujo propósito é permitir
que os alunos e alunas da Escola Latinoamericana de História e Política tomem
contato, senão com todas, pelo menos com as principais tradições que participam
deste debate.
Caso o convite que refiz agora de público seja aceito, estamos
abertos a incluir novas aulas no curso. Ou a fazer um novo curso.
Após estas preliminares, darei agora início à aula sobre A
Revolução Russa de 1917, a história e a dissolução da União Soviética:
contexto, personagens e múltiplas interpretações. O “lugar” de Stálin e Trotsky
nesta história.
*
Em março de 1917, o que era para ser uma
grande manifestação em homenagem ao Dia Internacional da Mulher converteu-se
numa greve geral que, após alguns dias, provocou a renúncia do Czar Nicolau e o
fim da monarquia na Rússia.
Instala-se um governo provisório, que
poucos meses depois é derrubado e substituído por um Conselho de Comissários do
Povo, organismo eleito pelo Soviete de Deputados Operários, Soldados e
Camponeses.
A maior parte dos comissários do povo são
integrantes da facção “bolchevique” do Partido Operário Social-Democrata Russo.
As duas principais decisões do
novo governo são relativas a paz e a terra.
Citando: “Objetivamente, o governo
decreta a reforma agrária, acabando com o sistema feudal vigente no sistema agrário
e realizando aquilo que, na época, era conceituada como uma reforma democrático
burguesa”.
De 1917 até 1921, o governo soviético luta
por sua sobrevivência, ameaçada de imediato pelos exércitos alemães, depois pelos
exércitos “brancos” e seus aliados estrangeiros, e também pela desorganização
da economia, após anos de conflito militar.
Neste período, é adotado o chamado
“comunismo de guerra”, cuja expressão mais simples é a requisição forçada da
produção dos camponeses, para alimentar as cidades e o Exército Vermelho.
O governo soviético consegue manter – a ferro
e a fogo – apoio suficiente no proletariado e no campesinato, ao menos o suficiente
para vencer a guerra civil.
Mas a vitória na guerra civil é acompanhada
de insatisfações crescentes nas duas classes sociais que foram as grandes
protagonistas da revolução de 1917: o proletariado e o campesinato.
No caso do campesinato, que constituía a
imensa maioria da população russa, a insatisfação se traduz, inclusive, em reduzir
a produção de alimentos, o que constitui uma ameaça mortal para o governo
soviético.
Para tentar manter a aliança
operário-camponesa e garantir o funcionamento da economia, o Partido Comunista
Russo (denominação assumida, em 1918, pela já citada facção bolchevique do Partido
Operário Social Democrata Russo)... o PC russo adota a NEP (Nova Política
Econômica).
Segundo esta Nova Política Econômica, os
camponeses passam a ter o direito de vender o excedente de sua produção,
devendo apenas pagar impostos ao governo. Acabam as requisições forçadas. Os
camponeses voltam a abastecer as cidades e a situação econômica melhora paulatinamente.
Citando: “Em relação à indústria,
a partir da comprovação de que o setor ainda era muito atrasado, a NEP admite
os investimentos privados e uma combinação entre investimentos estatais e
investimentos privados, de modo a garantir o abastecimento de bens industriais”.
De 1921 até o final da década, além de lutar
cotidianamente pela sobrevivência e de todas as tarefas práticas envolvidas
nisto, o governo soviético em geral e os comunistas em particular participam
ativamente das polêmicas sobre os caminhos da luta pelo socialismo no mundo e na
Rússia (e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, fundada em 1922).
Contra as expectativas alimentadas pela
liderança bolchevique quando da tomada do poder em outubro de 1917, em nenhum
outro país a revolução havia triunfado.
E, portanto, ao invés de ajuda, o que veio
do Ocidente foi, principalmente, uma intervenção militar e um bloqueio
político-econômico, conhecido pelo simpático nome de “cordão sanitário”.
O isolamento internacional tornava ainda
mais difícil, o que já seria difícil por si só, afinal a sociedade russa era econômica,
política e culturalmente atrasada, apontada pelos próprios bolcheviques como um
país em que poderia ser mais fácil começar a revolução, mas onde seria muito
mais difícil construir o socialismo.
Entre as várias polêmicas daquele período,
uma das mais importantes dizia respeito a como ampliar a industrialização do
país.
Vale lembrar que, embora a Rússia antes de
1917 tivesse um núcleo industrial muito poderoso, este núcleo industrial era
uma ilha no oceano da pequena produção familiar camponesa.
E a Guerra Mundial, a Guerra Civil, o bloqueio
e os próprios efeitos da Revolução tiveram como consequência prática enfraquecer
o núcleo industrial e ampliar a pequena propriedade camponesa.
Para os integrantes do governo soviético e
do Partido Comunista da URSS, a industrialização era essencial, não apenas por
motivos de curto prazo, mas principalmente porque viam no desenvolvimento das
forças produtivas parte importante do caminho que consolidaria o socialismo e
permitiria caminhar em direção ao comunismo.
Na frase lapidar de um dirigente do governo
soviético: sovietes mais eletrificação. Ou seja: o poder proletário e o desenvolvimento
das forças produtivas.
Citando: “Esta postura seria
acentuada, no final dos anos 20, frente a crise mundial capitalista e a ascensão
do fascismo, que apontavam para dificuldades mundiais crescentes para o poder
soviético”.
Grosso modo, houve um debate entre duas
grandes alternativas, entre dois grandes caminhos que poderiam levar à industrialização.
O primeiro caminho previa um longo período
de estímulo à pequena produção camponesa, cujo crescimento econômico geraria (supostamente)
a dinâmica necessária para uma ampliação sustentável da indústria. Segundo esse
caminho, o socialismo (e a industrialização) seriam construídos, mesmo que “a passo
de lesma”.
O segundo caminho propunha reduzir o número
de pequenas propriedades camponesas (que seriam reunidas em cooperativas ou
fazendas coletivas), gerando assim o mercado (tanto de mão-de-obra, quanto de
consumo) necessário para uma industrialização rápida. Segundo este caminho,
tratava-se de fazer uma “acumulação primitiva” do socialismo.
O debate acerca dos rumos da industrialização
soviética nos anos 1920, como todos sabemos, não teve nada de tranquilo ou acadêmico.
E o desfecho do debate foi determinado menos
pelos argumentos e mais pelos fatos, mais precisamente pela chamada “crise da
tesoura”, nome dado a um fenômeno ocorrido, com especial força, no final dos
anos 1920, fenômeno que de maneira esquemática pode ser assim resumido:
1/a revolução russa de 1917 incluiu uma revolução
agrária de imensas proporções, que resultou na criação de um grande número de pequenos
minifúndios;
2/estes minifúndios eram basicamente autárquicos
e demandavam muito pouco das indústrias e das cidades;
3/a medida que os minifúndios se abasteceram,
pararam de comprar das indústrias;
4/e à medida que não necessitavam comprar,
também reduziram sua produção e, portanto, vendiam menos às cidades;
5/gerando assim um duplo efeito: por um
lado os preços agrícolas cresceram (pois havia menos produção e menos oferta) e
de outro lado os preços industriais caíram (pois havia menos demanda).
6/a subida dos preços agrícolas e a queda
dos preços industriais assumiam, nos gráficos, o formato de uma “tesoura”, daí
o nome.
Frente a crise da tesoura, ocorrida no
final dos anos 1920, a maioria da direção do Partido Comunista Russo optou pelo
caminho da coletivização e industrialização forçadas.
O campesinato foi forçado manu militari a
adotar formas coletivas de produção, seja em cooperativas, seja em fazendas
estatais.
Com isto, aumentou a demanda de produtos
industriais (o famoso exemplo do trator, inútil num minifúndio, indispensável
numa grande propriedade) e, ao mesmo tempo, criou-se um excedente de mão de
obra no campo, que foi convocada a incorporar-se no esforço de industrialização.
É bom dizer que um dos efeitos disto foi uma
grave crise na produção agrícola, entre outras razões porque o campesinato
resistiu à coletivização forçada.
Seja como for, teve início um brutal esforço
de industrialização em larga escala.
As classes trabalhadoras como um todo, em
particular o proletariado industrial, foram convocadas a fazer um brutal esforço
produtivo.
Este duplo processo – coletivização e
industrialização – causou uma imensa tensão na sociedade e no Estado soviético,
bem como no Partido comunista soviético e na Internacional comunista.
Cabe ressaltar que a opção pela
coletivização e pela industrialização rápida foi, do ponto de vista econômico-social,
uma nova revolução.
Uma revolução “pelo alto”, que de certa
forma rompeu a aliança entre proletariado e campesinato que havia sido vitoriosa
em 1917.
Uma das resultantes desta revolução pelo
alto foi que milhões de pessoas deixaram de ser pequenos proprietários e
transformaram-se em proletários (industriais ou agrícolas).
O proletariado surgido deste processo não tinha
a experiência política prévia, adquirida ao longo de muitas décadas, pelo
proletariado que protagonizou a revolução de 1917.
Os novos proletários, bem como a maioria
dos novos integrantes do Partido Comunista, eram em sua maioria recém-saídos
das fileiras do campesinato.
Nesse contexto social, o Partido Comunista
também sofreu grandes mudanças, a começar pela ampliação das suas fileiras.
Em 1917, quando a revolução começa, os
bolcheviques eram menos de 15 mil. Em 1921, são mais de trezentos mil. No final
dos anos 1920, o PC russo e as organizações de massa que ele dirige reúnem
milhões de pessoas.
Em decorrência, o trabalho de educação
política ganha uma nova dimensão. As escolas, o cinema, a rádio, as artes gráficas,
a literatura são colocadas a serviço da formação destes milhões de “homens
novos” do socialismo soviético.
Trata-se de incutir, em dezenas de milhões
de pessoas, os valores da nova ordem. A fusão entre as “artes” e as
necessidades educacionais e políticas do regime soviético dá origem, assim, ao
chamado “realismo socialista”.
Outra dimensão importante é, citando, a “promoção do stakanovismo, isto é, do operário Stakanov,
inovador que conseguiu elevar a produção a nível superior”.
As tradições marxistas russas também serão
afetadas por essa dinâmica. Ao mesmo tempo que se faz um heroico esforço para resgatar,
publicar e difundir as obras clássicas de Marx e Engels, entre outros; também ocorre
um movimento de simplificação e de vulgarização do marxismo.
Seja como for, o efeito global deste processo
foi, gostemos ou não das formas que assumiu, transformar a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas em uma potência industrial.
Durante a guerra,a URSS fará uma transferência massiva de sua indústria para os montes
Urais, de modo a protegê-la da máquina de guerra nazista, torná-la capaz de
produzir equipamentos militares modernos e, assim,” de derrotar a
máquina nazista, na Segunda Guerra Mundial.
Vale lembrar que a Rússia czarista não sobreviveu
aos efeitos sistêmicos da Grande Guerra, que hoje conhecemos como Primeira
Guerra Mundial.
Já a URSS sobreviveu aos impactos sistêmicos
da Segunda Guerra.
A decisiva contribuição dada na derrota dos
nazistas durante a Segunda Guerra Mundial transformou a URSS em um dos polos do
poder mundial, contrapondo-se durante a “guerra fria” aos Estados Unidos.
Naquela época, havia quem previsse que a União
Soviética seria capaz de superar os Estados Unidos em um prazo mais ou menos breve.
E esta previsão, é bom dizer, era feita não
apenas por comunistas, mas também por intelectuais e quadros políticos que
defendiam a ordem capitalista.
Mas quando veio a crise dos anos 1970, o
capitalismo reagiu, e não foi através de uma guerra global, como em 1914 e em
1939.
Retrospectivamente, é fácil de perceber os
motivos disto.
Não fazia sentido uma guerra
intercapitalista, pois de fato não existia, nos anos 1970, nenhuma outra
potência disputando contra os Estados Unidos o papel de hegemon do mundo capitalista.
Por outro lado, uma guerra global do capitalismo
contra o mundo socialista desembocaria, muito provavelmente, numa destruição
mútua.
Ou, na pior das hipóteses para os
capitalistas, poderia desembocar numa perigosa aliança entre o socialismo, o pacifismo,
o feminismo, o antirracismo e o ambientalismo.
Por estes e outros motivos, a reação dos capitalistas
a crise dos anos 1970 foi realizar um complexo “ajuste”, que incluiu:
1) uma nova rodada de exportações de capitais
e de financeirização, favorecida pelo fim do padrão dólar-ouro adotado em 1944
nos acordos de Bretton Woods (uma moeda internacional que tem a si mesma como
lastro é funcional para a especulação);
2) uma nova “revolução industrial”, com
destaque para inovações na comunicação, eletrônica, informática e cibernética,
que ampliaram a exploração e o controle sobre a força de trabalho mundial
(força de trabalho que, hoje sabemos, alguns anos depois seria ampliada pela
inclusão dos chineses e dos que viviam na URSS e no Leste Europeu);
3) um aprofundamento da corrida armamentista,
o que, além de dar vazão à parte dos capitais acumulados, contribuiu para o
colapso da URSS, uma vez que para a economia soviética, “a prioridade à produção bélica moderna, sugadora de altos
investimentos, colocava em último plano o atendimento às demandas sociais por
bens de consumo”;
4) a difusão da ideologia que hoje chamamos
de neoliberalismo, criando um ambiente crescentemente favorável às privatizações
e às alterações nas políticas sociais (o que também reduz os salários indiretos
da classe trabalhadora).
Como reagiu o movimento socialista a esta ofensiva?
A reação imediata dos social-democratas europeus
foi defender e adotar políticas de tipo keynesiano. Mas esses remédios já não
provocavam os efeitos desejados. A crise continuou. Depois da ascensão dos
neoliberais Reagan e Thatcher, os social-democratas europeus ainda ganharam
importantes eleições na Europa. Mas seus novos governos mudaram de política e grandes
parcelas da socialdemocracia aderiram a um ideário aparentado com o
neoliberalismo.
E a tradição comunista, mais exatamente a sua
versão soviética, como reagiu a ofensiva neoliberal?
Esta tradição tinha conseguido, como já
dissemos, o prodígio de industrializar um país atrasado, ao mesmo tempo em que
ampliou sensivelmente o nível de vida de sua população.
Para atingir estes objetivos, o socialismo
soviético adotara um planejamento estatal extremamente centralizado, combinado
com políticas de pleno emprego e restrições ao funcionamento do mercado. Além
de recorrer a níveis de centralização política que provocaram danos à credibilidade
do próprio socialismo, especialmente quanto à pretensão de constituir um tipo
de democracia superior à existente no capitalismo.
Quando o campo capitalista ampliou a corrida
armamentista, especialmente com o governo Reagan, a sociedade soviética foi
colocada diante de uma enorme pressão. E quando o capitalismo deu um salto
tecnológico, a URSS não quis ou foi incapaz de fazer as reformas que seriam
necessárias para pelo menos manter a paridade.
E, na segunda metade dos anos 1980, quando houve
uma tentativa de realizar as tais reformas, o ambiente interno e externo já
havia deteriorado tanto que as reformas aceleraram o colapso e, em 1991, advém
a dissolução da União Soviética.
Pouco antes e logo depois, todos os países
socialistas do Leste Europeu, “que também haviam
seguido a mesma orientação que desdenhava a produção de bens de consumo
corrente”, mudaram seus governos e sua orientação econômico-social; é o
caso da Alemanha Oriental (anexada em outubro de 1990 pela Alemanha Ocidental),
da Hungria, Romênia, Bulgária, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Polônia e Albânia.
Processo similar ocorreria com Angola,
Moçambique e outros países africanos anteriormente alinhados à URSS. Do antigo
mundo socialista, apenas China, Vietnã, Coreia do Norte e Cuba continuam até
hoje governadas por partidos comunistas.
A debacle do socialismo soviético e a
conversão da socialdemocracia ao liberalismo, mais a crise do desenvolvimentismo
latino-americano e do nacionalismo africano, compõem o quadro inegável de
vitória do chamado capitalismo neoliberal.
Portanto, embora tenha sido capaz de derrotar
o tipo de capitalismo existente até a Segunda Guerra, e embora tenha sido capaz
de concorrer com o capitalismo pós Segunda Guerra, o socialismo de tipo
soviético não foi capaz de derrotar o capitalismo surgido a partir da crise dos
anos 1970.
Seja como for, é preciso destacar que o
tipo de socialismo que se instalou na URSS foi exitoso durante parte do século
20.
Exitoso não em comparação com algum
parâmetro abstrato, com alguma teoria prévia, com algum sonho; mas na
capacidade de enfrentar e/ou derrotar o capitalismo realmente existente no
mesmo período.
O socialismo soviético foi vitorioso em
Outubro e na Guerra Civil, suplantou o cerco imposto à União Soviética nos anos
1920 e 1930, assim como derrotou os nazistas durante a Segunda Guerra. Também
foi capaz de enfrentar e – por algum tempo e em alguns aspectos – empatar com o
capitalismo hegemônico entre o final da Segunda Guerra Mundial e os anos 1960.
Exemplos disso podem ser encontrados na
corrida espacial e armamentista, no processo de industrialização, crescimento e
desenvolvimento; na extensão dos direitos políticos e sociais, nos direitos da
mulher, no combate ao racismo, nas políticas de saúde, educação pública e habitação;
na ampliação do nível de cultura geral e política das massas.
Entretanto, como já dissemos, aquele
socialismo de tipo soviético não demonstrou ser capaz de enfrentar e muito
menos de derrotar o capitalismo que se tornou hegemônico a partir dos anos
1970.
Essa incapacidade de continuar competindo,
enfrentando, empatando e eventualmente até derrotando o capitalismo tem relação
não com o socialismo em geral, mas com o tipo de socialismo existente na URSS:
um “socialismo estatal” em que não apenas os principais meios de produção, mas
a quase totalidade dos meios de produção era de alguma maneira propriedade e
comandada pelo Estado.
A partir de certo momento, o socialismo
existente na URSS deixou de desenvolver as forças produtivas ao patamar necessário para enfrentar o capitalismo.
Impôs um nível de centralização que foi se tornando economicamente, “burocratizado e ineficiente, porque
não havia chegado ao patamar científico e tecnológico de poder atender a todas
as necessidades sociais”, inclusive porque “não havia tratado a concorrência
como um dos instrumentos para chegar a tal ponto”.
O que obviamente tem relação direta com a democracia,
“tanto no sentido econômico, de atendimento das
demandas, quanto” no sentido de controle social sobre o que produzir,
como produzir e como distribuir as riquezas que são produzidas coletivamente. Portanto,
não a relação com a democracia que os socialistas liberais imaginam existir.
A necessidade de fazer reformas no
socialismo soviético foi apontada pelos seus próprios dirigentes, diversas vezes.
Mas a combinação entre as resistências internas – não apenas de setores do
partido e do governo, mas também de setores da classe trabalhadora – e uma
espécie de “boom das commodities” fizeram com que o socialismo soviético
deixasse as reformas de lado e “deitasse no berço esplêndido”.
Num certo sentido, os soviéticos viveram o
seu melhor momento econômico e social nos anos 1970, o que contribuiu para não
realizar as reformas no momento em que elas tinham grande chance de êxito.
Já nos anos 1980, os problemas eram muito
maiores -- “com a escassez de bens de consumo criando o
hábito social de ‘carregar sacolas para aproveitar qualquer oferta oportuna’ ”—
e, portanto, as chances de uma reforma com êxito, muito menores.
Para agravar, a cúpula do PCUS decidiu
começar as reformas pela chamada glasnost (“transparência”), enfraquecendo o
poder do núcleo central do partido e do Estado. Acontece que num socialismo de
tipo puramente estatal, “a questão central residia em realizar reformas econômicas (perestroika),
que [entre outras mudanças] reintroduzissem o mercado como indutor do
desenvolvimento e do atendimento das necessidades sociais, fazendo com que o
comando e o planejamento central passassem a orientadores
do processo econômico.
O resultado da opção “glasnost first” foi agravar
os problemas, impossibilitando qualquer êxito na perestroika (reconstrução)
econômica e resultando no colapso final.
O colapso da URSS foi uma dupla vitória do
capital: uma vitória do capitalismo, mas também uma vitória de certas teses de
Marx e Engels acerca do que era a transição socialista, sobre a necessidade de
ter um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas para poder transitar
em direção a uma sociedade comunista etc.
O socialismo – ou seja, a transição ao
comunismo – supõe a ampliação do controle da sociedade sobre o que produzir,
como produzir e como distribuir. Mas, para que esse controle social não se
converta num obstáculo ao desenvolvimento da capacidade de atender as necessidades
sociais, é preciso que já tenha ocorrido e/ou que possa continuar ocorrendo o
desenvolvimento das forças produtivas.
Uma estatização completa ou quase completa
dos meios de produção pode, durante algum tempo, estimular esse
desenvolvimento; mas também pode, em determinadas condições, se converter em um
obstáculo para aquele desenvolvimento das forças produtivas e, inclusive, num
obstáculo para a ampliação da democracia.
Por essas e outras razões, é possível dizer
que o tipo de socialismo consolidado na URSS tinha tudo para não desembocar no
comunismo, mesmo que abstraídas as circunstâncias externas.
Ainda assim, o socialismo originado da
Revolução de 1917 cumpriu um papel histórico extremamente positivo, tanto
internamente quanto externamente.
Por exemplo, contribuindo direta ou
indiretamente para as lutas anticoloniais, anti-imperialistas, contra o
nazismo, pela paz, na solidariedade a muitos povos que viviam sob ditaduras.
Várias décadas passaram-se desde o fim da
URSS. E a Revolução Russa já é centenária. Apesar disso, debater a Revolução
Russa de Outubro de 1917 e seus desdobramentos, segue sendo algo muito atual,
por diversos motivos.
Vivemos m cenário internacional que possui
algumas semelhanças com o que ocorreu no início do século XX: o declínio da
potência hegemônica, a ascensão de novos polos de poder, o acirramento das
contradições intercapitalistas, a importância do capital financeiro e do imperialismo.
Malgrado as óbvias diferenças, o ambiente
de 2020 lembra em vários aspectos aquele que desembocou na Primeira Guerra
Mundial. Uma das várias semelhanças entre hoje e a situação vigente há cem
anos: a obscena desigualdade.
Como naquela época, vivemos em uma crise sistêmica;
e momentos assim tornam inescapável certa “volta aos clássicos”.
E a Revolução Russa de 1917 é um caso
clássico, do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do capitalismo e de suas
crises. Um caso tão clássico quanto o da Revolução Francesa de 1789, neste caso
do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do feudalismo e de suas crises.
Muitas das antigas questões voltaram a ser
ou pelo menos a parecer ser essenciais, porque a crise de 2008 e o que veio
depois colocaram com extrema força e urgência o debate sobre o capitalismo,
sobre as crises de acumulação, sobre o capital financeiro, sobre o papel do
Estado, sobre o imperialismo e as guerras.
Temas sobre os quais há contribuições relevantes
feitas pelos revolucionários russos, antes e depois de Outubro de 1917.
De maneira mais geral, a análise marxista
sobre o capitalismo voltou à moda. Análise que sempre foi muito cara para as
diferentes tradições socialistas existentes na Rússia −
anarquistas, populistas, social-democratas e comunistas--, que dedicaram grande
energia ao debate acerca do modo de produção capitalista, em particular à
discussão sobre seu desenvolvimento e crises.
A história é conhecida: logo depois da
primeira edição de O Capital, foi publicada uma tradução em russo.
A situação excêntrica do Império Russo, um
pé na Ásia e outro na Europa, um pé no feudalismo e outro no capitalismo, um pé
no atraso e outro na modernidade, obrigou os pensadores russos de todos os
matizes a se debruçar sobre a relação desigual entre desenvolvimento econômico
e desenvolvimento político, a dialética entre os diferentes tempos e conteúdos
da (re)evolução política e da (re)evolução econômico-social.
Cabe lembrar, também, que a tradição socialista
vitoriosa na Revolução de Outubro (os social-democratas da fração bolchevique,
que em 1918 adotaram o nome de “comunistas”) investiu grande parte de suas
energias no debate sobre o papel do proletariado na luta pela democracia e pelo
socialismo.
Num país onde o proletariado era uma
parcela diminuta da população, isto implicou em debater de maneira integrada a
relação entre “proletariado” e “campesinato”, entre “cidade” e “campo”, entre
“partido e classe”, entre “teoria” e “prática”, entre “ditadura” e
“democracia”. Questões que certas tradições acadêmicas tentam abordar
fragmentariamente, como “objetos” particulares da economia, da sociologia, da
política, da cultura, da história etc.
Pouco mais de cem anos depois, acompanhando
a difusão do capitalismo, a maior parte da população trabalhadora mundial é
assalariada.
Um proletariado que continua
“compartilhando” a condição de vítima da exploração capitalista com outra
classe, a dos trabalhadores pequenos proprietários.
Um proletariado que se tornou mais
universal, mas não se tornou mais homogêneo: tanto mundialmente quanto em cada
país, segue composto por diferentes frações econômico-sociais (por exemplo:
operários e não operários), atravessado por conflitos nacionais, étnicos, de
gênero, geracionais, culturais e religiosos.
Características que fazem com que o debate
sobre as formas de luta e de organização, de comunicação e cultura, especialmente
a necessidade de partidos políticos “de novo tipo”, ganhe novamente grande
importância no debate político contemporâneo.
E como fazer este debate, sem levar em
conta o que disseram e fizeram os revolucionários russos?
Há cem anos, como hoje, muitos socialistas
lamentavam a divisão nas forças da esquerda, as traições, as vacilações, o
ambiente de confusão e divisão existente na classe trabalhadora. E deduziam daí
que a revolução socialista seria adiada por muitos anos e décadas, pessimismo
reforçado –na época, como hoje-- por uma interpretação tosca acerca dos
caminhos pelos quais a quantidade se transforma em qualidade.
“Voltar aos 17” é também buscar descobrir
que condições objetivas e subjetivas fizeram com que uma situação de “defensiva
estratégica” fosse convertida numa “ofensiva revolucionária” que marcou a
história do século XX.
Para os que vivemos na América Latina e
Caribe, há mais uma causa que explica a retomada do interesse no debate sobre o
socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular.
Desde 1998 até hoje, vários países da
região foram (e alguns ainda continuam sendo) governados por partidos que
pretendem estar construindo o socialismo ou, pelo menos, caminhando em direção
a ele.
Isto produziu uma retomada do debate sobre
a transição socialista, debate que na América Latina e Caribe é temperado pelos
pontos de contato que existem entre o populismo russo do século XIX e a
“esquerda populista” do século XXI.
Os populistas russos, ao menos em sua
versão clássica, acreditavam que seria possível construir o socialismo sem
passar pelo capitalismo, tomando como ponto de apoio as tradições coletivistas
do campesinato russo.
O marxismo russo iniciou sua trajetória combatendo
essa teoria, mas o curso dos acontecimentos levou uma parte dos marxistas russos a
capitanear um experimento que foi considerado, por alguns de seus adversários
no movimento social-democrata, uma variante do “populismo”.
Posteriormente, todas as chamadas
revoluções socialistas do século XX ocorreram em países em que o capitalismo
estava pouco desenvolvido. Recolocando novamente a questão: quais os vínculos
entre a construção do socialismo e o desenvolvimento do capitalismo, nos planos
da economia, da sociedade, da cultura e da política?
Responder de forma sólida a esta questão supõe
revisitar o debate sobre a Revolução de Outubro, sobre o processo de construção
da União Soviética, sobre as concepções e as práticas do movimento comunista ao
longo do século XX. Debate que está sintetizado em expressões como:
“transição”, “socialismo”, “socialismo real”, “ditadura do proletariado”,
“estado operário burocraticamente degenerado”, “capitalismo de Estado”, “modo
de produção asiático”, “stalinismo”, “totalitarismo”, “social-imperialismo”.
Debate que reaparece nas diferentes caracterizações que se faz, hoje, acerca da
República Popular da China.
Como tantas outras obras humanas, a Revolução
Russa de Outubro de 1917 foi marcada por tragédias e crimes, lama e sangue, dor
e violência, imperfeições e debilidades. Mas, diferente de outras obras
humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 foi também um esforço titânico
para materializar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Metas algum
dia compartilhadas pela burguesia, mas que desde há muito constituem parte do
legado e patrimônio da classe trabalhadora.
Hoje, décadas depois do fim da URSS, parece
mais evidente que a contribuição global da Revolução de Outubro de 1917 para a
humanidade foi positiva. “Convicção” que pode ser sustentada com inúmeras
“provas”, entre as quais a contribuição que a Revolução deu para a luta pelos
direitos iguais para as mulheres; para a batalha por políticas públicas de
saúde, educação, cultura, esportes, habitação e transporte; para a adoção do
planejamento econômico; além da contribuição, direta e indireta, para a luta
contra o imperialismo, contra o colonialismo, o racismo e o nazismo, assim como
a luta em favor da paz. E também, acima de tudo, a tentativa de superar o
capitalismo e iniciar a transição socialista em direção a uma sociedade
comunista.
*
O debate sobre a Revolução Russa envolve os
antecedentes, seu contexto internacional, seus desdobramentos externos e
internos; a Guerra Civil de 1918-1921, a Nova Política Econômica de 1921 a
1929, a coletivização forçada e a industrialização acelerada dos anos 1930; as
transformações no Estado Soviético, no Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) e na Internacional Comunista; os efeitos da invasão nazista em 1941 e da
Grande Guerra Patriótica, seguidas da formação de governos comandados por
partidos comunistas em diversos países do Leste Europeu; a postura do PCUS e da
URSS na Guerra Fria, sua relação com as diferentes forças da esquerda no plano
mundial; as reformas e contrarreformas; e, finalmente, o colapso e
desaparecimento da União Soviética entre 1989 e 1991.
Há quem sustente que a URSS colapsou entre
1989-1991 por culpa da direção do PCUS, que teria aplicado uma política de
“traição ao socialismo”.
Outros relacionam o colapso à “estagnação”
ocorrida entre 1964 e 1985, que teria esclerosado o que restava de vital na
experiência socialista soviética.
Há quem aponte o dedo acusador para as
afirmações contidas no “relatório secreto” ao XX Congresso do PCUS, em 1956,
bem como às demais resoluções adotadas então.
E há quem considere que a origem última do
colapso da URSS remonta as opções feitas pela maioria dos comunistas soviéticos,
depois de 1924.
Claro que não faltam, também, os que acusam
os bolcheviques como um todo. Segundo esta vertente de análise, o Partido
Bolchevique, em outubro de 1917, teria dado um golpe de Estado e capturado para
“fins partidistas” o que até então seria uma revolução popular, autêntica e
democrática.
E, finalmente, há os que consideram que o
“pecado original” estaria em tentar fazer um processo de transformação social
por meios violentos.
Como é óbvio, as pessoas que darão aula
neste curso não compartilham estes dois últimos pontos de vista. Mas temos
diferentes opiniões acerca do restante.
#
Durante grande parte do século 19, e no
início do século 20, os revolucionários russos e europeus discutiam intensa e
abertamente qual seria a natureza da Revolução Russa, porque eles estavam
convictos de que a revolução viria. E mesmo os que achavam que esta revolução
seria burguesa, supunham que ela se encadearia com a revolução socialista na
Europa Ocidental.
Quanto a esta, a social-democracia revolucionária no século 19
imaginava que o processo de transição socialista ocorreria em primeiro lugar
nos países capitalistas avançados; seria intrinsecamente democrático; e –
passada a fase inicial da tomada e consolidação do poder – transcorreria em
condições pacíficas. Por quê?
Simplificadamente, porque se imaginava que
a revolução socialista triunfaria em primeiro lugar nos países capitalistas
mais desenvolvidos, onde o proletariado tendia a ser maioria relativa da
população. Portanto, onde a ditadura do proletariado seria uma ditadura da
maioria. De outro lado, como os países capitalistas mais avançados eram os
grandes promotores do imperialismo e da guerra, sua transformação em países
socialistas criaria um contexto propício à construção e evolução pacífica do
socialismo.
Como sabemos, não foi isso o que aconteceu.
A Revolução Russa veio e deu início a uma transição socialista, mas sem o concurso
de uma revolução nos países da Europa ocidental.
A Revolução de 1917 e as demais revoluções
socialistas do século 20 ocorreram em países onde o proletariado era minoria;
onde o capitalismo era relativamente pouco desenvolvido; e foram vítimas de sistemática
agressão econômica, política, ideológica e militar por parte das potências capitalistas.
Observando retrospectivamente, podemos
dizer que havia duas alternativas lógicas: ou abrir mão temporariamente da
revolução, esperando que o capitalismo “complete” as condições objetivas e subjetivas
supostamente ideais; ou insistir na revolução e, portanto, achar maneiras de enfrentar
o atraso econômico, o predomínio da pequena propriedade, o cerco e a agressão
capitalistas, buscando responder como, nesse contexto, impedir o regresso do
capitalismo e prosseguir na construção do socialismo.
Aceita esta segunda alternativa, decorre
que – no caso da URSS dos anos 1920-- não seria possível prolongar
indefinidamente a Nova Política Econômica, não apenas pelos motivos citados
antes, mas também por conta dos sinais crescentes de que ocorreria uma nova
guerra mundial.
E se a afirmação anterior é verdadeira,
cabe perguntar como conciliar uma “verdadeira democracia socialista”, com os conflitos
titânicos resultantes da decisão de realizar uma coletivização e industrialização
acelerada, nas condições históricas em que se realizaram aquelas ações.
#
O colapso da União Soviética possibilita
uma “autópsia” de parte dos debates e das teorias acerca da natureza do socialismo
soviético.
As teorias que falam do totalitarismo, por
exemplo, foram completamente desmoralizadas.
Elas foram estimuladas durante a Guerra
Fria, para tentar neutralizar o papel que a União Soviética jogou na luta
contra o nazismo; para tentar sequestrar em favor dos Estados Unidos e em favor
do capitalismo a luta pela democracia; e também para justificar a corrida
armamentista, pois supostamente a única maneira de destruir um inimigo “totalitário”
seria por meio da guerra.
As diversas variantes da “teoria” do totalitarismo
chegaram a ter a força de um preconceito, sendo comum que até mesmo pessoas de
esquerda continuem se referindo à União Soviética como “totalitária”.
A força dessa categoria aparece de maneira
indireta nas teses que atribuem o fim da URSS a algum fator externo, como se a
União Soviética fosse mesmo um monólito sem contradições internas, submetida a
um controle “totalitário”, uma ditadura “total” que, semelhante ao nazismo, só
poderia ser destruída a partir de fora.
Outro
(paradoxal) exemplo da influência que as teorias do totalitarismo
tiveram e têm sobre pessoas de esquerda, é a crença de que os Estados e as
sociedades produto das revoluções socialistas seriam “indestrutíveis” e “irreversíveis”,
o que há quem diga inclusive sobre processos (revolucionários ou não) que estão
em curso neste momento.
Mas a experiência da própria URSS
demonstrou que as revoluções e as sociedades produto delas são reversíveis,
também podem ser derrotadas.
O colapso da União Soviética mostrou,
ainda, a artificialidade das teorias que advogavam a existência que naquela sociedade
existiria outro modo de produção. Ou de que não seria socialismo, mas sim apenas
capitalismo de Estado.
De fato, a hipótese de que a União Soviética
era uma sociedade socialista, portanto que tentava realizar a transição entre o
capitalismo e o comunismo, é perfeitamente suficiente para “enquadrar” e compreender
o que ocorreu, desde 1917 até o colapso. Sem prejuízo, óbvio, de aceitar e
reconhecer que a formação soviética também incluía o capitalismo de Estado e
outras relações de produção.
O colapso de 1991 também mostrou as
debilidades das teses que afirmavam que a URSS seria “o” modelo do socialismo
realmente existente.
Quem acreditava nisso, depois do colapso
muito facilmente passou a acreditar que o socialismo se demonstrara impossível,
ou seja, que o fim da União Soviética (do suposto modelo) seria o fim de todo o
socialismo.
Isso ajuda a entender, aliás, por que
muitos dos partidários daquela tese passaram para o outro lado. Boa parte dos
burocratas dos partidos que dirigiam o socialismo de tipo soviético mudaram de
lado.
Seja como for, o fato é que a sobrevivência
e a decolagem da China mostraram que o modelo soviético não era o único tipo, a
única variante, do socialismo realmente existente.
Aliás, devemos ir além e dizer que nunca
houve e segue não havendo “modelos”. Assim como a transição do feudalismo para
o capitalismo seguiu diferentes caminhos e assumiu diferentes formas, também a
transição socialista assumiu no passado e seguirá assumindo no futuro diferentes
caminhos e formas.
Aliás, a trajetória da própria União
Soviética é, em si mesma, uma demonstração de que é possível organizar de várias
formas uma sociedade socialista.
Podemos dizer, finalmente, que o colapso da
URSS também mostrou as debilidades das diferentes teses segundo a qual existiria
ali um “estado operário burocraticamente degenerado”, que deveria ser resgatado
por uma “revolução política”, mecanismo supostamente capaz de redemocratizar a
experiência soviética e revitalizar o socialismo. Assunto que será desenvolvido
em outras aulas deste curso.
*
Até agora, falamos da Revolução Russa e de
todo o restante, sem citar o nome de ninguém. Mas é óbvio que a história é a
ação de homens e mulheres.
Em 1845, aquela famosa dupla sertaneja
alemã afirmou, em A sagrada família, o seguinte: A história
nada faz, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”.
É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a
“história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins
particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu
objetivo…
E, 45 anos depois, em 1890, em uma carta, o
sobrevivente da dupla sertaneja alemã diria o seguinte: “a história é feita
de maneira que o resultado final sempre surge da conflitante relação entre
muitas vontades individuais, cada qual destas vontades feita em condições particulares
de vida. Portanto, é a intersecção de numerosas forças, uma série infinita de
paralelogramos de forças, que resulta em um dado evento histórico. Isto pode
ser novamente interpretado de modo equívoco, sendo visto como um produto de um
poder que trabalha como um todo, inconscientemente e sem vontade. Cada vontade
individual é obstruída por outra vontade individual e o que emerge é uma
vontade final não antecipada pelas singularidades envolvidas. Assim, a história procede na forma de um
processo natural e é essencialmente sujeitas às leis do movimento. Mas do fato
de que as vontades individuais — das quais os desejos que impelem pela
constituição física ou externamente e, em último lugar, pelas circunstâncias
econômicas (sejam pessoais ou aquelas da sociedade em geral) — não obtém o que
querem, mas tem suas vontades amalgamadas em um sentido coletivo, um resultante
comum, não deve ser concluído que seus valores são iguais a zero. Ao contrário,
cada parte singular contribui para o resultado e é, em certo grau, envolvido
com esta soma final”.
O que foi dito antes tem relação com o que
buscaremos fazer neste curso: discutir a contribuição de cada parte singular
para o resultado histórico.
Assim, de toda a população da Terra no
período analisado, de toda a população da sociedade russa e soviética no período
analisado, de toda as classes trabalhadoras russa e soviética no período
analisado, de todas as correntes socialistas no período citado, do bolchevismo
e comunismo soviético no período analisado, vamos nos debruçar sobre dois
personagens singulares: Trotski e Stalin, cuja vida e obra serão abordados em
outras aulas.
A revolução russa foi obra de dezenas de milhões.
E destas dezenas de milhões, algumas dezenas de milhares destacaram-se na
direção dos partidos, dos sovietes, do comissariado do povo, do Estado e do
Exército Vermelho. Destas dezenas de milhares, um pequeno número, algo entre 5
mil e exatos 246, constituíam uma espécie de “velha guarda”. E desta velha
guarda, há pelo menos 7 que são impossíveis de não citar: Nikolái Ivánovich
Bujarin; Lev Borisovich Kamenev; Vladimir Ilich Lenin; Iosif Stalin; Yákov
Mijailovich Svérdlov; Lev Davuídovich Trotsky; Gregori Evséevich Zinoviev.
Sverdlov nasceu em 1885 e morreu em 1919 (de
tifo, tuberculose ou gripe espanhola). Para nós, de outras gerações, é o menos
conhecido, mas formou parte do núcleo mais duro e restrito do partido
bolchevique antes e durante a revolução.
Lenin nasceu em 1870 e morreu em 1924. Não
é preciso falar, aqui, a seu respeito.
Kamenev e Zinoviev nasceram em 1883 e foram
executados em 1936, como parte dos chamados “Processos de Moscou”. Zinoviev assumiu
um papel destacado num certo período da Internacional Comunista.
Bukarin nasceu em 1888 e foi executado em
1938, também como decorrência dos chamados Processos de Moscou. Além de também jogar
um papel destacado na Internacional Comunista, Bukharin foi autor de diversos
textos importantes nos debates do período, é bom dizer que defendendo posições
muito diferentes entre si (ele foi, por exemplo, tanto um defensor radical do
Comunismo de Guerra, quanto um defensor da NEP).
Stálin e Trotsky nasceram em 1879. Trotsky
foi assassinado em 1940. Stalin morreu em 1953. São os principais personagens
deste nosso curso e, como já disse, sua vida e obra serão abordadas em detalhe em
outras aulas.
Aos que estiverem interessados em ler acerca
do “papel da personalidade na história”, vinculando isto especificamente ao debate
sobre a Revolução Russa, recomendo ler:
-as biografias de Trotsky e de Stalin,
escritas por Isaac Deutscher;
-o capítulo intitulado “Personalidades, da obra
Historia de la Rusia Sovietica do historiador E.H.Carr, volume “El
socialismo em um solo país 1924-1926”;
-e o interessantíssimo Los
bolcheviques, de Georges Haupt e Jean-Jacques Marie.
Por fim, um alerta: a luta política na
Rússia, antes e depois da Revolução de 1917, nunca foi tranquila. E a luta
interna no Partido Operário Social Democrata Russo, assim como no PC russo e
depois soviético, sempre foi muito dura. Portanto, preparem vosso coração.
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