terça-feira, 11 de setembro de 2018

O presente de Dirceu (versão integral)


Mês de aniversário, quando os amigos lembram, é sempre uma felicidade. Mas o que não tem preço mesmo é quando os adversários lembram.

Mesmo que não fosse essa a intenção, é assim que devem ser encaradas as agressivas referências que José Dirceu faz acerca da Articulação de Esquerda, no recém-lançado volume I de suas Memórias.

Acerca do livro como um todo, escrevi uma resenha para a revista Teoria e Debate, disponível aqui:


Como se tratava de uma resenha para o público em geral, preferi deixar para outros textos uma análise dos inúmeros problemas que o livro de Dirceu tem, quando se dedica a descrever e a analisar a história do Partido.

É o que busquei fazer numa série de oito pequenos textos, que agora eu reúno num único.

Aproveito para solicitar que eventuais erros, imprecisões ou lacunas me sejam comunicadas.

I)

Nesta parte, abordarei as referências que Dirceu faz a atuação da Articulação de Esquerda no período 1993-1995. 

Mais exatamente, vou me limitar a corrigir o que considero imprecisões ou erros factuais. Noutros textos, abordarei outros períodos e também farei a crítica da interpretação feita por Dirceu.

Salvo engano, a primeira referência de Dirceu à Articulação de Esquerda aparece na página 235:

“(...) perdi a liderança para Vladimir Palmeira, meu amigo, irmão e companheiro. Seria uma das muitas contendas difíceis entre nós. Essa, marcada pelo confronto interno. Erroneamente, segmentos à esquerda que, depois constituiriam a corrente Hora da Verdade, que juntamente com a Articulação de Esquerda, se aliaram com a Democracia Socialista (DS), Força Socialista (FS) e aos parlamentares ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e me derrotaram por um voto.”

A disputa pela liderança entre Dirceu e Palmeira ocorreu em dezembro de 1992.

O manifesto “A hora da verdade” foi divulgado em fevereiro de 1993.

A Articulação de Esquerda seria fundada em setembro de 1993, pelos que foram signatários do referido manifesto.

Portanto, o que de fato ocorreu em dezembro de 1992 foi que deputados e deputadas ligados a Articulação dos 113 optaram por votar em Vladimir Palmeira.

Entre estes deputados da Articulação dos 113, estavam alguns que tinham vínculos com o MST e que futuramente assinariam o manifesto “A hora da Verdade” e participariam da fundação da Articulação de Esquerda.

A segunda referência feita por José Dirceu a Articulação de Esquerda está em dois trechos da página 257 e depois na página 258:

“Como era esperado, o 8º Encontro, realizado em Brasilia, concretizou a divisão da Articulação, com o surgimento da Hora da Verdade, depois Articulação de Esquerda”.
(...)
“Uma recaída vanguardista em contraposição a um partido real, cada vez mais parlamentar e de governo. Operava-se um descolamento entre a nova maioria e a própria base social do PT, sindical e popular, majoritariamente alinhada com Lula e a [Articulação] Unidade e Luta. Era uma vanguarda de quadros oriundos da esquerda organizada e da Articulação: Rui Falcão, David Capistrano, Valter Pomar, Candido Vaccarezza, José Mentor e José Américo. Sob a liderança de Rui Falcão e Valter Pomar que rompeu a aliança que deu origem à Articulação e dirigiu o PT por dez anos: esquerda, sindicalistas e lideranças católicas populares”.

O curioso é que esta “nova maioria” ganhou o 8º Encontro de 1993, ganhou o 9º Encontro de 1994 e perdeu por apenas dois votos o 10º Encontro em 1995.

E, conforme o próprio Dirceu explicará mais adiante em suas Memórias, a diferença de dois votos foi possível porque alguns delegados romperam com a Articulação de Esquerda e votaram na chapa encabeçada por Dirceu.

Sendo assim, há duas hipóteses:

a) ou bem as regras vigentes na época distorciam a representação da base social nos congressos;

b) ou bem não é adequado falar em “fosso”, pois a maioria de esquerda que dirigiu o PT entre 1993 e 1995 tinha base real.

Esta segunda hipótese pode ser comprovada nos encontros e congressos seguintes, todos muito disputados.

Outra curiosidade: ao contrário do que diz Dirceu, José Américo nunca foi da Articulação de Esquerda, nem do Hora da Verdade.

Pelo contrário, em 1993 ele foi o candidato da Articulação Unidade Na Luta à presidência do PT São Paulo, derrotado por Arlindo Chinaglia candidato da Hora da Verdade.

Uma terceira curiosidade: todos os nomes citados por Dirceu são paulistas. 

Mas fora de São Paulo, o manifesto a Hora da Verdade teria grande adesão por exemplo em lideranças petistas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Rio de Janeiro, no Pará, para ficar apenas nestes exemplos. 

E mesmo em São Paulo havia lideranças muito mais importantes do que a deste escrevinhador, a começar por Sílvio Pereira, pessoa que era extremamente ligado a José Dirceu e que ele praticamente excluiu de suas Memórias, exceto uma única referência relativa a sua desfiliação do Partido, em 2005.

Na página 259, Dirceu volta a falar da Articulação de Esquerda:
“Note-se que a dissidência dentro da Articulação se voltou, em grande medida, contra meu papel na direção partidária e na Articulação. A pressão para barrar minha eleição como líder da bancada era parte desse movimento. Após a criação da Hora da Verdade e da Nova Esquerda, meus ex-companheiros de décadas, no caso Rui Falcão e mesmo Valter Pomar, praticamente vetaram meu nome e me excluíram, como um “traidor”, de toda participação. Com violência verbal e agressividade política, uniram-se ao grupo de David Capistrano – que eu trouxera para a legenda – para me combater pessoalmente. Um grau de sectarismo ainda não presente no PT.”

Comecemos por uma imprecisão: a “Nova Esquerda” foi criada antes do 1º Congresso do PT, por egressos do Partido Revolucionário Comunista.

Isto é explicado por Dirceu nas páginas 240 e 241 de suas Memórias.

Portanto, no trecho acima citado, retirado da página 259, Dirceu deve estar querendo referir-se a Articulação de Esquerda, fundada como já se disse em setembro de 1993.

O mesmo erro é cometido na página 257, onde se poder ler o seguinte: 

"[no oitavo encontro] a Nova Esquerda assumiu a maioria do partido, mas não sua direção real."

Em segundo lugar: desde o início, a expectativa de parte importante dos que criaram o Hora da Verdade era a de que José Dirceu fizesse parte do movimento e, mais ainda, que fosse nosso candidato à presidência nacional do Partido.

Até porque Dirceu estava sendo, como ele próprio reconhece em suas Memórias, hostilizado pela direita da Articulação.

Foi Dirceu que escolheu não assinar o manifesto Hora da Verdade.

Que ele não lembre disto ou recorde de outro jeito, vá lá.

Que ele trate Rui Falcão como “ex-companheiro”, que se há de fazer.

Mas que ele reclame de “agressividade verbal”, “violência política” e um grau de sectarismo “ainda não presente no PT”, buenas: esta vitimização não condiz com os fatos, nem fica bem na boca do personagem em questão.

Quanto a mim, em 1993 não tinha nem mesmo idade para ser companheiro de “décadas” de Dirceu, o que revela que estou na frase apenas para fazer companhia a Rui Falcão, este sim o verdadeiro e neste caso totalmente imerecido alvo do ataque.

Dirceu volta a citar a Articulação de Esquerda na página 264, quando fala de sua candidatura ao governo do estado de São Paulo:

“Minha candidatura foi um erro e um fracasso. Não pela candidatura em si, mais pelo cenário e as circunstâncias. Primeiro, disputei uma prévia dura, expressão do confronto entre a Hora da Verdade e a Articulação, mas, especificamente, contra a minha candidatura e liderança no PT. A disputa dividiu a base do partido, mas não as lideranças. Tive o apoio da maioria dos parlamentares e prefeitos e da Articulação. Mas não da Hora da Verdade e da categoria dos bancários, que tinham o maior sindicato depois dos metalúrgicos do ABC e contra quem batalhavam pela liderança da CUT.”

Aqui há outra imprecisão: a maior parte da Hora da Verdade, já então intitulada nacionalmente de Articulação de Esquerda, apoiou nas prévias a candidatura de Dirceu.

A principal exceção foi David Capistrano, sobre quem voltaremos a falar em seguida.

Já Telma de Souza era uma militante da Articulação Unidade na Luta.

Aliás, por se tratar de uma prévia entre duas lideranças da Unidade na Luta, algumas poucas pessoas (eu inclusive) optamos por não apoiar, nas prévias, nenhuma das candidaturas.

Por qual motivo o grupo majoritário no Sindicato dos Bancários, liderado por Gushiken, apoiou Telma?

Porque havia uma minoria naquele sindicato, minoria que tinha entre seus líderes Lucas Buzato, minoria que fazia parte da Hora da Verdade e que na disputa do sindicato tinha o apoio de Dirceu.

Portanto, Dirceu esquece:

a) que sua candidatura nas prévias foi apoiada por grande parte dos paulistas do movimento Hora da Verdade;

b) que seus principais oponentes eram da Articulação Unidade na Luta, seja os sindicalistas bancários liderados por Gushiken, seja a própria Telma de Souza.

Vejamos agora o que Dirceu fala de David Capistrano, na página 264:

“Davi (...) chegou a me propor um acordo: eu reconheceria a vitória da Telma e eles me apoiariam para deputado, solução típica do PCB e da Hora da Verdade”.

Nunca ouvi falar desta proposta e Capistrano não está mais entre nós. 

Seja como for, é uma distorção afirmar ser “típica” do “PCB e da Hora da Verdade” uma proposta que teria sido feita em nome de uma candidatura que não era da Hora da Verdade, nem era apoiada pela maioria dos integrantes da Hora da Verdade.

Aliás, Vaccareza e Rui Falcão apoiaram Dirceu e eu, pelos motivos já explicados, não apoiei ninguém.

Agrego ao que foi dito até agora algumas lembranças do então presidente estadual do PT São Paulo, o hoje deputado federal Arlindo Chinaglia:

“quando da candidatura do ZD ao governo e nas prévias eu presidia o PT. Ele ganhou as prévias especialmente pelo resultado de Diadema, que a Telma quis anular e não permitimos. Eu seria o coordenador de campanha dele por ser presidente. Mas sendo candidato a deputado, indiquei o Vaccareza para tal função. Zé Dirceu estava de acordo”.

As lembranças acima confirmam o que vem sendo dito aqui, a saber, que as lembranças de Zé Dirceu sobre o papel da Articulação de Esquerda nas prévias para governador de São Paulo em 1994 contém lacunas, imprecisões e erros gravíssimos.

Dirceu volta a falar da Articulação de Esquerda nas páginas 273 e 274, quando trata de sua tática para vencer o 10º encontro nacional do PT, realizado em 1995:

“era apostar numa derrota certa, a não ser que, além de compor com o Na Luta PT, fizéssemos uma aliança, depois na presidência, com a DR e os dissidentes da AE, da corrente Velhos Sonhos, Novos Desafios”.
“O desgaste da Unidade na Luta só não era maior do que o da AE. Carregávamos a imagem do 1º Congresso, da ‘aliança’ com o PSDB, enquanto a AE arcara com o ônus do ‘Fora Itamar’ e, principalmente, da campanha desastrada e desastrosa de 1994. Com a incapacidade de dirigir o PT, avessa às alianças, sem políticas para os governos, cada vez mais voltada para a luta interna e suas dissidências, a AE não era mais uma alternativa. Tivera sua chance e fracassara. Mas não me enganei ao avaliar os obstáculos para articular a mínima unidade entre forças tão díspares como a DR, Na Luta PT e Velhos Sonhos”.
“Um ponto unia a todos: a falta de legitimidade e capacidade de dirigir da aliança liderada por Rui Falcão, Vacarezza e Capistrano, apoiada por Vladimir Palmeira, Jaques Wagner e Tilden Santiago e reforçada pela determinação de Valter Pomar, contando também com o respaldo implícito do MST, então discreto, mas presente. Plínio de Arruda Sampaio já se bandeava para as hostes ‘esquerdistas’ e, como ‘cristão novo’, era dos mais sectários e ambiciosos. Sob a capa aristocrática de intelectual, era o pré-candidato a presidente pela AE. Certo da vitória, chegou a me propor a retirada do meu nome da eleição para que pudesse ser indicado por acordo”.

Para começo de conversa, o Encontro de Guarapari foi disputado por quatro chapas.

Na votação feita ao final do encontro, a chapa da Articulação  Unidade na Luta teve 165 votos. A chapa da Democracia Radical teve 31 votos. A chapa Velhos sonhos, Novos desafios teve 24 votos. Já a esquerda apresentou uma chapa única, intitulada Socialismo e democracia, reunindo Na Luta PT e Opção de Esquerda, onde estava a Articulação de Esquerda. Esta chapa Socialismo e democracia teve 189 votos. Ao todo havia 414 delegados.

Já na disputa da presidência, Dirceu recebeu 215 votos, Hamiltom Pereira recebeu 183 votos e registraram-se 16 votos em branco.

A diferença de dois votos a favor da chapa de Dirceu se deu na disputa da tese guia, que foi feito no início do encontro, em plenário, com crachá levantado.

Os números podem ser interpretados de várias maneiras, mas está claro que a vitória de Dirceu e de sua chapa não estão relacionados ao Na Luta PT (que apoiou Hamilton e a chapa Socialismo e Democracia), mas sim ao apoio da chapa Velhos sonhos, novos desafios.

E quem era esta chapa? Em sua maioria, era composta por delegados vinculados ao movimento Hora da Verdade do estado de São Paulo, a começar por Rui Falcão e Vaccarezza.

Sendo assim, chega a ser bizarro dizer que um ponto que “unia a todos” – incluindo neste “todos” a chapa Velhos Sonhos --  seria a “falta de legitimidade e capacidade de dirigir da aliança liderada” exatamente por Rui Falcão e Vacarezza.

Outro ponto: a chapa da esquerda petista analisou várias alternativas de candidatura. Plínio de Arruda Sampaio foi uma delas, mas ele não era o candidato especificamente “da AE”. Aliás, a relação de Plínio com a AE nunca foi tranquila, como Dirceu certamente sabe.

Na mesma página 274, Dirceu o seguinte:

“a derrota da AE ocorreria por sua incapacidade de estruturar novas políticas e estratégias para a legenda. Era só uma nova  tentações direitistas da Articulação e da DR. A campanha de Lula desmascarara a AE. Era o colapso de uma ilusão.”
(...)
 “era o esgotamento de uma direção esquizofrênica, sem votos, sem representatividade e, com raras exceções, descolada das lideranças sindicais, populares e parlamentares, incapaz de governar com os governos petistas”.

Como se pode confirmar pelas linhas acima, Dirceu não tem nada de positivo a falar sobre a Articulação de Esquerda do biênio 1993-1995.

O curioso, como já dissemos, é que sua chapa e candidatura venceram a disputa graças ao apoio recebido pelos delegados liderados por Rui Falcão, Candido Vaccarezza, José Mentor e Sílvio Pereira, exatamente os líderes paulistas e em alguns casos nacionais do tal HV que ele desanca sem dó nem piedade.

A contradição não fica totalmente evidente, porque ele confunde o leitor falando do apoio do Na Luta PT (apoio que não existiu) e do Velhos Sonhos (que era uma chapa composta majoritariamente por delegados do HV de São Paulo).

O mais chocante é que a tendência que Dirceu desqualifica com tanto dureza foi capaz de organizar uma chapa que teve mais votos que a sua; uma chapa que poderia ter vencido o 10º Encontro, não fosse pela dissidência já citada; uma chapa que lançou como candidato Hamilton Pereira, a quem ele cobre de elogios e que recebeu 45% dos votos.

Dirceu também se refere, na página 275, ao seguinte:

“o nível de radicalização no Encontro ficou marcado pela ´denúncia´contra mim, de um dos membros da AE. Segundo ele, eu teria recebido doações da Odebrecht, o que era verdade, mas a doação era legal e declarada à Justiça Eleitoral”.

O fato ocorreu, mas Dirceu deveria contar não apenas o milagre, mas também o santo: o delegado em questão era César Benjamin. 

Naquele momento Benjamim era membro do Diretório Nacional do PT, eleito pela chapa da Articulação de Esquerda. E foi indicado pela Articulação de Esquerda para falar em defesa da candidatura de Hamilton Pereira. Portanto, a responsabilidade política pelo que ele disse, sem sombra de dúvida, cabe em primeiro lugar à AE.

Mas Dirceu sabe muito bem que o discurso de Benjamin foi um “improviso” deste cidadão, que não foi discutido previamente com ninguém. Aliás, dias depois César Benjamin desfiliou-se do PT.

O que chama a atenção, nesta e em outras passagens, não são apenas os erros factuais, que poderiam ser corrigidos com uma adequada revisão.

O que chama a atenção é que Dirceu às vezes relata os fatos do passado tal e qual ele os viveu e percebeu naquela época, sem nenhuma mediação, sem nenhum comentário, sem nenhuma “nota de rodapé”, às vezes com o mesmo sectarismo da época, sectarismo que ele atribui apenas aos outros.

Com isso, ele perde a chance de fazer uma análise retrospectiva mais equilibrada das razões e desrazões de cada um dos protagonistas daquela época.

O curioso é que em várias passagens das MemóriasDirceu consegue fazer isto. Mas em alguns casos, como neste da Articulação de Esquerda, ele parece ter um bloqueio.

Noutro texto voltarei a este tema, assim como falarei da versão que Dirceu apresenta acerca do que antecedeu e acerca do que sucedeu o curto período de dois anos em que a Articulação de Esquerda dirigiu o Diretório Nacional do PT.

II

Nesta parte, abordarei a versão de Dirceu acerca de alguns episódios que antecederam o curto período de dois anos (meados de 1993 a meados de 1995) em que a Articulação de Esquerda fez parte da maioria do Diretório Nacional do PT.

No capítulo 14, Dirceu trata de vários assuntos, entre os quais a constituição da Articulação dos 113, da vitória da Articulação dos 113 no Encontro Estadual do PT SP no ano de 1983, de sua atuação como secretário de formação política e depois como secretário-geral do PT paulista.

Neste capítulo Dirceu também fala da Campanha das Diretas Já e apresenta a crítica programática, estratégica e organizativa que a Articulação dos 113 fazia contra as chamadas “tendências organizadas” do PT.

Parte desta crítica seria sistematizada em um textoassinado por Wladimir Pomar e José Dirceu, texto que pode ser lido no seguinte endereço:


No capítulo 14 das Memórias Dirceu aborda a postura do PT frente ao Colégio Eleitoral, a campanha de Suplicy para a prefeitura de São Paulo capital em 1985 e a campanha de Dirceu para deputado estadual em 1986

Nas páginas 206 e 207, duas preciosidades:

a) a primeira é a relação que Dirceu estabelece entre as pressões contra a candidatura de Suplicy em 1985, com a posterior “ladainha para apoiar o PSDB contra a direita”;

b) a segunda é a crítica que Dirceu faz ao “ovo da serpente que envenenaria o PT nos próximos trinta anos: o marketing político”.

Também neste capítulo, na página 211, se afirma que:

 “algo de muito errado acontecia em nossos governos (...) o PT se recusara a associar-se com o governo e a governar. Era aí, síndrome do voluntarismo e do vanguardismo. Impunha-se não só chegar ao poder como aprender a governar”.

A afirmação pode ou não ser correta. Mas as experiências do PT em governos, até este momento, podiam ser contadas nos dedos de uma mão.

Em seguida, Dirceu resume suas lembranças do 5º encontro nacional do PT:

“Realizado no começo de 1987, o 5º Encontro ‘centralizou’, como se dizia, as tendências. Algumas estavam no PT de passagem. O partido era transitório, o ‘tático’, na linguagem cifrada da esquerda. Não passaria de uma frente parlamentar. Essa definição política e estratégica seria depois consolidada pelo 7º Encontro em 1990, mas o 5º Encontro avançou na definição, decisiva, da estratégia para construir e não assaltar o poder. Afirmou o socialismo como objetivo dessa luta por hegemonia contra as classes dominantes. A conquista do poder pelo voto, pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo.”

Virei e revirei a resolução do 5º e mesmo do 7º encontro do PT, e não encontrei esta definição segundo a qual “a conquista do poder pelo voto, pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo”. 

Arrisco dizer que em 1987 o próprio Dirceu não acreditava nisto, se é que acredita nisto hoje.

Dirceu nos conta, na página 213, que Lula o convidou para assumir a secretaria-geral nacional do PT:

“com a expectativa de que eu reproduzisse nacionalmente o trabalho de articulação, organização partidária, direção e orientação política que havíamos realizado em São Paulo. O problema é que, em São Paulo, existia um núcleo dirigente coeso e plural, disciplinado e formado na direção colegiada, coletiva, no movimento sindical e na esquerda. No país, não obstante todos os esforços nesse sentido, somente em 1995 conseguiríamos eleger uma direção sob uma orientação política comum e com metas políticas definidas.”

Confesso que a afirmação me causa espanto. 

Faziam parte da executiva nacional do PT, naquela ocasião, além do próprio Dirceu, as seguintes pessoas: Olívio Dutra, Djalma Bom, Jacó Bittar, Hélio Bicudo, Paulo Delgado, Perseu Abramo, Geraldo Magela, Marcelo Deda, Luis Dulci, Wladimir Pomar, Luis Eduardo Greenhalgh, Luiz Gushiken, Hamilton Pereira, Eurides Mescoloto, César Alvarez, José Genoíno, João Machado e Gilberto Carvalho.

Que Zé Dirceu faça uma avaliação daquele tipo acerca deste colegiado dirigente é algo bem revelador.

No capítulo 16, Dirceu trata do tema da Constituição de 1988, explicando a posição do PT: não votar, mas assinar. E reclama da tentativa de revisão constitucional, feita pela direita em 1993, omitindo que setores do Partido também defendiam esta revisão.

Outro tema abordado neste capítulo são as eleições de 1988, introduzidas assim:
“Ascendia um poderoso ciclo de embates sociais e o PT crescia como produto e motor dessas lutas. Não era impossível chegar ao governo provocando uma ruptura, risco de difícil avaliação, que não podíamos correr. Havíamos optado pelo caminho da luta social e institucional e nos preparamos para disputar as eleições municipais de 1988.”

O parágrafo acima, localizado na página 219, é bem típico de um modo de pensar que, por suas limitações, contribuiu para nosso impasse atual: a incapacidade de enquadrar num mesmo pensamento estratégico luta social, luta institucional e ruptura. 

O curioso é que as resoluções do 5º e depois do 6º encontro nacional do PT tratam disto.

Acerca das eleições de 1988, Dirceu cita as prévias entre Plínio e Erundina, vencidas por esta última. Reconhece que a cúpula da Articulação estava errada ao considerar Erundina uma “opção inviável eleitoralmente. Estávamos redondamente enganados e o eleitorado popular nos mostraria o equívoco”.

O episódio, infelizmente, não ocupa mais que um parágrafo das Memórias. Como no caso do plebiscito sobre sistema de governo, Dirceu reconhece o erro, mas não se aprofunda nas razões pelas quais o erro foi cometido.

Aliás, o governo de Erundina não foi esquerdista, muito pelo contrário. 

Caberia ao Diretório Municipal do PT de São Paulo, sob a gestão de Rui Falcão, o papel de combater o “administrativismo” da gestão, termo que equivale ao atual “republicanismo”. 

E foi exatamente aí que começaram muitas das divergências que resultariam na cisão da Articulação, em 1993.

Dirceu faz uma avaliação positiva do governo de Erundina. Sua crítica mais dura é a seguinte: “Pecou por isolar-se com sua corrente, o PT Vivo, e por tender às decisões pessoais e de grupo”. E o na época dramático rompimento com Luiz Eduardo Greenhalgh é resumido assim: “sem sucessor, rompido com seu vice”.

Acontece que Dirceu, na análise dos governos, está mais preocupado com os desvios de esquerda do que com os desvios de direita. Nas suas palavras, na página 229:

“Ficaram a experiência e a necessidade de superar a tendência de setores importantes do PT que se recusaram a governar e viam o acesso aos cargos eletivos mais como instrumentos apenas para fomentar e organizar a luta política. Nesse processo enfrentamos, embora em menor escala, mas ainda danosa, a atitude de alguns setores ao recusarem o ônus de ser governo. Inúmeras vezes, o próprio PT era o principal opositor aos nossos governos, produzindo crises gravíssimas com os governadores Vitor Buaiz, Zeca do PT e Cristovam Buarque.”

Podemos concordar ou discordar pontualmente acerca do balanço deste ou daquele governo. Mas depois de 36 anos de experiências de governo, alguém acha que é possível insistir que nosso problema principal sejam os desvios de esquerda?

Escrevendo a respeito no ano de 2017, Dirceu chega a dizer o seguinte, na página 229:

“Era, e é natural, a tensão no debate das políticas relacionadas ao funcionalismo público, importante base do partido e de parlamentares de esquerda. Mas era preciso distinguir. Governo e partido são ambas instâncias do Estado, mas partem de universos diferentes. O governo representa o interesse da sociedade, de classes, é verdade, enquanto o PT exprime interesse do coletivo, da maioria partidária e de nossa base social, os trabalhadores e excluídos.”

A definição segundo a qual partidos e os governos são instâncias do Estado é uma definição tipicamente socialdemocrata.

Esta definição está na base do republicanismo, que tanto contribuiu para a criminalização de Dirceu, Lula e do PT.

Aceita esta definição que transforma o partido em instância estatal, é praticamente impossível dar uma solução positiva para aquilo que Dirceu defende no parágrafo seguinte da mesma página 229:

“Saber defender dentro do governo os interesses que representamos sem confundir o governo com o partido e vice-versa, é o x da questão. A questão envolve a forma de ampliar e consolidar, centro da gestão, o interesse do partido e de sua representação social. Mas se opor ao governo para não assumir ônus, só bônus, é a pior solução. Uma coisa é contestar decisões abertamente contrárias ao nosso programa. Outra é refugar a solidariedade com o governo na crise e na disputa com os adversários que, como sabemos, se comportam como inimigos.”

A impossibilidade é simples: se ambos, partido e governo, são instâncias estatais, o governo é mais amplo e, portanto, seus interesses supostamente maiores subordinarão os interesses supostamente menores do partido.

Noutras palavras, a correta e acaciana ideia segundo a qual o Partido deve defender o governo que elegeu, cede na prática seu lugar para a noção segundo a qual o partido deve ser uma correia de transmissão do governo.

O capítulo 17 termina falando introduzindo o tema das eleições de 1989. Aqui comete-se um dos muitos pequenos erros que uma revisão mais atenta evitaria:

“o cenário [das eleições de 1989] não era dos melhores para o PT, pela pressão e exploração da mídia. Viviam-se os momentos finais da União Soviética e havia a queda do Muro de Berlim. Ocorrera o massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim. Os sandinistas haviam sido derrotados eleitoralmente na Nicarágua e agravara-se a crise em Cuba. Uma época se encerrava, a das revoluções proletárias.”

Os sandinistas, como sabemos, foram derrotados em fevereiro de 1990, portanto depois das eleições de 1989. 

Mas o que chama atenção na passagem acima é a maneira como se despacha o chamado socialismo real. Segundo Dirceu:

“a legenda não tinha compromisso com o chamado socialismo real e tampouco se portava como sua herdeira. Ao contrário, formara-se na solidariedade internacional aos trabalhadores e depositária dos ideiais socialistas, mas avessa ao autoritarismo dentro e fora do Brasil. Apoiara as lideranças do sindicato polonês Solidariedade e opusera-se à repressão na China, embora com retórica diversa da política agressiva dos EUA.”

Certamente este é mais ou menos o discurso oficial que o Partido adotou na época, especialmente nas resoluções do 7º encontro nacional.

Mas depois de que tanta água passou por debaixo da ponte, e vindo de alguém como Dirceu, que faz uma defesa firme de Cuba, a impressão que fica é que falta mais reflexão.

Especialmente porque, como Dirceu mesmo alerta, “por trás do discurso adversário, tentava-se influir no partido e na avaliação que fazia daquela catástrofe política e ideológica. Outros interesses trabalhavam para domesticar o PT”.

A expressão “domesticação”, vejam que ironia, é central no manifesto Hora da Verdade.

O capítulo 18 trata das eleições de 1989.

Já observamos, na resenha publicada na revista Teoria e Debate, a curiosa ausência de qualquer menção a Wladimir Pomar, que foi coordenador geral da campanha Lula e secretário nacional de formação política do PT entre 1986 e 1989.

Os interessados na análise de Wladimir acerca da eleição de 1989 podem ler o livro Quase lá, disponível no seguinte endereço:


Neste livro, Wladimir Pomar apresenta uma versão diferente acerca de pelo menos dois episódios citados nas Memórias de Dirceu: a escolha do vice (Gabeira ou Bisol?) e a postura da maioria do Diretório Nacional frente às chances de vitória de Lula.

Na página 239 de suas memórias, Dirceu diz o seguinte:

“Mas fica a pergunta: será que não foi melhor perdermos e só ganharmos em 2002, treze anos depois. Digo que não. Nunca se chega ao governo ou poder porque se quer. Nunca todas as condições estão ou estarão criadas. O triunfo de Lula em 1989 desencadearia uma sucessão de fatos, acontecimentos imprevisíveis e de mudanças em todos os sentidos. Teríamos evitado a tragédia dos anos Collor e o Brasil não seria o mesmo.”

Folgo em ler isto, pois contradiz frontalmente a lembrança que tenho de uma rápida conversa com Dirceu no comitê da campanha, em 1989.

Claro, é só uma lembrança, e como acontece com algumas do próprio Dirceu, pode estar totalmente errada.

Encerrado seu relato sobre a campanha de 1989, Dirceu fala da reciclagem ocorrida em algumas tendências petistas (o PRC em Nova Esquerda, o Poposo em Vertente Socialista, o PT Vivo, “era a direita do PT se consolidando, com uma crítica radical a eles próprios, ao esquerdismo do passado recente, à ditadura do proletariado, ao socialismo real, à revolução armada”); cita de passagem o 7º Encontro Nacional, trata do Primeiro Congresso do Partido e dos primeiros passos do governo Collor de Melo. 

O capítulo seguinte, de número 19, começa falando da campanha de Dirceu a deputado federal, em 1990.

Esta campanha, segundo ele, é afetada por “uma luta subterrânea” que eclodira na Articulação:

“Não havia mais unidade no núcleo duro da Articulação. Gushiken e Mercadante se aproximaram das teses e posições de Genoíno e Eduardo Jorge. Florescia a posição de ‘dissolução das tendências’, de partido de interlocução, de refundação e de aproximação com o PSDB. Teses às quais eu me opunha e com as quais não concordava em hipótese alguma.”

O curioso é que os adversários de Dirceu, neste momento, serão seus aliados contra a esquerda petista entre 1993 e 1995 e nos anos seguintes. E, ao contrário, seus aliados em 1990 serão mais adiante tratados por Dirceu como inimigos.

Para além da curiosidade, há uma questão de fundo: quem prevaleceu?

Dirceu escapa de responder esta questão, que está no fundo da cisão da Articulação dos 113.

As posições que o PT e o próprio Dirceu passaram a defender depois de 1995 são diferentes das que prevaleciam até 1990; e são posições mais parecidas com essas que Dirceu combateu no Primeiro Congresso do PT.

Uma das provas disso apareceria, uma década depois, quando Dirceu perde a batalha para Palocci acerca de quem, e de qual política, hegemonizará o primeiro mandato do governo Lula.

Entre 1990 e 1993, a direita da Articulação dos 113 considerava Dirceu um de seus principais inimigos. Ao contrário, boa parte da esquerda da Articulação dos 113 via em Dirceu um aliado. 

Para surpresa nossa, e talvez também para surpresa do outro lado, Dirceu escolheu não marchar com a esquerda.

Se isto tivesse ocorrido, o que teria mudado na história do PT nos anos 1990? Nunca saberemos. Mas o esforço que Dirceu faz para desqualificar a Articulação de Esquerda é, num plano estritamente psicológico, muito revelador.

Também é revelador o fato das Memórias não falarem praticamente nada acerca do 7º encontro nacional do Partido, em 1990. Nem das polêmicas acerca da aprovação do Fora Collor. Nem do seu papel e de suas opiniões acerca da expulsão da Convergência Socialista, em 1992. Assim como não falará nada ou quase nada acerca do governo Marta e de seus conflitos com o núcleo dirigente daquele governo.

Toda memória é seletiva e uma autobiografia escrita na cadeia tem limitações que devemos compreender. Mas uma vez que estamos diante de uma obra pública, ela passa a fazer parte da luta de ideias e merece ser criticada pelo que diz e pelo que não diz.

Por exemplo: no capítulo 20, o mesmo em que reconhece (embora não analise as causas) o erro cometido em defender o parlamentarismo no plebiscito sobre sistema de governo, Dirceu reclama da decisão aprovada por 26 a 25, no Diretório Nacional do PT, acerca do governo Itamar.

Dirceu afirma que teria dito a Lula, nesta ocasião:
 “perdemos aqui, hoje, a eleição de 1994. Como era admissível o PT, responsável pelo impeachment, lavar as mãos? Pior, colocar-se na ‘ilegalidade’. Era um risco se nossos adversários quisessem explorar aquilo. Ademais, a proposta estava absolutamente fora da realidade, como os fatos de 1993 e 1994 cabalmente provariam.”

O Diretório Nacional de 1992, é bom lembrar, foi aquele eleito pelo 7º Encontro Nacional do PT. 

A chapa da Articulação tinha 56% dos votos, portanto 46 membros. A chapa da “direita” partidária tinha 17% dos votos, portanto 14 membros. As duas chapas da esquerda tinham, somadas, 27% ou 22 integrantes do DN. Segundo Dirceu, votaram 51 pessoas, de um total de 82. Quem exatamente votou nesta resolução? Não sabemos, Dirceu não diz, não há que eu saiba registro disto.  

Mas sabemos qual era o pano de fundo da discussão.

Havia um setor do Partido que acreditava que o governo Itamar seria uma espécie de “transição” entre Collor e Lula. Outro setor percebia, embora nem de longe vislumbrasse o tamanho da encrenca, que nossa chance de vitória dependia do governo Itamar não se estabilizar.

Os fatos de 1993 e 1994 mostraram que o governo Itamar foi a incubadora do governo FHC. Podemos divergir acerca de qual tática poderia/deveria ter sido adotada frente a isto, mas considerar que Lula teria perdido as eleições de 1994 quando o PT aprovou uma resolução dura contra o governo Itamar é uma visão que vai na exata contramão dos fatos.

Aliás, Dirceu mesmo reconhece que “as relações de Lula com o governo Itamar Franco não tinham nada a ver com a posição ‘oficial’ do PT e do Diretório Nacional”. Mas Dirceu não liga lé com cré, não percebe que a atitude complacente frente ao governo Itamar contribuiu para que, dentro dele, os neoliberais articulassem o plano Real e a candidatura FHC.

Sobre o plano real, Dirceu afirma que “não sabíamos o que fazer, Nosso discurso oscilou da condenação ao desconhecimento e, depois, ao apoio envergonhado”.

Dirceu chega a dizer o seguinte:

“Mercadante, deputado federal, vice presidente do PT, economista, líder sindical na PUC, assessor da CUT e de Lula, ocupou um espaço especial na campanha, como vice e porta-voz de Lula diante do Real. Sem entrarmos, por enquanto, no mérito, foi um desastre político e de comunicação. Não se sustentou e confundiu ainda mais o partido com relação à nova moeda, levando mais balbúrdia do que esclarecimento às campanhas estaduais.”

Pena que Dirceu não entre no mérito aqui, algo que ele só fará nas páginas 266 a 268. Pois a verdade é que no debate sobre o plano Real, as posições que previam desastre imediato vieram exatamente de quadros da Unidade na Luta, enquanto economistas da esquerda foram mais cautelosos na análise e alertaram para a possibilidade do plano “dar certo” no curto prazo.

Claro, reconhecer isto hoje, assim como reconhecer isto na época, não contribui para a narrativa segundo a qual a derrota nas eleições de 1994 deveu-se aos erros da esquerda petista, então majoritária no Diretório Nacional.

Do ponto de vista político, quem é maioria na direção paga pelos erros cometidos. Mas 24 anos depois, é plenamente possível fazer um balanço mais equilibrado do que ocorreu. Dirceu prefere, entretanto, repetir a mesma (pego empregado dele o termo) ladainha.

Mesmo que a ladainha não se sustente na descrição que ele mesmo faz de sua campanha para governador, onde o problema principal vinha do seguinte:

“Lula e seu entorno – Gushiken, Clara Ant, Vannuchi, Mercadante – viviam de ilusões sobre o PSDB e Covas e, na prática, “apoiaram” Covas, deixando claro que minha candidatura era um estorvo e prejudicava Lula.
Na imprensa e dentro do PT, Genoíno, Eduardo Jorge, Tarso Genro, Plínio (então covista) e com apoio de Roberto Freire, do PPS, defenderam o apoio a Covas e a retirada de minha candidatura.
(...) A campanha para o governo estadual estava ferida de orte e eu abandonado à própria sorte, com manifesta e pública oposição da ala do bunker de Lula e dele próprio, apesar das aparências. Não seria a primeira vez que Lula, por razões políticas – não se trata de um juízo moral – me deixaria ‘falando sozinho’.”

Como se vê, alguns dos muitos problemas reais enfrentados por Dirceu em 1994 não vinham da esquerda petista que ele tanto ataca. Vieram dos setores com os quais ele se aliaria para derrotar a esquerda petista.

Concluo esta terceira parte da análise das Memórias, citando o parágrafo da página 266 em que Dirceu faz um balanço das eleições de 1994:

“Era possível vencer em 1994? Não. Perdemos por causa do Real? Não. Perdemos antes da eleição, na decisão “Fora Itamar”, na divisão interna, na eleição da Nova Maioria, na coordenação tripartite da campanha na TV e no Rádio, nas ilusões sobre Covas e o PSDB. Tratava-se da pior derrota e merecia uma resposta à altura da nossa parte.”

É a primeira vez que eu leio, em algum lugar, esta subestimação acerca do Real. Trata-se de uma posição insustentável no plano dos argumentos. Todo mundo sabe que o impacto eleitoral do Real foi colossal. Os demais fatores podem ter contribuído mais ou menos. Mas subestimar o peso do Real faz sentido, para quem precisava imputar à esquerda petista, majoritária no DN, a responsabilidade pela derrota.

(E por falar em ilusões sobre o PSDB, vale lembrar que um encontro extraordinário do PT em SP decidiu, por maioria, apoiar Covas no segundo turno das eleições estaduais. A posição majoritária foi apoiada por Dirceu. E por David Capistrano, entre muitos outros dirigentes do Hora da Verdade/Articulação de Esquerda. Prevaleceu, sob orientação de Dirceu, a "ladainha" de que devíamos apoiar o PSDB contra a direita.)

A partir daqui começou, para Dirceu e para o PT, uma nova fase: a de preparar a derrota da esquerda petista no Encontro de Guarapari, em 1995.

As opções feitas naquele ano contribuíram para a vitória de 2002, mas também contribuíram para o que ocorreria em 2005.

Mas isto fica para a próxima parte deste texto.

III)

Na página 276, Dirceu explica como foi composta a executiva nacional do PT depois de sua vitória em Guarapari. E informa o seguinte:

“Vaccarezza, militante contra a ditadura, oriundo da Força Socialista, meu amigo pessoal, um dos fundadores da AE mais próximos de nós na política de alianças e na estratégia para eleger Lula presidente, assumiu a secretária-geral.”

Curiosamente, Dirceu não menciona nada acerca da crise aberta no Partido com a indicação de Vaccarezza. A saber: no Encontro da Guarapari, a chapa da esquerda petista teve, como já dissemos, mais votos que a chapa da Unidade na Luta e muito mais votos que a chapa integrada por Vaccarezza.

Assim sendo, esta chapa reivindicou a secretaria geral nacional do PT.

A nova maioria dirigida por Dirceu blocou e manteve o nome de Vaccarezza.

Em função disto, durante um bom tempo a esquerda petista recusou fazer parte da CEN. Durante este período, o grupo liderado por Dirceu teve uma liberdade de atuação que foi muito útil para sua consolidação posterior, facilitada ademais pela introdução do fundo partidário, que garantiu um fluxo estável de recursos que mudou hábitos e costumes no PT.

Posteriormente Vaccarezza seria afastado da CEN, devido a denúncia confirmada de que ele era comissionado no gabinete do vereador Brasil Vita.

Dirceu fala da nomeação de Vaccareza para a secretaria geral, mas omite qualquer informação sobre a crise e sobre a posterior demissão.

Como no caso de Sílvio Pereira, já comentado, é uma reveladora falta de lembrança.

Não disponho de documentos que comprovem, mas como estamos no terreno das “lembranças”, apenas registro que me surpreenderam os rasgados elogios feitos por Dirceu a Rochinha e Clara Ant.

E, no segundo caso, sinto falta de algum comentário mais detalhado sobre algo que teve muita importância:  a vinda de importantes quadros de O Trabalho para a Articulação, entre eles Glauco Arbix e Favre. Dirceu cita, mas não aprofunda.

Neste capítulo 21 das Memórias, Dirceu retoma seus comentários acerca do modo petista de governar e sua crítica aos “pequenos agrupamentos que defendiam a orientação extrema, sintetizada na palavra de ordem: ‘não importa quem governa. Somos oposição’.”

A frase acima, entre aspas, é obviamente uma invenção de Dirceu. 

Não conheço nenhuma tendência petista capaz de aprovar uma resolução dizendo isto. Mas que Dirceu a cite e além do mais com aspas é revelador do estado de ânimo com que aborda o assunto: o da caricatura.

É uma pena, pois de todos os dirigentes petistas, ele é o que tem mais elementos de vivência para tentar equacionar teoricamente a relação partido/governo/Estado.

Até porque, como ele próprio diz, “meu primeiro ano como presidente do PT (...) consumiu-se na mediação e intermediação das crises entre nossos governos e o PT”.

Mas uma abordagem mais profunda do tema é dificultada, por um lado por sua “teoria” acerca do Partido como parte integrante do Estado; por outro lado por sua tendência a caricatura.

Resulta disto que seus comentários sobre os governos Zeca, Cristovam e Buaiz são “jornalísticos”. Salvo engano da minha parte, ele não trata do governo Olívio (1999-2002).

Neste capítulo é feita uma referência importante ao governo FHC, inclusive às denúncias de corrupção contra seus integrantes, como é o caso de Mendonção, absolvido em 2009 “pela justiça federal das acusações de improbidade administrativa” na privatização da Telebrás.

Pois bem: Dirceu reclama do fato que o Juiz Moacir Ferreira Ramos tenha registrado o fato de que os denunciantes não tenham, quando viraram governo a partir de 2003, feito “a fundo, a investigação das denúncias” contra Mendonção.

Diz Dirceu na página 284:

“Ou seja, a responsabilidade pela apuração não era da Polícia Federal e do Ministério Público e sim do governo Lula, uma prova da parcialidade, se não prevaricação da justiça no caso”.

A reclamação de Dirceu é assaz curiosa. Pois o que está em jogo não é Mendonção, mas sim a atitude geral do nosso governo a partir de 2003 frente aos crimes cometidos pelo governo anterior. 

Esta atitude foi deixar nas mãos das instituições a investigação. 

Ora, como estas instituições são o que são, o resultado foi o que foi. Como reclamar disto? E como não vincular nossa atitude no caso, com o que viria depois?

Também neste capítulo, na página 287 e seguintes, se aborda o caso Cpem. Sobre ele, Dirceu afirma:

“Paguei caro dentro do PT pela constituição da comissão e por seu relatório. Nunca me arrependi. Era preciso provar para a mídia – quando se trata do PT, o ônus da prova é sempre do acusado – que Lula nada tinha a ver com os contratos da Cpem com as prefeituras, como ficou demonstrado.”

O argumento faz sentido, concordemos ou não. Mas é importante dizer que, em 2005, Dirceu recusaria para si mesmo o procedimento que em 1997 julgou válido para Lula.

Outro tema abordado no capítulo 21 é a decisão de Lula ser candidato às eleições de 1998. Sobre isto, num único parágrafo da página 290, separado por uma única frase, Dirceu informa que “Lula persistia em não se colocar como candidato” e “Lula decidiu-se e lançamos sua candidatura”. 

Entre uma coisa e outra ocorreu o Encontro do PT no Hotel Glória, fato que na minha opinião foi decisivo para explicar a mudança na atitude de Lula. Mas isto não é citado neste capítulo.

O capítulo 22, na página 293, traz vários e merecidos elogios ao Movimento Sem Terra e uma neutra referência à Consulta Popular.

Este caso é um bom exemplo dos “dois estilos” que Dirceu adota, nas suas Memórias:

a) em alguns casos cita fatos passados, reproduzindo de maneira bastante fiel o que ele pensava na época, sem fazer nenhuma mediação com os fatos posteriores;

b) noutros casos ele transporta para a época seu ponto de vista atual ou simplesmente omite o que pensava na época.

O caso da Consulta, por exemplo, é curioso. Na época eu era terceiro vice-presidente nacional do PT e recebi uma carta de Dirceu, reclamando duramente do que eu teria dito e de minha participação numa reunião da Consulta. Respondi que o “Valter” em questão, citado num texto da Consulta, não era eu, até porque minha opinião sobre a Consulta e sobre seu (na época) principal ideólogo, César Benjamin, era muito crítica.

Cito isto como um de vários exemplos de que a relação entre Dirceu e este setor da esquerda não era, na época, aquilo que transparece nas Memórias.

Outro exemplo dos “dois estilos”: as lembranças de Dirceu acerca do plebiscito da dívida externa omitem as diferenças de opinião que havia a respeito (ver páginas 304 e 305).

Ainda neste capítulo, repete-se a obsessão de Dirceu com a Articulação de Esquerda. Na página 294 ele afirma o seguinte:

“No PT realizamos o 11º Congresso no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, em agosto daquele ano. Um ensaio de 1998 e consolidação da minha presidência, com o começo do fim da Articulação de Esquerda, já diluída em uma frente de esquerda. Fui reeleito presidente do partido com 52,59% dos votos.”

Não sei exatamente o que significa “consolidação” para Dirceu, mas em 1995 ele recebeu 54,02% dos votos e em 1998 ele recebeu 52,59% dos votos.

Quanto as chapas, cinco foram inscritas no final do 11º Encontro (e não Congresso, Dirceu se equivoca quanto a nomenclatura usada pelo partido neste momento). 

A chapa Luta Socialista (da qual fazia parte a AE) teve 37,82% dos votos; a chapa Unida de na Luta, da qual Dirceu fazia parte, teve 34,73% dos votos; a chapa Democracia Radical, de que Genoíno fazia parte, teve 11,82% dos votos; a chapa Socialismo e liberdade, de Jaques Wagner e Tilden Santiago, teve 11,09% dos votos; e a chapa Nova Democracia, de Paulo Teixeira e Rui Falcão, teve 4,55% dos votos.

A Articulação de Esquerda, nos encontros de que participou entre 1993 e 1997, sempre fez parte de chapas com outras tendências da esquerda petista. O “diluída” portanto é por conta de Dirceu e o “começo do fim” é, como já disse, sinal de uma preocupação obsessiva, cujas razões comentarei noutro momento.

Também neste capítulo, Dirceu trata da intervenção no Rio de Janeiro, para destituir a candidatura de Vladimir Palmeira e impor a aliança com Brizola e Anthony Garotinho.

Ficamos sabendo, na página 296, que Dirceu se “encantava” com o “método de análise e de decisão” de Brizola.

Ficamos sabendo, também, na página 298, o seguinte:

 “hoje avalio que o preço político que pagamos pelo respaldo a Garotinho não compensou a aliança com Brizola. Isso, porém, é agora. Em 1998, eu não só estava convencido, mas também decidido. Sem minha posição firme e clara não haveria aliança. Fiz por Lula e pelo PT.”

Como já observamos em outro momento, Dirceu às vezes faz autocríticas diretas e retas (caso do parlamentarismo, este caso do Garotinho), mas é uma autocrítica curiosa, como se ele dissesse deu errado, mas faria tudo outra vez.

Isto está ligado, penso eu, a opção de não fazer uma reflexão de fundo sobre a política adotada e, no lugar disso, exaltar o bom desempenho na execução da política adotada. Algo como: ok, errei, mas cumpri meu dever. O tal imperativo que aparece no início de suas Memórias, quando se avalia a luta armada.

Na página 299, Dirceu fala que:

“com a crise presente na bolsa e no ataque ao Real, o PT e nosso programa – e mesmo Lula – não foram capazes de explicar o quadro e conquistar o eleitor popular e desempregado. Nem mesmo o pacote de setembro, com juros de 49,75%, aumento de impostos, corte de gastos, ocultando e evitando o principal, a desvalorização do real, conseguiu abalar a maioria favorável a FHC. ”

Compare-se o que é dito neste parágrafo acima, com o balanço no parágrafo da página 266 em que Dirceu faz um balanço das eleições de 1994:

“Era possível vencer em 1994? Não. Perdemos por causa do Real? Não. Perdemos antes da eleição, na decisão “Fora Itamar”, na divisão interna, na eleição da Nova Maioria, na coordenação tripartite da campanha na TV e no Rádio, nas ilusões sobre Covas e o PSDB. Tratava-se da pior derrota e merecia uma resposta à altura da nossa parte.”

É impossível não perceber os dois pesos e as duas medidas, quando se analisa a derrota sob a sua presidência e sob a presidência da esquerda (no caso, de Rui Falcão).

Mais adiante, na página 300, Dirceu dirá que:

“nunca tive ilusões com 1998. O ciclo de FHC não acabara e a hegemonia política e cultural das ideias neoliberais persistia. Após as derrotas de 1989, 1994 e agora de 1998, era o PT que precisava mudar.”

Curiosa conclusão, vinda de quem presidia, de maneira “consolidada”, o PT desde 1995. Mais curioso ainda é que, na página 301, Dirceu nos informa o seguinte:
“em 1999, Lula articularia minha saída da presidência do PT. À esquerda, com o apoio de Tarso Genro e Ricardo Berzoini, entre outros , surgia a proposta do “Fora FHC”, a ser decidida no 2º Congresso, em Belo Horizonte.
Mal começara o ano [1999] e a casa caiu. O real seria desvalorizado e a crise econômica se mesclaria com a de governo. O caminho para 2002 estava aberto. Lula, no entanto, propôs meu afastamento da presidência do PT. Exatamente quando era a ocasião de robustecer a nova maioria e propor mudanças drásticas para mudar as relações internas no partido, preparando-o para a disputa de 2002.
Lula nunca me disse o motivo de sua decisão, mas avalio que foi em função do fracasso da aliança com o PDT e da campanha. Acatei e me preparei para exercer plenamente meu mandato de deputado e de dirigente, mas eis que a vida e a realidade se impuseram. Primeiro, a crise econômica, segundo o “Fora FHC” e o 2º Congresso, depois a crise da candidatura Tarso Genro à presidência do PT.”

Esta passagem revela, mais uma vez, que os principais antagonistas de Dirceu no Partido não estão apenas na chamada esquerda. Mas também fica claro que a “esquerda” funciona as vezes como espantalho, em nome do qual seus serviços são úteis para seus aliados moderados.

No capítulo 23, página 306, Dirceu diz o seguinte:

“Lula fizera um movimento arriscado ao sugerir o nome de Tarso Genro para presidir a legenda. De fato, um terceiro mandato para mim seria inusitado e, nossa cultura indicava, nada recomendável. 
De outra parte, não era essa a percepção da maioria do partido, especialmente da Articulação. Parecia algo inesperado e contraditório a substituição naquele momento de ascensão da oposição e robustecimento da minha liderança.”

Aquilo que Dirceu chama de “inusitado” e “nada recomendável”, foi feito: Dirceu será reeleito presidente duas vezes em encontro (1995 e 1997), uma vezes em congresso (1999) e uma quarta vez em eleição direta (2001). Infelizmente, ele não reflete acerca da contradição entre sua percepção de que isto seria algo “nada recomendável” e seus gestos.

O atenuante, claro, é a “percepção da maioria do Partido” e da “Articulação”. Óbvio: não há maioria no mundo que não busque, consciente ou inconscientemente, adotar regras e práticas com o objetivo de se perpetuar.

Mas de que “maioria” estamos falando? Dirceu nos diz que a Articulação obteve 43,64% dos votos, portanto não se tratava de uma maioria absoluta. Dependia dos votos da Democracia Radical de Genoíno, que obteve segundo Dirceu 8% dos votos.

Dirceu não informa, mas segundo a imprensa ele obteve 54% dos votos na disputa da presidência no 2º Congresso. Portanto, 3% a mais do que a soma das chapas que compunham a maioria.

E no primeiro PED, Dirceu venceu por 55% dos votos. Portanto, seja pelo voto direto, seja pelo voto dos delegados, a maioria obtida pela Articulação Unidade na Luta e por Dirceu sempre dependeu de duas coisas: unidade interna na Unidade na Luta e alianças.

Na minha opinião, é isto que explica que, pouco a pouco, a Unidade na Luta tenha assumido um funcionamento de “partido dentro do partido”, com centralismo democrático de fato. 

Contradizendo o discurso da Articulação dos 113, criada nos anos 1980. Sem centralismo interno, a maioria estaria ameaçada. Mas com centralismo interno, o que estaria ameaçado é o funcionamento do Partido, pois na prática 22% do Partido poderia impor sua vontade sobre 78%.

Dirceu tem alguma noção disto? Óbvio. Fala algo a respeito: pelo menos no primeiro volume das suas Memórias, não fala nada.

Voltaremos ao assunto na quarta parte deste texto.

IV)

Interrompemos a parte anterior, com as reflexões de Dirceu na véspera do 2º Congresso do Partido. Segundo ele, na página 306:

“Eu tinha convicção de só alcançaria outro mandato com eleição direta, legitimando e cimentando uma maioria partidária. Seria importante superar as amarras da disputa e das eleições restritas, cada vez mais às tendências, inclusive à Articulação.”
“Persuadido do erro do 1º Congresso, com suas teses de partido de interlocução, e da necessidade de criar um ‘campo majoritário’ claramente sob nossa liderança, radicalizei: além de me opor ao ‘Fora FHC’, propus a eleição direta e a formação da nova aliança que, de certa forma, ‘distendia’ a Articulação.”
“A Articulação dos 113 exercera a maioria até então, mas estava evidente que sem uma aliança com outras forças, sozinhos, não venceríamos, daí a ideia da criação do ‘campo majoritário’ com outras tendências à esquerda e mesmo ao centro do espectro ideológico e programático do PT.”

As “lembranças” acima são muito curiosas. Se consultarmos a imprensa, encontraremos Dirceu dizendo na época exatamente o contrário do que diz em suas Memórias:

“vou trabalhar para desbloquear o PT e acabar com essa história de campo majoritário e minoritário” (a citação foi retirada de um texto publicado no dia seguinte a eleição de Dirceu no 2º Congresso e por ser lida aqui: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2911199914.htm)

E, forçando minhas lembranças, lembro que este discurso de “desbloquear” foi utilizado à época com o objetivo de dividir a minoria, que no 2º Congresso se dividiu em duas candidaturas: Milton Temer (32,7%) e Arlindo Chinaglia (12%).

Mas as Memórias dizem que o objetivo real era compor um campo majoritário ainda mais forte e ampliado. Objetivo que efetivamente se realizaria no futuro, com desdobramentos que não foram saudáveis para o Partido.

Outra curiosidade é que Dirceu fala da Articulação dos 113, não da Articulação Unidade na Luta.  Não é um detalhe, evidentemente: trata-se de uma tentativa consciente ou inconsciente de legitimar, com base no passado, as ações do presente.

A questão é: no caso específico, falar da Articulação dos 113 serve para encobrir uma diferença profunda entre a atitude da maioria partidária nos anos 1980 e a atitude da maioria partidária que vai se consolidar sob a direção de Dirceu.

A diferença, na minha opinião, reside no seguinte: o “campo majoritário” vai adotar, pouco a pouco, uma dinâmica de partido-dentro-do-partido.  Em 1999 os problemas decorrentes disto podiam ser apenas uma hipótese; hoje, em 2018, os problemas decorrentes disto estão no centro da crise vivida pelo PT.

Voltemos a Dirceu, na página 306:

“Tarso assumiu a candidatura como um corpo estranho (...) para a maioria das lideranças e à militância. Aos poucos isso foi ficando claro e os incidentes foram aumentando à medida que ele dava declarações e se articulava.
Ocorreu uma rebelião espontânea e depois articulada em favor da minha permanência. Algo revelador da artificialidade da pré-candidatura de Tarso e do despropósito de me substituir. Sem que isso signifique que Tarso não tivesse legitimidade ou o direito de pleiteá-la, mas não com o apoio da Articulação.”

Confesso que não tenho lembrança disto que Dirceu fala, mas lembro muito bem do recuo de Tarso na defesa do “Fora FHC”.

Entretanto, se é verdade o que diz Dirceu, que a candidatura de Tarso foi articulada originalmente por Lula, caberia uma reflexão mais sistemática sobre as relações entre Lula, Dirceu e a Articulação. Mas esta reflexão não aparece, curiosamente.

Na mesma linha das curiosidades, Dirceu omite uma referência que julgo importante, acerca do envolvimento direto de Cristovam Buarque na proposta de eleições diretas para a presidência nacional do PT. 

Seja como for, fica claro que o objetivo das “diretas” era consolidar o poder do grupo dirigente do Partido; “arejar o partido” (308), a democratização da vida interna, era um argumento, mas não o objetivo real.

Na página 307, em mais uma demonstração da obsessão (insisto na palavra) de Dirceu com a Articulação de Esquerda, ele informa:

“Enfraquecida, a Articulação de Esquerda obteve 20,85% e a Democracia Socialista, 9,86%. Era a retomada da hegemonia da Articulação, que ainda dialogava e se aliava em questões centrais com o Movimento PT (12,7%) e PTLM (2,85%).”

Note que Dirceu não “monitora” o fortalecimento  ou enfraquecimento de nenhuma outra tendência, salvo a sua própria e a AE.

Mas o mais importante deste capítulo, sem dúvida, é a reflexão de Dirceu sobre o “Fora FHC”. Segundo ele, nas páginas 307 e 308, a agenda oculta dos que propunham isto era:

 “derrubar o governo FHC nas ruas. Mas essa tática nunca foi colocada e, além de inviável, seria uma irresponsabilidade e uma aventura que poderia custar ao PT e ao país uma ou duas décadas de retrocesso democrático”.

É curioso ler isto, em 2018. Independente da discussão sobre o que propunha, de fato, os que defendiam o Fora FHC, é evidente que há um fio de continuidade entre a postura de Dirceu frente ao governo FHC, a postura que o governo Lula adotaria diante da herança maldita que recebera e o espaço que o PSDB teve para se rearticular, fazer oposição e finalmente dirigir o golpe contra nós em 2016.

Aliás, sobre o tema da hegemonia tucana, Dirceu dá opiniões totalmente dispares.

Na página 300, Dirceu dirá em 1998 “o ciclo de FHC não acabara e a hegemonia política e cultural das ideias neoliberais persistia”.

Já na página 309 ele diz que:

 “a despeito de todo o alarido da mídia e da maioria situacionista no Congresso, o governo FHC nunca hegemonizou – com sua doutrina da globalização dependente, versão tupiniquim para o neoliberalismo—a maioria da sociedade, cuja memória histórica é amplamente democrática, nacionalista e por um estado de bem estar-social”.

Nesta questão, como em outros temas (o da luta armada, por exemplo), Dirceu faz afirmações absolutamente contraditórias. Não se trata, a meu ver, de um problema de revisão, nem apenas de inconsistências pontuais. Tem relação com algo, falando do Partido Comunista, um autor chamou de “duas almas”.

É isso que permite a Dirceu, sem dar-se conta da contradição, ziguezaguear de afirmações recuadas até frases do tipo:

“Desde 1998, meu sonho era eleger Lula presidente e fazer do PT um partido nacional, de trabalhadores e excluídos, alternativa de governo, aberto às alianças e com um programa de ruptura do neoliberalismo. Além de democrático e popular, capaz de pagar a dívida social histórica e abrir caminho por reformas estruturais, a razão de ser e de luta de minha geração.”

Ainda neste capítulo, nas páginas 311 e 312, Dirceu fala brevemente sobre o assassinato de Toninho e Celso Daniel. Sobre Toninho, ele afirma que “foi executado por motivos políticos claros”. Quais? Não diz.

Em seguida fala do “bárbaro assassinato” de Celso Daniel e conclui ser “muita coincidência, quase inverossímil que, em quatro meses, dois dos principais prefeitos do PT tenham sido mortos”.

Vale insistir nisto: de 2002 até 2016, o PT esteve na presidência da República. Dirceu lá esteve até 2005. Que esforços foram feitos para esclarecer ambos episódios e o que foi descoberto?

Em seguida o texto trata da sucessão de FHC, do PED e do encontro nacional do PT em Recife. Notem que, como é natural em se tratando de lembranças, a sequência dos temas não corresponde a cronologia dos fatos. Toninho estava vivo quando do PED e Daniel foi ativo no encontro de Recife. Para quem lê as Memórias, esta é uma dificuldade a ser levada em conta.

Na página 314 Dirceu apresenta um relato e um balanço do PED. Diz que chegou a “defender que simpatizantes do PT votassem, um exagero só como força de expressão”.  Registra, desta vez sem comentários, que Júlio Quadros da Articulação de Esquerda, obteve 15,17% dos votos. E arremata assim:

“Era uma reviravolta na dinâmica das tendências e no debate petista, criticado por coincidir o debate das teses com a eleição direta e de levar-nos a copiar o sufrágio universal. O PED, processo de eleição direta, não só democratizou a disputa como também deu voz ao filiado sem tendência. Os vícios apontados no PED, deficiência no debate e abuso do poder, seja dos mandatos, seja do aparelho partidário, seja financeiro, já existiam e poderiam acontecer tanto na eleição direta como na indireta, assim como a deficiência e a ausência de debate, vícios a serem combatidos independentemente da forma da eleição do presidente. A verdade nua e crua residia no seguinte: as tendências se opunham e se opõem à eleição direta porque perderam o poder de restringir o PT a um partido exclusivo de militantes, congelando e ossificando a vida partidária. Era a concepção, sempre presente, de partido de vanguarda.”

Certas hábitos de linguagem são perdoáveis quando se trata de lembranças, de memórias, de uma autobiografia. 

Por exemplo, falar das "tendências", como se as tendências fossem os outros e quem fala, falasse em nome do partido como um todo.


Outro exemplo, falar de "verdade nua e crua", sem preocupar-se em provar a afirmação.

Vejamos:

-para enfrentar o golpe de 2016, nos fez imensa falta um partido mais organizado, com uma estrutura militante capaz de mobilizar a sociedade. Esta falta não teria relação direta com o PED?

-observando o que ocorreu desde 2001 até agora, não seria verdade que o PED reduziu o poder do filiado a votar uma vez a cada X anos?

-não seria verdade que o PED aumentou o poder das cúpulas das tendências, afinal são elas que montam as chapas, são elas que decidem quem fará parte das direções e das delegações?

-finalmente, por acaso as direções resultantes do PED são superiores as que resultavam dos encontros partidários? E a resposta para esta questão não teria alguma relação com o método de eleição?

-o modelo de que o presidente do Partido é eleito em votação separada criou uma instância (“a presidência do Partido”). Esta instância a parte certamente foi funcional para Dirceu gerenciar o PT e lidar com Lula. Mas quando Dirceu deixou de ser presidente do Partido, o modelo institucional do presidente eleito à parte não teria se convertido num problema inclusive para os que o criaram?

Voltaremos ao assunto na quinta parte deste texto.

V)

O capítulo 24 das Memórias de José Dirceu começa tratando das eleições presidenciais de 2002: Lula candidato, Alencar na vice e Duda Mendonça na campanha.

Sobre Duda Mendonça, um episódio interessante é, salvo engano, omitido no livro: o primeiro programa de TV, com grávidas e bandeiras brancas, que gerou uma disputa entre Dirceu e Ozeas Duarte, então secretário nacional de comunicação do PT, além de mostrar todos os riscos embutidos na contratação de um marqueteiro como Duda. Aliás, a polêmica ocorrida a respeito não merece destaque nas Memórias, isto apesar do deprimente papel que este senhor desempenhou contra Lula na CPI em 2005.

As duas primeiras páginas falam da operação da Polícia Federal (grupo Serra) contra Roseana Sarney, com direito a uma rápida e nada esclarecedora menção ao caso dos “aloprados” de 2006.

Em seguida temos José Alencar, ocupação da fazenda de FHC pelo MST e a relação de “convivência de respeito” (sic) com Roseana Sarney e seu pai. 

Segundo Dirceu, na página 320:

“Era complicado sustentar tal atitude no PT e eu não me arrependo, o tempo me deu razão. Sarney não faltou com Lula e seus governos. Sem ele, jamais teríamos maioria no Senado”.

Depois se fala da montagem da coordenação de campanha, especialmente sobre Gushiken; e sobre o encontro nacional do PT, realizado em junho de 2002, quando foi aprovado o nome de José Alencar para vice de Lula.

O capítulo 25 fala da “Carta ao povo brasileiro”. Dada a lenda que foi criada a respeito deste texto, as lembranças de Dirceu são extremamente interessantes.

Diz na página 325 que Palocci e Gushiken foram “seus maiores defensores” e que Mercadante “se apressou em apoiar a ideia”, mas que Dirceu e Lula ficaram “com um pé atrás”.

Na página 326, Dirceu diz que leu e não gostou da primeira versão, escrita por Palocci e Mercadante. Teria deixado claros os riscos: “não me opunha à carta, mas a temia”. E agrega o seguinte, na página 326:

“Sinceramente, até hoje não dou à carta a importância que muita gente atribui. Lula venceu com ela, mas venceria sem ela. Não houve nenhuma virada nas pesquisas de opinião por causa da mensagem e nem cessaram a especulação e as pressões dos mercados. Era mais uma carta de intenções para início de governo. Não poderia esgotar o que era e seriam nosso governo e seu programa.”
“Era um freio a muitas políticas viáveis no primeiro momento e um passe livre para a estabilidade, a qualquer preço, e para a garantia de prioridade ao equilíbrio fiscal com superávit.”
“Eu preferia o anúncio de uma nova política de desenvolvimento. E Lula iniciaria o governo, percebendo a armadilha do ajuste fiscal a seco, priorizando a luta contra a pobreza, o Fome Zero, a valorização do salário mínimo e da Previdência.”
“Nosso problema não era o ‘mercado’, mas Ciro Gomes, Anthony Garotinho, José Serra e a campanha. No fundo, subestimávamos o cansaço do PSDB e do seu discurso. Serra não era FHC e nem tinha o real, o PFL, o PMDB, o PTB. Lula e o PT eram uma força nova em crescimento, sintonizada com a memória histórica e com a vontade da maioria dos trabalhadores. De toda forma, a carta desempenhou seu papel e tirou o discurso do adversário.”

Acredito que Dirceu possa ter pensado isto, na época. Mas observando de agora, não é possível subestimar o papel negativo que a Carta aos Brasileiros teve ao limitar a ação do governo. E se for verdade o que diz Dirceu, então a conclusão é que fizemos um sacrifício maior do que o necessário. E se levarmos em conta o êxito obtido entre 2006 e 2010, a conclusão é que as limitações auto-impostas pela Carta nos custaram 2003, 2004 e 2005. Portanto, não é algo menor, como de certa maneira Dirceu tenta nos fazer crer.

Em seguida, Dirceu relata em quatro páginas a viagem que ele fez aos Estados Unidos, assunto acerca do qual ele próprio remete para a leitura do livro de Matias Spektor: 18 dias: Quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush

Há passagens divertidas, que revelam menos sobre os fatos e mais sobre o personagem. Cito algumas:

(...) “não falo inglês. Sou da geração em que o francês era a língua universal e aprendi espanhol em Cuba”
(...) ”minha viagem durou apenas quadro dias – mas foram quadro dias de surpreendente sucesso”
(...) “os americanos ficaram realmente perplexos. Não esperavam ouvir o que um ex-guerrilheiro de esquerda estava falando.”
(...) “o silêncio foi quebrado pelo deputado republicano, que perguntou: ‘Mas ficou mais bonito depois da plástica, ou não?’”

Esta última frase foi dita, é bom dizer, noutra viagem de Dirceu aos Estados Unidos, em 2005.

Outra passagem do capítulo é dedicada a relação de Dirceu com FHC, resumida assim na página 331:

“Respeitoso comigo, quase carinhoso, atencioso e educado, firme nas convicções, consciente de minhas opções e de nossas diferenças, mas sem arrogância. Sou grato a ele pelo respeito, que era recíproco. A luta política depois nos colocaria em extremos, mas a história ainda não está concluída.”

Ao ler passagens como essa, recordo-me de uma biografia que li acerca de Salvador Allende, em que o autor comenta como a convivência de socialistas e comunistas no parlamento, com líderes da direita chilena, fez a esquerda baixar a guarda e achar que seus adversários não passariam de determinados limites.

O próprio Dirceu relata, nas páginas 332 e 333, um exemplo de ultrapassagem de limites, quando o então presidente do PT foi acusado como responsável por uma agressão a então governador de São Paulo Mário Covas. Diz ele: ficou a “mágoa” pela “manipulação de um episódio que não teve rigorosamente nada a ver com a agressão sofrida pelo governador”. O termo “mágoa” só reforça o que disse no parágrafo anterior.

O capítulo termina com uma nova reflexão sobre a Carta ao Povo Brasileiro, desta vez menos condescendente. Depois de falar do assalto praticado pelo capital financeiro contra a economia nacional e  o povo brasileiro, Dirceu afirma na página 334 o seguinte:

“Esse desafio estava colocado na Carta ao Povo Brasileiro. De algum modo, a chantagem e o terror funcionaram contra nós. Frente ao terrorismo midiático e financeiro, reagimos com a aplicação de uma vacina que foi, justamente, a ‘carta compromisso’, quando nosso comprometimento era com a reforma social e econômica.”
“A questão era: vamos dar um passo atrás? Ou seja, a Carta ao Povo Brasileiro, o ajuste fiscal, os juros altos e o superávit, até lograrmos as condições para as reformas estruturais? Vamos trilhar o mesmo caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no primeiro governo Lula, anda que o tema das reformas e do caminho não dependesse só da nossa decisão política.(...) Como Lula reagiria a esse dilema? E nós que éramos o núcleo do governo, a coordenação política, a maioria do PT? Seríamos capazes de assobiar e chupar cana ao mesmo tempo?”

Como em outros temas abordados no livro, Dirceu emite opiniões bastante díspares sobre a relevância prática da Carta aos Brasileiros.

É particularmente interessante ler o seguinte:

“Vamos trilhar o mesmo caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no primeiro governo Lula.”

Ora, esta era exatamente a crítica que a esquerda do PT fazia. Como em outros episódios, Dirceu verbaliza críticas que, quando feitas pela boca de terceiros, ele ataca. 

É como se ele dissesse que no governo esta poderia ser a linha divisória entre nós, mas no partido todos deveriam estar alinhados. Consequência prática da lógica segundo a qual o partido e o governo são ambos parte do Estado.

Na próxima parte, trataremos dos capítulos das Memórias que abordam o período 2002 a 2005.

VI)
O capítulo 26 das Memórias de José Dirceu inicia falando do que antecedeu a posse de Lula.

Há várias passagens interessantes acerca dos conflitos abertos e velados entre Lula, Dirceu, Palocci, Berzoini e outros personagens.

Por exemplo, a “primeira grande decepção com Lula”, que foi este ter indicado Genoíno para discursar na comemoração da vitória em São Paulo, dia 27 de outubro de 2002; e de ter informado Dirceu que ele não falaria, através de Favre, então marido de Marta Suplicy.

Uma das passagens que considero mais reveladoras acerca do papel que Dirceu cumpriria no governo, malgré lui ou não. Está na página 339:

“Lula sabia que a dose era cavalar: Henrique Meirelles, deputado do PSDB, banqueiro do Bank Boston. Então me indicou no mesmo dia. Havia um simbolismo na nomeação. Situava o partido no centro do governo ao lado do presidente. Representava, de certa forma, a militância petista, a esquerda, os movimentos sociais. Afirmava o comprometimento com o partido e com minha história e com a luta pré-PT e de uma herança de luta pelo socialismo. Pelo menos era o que se esperava de mim.”  

A ironia é que durante o período em que esteve no governo, a política de Palocci foi hegemônica. E depois que Dirceu caiu do governo, a política de Palocci perderia peso até ser substituída por outra, mais próxima daquela defendida pelo Partido.

Portanto, na prática, Dirceu foi mais “simbólico” e Meirelles foi, digamos, mais efetivo.

Há uma série de outros episódios, impossível resumir aqui, acerca da composição do primeiro ministério, acerca de como e porque Genoíno assumiu a presidência do Partido, acerca do acúmulo de funções por parte de Dirceu no governo, acerca da relação com o PCdoB e, principalmente, acerca da negociação com o PMDB.

Para além dos argumentos políticos utilizados à época, retrospectivamente Dirceu considera que (página 347) “a farsa do Mensalão teria sido evitada com a aliança prioritária com o PMDB”.

Depois de relatar a posse, ele detalha sua equipe no governo. Elogia José Antonio Dias Toffoli: “sólida formação”, “não vasta experiência junto ao PT”, “não poderia ter feito escolha melhor”, “nunca me faltou”, “competência e capacidade de trabalho”. E explica a origem de Waldomiro Diniz, que “seria alvo do primeiro escândalo do nosso governo e também da primeira tentativa de me tirar do poder”.

Fala também de seus colegas de ministério. Dedica a Palocci o seguinte elogio, nas páginas 353 e 354:

 “franco, paciente, excelente gestor, Palocci é, antes de mais nada um político. Médico, tornou-se, pela exigência do cargo, um economista autodidata. E dos bons, bem assessorado, com uma equipe de primeira, e evidentemente com suas ideias das quais eu geralmente divergia e buscava tensionar sem passar a fronteira da ‘ordem presidencial’.”

Não duvido que Dirceu pensasse isso sobre ambos, na época. Mas não há como não sentir estranheza, ao ler isto hoje, depois de tudo o que ocorreu, depois de Toffoli e de Palocci terem mudado de lado de maneira brutal.

No capítulo 27, Dirceu relata seu conflito com Palocci, que teria sido arbitrado por Lula em favor do segundo.

Ao chegarmos aqui, uma pergunta surge, sobre a qual não há nenhum sinal no livro: não teria sido melhor, para o Partido e para o governo, se Dirceu ficasse como presidente do Partido e, por exemplo, assumisse a presidência da Câmara dos Deputados?

Voltando ao livro, Dirceu relata uma conversa dele com Palocci, na presença de Lula, onde “o pau comeu”. Está na página 360:

“uma dura discussão com queixas e acusações mútuas. Palocci, magoado comigo, alegando que eu usara ‘argumento sigilosos, em discussão pública’. No fundo, acusava-me de ‘desonestidade intelectual’, um nome educado, como ele, para ‘traição’ ou ‘sabotagem’. No fundo era sua insistência no sigilo e sua obsessão por decisões monocráticas que fossem tomadas por ele e sua equipe, como se fossem os únicos qualificados para tanto. Do outro lado, o velho método de discutir a forma e não o conteúdo da questão e da divergência, que terminou abafado pelo modo como a discussão se dera, pública e envolvendo temas em tese sigilosos, na verdade nem sempre.”

Este relato é deveras interessante.

Primeiro, por uma questão menor: Dirceu reclama do “velho método de discutir a forma e não o conteúdo”, que é exatamente o que ele faz em seu livro, ao reclamar da suposta violência verbal que David Capistrano e outros lhe dedicaram em 1993.

Segundo: embora as Memórias estejam obviamente corretas ao informar que Lula, naquele momento, arbitrou em favor de Palocci, é preciso explicitar algo que, salvo engano, as Memórias não explicitam com o destaque que pelo menos eu penso ser necessário. A saber: ao decidir ficar no governo, Dirceu se tornou corresponsável pela política defendida por Palocci e avalizada por Lula.  Aliás, isto nos foi de certa forma dito por ele, em reunião mantida em seu gabinete, na minha presença e de Iriny Lopes e Luciano Zica: o que ele buscava era uma inflexão progressista nos marcos de uma política conservadora.

Terceiro, uma questão maior: as divergências de fundo sobre a política econômica eram dirimidas e neutralizadas no ambiente do governo. No partido, na bancada e nos movimentos sociais, as críticas eram algumas vezes atacadas como lesa pátria. Esta atitude resulta da concepção expressa por Dirceu mesmo, quando fala da relação entre governo e partido, ambos instituições de Estado.

O restante do capítulo é consumido por um relato sobre o que foi feito de positivo no governo, apesar das limitações.

O capítulo 28 também aborda as realizações do governo. Chama a atenção a defesa da reforma da previdência, feita nas Memórias com a mesma ênfase com que foi defendida, por Dirceu e muitos outros, em 2003. Segundo ele, “Lula fez a reforma na medida exata”.

Os argumentos são os conhecidos: ataque aos privilégios. Podemos concordar ou discordar deste argumento. Mas como estamos em 2018, não há como debater o tema sem perguntar: politicamente falando, valeu a pena? Valeu a pena inaugurar o governo Lula com esta batalha? Ela era mesmo necessária? Ou fazia parte das decorrências implícitas na Carta aos Brasileiros? Estas perguntas não são feitas.

Mas de alguma forma Dirceu responde a questão, quando afirma, na página 372, o seguinte:

“durante esses embates – com forte oposição interna e com seu uso para a luta interna e na sociedade contra nós, a maioria que conduzira e elegera Lula – fiquei convencido da necessidade de elaborarmos uma narrativa para nosso governo e levá-la ao PT, a sua militância, ao primeiro e segundo escalões do governo, à sociedade. Impunha-se um projeto de desenvolvimento nacional e capaz de retomar o crescimento, mas com distribuição de renda”.

Recomendo que leiam de novo o parágrafo anterior. O problema apontado não é de “narrativa”, mas sim da necessidade de “outra política”. E quando se fala de lutar interna contra “a maioria que conduzira e elegera Lula”, está reafirmada a narrativa que só um setor do Partido tinha o direito legítimo de reivindicar as vitórias e avanços. Motivo pelo qual um setor do Partido tinha o direito de fazer críticas; as mesmas críticas, noutras bocas, eram apenas “luta interna”. Este jeito com o qual Dirceu raciocina está na origem de muitos dos graves problemas que tivemos/teríamos.

VII)

Na página 373 das Memórias, José Dirceu diz o seguinte:

“Dentro do PT, do governo, da esquerda, com os aliados e na disputa na sociedade, assumi o papel de traduzir esse projeto e defende-lo – e que faço até hoje – contestando duas versões: 1) éramos uma continuidade de FHC mais o social; 2) ou a visão interna, segundo a qual nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela burguesia, sua ideologia e interesses. Era a percepção da esquerda do partido e, depois, a do PSOL e do PSTU.”

Este parágrafo tem enorme importância para compreender como Dirceu vê a si mesmo e como vê seus antagonistas.

Vamos por partes: ele assume o papel de traduzir e defender “esse projeto”, “dentro do PT”, dentro “do governo”, dentro “da esquerda”, “com os aliados e na disputa na sociedade”.

Convenhamos, para alguém que reclama nas Memórias estar assoberbado de trabalho, trata-se de uma tarefa titânica.

Mas o problema não é apenas do volume de trabalho. A questão é: um indivíduo que se propõe a cumprir todos estes papéis está chamando para si, pessoa física, o papel de um partido político.

Em segundo lugar: “esse projeto” que Dirceu se propõe a defender não é aquele que ele expos na página 311 (um programa de ruptura do neoliberalismo, democrático e popular, capaz de pagar a dívida social histórica e abrir caminho por reformas estruturais). “Esse projeto” que Dirceu se propõe a defender é uma mediação com a Carta aos Brasileiros, com Palocci.

Que Dirceu o defenda, é uma opção dele. Mas seria preciso deixar claro que não se trata da “ruptura do neoliberalismo”. E, portanto, ter maior nível de tolerância com as críticas vindas da esquerda.

Aliás, Dirceu que se considera um não stalinista, deveria perceber melhor a importância de administrar com paciência as tensões entre o que a correlação de força permite fazer e o que são os objetivos de médio e longo prazo.

Voltemos ao que é dito na página 373, onde Dirceu se propõe a contestar duas versões:

“1) éramos uma continuidade de FHC mais o social;”
“2) ou a visão interna, segundo a qual nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela burguesia, sua ideologia e interesses. Era a percepção da esquerda do partido e, depois, a do PSOL e do PSTU.”

Suponho que a primeira versão é a sustentada por setores do PSDB e da mídia. Versão esta que muitas vezes se apoiou na continuidade da política monetária e nas inesquecíveis declarações de Palocci em Comandatuba.

Já a segunda versão, segundo Dirceu, é a “percepção da esquerda do partido e, depois, a do PSOL e do PSTU”.

A maldade do argumento é explícita: coloca no mesmo saco a esquerda petista e, “depois”, as posições do PSOL e do PSTU.

Além de maldoso, o argumento é falso. Em primeiro lugar, embora seja comum falar da “esquerda petista”, basta olhar os encontros e congressos partidários, as politicas implementadas nos governos e nas bancadas, bem como os documentos e resoluções, para saber que na verdade há várias esquerdas.

Em segundo lugar, o PSTU foi fundado em 1994. Apoiou a candidatura de Lula em 1998 e, se a memória não falha, no segundo turno de 2002. Desde então fez oposição radical aos governos Lula e Dilma, considerando instrumentos do imperialismo e do capital. Posições que não tem absolutamente nada que ver com as críticas da esquerda petista.

Já o PSOL foi fundado em 2004. Lançou candidaturas próprias em 2006, 2010 e 2014, que no segundo turno recusaram apoiar as candidaturas do PT. 

Nas eleições de 2018 o PSOL lançou um candidato recém-filiado, Boulos, que adotou um discurso mais matizado em relação aos governos Lula e Dilma. Mas mesmo Boulos disse, há não muito tempo, que o petismo não era de esquerda. O que isso tem que ver com as críticas da esquerda petista??

A minha impressão é que Dirceu adota uma técnica retórica (“a baleia vive no mar, falemos no mar”) que, ao associar a esquerda petista com PSOL e PSTU, deixa apenas para ele o direito de criticar (as vezes com os mesmos argumentos da esquerda petista) os erros dos governos Lula e Dilma.

Agora vamos ao mérito: Dirceu diz que a esquerda petista defende que “nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela burguesia, sua ideologia e interesses”.

Voltemos atrás no livro de Dirceu e vejamos o que ele mesmo diz na página 334 acerca da Carta aos Brasileiros:

“Vamos trilhar o mesmo caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no primeiro governo Lula.”

Isto que Dirceu afirma equivale a dizer que um setor do PT, continuando a ser do PT, continuando a representar os trabalhadores, estava admitindo implementar uma política que expressa os interesses da burguesia. Noutras palavras: “estavam hegemonizados pela burguesia, sua ideologia e interesses”.

Noutros termos: a segunda posição, que Dirceu atribui a esquerda petista (o que é verdade), ao PSOL e ao PSTU (o que não é verdade), é a mesmíssima posição que ele mesmo explicitou em seu livro.

Aqui vai ficando claro, na minha opinião, por qual motivo Dirceu tem verdadeira obsessão com e contra a Articulação de Esquerda.

Para encerrar esta parte dos comentários, cito uma passagem do livro do próprio Dirceu, em que fica mais claro o que estamos querendo dizer.

Na página 373, ao falar da batalha do salário mínimo, ele diz que nossa administração defendia 300 reais, Palocci e equipe discordavam e, “no final das contas, chegou-se aos R$ 260,00, produto de acordo entre Lula e Palocci.”

Notem a frase: produto de acordo entre Lula e Palocci. Entre o presidente eleito e um ministro nomeado. Este é um bom exemplo da “hegemonia da burguesia, sua ideologia e seus interesses” no governo.

Palocci foi, durante muito tempo, o instrumento de outra classe em nosso meio. Esta foi sua traição.

Dirceu abre o capítulo 29 de seu livro dizendo o seguinte:

“Minha angústia crescia em 2004. Os rigores do ajuste, do contingenciamento, explodiam em crises aqui e ali. Eram oportunidades perdidas e o tempo político corria contra nós. Após dezoito meses, era imprescindível destravar a economia, o crédito e reduzir os juros. Preocupava-se com a política, essa senhora do destino. Expressei isto numa cerimônia, abandonando o discurso por escrito. O que fiz com boa intenção e um pouco para mobilizar meus apoios e meu público.”

Não sei que discurso é esse, onde e quando foi feito. E suponho que o “preocupava-se” é um erro de digitação, assim como uma passagem neste capítulo em Dirceu fala de si mesmo em terceira pessoa (página 384).

O importante, penso, é que o parágrafo acima deixa claro aquilo que dissemos antes: “esse projeto” defendido por Dirceu é o mesmo que fazia crescer a sua “angústia”. Portanto, Dirceu mesmo reconhece que algumas das críticas da chamada esquerda do Partido faziam sentido e não eram coisa do PSTU nem do PSOL.

A partir daí, o livro relata a CPI do Banestado e desemboca na seguinte frase: “o maior erro que cometi nos trinta meses de governo” foi ter acumulado a Casa Civil e a Articulação Política.

Esta é a opinião de Dirceu. Pessoalmente, acho que ele deve ter cometido erros muito maiores que esse. Mas que ele localize neste tema seu “maior erro” em trinta meses revela uma certa visão de mundo.

Diz ele na página 382 que ao acumular as duas funções:

“subestimou a importância da articulação política, principalmente a relação com os partidos, líderes, e com os deputados e senadores” (...) “No fundo o que me movia era a angústia de ver a consolidação de uma política conservadora na Fazenda e o rumo geral do governo e da relação com o PT”.

Mais uma vez a tese que Dirceu expulsou pela porta, voltou pela janela.

A política conservadora na Fazenda contaminava todo o governo; esta política beneficiava o setor financeiro; e portanto correspondia a hegemonia do setor financeiro por sobre o governo. Exatamente a tese que, como citamos antes, Dirceu se dispunha a combater.

A pergunta é: isto podia ser resolvido no âmbito da articulação política? 

Óbvio que não. O máximo que se podia obter neste terreno era apoio à política que vinha sendo executada, não uma mudança de política.

Portanto, o que Dirceu na verdade está dizendo é que a aplicação da política conservadora na Fazenda estava fazendo o governo perder apoios no PT e fora do PT. Problema que podia ser minorado, mas não resolvido no âmbito da articulação política.

Donde, acho eu, seu “maior erro” não foi ter acumulado funções, mas sim ter aceito ser defensor dentro e fora do Partido, no governo e na sociedade, de uma política que, ao menos em parte, correspondia a interesses que não eram os nossos e que, portanto, precisava ser combatida para ser alterada.

Ou seja: era preciso que o PT fosse a esquerda da coligação de centro-esquerda e agisse como tal. A atitude de Dirceu contribuiu para bloquear isto. É paradoxal, mas tudo indica que este é a “verdade nua e crua”.

Mas, ao mesmo tempo, Dirceu era visto como alguém que poderia ameaçar a continuidade daquela política conservadora. Para exagerar o que estou querendo dizer, é como se por um lado Dirceu tivesse minado os apoios que poderia ter na esquerda; e, por outro lado, não tinha os apoios suficientes e necessários na direita.

Este era o cenário. De onde viria o tiro, é um detalhe, penso eu. O tiro, como sabemos e Dirceu relata, envolveu primeiro Waldomiro Diniz, num episódio que as Memórias analisam detalhadamente.

Dirceu conclui o capítulo 29 falando e criticando Aldo Rebelo como ministro da Articulação Política. E afirmando que havia “sinais de crise no ar”.

No capítulo 30, Dirceu dá sua versão sobre a divisão do PT na eleição do presidente da Câmara dos Deputados, sobre a eleição de Severino Cavalcanti, uma rápida opinião sobre a questão das obras de infraestrutura, além de várias páginas sobre os arquivos da ditadura e a relação com as forças armadas.

O capítulo termina na página 404, com um longo parágrafo que reproduzo a seguir:

“Nos trinta meses em que permaneci no governo, sempre me coloquei na posição de petista. Sabia da expectativa e da minha responsabilidade com os petistas e, mais do que com eles, com os eleitores do PT e de Lula. Colocava-me também na condição de militante da esquerda socialista, internacionalista e revolucionária, e de sobrevivente da luta armada de resistência à tirania e herdeiro dos sonhos dos que haviam caído em combate. De minha formação política e cultural, de nossa história de nação e povo, trazia o sentimento e o compromisso com os explorados, os deserdados e com os trabalhadores.”

Acho que compreendo os sentimentos que movem Dirceu a escrever isto. 

Mas o fato relevante está no parágrafo anterior a este, na mesma página 404. Nas palavras de Dirceu: no tema dos arquivos da ditadura e da punição de seus crimes, “continuamos na contramão da história”.

O capítulo 31 trata da defesa nacional, do combate ao narcotráfico e ao crime organizado, da relação entre as forças armadas na América do Sul, do judiciário, da relação com Márcio Thomas Bastos, dos contatos políticos de Dirceu com diversos personagens políticos, da política internacional do PT, da presença de Dirceu no enterro de Arafat, nas negociações da Alca, do Haiti e de Cuba.

Já o capítulo 32 trata do chamado mensalão. Começa na página 420 com a seguinte afirmação:

“No final de 2004, ainda tomado por uma mistura de cansaço, decepção e angústia, comecei a me indagar se não serviria melhor ao governo como deputado e militante, percorrendo o Brasil e mobilizando a militância. Minha intuição detectava que estávamos expostos e divididos, que faltava mobilização para sustentar o governo, por demais dependente de uma base parlamentar de centro-direita e altamente instável.”

Como já foi dito antes, pelo próprio Dirceu, a origem do problema estava na política econômica liderada pela Fazenda. Portanto, a solução do problema dependia de mudar esta política. Sem isto, qualquer mobilização giraria em falso.

Entretanto, se este era o problema, então a indagação feita por Dirceu caberia ter sido feita em 2002. Como deputado, líder da bancada, presidente da Câmara e do Partido, ele poderia ter cumprindo um duplo papel: defender e empurrar o governo, no sentido de mudar de política.

Por razões que só ele pode explicar, mas que eu suponho estarem ligadas a visão que ele tinha sobre o papel do partido e do governo, ele aparentemente não considerou esta hipótese. Com isso, se viu diante de uma armadilha: ser o representante impotente da ala esquerda do governo e no governo.

Na mesma página 420, Dirceu diz o seguinte sobre a situação:

“vinha se agravando, seja pela política econômica, para além do necessário monetarista e conservadora, seja pela reforma da Previdência, caso típico da miopia da nossa esquerda, defendendo privilégios da alta cúpula do setor público.”

As frases acima são típicas do raciocínio que Dirceu fazia na época:

a)a política econômica podia ser monetarista e conservadora, o erro estava em ser “além do necessário”;

b)os danos da reforma da previdência deviam-se a miopia da esquerda, e não a falta de sendo de iniciar um governo de esquerda travando uma batalha contra uma parte de seu eleitorado e base social.

Dirceu era, como fica claro acima, prisioneiro dos limites da política implementada pelo governo. Política que não era a dele, mas que ele aceitou voluntariamente defender. Política que ele queria mudar, mas não através do combate explícito, público e partidário. No âmbito psicológico, o resultado deste melê só podia mesmo ser cansaço, decepção e angústia. No âmbito político, seria uma verdadeira tragédia grega.

E as razões de fundo da tragédia são expostas pelo próprio Dirceu, na mesma página 420:

“Havia – e ainda há – um erro estratégico de avaliação: a suposição de que a oposição –e não só a partidária – aceitava a vitória de Lula em 2002 e respeitaria as regras democráticas e a alternância de poder. Pior , subestimávamos o uso pelos oposicionistas –PSDB a frente—do aparato policial e judicial, o que ocorria de forma ilegal e “legal”. Contudo, nosso mais sério engano versava sobre o papel da mídia na formação do “clamor popular”, a opinião pública – e não a opinião pública – modelando a “pressão popular”.

A pergunta é: de quem era esse “erro estratégico de avaliação”?

Era um erro de todo o partido? Ou era um erro de um setor do partido?

Ademais, será que a base do tal erro estratégico não estaria em afirmações como aquela interpretação que Dirceu faz acerca das resoluções do 5º encontro nacional, por exemplo a afirmação de que “a conquista do poder pelo voto, pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo”?

Entre minhas lembranças de Dirceu, está uma vez em que o entrevistei para o jornal Brasil Agora. Durante a conversa que mantivemos, ele apresentou uma hipótese: a de que teríamos governos progressistas, sucessivamente mais avançados, até que tivéssemos um governo democrático e popular etc. 

Pode ser que minha lembrança não seja exata, mas esta teoria bizarra acerca de “governos cada vez mais progressistas até que” tem relação com os erros cometidos, pelo seguinte: não se leva em conta que o outro lado não vai aceitar e, antes que se ultrapasse o limite do não retorno, vai operar para colocar as coisas de volta no lugar.

É exatamente por isto que um governo popular é obrigado a arriscar, a tentar fazer coisas que estejam um pouco além dos limites da correlação de força, a contar com a iniciativa e o fator surpresa, a não se deixar conter pelo rame-rame administrativo, a não cair nas ilusões republicanas. Pois no limite, uma vez chegados no governo, o tempo não corre a nosso favor.

Mas voltemos ao capítulo 32 das Memórias. Depois de falar de Roberto Jefferson, Dirceu diz que a guerra do “mensalão” começou com nossa derrota na primeira e decisiva batalha: a instalação da CPI dos Correios.

Dirceu faz questão de citar o nome dos quatorze deputados e deputadas do PT que assinaram a CPI dos correios. A lista está na página 425. Nenhum é/era da Articulação de Esquerda...

Dirceu relata de maneira panorâmica sua versão dos fatos, até o dia 15 de junho (página 427), quando vai ao encontro de Lula para pedir demissão, sendo que Lula:
“também já se decidira pelo meu afastamento. Não me pediu para ficar, não me propôs nenhuma outra tarefa, simplesmente me demitiu. Foi melancólico e simbólico, como se tudo já tivesse sido decidido, poucas palavras, monossílabas, uma cena um tanto derrotista e pequena para os protagonistas, para nossa história de luta. Depois, no Planalto, numa pequena reunião com Lula, Mercadante, se não me engano, Gilberto e Gushiken, talvez Palocci, eu me emocionei e chorei”.

Na página 428 ele agrega:

“Como era possível que companheiros e companheiras, de tantos anos no PT, simplesmente me abandonassem, sem mais nem menos? Na verdade, fui abandonado à minha própria sorte. Não havia nenhuma proposta sobre meu futuro. Eu teria que me defender sozinho e contar, como sempre, com a solidariedade e apoio da militância, de parlamentares e dirigentes do PT, já que o governo e a direção do PT não conseguiam sequer se defender. Que contraste, que abismo entre meus camaradas de armas e agora de alguns, muitos, de meus companheiros do PT”

Na página 429 ele diz:

“Não havia uma linha de resistência, uma trincheira, um plano de luta, nem no governo e, muito menos, no PT. Era como se as denúncias fossem apenas, e tão somente, uma questão ética, de caixa dois, de financiamento de campanha e total responsabilidade de Delúbio Soares, Sílvio Pereira e José Genoíno e, na prática, minha, avalizando assim a acusação de Roberto Jefferson”.

Como se pode ver acima, é aqui (na página 429) que Dirceu cita pela primeira vez Sílvio Perreira. Portanto, ao contrário do que eu afirmei na resenha publicada na Teoria e Debate, Sílvio Pereira é citado duas vezes nas Memórias de Dirceu, e não apenas uma. Isto posto, é revelador que um secretário-geral nacional do PT, que só chegou a este posto por seus vínculos com Dirceu, seja tratado desta maneira nas Memórias de seu “padrinho” político.

Feito este registro, não vou aqui repisar o que disse e escrevi em 2005 e que está disponível em inúmeros textos e entrevistas. Em resumo, acho que Dirceu faz uma interpretação incorreta dos acontecimentos e de sua responsabilidade neles.

Exemplo disso é a seguinte passagem, na página 428 e 429:

“Mais decepcionante era a situação interna do partido, sua absoluta incapacidade de reconstruir uma maioria e uma direção, com um gabinete de crise, para enfrenta-la e superá-la. Em lugar disso, a imediata e rápida decisão de se livrar dos acusados, culpa-los, expulsá-los. Em atitude oportunista e covarde – quase uma corrida – vários grupos e tendências do PT passaram a se isentar mutuamente e a acusar a maioria, o Campo Majoritário, pelos fatos. Esses, aliás, ainda em processo de apuração por uma CPI e a Polícia Federal”.

Espero que algum dia, alguém faça um relato sistemático e documentado, em ordem cronológica, do que foi dito e escrito nas reuniões do Diretório e da executiva nacional do PT acerca do tema. Há muita lenda, muita confusão, muita desinformação a respeito.

Por exemplo: simplesmente não é verdade que tenha havia “imediata e rápida decisão de se livrar dos acusados”. Muito menos de “expulsá-los”. 

Aliás, expulso pelo DN só houve um: Delúbio Soares. Sílvio Pereira pediu desfiliação. Outros dirigentes pediram demissão de seus cargos.

Onde estas decisões de desfiliação e demissão foram tomadas? Posso garantir que não foi em nenhuma reunião de instância.

Nas reuniões do DN, por diversas vezes, eu defendi que houvesse comissão de ética. Meus argumentos eram similares aos adotados pelo José Dirceu, no caso de Cpem.

Para quem não lembra, na página 289 Dirceu afirma (os grifos são meus):

“Paguei caro dentro do PT pela constituição da comissão e por seu relatório. Nunca me arrependi. Era preciso provar para a mídia – quando se trata do PT, o ônus da prova é sempre do acusado – que Lula nada tinha a ver com os contratos da Cpem com as prefeituras, como ficu demonstrado.”

Este foi o critério aplicado por Dirceu, quando se tratava de Lula. Por qual motivo não seria o melhor, no caso de Dirceu e outros?

Havia um argumento, usado na época e reproduzido parcialmente por Dirceu: o processo de apuração por uma CPI e pela Polícia Federal.

Disse na época e repito aqui: o PT devia formar uma opinião própria sobre os fatos.

Infelizmente, prevaleceu a ideia de que na justiça as denúncias não dariam em nada. E que, portanto, uma comissão de ética poderia ser até mesmo prejudicial para os acusados.

A vida, na minha opinião, demonstrou o contrário. Teria sido melhor esclarecer os fatos internamente e criar melhores condições para fazer uma defesa externa.

Faz parte das coisas estranhas do texto de Dirceu a seguinte passagem (428-429):

“vários grupos e tendências do PT passaram a se isentar mutuamente e a acusar a maioria, o Campo Majoritário, pelos fatos”.

De fato, houve de tudo um pouco no DN. Inclusive dirigentes muito importantes do próprio campo majoritário, que faziam questão de dizer que não tinham a menor ideia acerca do que estava ocorrendo, das acusações e tudo o mais.

Vale lembrar que o Diretório Nacional que enfrentou a crise de 2005 havia sido eleito no PED de 2001. Portanto, é o mesmo Diretório que de maneira triunfante venceu as eleições de 2002. Aquele que era encabeçado pelo flamante Dirceu e no qual havia uma folgada maioria que, em alguns casos, beirava os 70%.

Portanto, caberia antes de mais nada a Dirceu explicar como aquilo deu nisso de que ele reclama.

Por outro lado, Dirceu reclama da solidariedade da minoria, mas ele deveria se perguntar como esta minoria foi tratada pela maioria, se havia compartilhamento de informações, se a destinação dos recursos era deliberada democraticamente e assim por diante.

Por mais que pudesse haver oportunismo e covardia de alguns, inclusive de integrantes do campo majoritário, a postura de imputar ao grupo majoritário a responsabilidade pelos problemas era em alguma medida o reflexo da postura deste mesmo grupo majoritário, de imputar apenas a si mesmo os êxitos, os bônus, os sucessos.

Sobre tudo isso que escrevi antes, cabe polêmica e contraditório. Mas na página 429, Dirceu faz uma afirmação que merece correção:

“Diante do panorama desolador, as correntes minoritárias se aproveitaram da crise, articulando-se para derrotar Genoíno, cujo mandato terminava em 2005”.

A expressão “correntes minoritárias” inclui a Articulação de Esquerda, e posso garantir que a Articulação de Esquerda não adotou esta postura.

Aliás, no meu caso (que era candidato a presidência nacional do PT em nome da Articulação de Esquerda), fui um dos que foi a público, acho que inclusive no Jornal Nacional, defender o Genoíno.

Em segundo lugar, é preciso lembrar que Genoíno assumiu a presidência do lugar de Dirceu, que se licenciou para assumir o governo. O mandato não terminava em 2005, terminava antes. Contra nosso voto, o PED foi adiado.

Dirceu afirma que “aumentava a pressão pela sua (de Genoíno) renúncia, mesmo que isso representasse um prejulgamento, tomado como confissão de culpa”.

Buenas, tal pressão houve, mas Dirceu deveria se perguntar se as correntes minoritárias tinham força para tal. Ou se a pressão pela renúncia de Genoíno envolveu outros setores do Partido, com muito mais peso do que as minorias.

Dirceu acrescenta na página 429:

 “não se tratava de uma resposta organizada, dirigida à militância com uma nova proposta de defesa do PT e do governo. Era simplesmente um acerto de contas, desespero, a incapacidade de compreender o momento e de definir estratégias.”

Esta afirmação, posta deste jeito, é falsa. Havia um setor do partido que queria adiar ou cancelar a eleição de uma nova direção. Prevaleceu a posição contrária. E o PED de 2005 foi um dos fatores que salvou o PT. E quem participou dele sabe que havia sim diferentes propostas de defesa do PT e do governo. E defesa de Lula, diga-se.

Dirceu relata, na página 430, que ele participou da reunião em que se debateu a substituição de Genoíno.

Como ele próprio afirma, foi uma reunião do campo majoritário.

Ele não conta, curiosamente, qual a decisão nem quem a tomou.

Mas no dia da renúncia de Genoíno cada uma das tendências do Partido foi chamada para uma reunião com representantes do campo majoritário, onde foi-nos informado que este mesmo campo majoritário havia decidido por indicar o nome de Tarso Genro.

Ao menos nós da Articulação de Esquerda dissemos, na reunião convocada para este fim, na qual estavam presentes Aloizio Mercadante e Luiz Dulci, que a indicação de Tarso Genro era um grave erro.

Por tudo isto, é bizarro ver Dirceu escrever, na página 431, o seguinte:

“A esquerda do Partido se divide e o nome de Tarso Genro enfrenta resistência como candidato único das correntes minoritárias”.

Tarso Genro virou presidente provisório do PT por decisão do campo majoritário. Nunca existiu a possibilidade dele ser candidato único das correntes minoritárias. No caso da Articulação de Esquerda, por exemplo, considerávamos Tarso como um integrante do campo majoritário.

Há outros detalhes no capítulo 33, sobre Sílvio Pereira, Delcidio Amaral, Marcos Valerio etc, sobre os quais eu já escrevi muito, em 2005.

Meu único comentário é o seguinte: o relato de Dirceu sobre tudo isto é vazado em tom de desabafo, cheio de lacunas e atravessado pelos rancores da época. Como pessoa, compreendo sua dificuldade em tratar destes assuntos e desta época. Mas se ele decidiu publicar um livro a respeito, seus erros, imprecisões e lacunas tornam-se parte da luta política e precisam ser – a palavra é esta – apontados e, em alguns casos, desmascarados.

No capítulo 33, Dirceu faz duros ataques a Aloizio Mercadante, por sua atuação na CPI. Critica Luciana Genro, Babá e Heloísa Helena por seu comportamento em 2005, quando eles já não eram do PT, expulsos que foram em 2003, num episódio que salvo engano não é relatado nas Memórias. E acusa Raul Pont e outros deputados da Democracia Socialista de terem exigido sua expulsão e terem votado por sua cassação.

No capítulo 34 acusa doze deputados do PT de terem votado pela sua cassação. Mas não diz quem foram.

Neste mesmo capítulo, na página 448, trata das indicações feitas por Lula para o STF. Diz que “parece simples, majestático, o presidente querer e indicar os ministros das cortes superiores, mas, na prática, na vida real, não é assim”.

Admitamos que não é assim, mas é preciso reconhecer que conseguimos uma proeza e tanto nas indicações... O próprio Dirceu acaba reconhecendo, na página 450, que “erramos nas indicações”. Mas insiste em perguntar: “tínhamos forças e condições de indicar ministros alinhados com nosso governo e programa”?

A pergunta é malandra! Afinal, na época em que foram feitas estas indicações, se dizia de muitos dos indicados que eles seriam alinhados com nosso governo. E isso não se verificou. Neste caso, um problema, portanto, não é saber se tínhamos ou não força; o problema é saber por quais motivos nos enganamos tanto, por qual motivo dissemos ao Partido e à sociedade que os nomeados eram gente fina e boa.

Epílogo do presente de Dirceu

Chegamos, por fim, ao epílogo das Memórias, um capítulo de número 35, onde Dirceu se propõe a fazer “um balanço dos anos que vivi no governo e do período que se encerrou em 2016”.
Neste epílogo, Dirceu começa o balanço dizendo que a “era Lula e o petismo recebem avaliações aterradoras da direita e da esquerda”.

Vou pular o que Dirceu fala contra a direita e passo direto ao que ele fala da esquerda. Segundo ele, na página 454:

“À esquerda, uma facção rompeu com o PT ainda na reforma da previdência, ancorada no corporativismo e nos privilégios dos servidores públicos (...) Essa esquerda – PSOL e PSTU – sem base social e eleitoral, condenou o governo Lula sem mediações nem tréguas.”

Já na página 455, ele acrescenta:

“A segunda frente de ‘oposição’ ao PT, desde antes da vitória de Lula e mesmo de sua quarta candidatura, veio e vinha de dentro do PT e remonta à sua própria fundação e criação do partido”.

A isto seguem vários parágrafos tratando dos grupos de esquerda que vieram para o PT, dos grupos que existiam de forma organizada dentro do PT nos anos 80, versus o papel que a Articulação dos 113 jogou em defesa do petismo.

Na página 456 Dirceu explica por que faz isso:

 “Qual a importância de rememorar a criação do PT? Toda, porque explica as divergências, as diferenças existentes até hoje, explica as várias estratégias para sua construção e luta pelo poder com um elemento fundamental: Lula e sua liderança, seu carisma e seu papel na história recente do Brasil e do PT”.

Isto é verdade? Não, não é. As divergências atualmente existentes dentro do PT não são as mesmas que existiam entre 1980 e 1989. Podemos dizer que há um parentesco distante, que há questões de fundo que estavam presentes lá e que estão presentes agora. Mas simplesmente não é sério reduzir o debate atual ao debate travado nos anos 1980.

Por qual motivo Dirceu adota este caminho? Na minha opinião, porque desqualificando alguns críticos, Dirceu garante para outros (ele próprio, inclusive) o monopólio das críticas aceitáveis.

E para que isto seja possível, ele constrói uma narrativa onde as tendências da atual esquerda petista são equiparadas aos partidos dentro do partido que existiam nos anos 1980. E se por acaso há uma tendência que não se enquadra nesta narrativa, neste caso ela precisa ser estigmatizada a ferro e fogo.

A verdade é que Dirceu não se considera stalinista, mas ele adota uma clássica postura stalinista quando assume a lógica segundo a qual o PT é plural, pode ter tendências, mas se voce não concordar com a posição que é majoritária num determinado momento, voce é catalogado como ...“oposição ao PT”!!!

Quero insistir nisto: é inaceitável, não existe outro termo, que se trate como “oposição ao PT” – mesmo que com aspas, mesmo que por demagogia retórica -- quem faz críticas à orientação majoritária do Partido. É o equivalente aos que afirmavam que a esquerda era “oposição ao Brasil”.

Outro problema na postura de Dirceu é que ele trata as tendências da esquerda petista como se fossem uma coisa só. Além disso, ele desconsidera o fato de que existe um amplo setor do petismo que não faz parte de nenhuma tendência, mas que faz críticas aos rumos seguidos pelo PT, em diferentes momentos e de diferentes formas, especialmente no período em que Palocci (e não Dirceu) era hegemônico no governo.

Feitas estas preliminares, vejamos o que se pode extrair do que Dirceu diz. Por exemplo, na página 457:

“Qual é a régua para medir o governo Lula em junho de 2005, quando deixei a Casa Civil e perdi meu mandato de deputado federal? Qual é a medida para um militante com quarenta anos de luta como eu?
“Devemos aceitar que traímos o PT e a esquerda por causa do mensalão, que chegamos ao governo e nos curvamos a conciliações com a burguesia e adotamos seus métodos como avaliam hoje – 2018 – e já avaliavam em 2005 setores do PT que se autointitulam de esquerda ou “a esquerda” do PT?”

Ao ler estas perguntas, me dou conta que Dirceu incorre algumas vezes em posição parecida com a manifesta por diversos líderes do antigo campo majoritário, para os quais “conciliação” é igual a “traição”. E, portanto, tomam como ofensa mortal quando se diz a eles que foi adotada uma estratégia de conciliação.

Quem tiver interesse de ler a respeito, sugiro este texto:


Mas o que realmente me chama a atenção no epílogo são as duas almas que nele se manifestam.

Para esclarecer do que estou falando, vejamos o que diz Dirceu nas página 459-460:

“Uma coisa é reconhecer nossos erros (...) outra é atribuir a esses erros nossa derrota ou condenar nossos governos, atribuindo ao governo e ao PT, e às suas ‘maiorias’, uma traição ou abandono de nossos objetivos programáticos que não era, diga-se de passagem, fazer um governo socialista, muito menos na concepção da “esquerda” do PT de socialismo, jamais aceita ou construída pelo PT.”

Notem a frase: “atribuir a esses erros nossa derrota”. Se entendi direito, Dirceu acha que não devemos atribuir nossa derrota a nossos erros. Mas então devemos atribuir ao quê? Aos inimigos?

Acontece que nossos inimigos não vencem sempre. As vezes nós também vencemos, porque acertamos mais do que eles, porque erramos menos do que eles. E a recíproca é verdadeira: quando eles vencem, é porque acertaram mais do que nós, porque erramos mais do que eles. 

Portanto, noves fora, faz sentido localizar nossos erros e, certas vezes, são esses erros as principais causas de nossas derrotas. No caso concreto do golpe de 2016, considero que opções estratégicas feitas em 1995 e radicalizadas em 2003 têm parte importante da responsabilidade.

Notem também a frase: nosso objetivo programático não era fazer um governo socialista, muito menos na concepção de socialismo da “esquerda” do PT.

Aguardarei que Dirceu nos diga qual é a concepção de socialismo da “esquerda” do PT. Minha impressão é que não existe uma única. Além do mais, para os fins deste debate, é mais do que suficiente a concepção de socialismo tal e qual expressa nas resoluções sobre estratégia e programa do sexto congresso do Partido.

A questão é: nossos governos, nossa ação nas bancadas, nossa ação nos movimentos, nossa ação no partido, nossa ação no debate de ideias tem que ter relação com nosso objetivo programático, tal e qual está nas resoluções do 6º Congresso.

Feitas estas ressalvas ao que Dirceu diz nas páginas 459-460, demarcando com o que ele acha que pensa a esquerda petista, pulo agora para o que ele fala na página 466:

“é preciso ir ao povo trabalhador e organizar sua luta social e política. Responder à radicalização da direita com luta política e social e um programa, como eles fazem, que vá à raiz da questão nacional, democrática e social. Fazer a revolução brasileira inconclusa, retomar o conceito de revolução social e política”.

Como se vê, Dirceu transita de um extremo a outro, da moderação ao radicalismo.

Tenho várias hipóteses para este comportamento político; uma destas hipóteses aproveita sugestão que me foi feita por Marco Aurélio Garcia, misturando Dirceu, a geração de 68 e as Ilusões Perdidas de Balzac.

Mas decifrar a personalidade de Dirceu é tarefa acima de minhas capacidades e, principalmente, algo distante dos meus interesses.

O que realmente me interessa, e quem sabe ele consiga isso no volume dois de suas Memórias, é uma reflexão sobre a estratégia, que ao menos tente superar este ziguezague das duas almas, que no caso concreto se traduziram em moderação no governo, radicalismo na oposição.

No fundo, sigo pensando basicamente o mesmo que escrevi em dezembro de 2005, num artigo publicado no portal do PT, exatamente sobre a cassação de Dirceu, artigo que reproduzo abaixo:

A cassação de Dirceu

A cassação de José Dirceu é o grande assunto do noticiário, nesta virada de novembro para dezembro.
Pena: muito mais importante é o desempenho do Produto Interno Bruto, que demonstra, mais uma vez, quais as decorrências de uma política de juros altos e superávit primário escorchante.
Aliás, quem assistiu ao discurso do líder do Partido da Frente Liberal (PFL), feito durante a sessão da Câmara que cassou o mandato de José Dirceu, deve ter pensado que o mundo está de ponta-cabeça: um Maia acusando de conservadora a política econômica do governo Lula. Pior: dizendo que esta política privilegia o capital financeiro!!!
Neste contexto, o espaço dado para a cassação de José Dirceu é mais um sinal de que o PT e o governo saíram das cordas, mas continuam na defensiva. Pois enquanto seguimos às voltas com esta e outras possíveis cassações, a direita ensaia o discurso com o qual pretende nos impor uma derrota eleitoral, política e ideológica nas eleições de 2006.
Se não houver uma mudança urgente na política & na política econômica, corremos o risco de sermos derrotados sob a acusação de termos aplicado um programa conservador, utilizando para isto métodos também conservadores! E teremos o desgosto de ver, na campanha de 2006, partidos de centro-direita fazendo, contra nós, um discurso supostamente progressista.
Isto posto, é óbvio que há uma enorme relação disto com aquilo, da situação política geral com a cassação de José Dirceu. Pois como já se disse repetidas vezes, José Dirceu é um dos grandes responsáveis pela "estratégia de centro-esquerda", que nos colocou nesta enrascada.
É evidente que os deputados da direita votaram pela cassação de José Dirceu, com o objetivo de golpear o PT e o governo. Mas é preciso perguntar por quais motivos eles tiveram êxito nessa votação em particular. Afinal, nesta mesma Câmara dos Deputados o governo e o PT já colheram algumas vitórias.
A resposta é óbvia, mas tem sido esquecida por alguns analistas: a direita teve êxito em cassar José Dirceu, devido a erros cometidos pelo Partido, pelo governo e pelo próprio Dirceu. Foram estes erros que criaram um ambiente propício para que a direita nos atacasse, nos colocasse na defensiva e, agora, tirasse o mandato de um importante deputado do PT.
O Partido ainda não fez um balanço completo acerca desses erros. É bom que o faça e rápido, sob pena deles continuarem produzindo mais vítimas.
Na minha opinião, o erro fundamental é de estratégia: a política de "centro-esquerda" que aparentemente ajudou a fazer de Lula presidente da República, não está dando conta dos desafios de governar e mudar o país. Pois suas premissas nos impedem de romper com a hegemonia do capital financeiro, bloqueiam as reformas estruturais que o país precisa, contém nosso crescimento eleitoral, dificultam nossas relações com os movimentos sociais e com os partidos de esquerda.
Deste ponto de vista, a cassação de José Dirceu tem um componente trágico. Afinal, ele foi um dos principais formuladores e certamente o grande operador da política que, em última análise, conduziu o governo ao impasse estratégico, o PT ao fundo do poço e ele próprio à guilhotina.
Para fazer o Partido aceitar a política de centro-esquerda, José Dirceu fez uso, muitas e repetidas vezes, do carisma e da mística que lhe são atribuídos. Para ser mais exato, ele construiu uma imagem pública que serviu para aplainar resistências, especialmente na esquerda. Muitos e muitos militantes do Partido aceitaram a implementação desta política, por confiar em José Dirceu, não propriamente por confiança na política.
É claro que há uma distância entre a vida real e o mito criado. Os que refletiram sobre 1968, Ibiúna, Cuba, Molipo e outros episódios sabem disso. Mas o fato politicamente relevante é que, na campanha contra a cassação de Dirceu, o velho, seus amigos apelaram seguidas vezes para os feitos de Dirceu, o novo. Neste ponto, a tragédia incorporou um elemento de farsa: o deputado que conduziu nosso Partido para o reino do pragmatismo institucional apela, em sua defesa, para a mística do revolucionário.
Para alguns, isto talvez confirme a tese de Tarso Genro, segundo a qual as peripécias delubianas revelam a sobrevivência do "bolchevismo" entre nós. Na verdade, não há nada mais distante do bolchevismo do que José Dirceu e sua política. Prova disto é que Tarso Genro, um ex-comunista convicto, defendia e defende até hoje a mesma política, embora como tantos outros esteja, agora, enfrentando certa dificuldade para conviver com suas consequências.
O grande desafio do PT tem a ver com isto: perceber que a cassação de José Dirceu, assim como todo o resto da crise que se abate sobre nós, é consequência de uma linha política, que precisa ser alterada, de cima a baixo. Se não tivermos êxito nisto, vamos girar em falso.
Qual papel Dirceu terá neste debate? Manterá as mesmas posições que antes? Reconhecerá seus erros políticos e ajudará na reorientação do Partido, inclusive no combate frontal contra Palocci? Ou irá para a ultra-esquerda, como fez o também mítico Carlos Marighella, depois do golpe de 1964?
O tempo dirá. O fundamental é que o Partido, se quiser sobreviver, precisa fazer a crítica teórica e prática do edifício político e organizativo montado por José Dirceu: o abandono do socialismo e da revolução como norte programático e estratégico; a principalidade conferida à disputa eleitoral-institucional; o pragmatismo nas alianças; o centralismo burocrático; a transformação da direção nacional numa máquina com baixa capacidade de formulação; as finanças dependentes de contribuições empresariais. Tudo isto e muito mais precisa ser detalhadamente destrinchado e criticado, pois foi isso que nos trouxe aonde estamos agora. E é isso que precisamos criticar, se quisermos dar a volta por cima.

Como sabemos todos, a partir de 2005 o partido fez balanços, reconheceu erros, promoveu inflexões na política, venceu as eleições de 2006, 2010 e 2014, mas não promoveu uma reorientação completa na sua estratégia.

Pelo contrário, as vitórias obtidas no período, especialmente no segundo mandato de Lula, fizeram muita gente pensar que bastava uma inflexão, não sendo necessária uma revisão completa na estratégia.

Os efeitos disto, estamos sofrendo desde 2015. Continua sendo necessário construir, na teoria e principalmente na prática, uma reorientação estratégica para o PT. 

As decisões que estão sendo tornadas públicas no dia em que concluo a revisão deste texto, comprovam uma vez mais que tal reorientação estratégica devia ter sido feita há muito.

Deste ponto de vista, do ponto de vista da reorientação da estratégia do Partido, o primeiro volume das Memórias de Dirceu mais confunde que esclarece. O presente de Dirceu continua sendo demasiado governado pelo seu passado. Oxalá o segundo volume seja diferente.

Valter Pomar, 11 de setembro de 2018

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