sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Quarta parte de O presente de Dirceu


Para quem deseje ler as partes anteriores, favor acessar o seguinte endereço:

Interrompemos a parte anterior, com as reflexões de Dirceu na véspera do 2º Congresso do Partido. Segundo ele, na página 306:
“Eu tinha convicção de só alcançaria outro mandato com eleição direta, legitimando e cimentando uma maioria partidária. Seria importante superar as amarras da disputa e das eleições restritas, cada vez mais às tendências, inclusive à Articulação.”
“Persuadido do erro do 1º Congresso, com suas teses de partido de interlocução, e da necessidade de criar um ‘campo majoritário’ claramente sob nossa liderança, radicalizei: além de me opor ao ‘Fora FHC’, propus a eleição direta e a formação da nova aliança que, de certa forma, ‘distendia’ a Articulação.”
“A Articulação dos 113 exercera a maioria até então, mas estava evidente que sem uma aliança com outras forças, sozinhos, não venceríamos, daí a ideia da criação do ‘campo majoritário’ com outras tendências à esquerda e mesmo ao centro do espectro ideológico e programático do PT.”

As “lembranças” acima são muito curiosas. Se consultarmos a imprensa, encontraremos Dirceu dizendo na época exatamente o contrário do que diz em suas Memórias: “vou trabalhar para desbloquear o PT e acabar com essa história de campo majoritário e minoritário” (a citação foi retirada de um texto publicado no dia seguinte a eleição de Dirceu no 2º Congresso e por ser lida aqui: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2911199914.htm)

E, forçando minhas lembranças, lembro que este discurso de “desbloquear” foi utilizado à época com o objetivo de dividir a minoria, que no 2º Congresso se dividiu em duas candidaturas: Milton Temer (32,7%) e Arlindo Chinaglia (12%).

Mas as Memórias dizem que o objetivo real era compor um campo majoritário ainda mais forte e ampliado. Objetivo que efetivamente se realizaria no futuro, com desdobramentos que não foram saudáveis para o Partido.

Outra curiosidade é que Dirceu fala da Articulação dos 113, não da Articulação Unidade na Luta.  Não é um detalhe, evidentemente: trata-se de uma tentativa consciente ou inconsciente de legitimar, com base no passado, as ações do presente.

A questão é: no caso específico, falar da Articulação dos 113 serve para encobrir uma diferença profunda entre a atitude da maioria partidária nos anos 1980 e a atitude da maioria partidária que vai se consolidar sob a direção de Dirceu.

A diferença, na minha opinião, reside no seguinte: o “campo majoritário” vai adotar, pouco a pouco, uma dinâmica de partido-dentro-do-partido.  Em 1999 os problemas decorrentes disto podiam ser apenas uma hipótese; hoje, em 2018, os problemas decorrentes disto estão no centro da crise vivida pelo PT.

Voltemos a Dirceu, na página 306:
“Tarso assumiu a candidatura como um corpo estranho (...) para a maioria das lideranças e à militância. Aos poucos isso foi ficando claro e os incidentes foram aumentando à medida que ele dava declarações e se articulava.
Ocorreu uma rebelião espontânea e depois articulada em favor da minha permanência. Algo revelador da artificialidade da pré-candidatura de Tarso e do despropósito de me substituir. Sem que isso signifique que Tarso não tivesse legitimidade ou o direito de pleiteá-la, mas não com o apoio da Articulação.”

Confesso que não tenho lembrança disto que Dirceu fala, mas lembro muito bem do recuo de Tarso na defesa do “Fora FHC”.

Entretanto, se é verdade o que diz Dirceu, que a candidatura de Tarso foi articulada originalmente por Lula, caberia uma reflexão mais sistemática sobre as relações entre Lula, Dirceu e a Articulação. Mas esta reflexão não aparece, curiosamente.

Na mesma linha das curiosidades, Dirceu omite uma referência que julgo importante, acerca do envolvimento direto de Cristovam Buarque na proposta de eleições diretas para a presidência nacional do PT.  

Seja como for, fica claro que o objetivo das “diretas” era consolidar o poder do grupo dirigente do Partido; “arejar o partido” (308), a democratização da vida interna, era um argumento, mas não o objetivo real.

Na página 307, em mais uma demonstração da obsessão (insisto na palavra) de Dirceu com a Articulação de Esquerda, ele informa:
“Enfraquecida, a Articulação de Esquerda obteve 20,85% e a Democracia Socialista, 9,86%. Era a retomada da hegemonia da Articulação, que ainda dialogava e se aliava em questões centrais com o Movimento PT (12,7%) e PTLM (2,85%).”

Note que Dirceu não “monitora” o fortalecimento  ou enfraquecimento de nenhuma outra tendência, salvo a sua própria e a AE.

Mas o mais importante deste capítulo, sem dúvida, é a reflexão de Dirceu sobre o “Fora FHC”. Segundo ele, nas páginas 307 e 308, a agenda oculta dos que propunham isto era:
 “derrubar o governo FHC nas ruas. Mas essa tática nunca foi colocada e, além de inviável, seria uma irresponsabilidade e uma aventura que poderia custar ao PT e ao país uma ou duas décadas de retrocesso democrático”.

É curioso ler isto, em 2018. Independente da discussão sobre o que propunha, de fato, os que defendiam o Fora FHC, é evidente que há um fio de continuidade entre a postura de Dirceu frente ao governo  FHC, a postura que o governo Lula adotaria diante da herança maldita que recebera e o espaço que o PSDB teve para se rearticular, fazer oposição e finalmente dirigir o golpe contra nós em 2016.

Aliás, sobre o tema da hegemonia tucana, Dirceu dá opiniões totalmente dispares.

Na página 300, Dirceu dirá em 1998 “o ciclo de FHC não acabara e a hegemonia política e cultural das ideias neoliberais persistia”.

na página 309 ele diz que:
 “a despeito de todo o alarido da mídia e da maioria situacionista no Congresso, o governo FHC nunca hegemonizou – com sua doutrina da globalização dependente, versão tupiniquim para o neoliberalismo—a maioria da sociedade, cuja memória histórica é amplamente democrática, nacionalista e por um estado de bem estar-social”.

Nesta questão, como em outros temas (o da luta armada, por exemplo), Dirceu faz afirmações absolutamente contraditórias. Não se trata, a meu ver, de um problema de revisão, nem apenas de inconsistências pontuais. Tem relação com algo, falando do Partido Comunista, um autor chamou de “duas almas”.

É isso que permite a Dirceu, sem dar-se conta da contradição, ziguezaguear de afirmações recuadas até frases do tipo:
“Desde 1998, meu sonho era eleger Lula presidente e fazer do PT um partido nacional, de trabalhadores e excluídos, alternativa de governo, aberto às alianças e com um programa de ruptura do neoliberalismo. Além de democrático e popular, capaz de pagar a dívida social histórica e abrir caminho por reformas estruturais, a razão de ser e de luta de minha geração.”

Ainda neste capítulo, nas páginas 311 e 312, Dirceu fala brevemente sobre o assassinato de Toninho e Celso Daniel. Sobre Toninho, ele afirma que “foi executado por motivos políticos claros”. Quais? Não diz. Em seguida fala do “bárbaro assassinato” de Celso Daniel e conclui ser “muita coincidência, quase inverossímil que, em quatro meses, dois dos principais prefeitos do PT tenham sido mortos”.

Em seguida o texto trata da sucessão de FHC, do PED e do encontro nacional do PT em Recife. Notem que, como é natural em se tratando de lembranças, a sequência dos temas não corresponde a cronologia dos fatos. Toninho estava vivo quando do PED e Daniel foi ativo no encontro de Recife. Para quem lê as Memórias, esta é uma dificuldade a ser levada em conta.

Na página 314 Dirceu apresenta um relato e um balanço do PED. Diz que chegou a “defender que simpatizantes do PT votassem, um exagero só como força de expressão”.  Registra, desta vez sem comentários, que Júlio Quadros da Articulação de Esquerda, obteve 15,17% dos votos. E arremata assim:
“Era uma reviravolta na dinâmica das tendências e no debate petista, criticado por coincidir o debate das teses com a eleição direta e de levar-nos a copiar o sufrágio universal. O PED, processo de eleição direta, não só democratizou a disputa como também deu voz ao filiado sem tendência. Os vícios apontados no PED, deficiência no debate e abuso do poder, seja dos mandatos, seja do aparelho partidário, seja financeiro, já existiam e poderiam acontecer tanto na eleição direta como na indireta, assim como a deficiência e a ausência de debate, vícios a serem combatidos independentemente da forma da eleição do presidente. A verdade nua e crua residia no seguinte: as tendências se opunham e se opõem à eleição direta porque perderam o poder de restringir o PT a um partido exclusivo de militantes, congelando e ossificando a vida partidária. Era a concepção, sempre presente, de partido de vanguarda.”

Certas hábitos de linguagem são perdoáveis quando se trata de lembranças, de memórias, de uma autobiografia. 

Por exemplo, falar das "tendências", como se as tendências fossem os outros e quem fala, falasse em nome do partido como um todo.

Outro exemplo, falar de "verdade nua e crua", sem preocupar-se em provar a afirmação.

Vejamos:

-para enfrentar o golpe de 2016, nos fez imensa falta um partido mais organizado, com uma estrutura militante capaz de mobilizar a sociedade. Esta falta não teria relação direta com o PED?

-observando o que ocorreu desde 2001 até agora, não seria verdade que o PED reduziu o poder do filiado a votar uma vez a cada X anos?

-não seria verdade que o PED aumentou o poder das cúpulas das tendências, afinal são elas que montam as chapas, são elas que decidem quem fará parte das direções e das delegações?

-finalmente, por acaso as direções resultantes do PED são superiores as que resultavam dos encontros partidários? E a resposta para esta questão não teria alguma relação com o método de eleição?

-o modelo de que o presidente do Partido é eleito em votação separada criou uma instância (“a presidência do Partido”). Esta instância a parte certamente foi funcional para Dirceu gerenciar o PT e lidar com Lula. Mas quando Dirceu deixou de ser presidente do Partido, o modelo institucional do presidente eleito à parte não teria se convertido num problema inclusive para os que o criaram?

Voltaremos ao assunto na quinta parte deste texto.

(Sem revisão. Agradeço a quem se disponha a indicar eventuais erros de digitação ou mesmo informações equivocadas.)








                                                                                             





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