Para quem
não viu as partes anteriores, uma explicação:
1.Escrevi
para a Teoria e Debate uma pequena e espero que contida resenha acerca das Memórias
de José Dirceu. Esta resenha está disponível no endereço https://teoriaedebate.org.br/estante/as-lembrancas-de-dirceu/.
2.Em
seguida, escrevi um comentário acerca das referências que Dirceu faz acerca da
atuação da Articulação de Esquerda no período 1993-1995. Este comentário está
aqui:
3.Depois,
escrevi um novo texto, desta vez tratando das lembranças de Dirceu anteriores
ao momento em que surge a Articulação de Esquerda. Este texto, que se estende
até 1995, pode ser lido aqui:
4.A seguir,
um novo texto, “PARTE TRÊS”, abordando o que é dito a partir do capítulo 21.
*
Na página
276, Dirceu explica como foi composta a executiva nacional do PT depois de sua
vitória em Guarapari. E informa o seguinte:
“Vaccarezza, militante contra a ditadura, oriundo da Força
Socialista, meu amigo pessoal, um dos fundadores da AE mais próximos de nós na
política de alianças e na estratégia para eleger Lula presidente, assumiu a
secretária-geral.”
Curiosamente,
Dirceu não menciona nada acerca da crise aberta no Partido com a indicação de
Vaccarezza. A saber: no Encontro da Guarapari, a chapa da esquerda petista
teve, como já dissemos, mais votos que a chapa da Unidade na Luta e muito mais
votos que a chapa integrada por Vaccarezza.
Assim sendo,
esta chapa reivindicou a secretaria geral nacional do PT. A nova maioria
dirigida por Dirceu blocou e manteve o nome de Vaccarezza. Em função disto,
durante um bom tempo a esquerda petista recusou fazer parte da CEN. Durante
este período, o grupo liderado por Dirceu teve uma liberdade de atuação que foi
muito útil para sua consolidação posterior, facilitada ademais pela introdução
do fundo partidário, que garantiu um fluxo estável de recursos que mudou
hábitos e costumes no PT.
Posteriormente
Vaccarezza seria afastado da CEN, devido a denúncia confirmada de que ele era
comissionado no gabinete do vereador Brasil Vita.
Dirceu fala
da nomeação de Vaccareza para a secretaria geral, mas omite qualquer informação
sobre a crise e sobre a posterior demissão. Como no caso de Sílvio Pereira, já comentado,
é uma reveladora falta de lembrança.
Não disponho
de documentos que comprovem, mas como estamos no terreno das “lembranças”,
apenas registro que me surpreenderam os rasgados elogios feitos por Dirceu a
Rochinha e Clara Ant.
E, no
segundo caso, sinto falta de algum comentário mais detalhado sobre algo que
teve muita importância: a vinda de
importantes quadros de O Trabalho para a Articulação, entre eles Glauco Arbix e
Favre. Dirceu cita, mas não aprofunda.
Neste
capítulo 21 das Memórias, Dirceu retoma seus comentários acerca do modo petista
de governar e sua crítica aos “pequenos agrupamentos que defendiam a orientação
extrema, sintetizada na palavra de ordem: ‘não importa quem governa. Somos
oposição’.”
A frase
acima, entre aspas, é obviamente uma invenção de Dirceu.
Não conheço nenhuma
tendência petista capaz de aprovar uma resolução dizendo isto. Mas que Dirceu a
cite e além do mais com aspas é revelador do estado de ânimo com que aborda o
assunto: o da caricatura.
É uma pena,
pois de todos os dirigentes petistas, ele é o que tem mais elementos de
vivência para tentar equacionar teoricamente a relação partido/governo/Estado.
Até porque,
como ele próprio diz, “meu primeiro ano como presidente do PT (...) consumiu-se
na mediação e intermediação das crises entre nossos governos e o PT”.
Mas uma
abordagem mais profunda do tema é dificultada, por um lado por sua “teoria”
acerca do Partido como parte integrante do Estado; por outro lado por sua
tendência a caricatura. Resulta disto que seus comentários sobre os governos
Zeca, Cristovam e Buaiz são “jornalísticos”. Salvo engano da minha parte, ele
não trata do governo Olívio (1999-2002).
Neste
capítulo é feita uma referência importante ao governo FHC, inclusive às
denúncias de corrupção contra seus integrantes, como é o caso de Mendonção,
absolvido em 2009 “pela justiça federal das acusações de improbidade
administrativa” na privatização da Telebrás.
Pois bem:
Dirceu reclama do fato que o Juiz Moacir Ferreira Ramos tenha registrado o fato
de que os denunciantes não tenham, quando viraram governo a partir de 2003,
feito “a fundo, a investigação das denúncias” contra Mendonção.
Diz Dirceu
na página 284:
“Ou seja, a responsabilidade pela apuração não era da Polícia
Federal e do Ministério Público e sim do governo Lula, uma prova da
parcialidade, se não prevaricação da justiça no caso”.
A reclamação
de Dirceu é assaz curiosa. Pois o que está em jogo não é Mendonção, mas sim a
atitude geral do nosso governo a partir de 2003 frente aos crimes cometidos
pelo governo anterior.
Esta atitude foi deixar nas mãos das instituições a
investigação.
Ora, como estas instituições são o que são, o resultado foi o que
foi. Como reclamar disto? E como não vincular nossa atitude no caso, com o que
viria depois?
Também neste
capítulo, na página 287 e seguintes, se aborda o caso Cpem. Sobre ele, Dirceu
afirma:
“Paguei caro dentro do PT pela constituição da comissão e por
seu relatório. Nunca me arrependi. Era preciso provar para a mídia – quando se
trata do PT, o ônus da prova é sempre do acusado – que Lula nada tinha a ver
com os contratos da Cpem com as prefeituras, como ficu demonstrado.”
O argumento
faz sentido, concordemos ou não. Mas é importante dizer que, em 2005, Dirceu
recusaria para si mesmo o procedimento que em 1997 julgou válido para Lula.
Outro tema
abordado no capítulo 21 é a decisão de Lula ser candidato às eleições de 1998.
Sobre isto, num único parágrafo da página 290, separado por uma única frase,
Dirceu informa que “Lula persistia em não se colocar como candidato” e “Lula
decidiu-se e lançamos sua candidatura”.
Entre uma coisa e outra ocorreu o
Encontro do PT no Hotel Glória, fato que na minha opinião foi decisivo para
explicar a mudança na atitude de Lula. Mas isto não é citado neste capítulo.
O capítulo
22, na página 293, traz vários e merecidos elogios ao Movimento Sem Terra e uma
neutra referência à Consulta Popular.
Este caso é
um bom exemplo dos “dois estilos” que Dirceu adota, nas suas Memórias:
a) em alguns casos cita fatos passados, reproduzindo de maneira bastante fiel o
que ele pensava na época, sem fazer nenhuma mediação com os fatos posteriores; b)
noutros casos ele transporta para a época seu ponto de vista atual ou
simplesmente omite o que pensava na época.
O caso da
Consulta, por exemplo, é curioso. Na época eu era terceiro vice-presidente
nacional do PT e recebi uma carta de Dirceu, reclamando do que eu teria dito e
de minha participação numa reunião da Consulta. Respondi que o Valter em questão,
citado num texto da Consulta, não era eu, até porque minha opinião sobre a
Consulta e sobre seu (na época) principal ideólogo, César Benjamin, era muito crítica.
Cito isto
como um de vários exemplos de que a relação entre Dirceu e este setor da
esquerda não era, na época, aquilo que transparece nas Memórias.
Outro
exemplo dos “dois estilos”: as lembranças de Dirceu acerca do plebiscito da
dívida externa omitem as diferenças de opinião que havia a respeito (ver
páginas 304 e 305).
Ainda neste
capítulo, repete-se a obsessão de Dirceu com a Articulação de Esquerda. Na
página 294 ele afirma o seguinte:
“No PT realizamos o 11º Congresso no Hotel Glória, no Rio de
Janeiro, em agosto daquele ano. Um ensaio de 1998 e consolidação da minha
presidência, com o começo do fim da Articulação de Esquerda, já diluída em uma
frente de esquerda. Fui reeleito presidente do partido com 52,59% dos votos.”
Não sei exatamente
o que significa “consolidação” para Dirceu, mas em 1995 ele recebeu 54,02% dos
votos e em 1998 ele recebeu 52,59% dos votos.
Quanto as
chapas, cinco foram inscritas no final do 11º Encontro (e não Congresso, Dirceu
se equivoca quanto a nomenclatura usada pelo partido neste momento).
A chapa
Luta Socialista (da qual fazia parte a AE) teve 37,82% dos votos; a chapa Unida
de na Luta, da qual Dirceu fazia parte, teve 34,73% dos votos; a chapa
Democracia Radical, de que Genoíno fazia parte, teve 11,82% dos votos; a chapa Socialismo
e liberdade, de Jaques Wagner e Tilden Santiago, teve 11,09% dos votos; e a
chapa Nova Democracia, de Paulo Teixeira e Rui Falcão, teve 4,55% dos votos.
A
Articulação de Esquerda, nos encontros de que participou entre 1993 e 1997,
sempre fez parte de chapas com outras tendências da esquerda petista. O “diluída” portanto é por conta de Dirceu e o “começo do fim” é, como já disse, sinal de uma preocupação
obsessiva, cujas razões comentarei noutro momento.
Também neste
capítulo, Dirceu trata da intervenção no Rio de Janeiro, para destituir a
candidatura de Vladimir Palmeira e impor a aliança com Brizola e Anthony
Garotinho.
Ficamos
sabendo, na página 296, que Dirceu se “encantava” com o “método de análise e de
decisão” de Brizola.
Ficamos
sabendo, também, na página 298, o seguinte:
“hoje avalio que o
preço político que pagamos pelo respaldo a Garotinho não compensou a aliança
com Brizola. Isso, porém, é agora. Em 1998, eu não só estava convencido, mas
também decidido. Sem minha posição firme e clara não haveria aliança. Fiz por
Lula e pelo PT.”
Como já
observamos em outro momento, Dirceu às vezes faz autocríticas diretas e retas (caso
do parlamentarismo, este caso do Garotinho), mas é uma autocrítica curiosa,
como se ele dissesse deu errado, mas faria tudo outra vez.
Isto está ligado, penso eu, a opção de não fazer uma reflexão de fundo sobre a
política adotada e, no lugar disso, exaltar o bom desempenho na execução da
política adotada. Algo como: ok, errei, mas cumpri meu dever. O
tal imperativo que aparece no início de suas Memórias, quando se
avalia a luta armada.
Na página
299, Dirceu fala que:
“com a crise presente na bolsa e no ataque ao Real, o PT e
nosso programa – e mesmo Lula – não foram capazes de explicar o quadro e
conquistar o eleitor popular e desempregado. Nem mesmo o pacote de setembro,
com juros de 49,75%, aumento de impostos, corte de gastos, ocultando e evitando
o principal, a desvalorização do real, conseguiu abalar a maioria favorável a
FHC. ”
Compare-se o
que é dito neste parágrafo acima, com o balanço no parágrafo da página 266 em
que Dirceu faz um balanço das eleições de 1994:
“Era possível vencer em 1994? Não. Perdemos por causa do
Real? Não. Perdemos antes da eleição, na decisão “Fora Itamar”, na divisão
interna, na eleição da Nova Maioria, na coordenação tripartite da campanha na
TV e no Rádio, nas ilusões sobre Covas e o PSDB. Tratava-se da pior derrota e
merecia uma resposta à altura da nossa parte.”
É impossível não perceber os dois pesos e as
duas medidas, quando se analisa a derrota sob a sua presidência e sob a presidência
da esquerda (no caso, de Rui Falcão).
Mais
adiante, na página 300, Dirceu dirá que:
“nunca tive ilusões com 1998. O ciclo de FHC não acabara e a
hegemonia política e cultural das ideias neoliberais persistia. Após as
derrotas de 1989, 1994 e agora de 1998, era o PT que precisava mudar.”
Curiosa
conclusão, vinda de quem presidia, de maneira “consolidada”, o PT desde 1995.
Mais curioso ainda é que, na página 301, Dirceu nos informa o seguinte:
“em 1999, Lula articularia minha saída da presidência do PT.
À esquerda, com o apoio de Tarso Genro e Ricardo Berzoini, entre outros ,
surgia a proposta do “Fora FHC”, a ser decidida no 2º Congresso, em Belo
Horizonte.
Mal começara o ano [1999] e a casa caiu. O real seria
desvalorizado e a crise econômica se mesclaria com a de governo. O caminho para
2002 estava aberto. Lula, no entanto, propôs meu afastamento da presidência do
PT. Exatamente quando era a ocasião de robustecer a nova maioria e propor
mudanças drásticas para mudar as relações internas no partido, preparando-o
para a disputa de 2002.
Lula nunca me disse o motivo de sua decisão, mas avalio que
foi em função do fracasso da aliança com o PDT e da campanha. Acatei e me
preparei para exercer plenamente meu mandato de deputado e de dirigente, mas
eis que a vida e a realidade se impuseram. Primeiro, a crise econômica, segundo
o “Fora FHC” e o 2º Congresso, depois a crise da candidatura Tarso Genro à
presidência do PT.”
Esta
passagem revela, mais uma vez, que os principais antagonistas de Dirceu no
Partido não estão apenas na chamada esquerda. Mas também fica claro que a “esquerda”
funciona as vezes como espantalho, em nome do qual seus serviços são úteis para
seus aliados moderados.
No capítulo
23, página 306, Dirceu diz o seguinte:
“Lula fizera
um movimento arriscado ao sugerir o nome de Tarso Genro para presidir a
legenda. De fato, um terceiro mandato para mim seria inusitado e, nossa cultura
indicava, nada recomendável.
De outra parte, não era essa a percepção da maioria
do partido, especialmente da Articulação. Parecia algo inesperado e
contraditório a substituição naquele momento de ascensão da oposição e
robustecimento da minha liderança.”
Aquilo que
Dirceu chama de “inusitado” e “nada recomendável”, foi feito: Dirceu será
reeleito presidente duas vezes em encontro (1995 e 1997), uma vezes em
congresso (1999) e uma quarta vez em eleição direta (2001). Infelizmente, ele
não reflete acerca da contradição entre sua percepção de que isto seria algo “nada
recomendável” e seus gestos.
O atenuante,
claro, é a “percepção da maioria do Partido” e da “Articulação”. Óbvio: não há
maioria no mundo que não busque, consciente ou inconscientemente, adotar regras
e práticas com o objetivo de se perpetuar.
Mas de que “maioria”
estamos falando. Dirceu nos diz que a Articulação obteve 43,64% dos votos,
portanto não se tratava de uma maioria absoluta. Dependia dos votos da
Democracia Radical de Genoíno, que obteve segundo Dirceu 8% dos votos.
Dirceu não
informa, mas segundo a imprensa ele obteve 54% dos votos na disputa da
presidência no 2º Congresso. Portanto, 3% a mais do que a soma das chapas que
compunham a maioria.
E no primeiro PED, Dirceu venceu por 55% dos
votos. Portanto, seja pelo voto direto, seja pelo voto dos delegados, a maioria
obtida pela Articulação Unidade na Luta e por Dirceu sempre dependeram de duas
coisas: unidade interna na Unidade na Luta e alianças.
Na minha
opinião, é isto que explica que, pouco a pouco, a Unidade na Luta tenha
assumido um funcionamento de “partido dentro do partido”, com centralismo
democrático de fato.
Contradizendo o discurso da Articulação dos 113, criada
nos anos 1980. Sem centralismo interno, a maioria estaria ameaçada. Mas com
centralismo interno, o que estaria ameaçado é o funcionamento do Partido, pois
na prática 22% do Partido poderia impor sua vontade sobre 78%.
Dirceu tem
alguma noção disto? Óbvio. Fala algo a respeito: pelo menos no primeiro volume
das suas Memórias, não fala nada.
Voltaremos
ao assunto na quarta parte deste texto.
(Sem revisão. Aliás,
agradeço a quem se disponha a indicar eventuais erros de digitação ou mesmo
informações equivocadas.)
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