Para quem não leu as partes anteriores, basta ir
aqui:
Na página 373 das Memórias, José Dirceu diz
o seguinte:
“Dentro do PT, do
governo, da esquerda, com os aliados e na disputa na sociedade, assumi o papel
de traduzir esse projeto e defende-lo – e que faço até hoje – contestando duas
versões: 1) éramos uma continuidade de FHC mais o social; 2) ou a visão
interna, segundo a qual nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela
burguesia, sua ideologia e interesses. Era a percepção da esquerda do partido
e, depois, a do PSOL e do PSTU.”
Este parágrafo tem enorme importância para
compreender como Dirceu vê a si mesmo e como vê seus antagonistas.
Vamos por partes: ele assume o papel de traduzir e
defender “esse projeto”, “dentro do PT”, dentro “do governo”, dentro “da
esquerda”, “com os aliados e na disputa na sociedade”.
Convenhamos, para alguém que reclama nas Memórias
estar assoberbado de trabalho, trata-se de uma tarefa titânica.
Mas o problema não é apenas do volume de trabalho. A
questão é: um indivíduo que se propõe a cumprir todos estes papéis está
chamando para si, pessoa física, o papel de um partido político.
Em segundo lugar: “esse projeto” que Dirceu se
propõe a defender não é aquele que ele expos na página 311 (um programa de
ruptura do neoliberalismo, democrático e popular, capaz de pagar a dívida
social histórica e abrir caminho por reformas estruturais). “Esse projeto” que
Dirceu se propõe a defender é uma mediação com a Carta aos
Brasileiros, com Palocci.
Que Dirceu o defenda, é uma opção dele. Mas seria
preciso deixar claro que não se trata da “ruptura do neoliberalismo”. E,
portanto, ter maior nível de tolerância com as críticas vindas da esquerda.
Aliás, Dirceu que se considera um não stalinista,
deveria perceber melhor a importância de administrar com paciência as tensões entre o que a correlação de força permite fazer e o que são os objetivos de médio e longo prazo.
Voltemos ao que é dito na página 373, onde Dirceu se
propõe a contestar duas versões:
“1) éramos uma
continuidade de FHC mais o social;”
“2) ou a visão interna,
segundo a qual nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela burguesia,
sua ideologia e interesses. Era a percepção da esquerda do partido e, depois, a
do PSOL e do PSTU.”
Suponho que a primeira versão é a sustentada por
setores do PSDB e da mídia. Versão esta que muitas vezes se apoiou na
continuidade da política monetária e nas inesquecíveis declarações de Palocci
em Comandatuba.
Já a segunda versão, segundo Dirceu, é a “percepção
da esquerda do partido e, depois, a do PSOL e do PSTU”.
A maldade do argumento é explícita: coloca no mesmo
saco a esquerda petista e, “depois”, as posições do PSOL e do PSTU.
Além de maldoso, o argumento é falso. Em primeiro
lugar, embora seja comum falar da “esquerda petista”, basta olhar os encontros
e congressos partidários, as politicas implementadas nos governos e nas
bancadas, bem como os documentos e resoluções, para saber que na verdade há
várias esquerdas.
Em segundo lugar, o PSTU foi fundado em 1994. Apoiou
a candidatura de Lula em 1998 e, se a memória não falha, no segundo turno de
2002. Desde então fez oposição radical aos governos Lula e Dilma, considerando
instrumentos do imperialismo e do capital. Posições que não tem absolutamente
nada que ver com as críticas da esquerda petista.
Já o PSOL foi fundado em 2004. Lançou candidaturas
próprias em 2006, 2010 e 2014, que no segundo turno recusaram apoiar as
candidaturas do PT.
Nas eleições de 2018 o PSOL lançou um candidato
recém-filiado, Boulos, que adotou um discurso mais matizado em relação aos
governos Lula e Dilma. Mas mesmo Boulos disse, há não muito tempo, que o
petismo não era de esquerda. O que isso tem que ver com as críticas da esquerda
petista??
A minha impressão é que Dirceu adota uma técnica
retórica (a baleia vive no mar, falemos no mar), que ao associar a esquerda
petista com PSOL e PSTU, deixa apenas para ele o direito de criticar (as vezes
com os mesmos argumentos da esquerda petista) os erros dos governos Lula e
Dilma.
Agora vamos ao mérito: Dirceu diz que a esquerda
petista defende que “nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela
burguesia, sua ideologia e interesses”.
Voltemos atrás no livro de Dirceu e vejamos o que
ele mesmo diz na página 334 acerca da Carta aos Brasileiros: “Vamos trilhar o
mesmo caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no
primeiro governo Lula.”
Isto que Dirceu afirma equivale a dizer que um setor
do PT, continuando a ser do PT, continuando a representar os trabalhadores,
estava admitindo implementar uma política que expressa os interesses da
burguesia. Noutras palavras: “estavam hegemonizados pela burguesia, sua
ideologia e interesses”.
Noutros termos: a segunda posição, que Dirceu
atribui a esquerda petista (o que é verdade), ao PSOL e ao PSTU (o que não é
verdade), é a mesmíssima posição que ele mesmo explicitou em seu livro.
Aqui vai ficando claro, na minha opinião, por qual
motivo Dirceu tem verdadeira obsessão com e contra a Articulação de
Esquerda.
Para encerrar esta parte dos comentários, cito uma
passagem do livro do próprio Dirceu, em que fica claro o que estamos querendo
dizer.
Na página 373, ao falar da batalha do salário mínimo,
ele diz que nossa administração defendia 300 reais, Palocci e equipe
discordavam e, “no final das contas, chegou-se aos R$ 260,00, produto de acordo
entre Lula e Palocci.”
Notem a frase: produto de acordo entre Lula e
Palocci. Entre o presidente eleito e um ministro nomeado. Este é um bom exemplo
da “hegemonia da burguesia, sua ideologia e seus interesses” no governo.
Palocci foi, durante muito tempo, o instrumento de outra classe em nosso meio.
Esta foi sua traição.
Dirceu abre o capítulo 29 de seu livro dizendo o
seguinte:
“Minha angústia crescia
em 2004. Os rigores do ajuste, do contingenciamento, explodiam em crises aqui e
ali. Eram oportunidades perdidas e o tempo político corria contra nós. Após
dezoito meses, era imprescindível destravar a economia, o crédito e reduzir os
juros. Preocupava-se com a política, essa senhora do destino. Expressei isto
numa cerimônia, abandonando o discurso por escrito. O que fiz com boa intenção
e um pouco para mobilizar meus apoios e meu público.”
Não sei que discurso é esse, onde e quando foi
feito. E suponho que o “preocupava-se” é um erro de digitação, assim como uma
passagem neste capítulo que fala de Dirceu em terceira pessoa (página 384).
O importante, penso, é que o parágrafo acima deixa
claro aquilo que dissemos antes: “esse projeto” defendido por Dirceu é o mesmo
que fazia crescer a sua “angústia”. Portanto, alguma das críticas da chamada
esquerda do Partido faziam sentido e não eram coisa do PSTU nem do PSOL.
A partir daí, o livro relata a CPI do Banestado e desemboca
na seguinte frase: “o maior erro que cometi nos trinta meses de governo” foi
ter acumulado a Casa Civil e a Articulação Política.
Esta é a opinião de Dirceu. Pessoalmente, acho que
ele deve ter cometido erros muito maiores que esse. Mas que ele localize neste
tema seu “maior erro” em trinta meses revela uma certa visão de mundo.
Diz ele na página 382 que ao acumular as duas
funções, “subestimou a importância da articulação política, principalmente a
relação com os partidos, líderes, e com os deputados e senadores” (...) “No
fundo o que me movia era a angústia de ver a consolidação de uma política
conservadora na Fazenda e o rumo geral do governo e da relação com o PT”.
Mais uma vez a tese que Dirceu expulsou pela porta,
voltou pela janela. A política conservadora na Fazenda contaminava todo o
governo; esta política beneficiava o setor financeiro; e portanto correspondia
a hegemonia do setor financeiro por sobre o governo. Exatamente a tese que,
como citamos antes, Dirceu se dispunha a combater.
A pergunta é: isto podia ser resolvido no âmbito da
articulação política?
Óbvio que não. O máximo que se podia obter neste terreno
era apoio à política que vinha sendo executada, não uma mudança de política.
Portanto, o que Dirceu na verdade está dizendo é que
a aplicação da política conservadora na Fazenda estava fazendo o governo perder
apoios no PT e fora do PT. Problema que podia ser minorado, mas não resolvido
no âmbito da articulação política.
Donde, acho eu, seu maior erro não foi ter acumulado
funções, mas sim ter aceito ser defensor dentro e fora do Partido, no governo e
na sociedade, de uma política que, ao menos em parte, correspondia a interesses
que não eram os nossos e que, portanto, precisava ser combatida para ser
alterada.
Ou seja: era preciso que o PT fosse a esquerda da
coligação de centro-esquerda e agisse como tal. A atitude de Dirceu contribuiu
para bloquear isto. É paradoxal, mas tudo indica que este é a “verdade nua e
crua”.
Mas, ao mesmo tempo, Dirceu era visto como alguém
que poderia ameaçar a continuidade daquela política conservadora. Para exagerar
o que estou querendo dizer, é como se por um lado Dirceu tivesse minado os
apoios que poderia ter na esquerda; e, por outro lado, não tinha os apoios
suficientes e necessários na direita.
Este era o cenário. De onde viria o tiro, é um
detalhe, penso eu. O tiro, como sabemos e Dirceu relata, envolveu primeiro
Waldomiro Diniz, num episódio que as Memórias analisam detalhadamente.
Dirceu conclui o capítulo 29 falando e criticando
Aldo Rebelo como ministro da Articulação Política. E afirmando que havia
“sinais de crise no ar”.
No capítulo 30, Dirceu dá sua versão sobre a divisão
do PT na eleição do presidente da Câmara dos Deputados, sobre a eleição de
Severino Cavalcanti, uma rápida opinião sobre a questão das obras de
infraestrutura, além de várias páginas sobre os arquivos da ditadura e a
relação com as forças armadas.
O capítulo termina na página 404, com um longo
parágrafo que reproduzo a seguir:
“Nos trinta meses em
que permaneci no governo, sempre me coloquei na posição de petista. Sabia da
expectativa e da minha responsabilidade com os petistas e, mais do que com
eles, com os eleitores do PT e de Lula. Colocava-me também na condição de
militante da esquerda socialista, internacionalista e revolucionária, e de
sobrevivente da luta armada de resistência à tirania e herdeiro dos sonhos dos
que haviam caído em combate. De minha formação política e cultural, de nossa
história de nação e povo, trazia o sentimento e o compromisso com os
explorados, os deserdados e com os trabalhadores.”
Acho que compreendo os sentimentos que movem Dirceu
a escrever isto.
Mas o fato relevante está no parágrafo anterior a este, na
mesma página 404. Nas palavras de Dirceu: no tema dos arquivos da ditadura e da
punição de seus crimes, “continuamos na contramão da história”.
O capítulo 31 trata da defesa nacional, do combate
ao narcotráfico e ao crime organizado, da relação entre as forças armadas na
América do Sul, do judiciário, da relação com Márcio Thomas Bastos, dos contatos
políticos de Dirceu com diversos personagens políticos, da política
internacional do PT, da presença de Dirceu no enterro de Arafat, nas
negociações da Alca, do Haiti e de Cuba.
Já o capítulo 32 trata do chamado mensalão. Começa
na página 420 com a seguinte afirmação:
“No final de 2004,
ainda tomado por uma mistura de cansaço, decepção e angústia, comecei a me
indagar se não serviria melhor ao governo como deputado e militante,
percorrendo o Brasil e mobilizando a militância. Minha intuição detectava que
estávamos expostos e divididos, que faltava mobilização para sustentar o
governo, por demais dependente de uma base parlamentar de centro-direita e
altamente instável.”
Como já foi dito antes, pelo próprio Dirceu, a
origem do problema estava na política econômica liderada pela Fazenda.
Portanto, a solução do problema dependia de mudar esta política. Sem isto,
qualquer mobilização giraria em falso.
Entretanto, se este era o problema, então a
indagação feita por Dirceu caberia ter sido feita em 2002. Como deputado, líder
da bancada, presidente da Câmara e do Partido, ele poderia ter cumprindo um
duplo papel: defender e empurrar o governo, no sentido de mudar de política.
Por razões que só ele pode explicar, mas que eu
suponho estarem ligadas a visão que ele tinha sobre o papel do partido e do
governo, ele aparentemente não considerou esta hipótese. Com isso, se viu
diante de uma armadilha: ser o representante
impotente da ala esquerda do governo e no governo.
Na mesma página 420, Dirceu diz o seguinte sobre a
situação:
“vinha se agravando, seja pela política econômica,
para além do necessário monetarista e conservadora, seja pela reforma da
Previdência, caso típico da miopia da nossa esquerda, defendendo privilégios da
alta cúpula do setor público.”
As frases acima são típicas do raciocínio que Dirceu
fazia na época:
a)a política econômica podia ser monetarista e
conservadora, o erro estava em ser “além do necessário”;
b)os danos da reforma da previdência deviam-se a
miopia da esquerda, e não a falta de sendo de iniciar um governo de esquerda
travando uma batalha contra uma parte de seu eleitorado e base social.
Dirceu era, como fica claro acima, prisioneiro dos
limites da política implementada pelo governo. Política que não era a dele, mas
que ele aceitou voluntariamente defender. Política que ele queria mudar, mas
não através do combate explícito, público e partidário. No âmbito psicológico,
o resultado deste melê só podia mesmo ser cansaço, decepção e angústia. No
âmbito político, seria uma verdadeira tragédia grega.
E as razões de fundo da tragédia são expostas pelo
próprio Dirceu, na mesma página 420:
“Havia – e ainda há –
um erro estratégico de avaliação: a suposição de que a oposição –e não só a
partidária – aceitava a vitória de Lula em 2002 e respeitaria as regras
democráticas e a alternância de poder. Pior , subestimávamos o uso pelos
oposicionistas –PSDB a frente—do aparato policial e judicial, o que ocorria de
forma ilegal e “legal”. Contudo, nosso mais sério engano versava sobre o papel
da mídia na formação do “clamor popular”, a opinião pública – e não a opinião
pública – modelando a “pressão popular”.
A pergunta é: de quem era esse “erro estratégico de
avaliação”?
Era um erro de todo o partido? Ou era um erro de um
setor do partido?
Ademais, será que a base do tal erro estratégico não
estaria em afirmações como aquela interpretação que Dirceu faz acerca das
resoluções do 5º encontro nacional, por exemplo a afirmação de que “a conquista
do poder pelo voto, pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo”?
Entre minhas lembranças de Dirceu, está uma vez em
que o entrevistei para o jornal Brasil Agora. Durante a conversa que
mantivemos, ele apresentou uma hipótese: a de que teríamos governos
progressistas, sucessivamente mais avançados, até que tivéssemos um governo
democrático e popular etc.
Pode ser que minha lembrança não seja exata, mas
esta teoria bizarra tem relação com os erros cometidos, pelo seguinte: não se
leva em conta que o outro lado não vai aceitar e, antes que se ultrapasse o
limite do não retorno, vai operar para colocar as coisas de volta no lugar.
É exatamente por isto que um governo popular é
obrigado a arriscar, a tentar fazer coisas que estejam um pouco além dos
limites da correlação de força, a contar com a iniciativa e o fator surpresa, a
não se deixar conter pelo rame-rame administrativo, a não cair nas ilusões
republicanas. Pois no limite, uma vez chegados no governo, o tempo não corre
a nosso favor.
Mas voltemos ao capítulo 32 das Memórias. Depois de
falar de Roberto Jefferson, Dirceu diz que a guerra do “mensalão” começou co
nossa derrota na primeira e decisiva batalha: a instalação da CPI dos Correios.
Dirceu faz questão de citar o nome dos quatorze
deputados e deputadas do PT que assinaram a CPI dos correios. A lista está na
página 425. Nenhum é da Articulação de Esquerda...
Dirceu relata de maneira panorâmica sua versão dos
fatos, até o dia 15 de junho (página 427), quando vai ao encontro de Lula para
pedir demissão, sendo que Lula:
“também já se decidira
pelo meu afastamento. Não me pediu para ficar, não me propôs nenhuma outra
tarefa, simplesmente me demitiu. Foi melancólico e simbólico, como se tudo já
tivesse sido decidido, poucas palavras, monossílabas, uma cena um tanto
derrotista e pequena para os protagonistas, para nossa história de luta.
Depois, no Planalto, numa pequena reunião com Lula, Mercadante, se não me
engano, Gilberto e Gushiken, talvez Palocci, eu me emocionei e chorei”.
Na página 428 ele agrega:
“Como era possível que
companheiros e companheiras, de tantos anos no PT, simplesmente me
abandonassem, sem mais nem menos? Na verdade, fui abandonado à minha própria
sorte. Não havia nenhuma proposta sobre meu futuro. Eu teria que me defender
sozinho e contar, como sempre, com a solidariedade e apoio da militância, de
parlamentares e dirigentes do PT, já que o governo e a direção do PT não
conseguiam sequer se defender. Que contraste, que abismo entre meus camaradas
de armas e agora de alguns, muitos, de meus companheiros do PT”
Na página 429 ele diz:
“Não havia uma linha de
resistência, uma trincheira, um plano de luta, nem no governo e, muito menos,
no PT. Era como se as denúncias fossem apenas, e tão somente, uma questão
ética, de caixa dois, de financiamento de campanha e total responsabilidade de
Delúbio Soares, Sílvio Pereira e José Genoíno e, na prática, minha, avalizando
assim a acusação de Roberto Jefferson”.
Aproveito aqui para corrigir um erro: como se pode
ver acima, é aqui (na página 429) que Dirceu cita pela primeira vez Sílvio
Perreira. Portanto, Pereira é citado duas vezes na obra, e não apenas uma.
Isto posto, não vou aqui repisar o que disse e
escrevi em 2005 e que está disponível em inúmeros textos e entrevistas. Em
resumo, acho que Dirceu faz uma interpretação incorreta dos acontecimentos e de
sua responsabilidade neles.
Exemplo disso é a seguinte passagem, na página 428 e
429:
“Mais decepcionante era
a situação interna do partido, sua absoluta incapacidade de reconstruir uma
maioria e uma direção, com um gabinete de crise, para enfrenta-la e superá-la.
Em lugar disso, a imediata e rápida decisão de se livrar dos acusados,
culpa-los, expulsá-los. Em atitude oportunista e covarde – quase uma corrida –
vários grupos e tendências do PT passaram a se isentar mutuamente e a acusar a
maioria, o Campo Majoritário, pelos fatos. Esses, aliás, ainda em processo de
apuração por uma CPI e a Polícia Federal”.
Espero que algum dia, alguém faça um relato
sistemático e documentado, em ordem cronológica, do que foi dito e escrito nas
reuniões do Diretório e da executiva nacional do PT acerca do tema. Há muita
lenda, muita confusão, muita desinformação a respeito.
Por exemplo: simplesmente não é verdade que tenha
havia “imediata e rápida decisão de se livrar dos acusados”. Muito menos de
“expulsá-los”.
Aliás, expulso pelo DN só houve um: Delúbio Soares. Sílvio
Pereira pediu desfiliação. Outros dirigentes pediram demissão de seus cargos.
Onde estas decisões de desfiliação e demissão foram tomadas? Posso garantir que
não foi em nenhuma reunião de instância.
Nas reuniões do DN, por diversas vezes, eu defendi
que houvesse comissão de ética. Meus argumentos eram similares aos adotados
pelo José Dirceu, no caso de Cpem.
Para quem não lembra, na página 289 Dirceu afirma
(os grifos são meus):
“Paguei caro dentro do
PT pela constituição da comissão e por seu relatório. Nunca me arrependi. Era
preciso provar para a mídia – quando se trata do PT, o ônus da prova é sempre
do acusado – que Lula nada tinha a ver com os contratos da Cpem com as
prefeituras, como ficu demonstrado.”
Este foi o critério aplicado por Dirceu, quando se
tratava de Lula. Por qual motivo não seria o melhor, no caso de Dirceu e
outros?
Havia um argumento, usado na época e reproduzido
parcialmente por Dirceu: o processo de apuração por uma CPI e pela Polícia Federal.
Disse na época e repito aqui: o PT devia formar uma opinião própria sobre os
fatos. Infelizmente, prevaleceu a ideia de que na justiça as denúncias não
dariam em nada. E que, portanto, uma comissão de ética poderia ser até mesmo
prejudicial para os acusados. A vida, na minha opinião, demonstrou o contrário.
Teria sido melhor esclarecer os fatos internamente e criar melhores condições
para fazer uma defesa externa.
O mais estranho no texto de Dirceu é a seguinte
passagem (428-429):
“vários grupos e tendências
do PT passaram a se isentar mutuamente e a acusar a maioria, o Campo
Majoritário, pelos fatos”.
De fato, houve de tudo um pouco no DN. Inclusive dirigentes
muito importantes do próprio campo majoritário, que faziam questão de dizer que
não tinham a menor ideia acerca do que estava ocorrendo, das acusações e tudo o
mais.
Vale lembrar que o Diretório Nacional que enfrentou
a crise de 2005 havia sido eleito no PED de 2001. Portanto, é o mesmo Diretório
que de maneira triunfante venceu as eleições de 2002. Aquele que era encabeçado
pelo flamante Dirceu e no qual havia uma folgada maioria que, em alguns casos,
beirava os 70%.
Portanto, caberia antes de mais nada a Dirceu
explicar como aquilo deu nisso de que ele reclama. Por outro lado, Dirceu
reclama da solidariedade da minoria, mas ele deveria se perguntar como esta
minoria foi tratada pela maioria, se havia compartilhamento de informações, se
a destinação dos recursos era deliberada democraticamente e assim por diante.
Por mais que pudesse haver oportunismo e covardia de alguns, inclusive de
integrantes do campo majoritário, a postura de imputar ao grupo majoritário a
responsabilidade pelos problemas era em alguma medida o reflexo da postura
deste mesmo grupo majoritário, de imputar apenas a si mesmo os êxitos, os bônus,
os sucessos.
Sobre tudo isso que escrevi antes, cabe polêmica e
contraditório. Mas na página 429, Dirceu faz uma afirmação que merece correção:
“Diante do panorama
desolador, as correntes minoritárias se aproveitaram da crise, articulando-se
para derrotar Genoíno, cujo mandato terminava em 2005”.
“As correntes minoritárias” inclui a Articulação de
Esquerda, e posso garantir que a Articulação de Esquerda não adotou esta
postura. Aliás, no meu caso (que era candidato a presidência nacional do PT em
nome da Articulação de Esquerda), fui um dos que foi a público defender o
Genoíno.
Em segundo lugar, é preciso lembrar que Genoíno
assumiu a presidência do lugar de Dirceu, que se licenciou para assumir o
governo. O mandato não terminava em 2005, terminava antes. Contra nosso voto, o
PED foi adiado.
Dirceu afirma que “aumentava a pressão pela sua (de
Genoíno) renúncia, mesmo que isso representasse um prejulgamento, tomado como
confissão de culpa”. Buenas, tal pressão houve, mas Dirceu deveria se perguntar
se as correntes minoritárias tinham força para tal. Ou se a pressão pela
renúncia de Genoíno envolveu outros setores do Partido, com muito mais peso do
que as minorias.
Dirceu acrescenta na página 429:
“não se tratava de uma resposta organizada,
dirigida à militância com uma nova proposta de defesa do PT e do governo. Era
simplesmente um acerto de contas, desespero, a incapacidade de compreender o
momento e de definir estratégias.”
Esta afirmação, posta deste jeito, é falsa. Havia um
setor do partido que queria adiar ou cancelar a eleição de uma nova direção.
Prevaleceu a posição contrária. E o PED de 2005 foi um dos fatores que salvou o
PT. E quem participou dele sabe que havia sim diferentes propostas de defesa do
PT e do governo.
Dirceu relata, na página 430, que ele participou da
reunião em que se debateu a substituição de Genoíno. Como ele próprio afirma,
foi uma reunião do campo majoritário. Ele não conta, curiosamente, qual a
decisão nem quem a tomou. Mas no dia da renúncia de Genoíno cada uma das
tendências do Partido foi chamada para uma reunião com representantes do campo
majoritário, onde foi-nos informado que este mesmo campo majoritário havia
decidido por indicar o nome de Tarso Genro.
Ao menos nós da Articulação de Esquerda dissemos, na
reunião convocada para este fim, na qual estavam presentes Aloizio Mercadante e
Luiz Dulci, que a indicação de Tarso Genro era um grave erro.
Por tudo isto, é bizarro
ver Dirceu escrever, na página 431, o seguinte:
“A
esquerda do Partido se divide e o nome de Tarso Genro enfrenta resistência como
candidato único das correntes minoritárias”.
Tarso Genro virou
presidente provisório do PT por decisão do campo majoritário. Nunca existiu a
possibilidade dele ser candidato único das correntes minoritárias. No caso da
Articulação de Esquerda, por exemplo, considerávamos Tarso como um integrante
do campo majoritário.
Há outros detalhes no
capítulo 33, sobre Sílvio Pereira, Delcidio Amaral, Marcos Valerio etc, sobre
os quais eu já escrevi muito, em 2005. Meu único comentário é o seguinte: o relato
de Dirceu sobre tudo isto é vazado em tom de desabafo, cheio de lacunas e
atravessado pelos rancores da época. Como pessoa, compreendo. Mas...
No capítulo 33, Dirceu
faz duros ataques a Aloizio Mercadante, por sua atuação na CPI. Critica Luciana
Genro, Babá e Heloísa Helena por seu comportamento em 2005, quando eles já não
eram do PT, expulsos que foram em 2003, num episódio que salvo engano não é
relatado nas Memórias. E acusa Raul Pont e outros deputados da Democracia
Socialista de terem exigido sua expulsão e terem votado por sua cassação.
No capítulo 34 acusa
doze deputados do PT de terem votado pela sua cassação. Mas não diz quem foram.
Neste mesmo capítulo, na página 448, trata das indicações feitas por Lula para
o STF. Diz que “parece simples, majestático, o presidente querer e indicar os
ministros das cortes superiores, mas, na prática, na vida real, não é assim”.
Admitamos que não é
assim, mas é preciso reconhecer que conseguimos uma proeza e tanto nas indicações...
O próprio Dirceu acaba reconhecendo, na página 450, que “erramos nas indicações”.
Mas insiste em perguntar: “tínhamos forças e condições de indicar ministros
alinhados com nosso governo e programa”?
A pergunta é malandra!
Afinal, na época em que foram feitas estas indicações, se dizia de muitos dos
indicados que eles seriam alinhados com nosso governo. E isso não se verificou.
O problema, portanto, não é saber se tínhamos ou não força; o problema é saber
por quais motivos nos enganamos tanto.
(Sem revisão.
Agradeço a quem se disponha a indicar eventuais erros de digitação ou mesmo
informações equivocadas.)
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