segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A história o absolverá?

O texto abaixo foi publicado no livro Revolução Cubana. Histórias e Problemas Atuais (São Paulo, Xamã, 1998).



            O trigésimo aniversário do assassinato de Che Guevara motivou uma série de publicações e eventos –entre os quais este livro-- sobre diversos aspectos da revolução cubana. Na maioria deles, Che foi apresentado como a alma pura da revolução, e Fidel como seu anjo mau.

É fácil encontrar, nesses trabalhos, idéias como: Che expunha claramente suas convicções marxistas, enquanto Fidel só as teria revelado depois de consolidada a revolução. Um propôs caminhos heterodoxos para a economia cubana, o outro teria apadrinhado o planejamento centralizado e burocrático de tipo soviético. Che abandonou o cargo de ministro para ajudar na criação de “mil Vietnãs”, enquanto Fidel teria se acomodado às exigências da política internacional da URSS. Alguns chegam a sustentar que, enquanto Guevara morreu combatendo, Castro só teria estimulado a “aventura suicida” do amigo e companheiro, negando qualquer ajuda no momento fatal, para se livrar de uma presença incômoda. A lista de ataques a Fidel é tão longa quanto questionável, mas aqui só queremos ressaltar que a maioria dos estudos publicados recentemente nutre enorme antipatia por Fidel –enquanto concede a Che um tratamento aparentemente mais favorável.

            Há diversas causas para isto. A principal delas é a tentativa, promovida pelo establishment cultural,  de despolitizar e esterilizar a figura do Che –coisa impossível, ou bem mais difícil de fazer, com Fidel.

Outra causa, sem dúvida, diz respeito as características pessoais de Che –ou pelo menos a imagem que muitos temos dele. Além disso, a “carreira política” de Che foi curta demais, e vivida nos momentos heróicos da revolução –a guerrilha cubana, os primeiros anos após a tomada do poder, duas outras guerrilhas. Já Fidel dirigiu a institucionalização da revolução, a fase das desilusões, dos compromissos, das concessões.

Ademais, Fidel é um sobrevivente. Viu a morte de todos os demais “grandes líderes” das revoluções socialistas do século. Sobreviveu à crise do “bloco soviético” e ao período especial. É um crítico do império norte-americano e do neoliberalismo, o que certamente o torna demodé aos olhos de muita gente.

Uma vez, frente a um tribunal batistiano, Fidel proferiu um discurso, publicado posteriormente com o título: A história me absolverá. Hoje, a julgar pelas declarações de muita gente, há outro julgamento em curso. A história absolverá Fidel, mais uma vez?

As quatro mutações

Fidel Castro nasceu em 1926. Seu pai era proprietário de uma finca de 10 mil hectares, situada no Oriente cubano, região de forte tradição revolucionária. Fidel fez parte de seus estudos numa escola jesuíta, depois formou-se advogado. Na universidade, participou ativamente do movimento estudantil e da política cubana, como militante da ala esquerda do Partido Ortodoxo.

            Fidel amadureceu num período histórico rico em influências: Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial, a ascensão da URSS à condição de potência, o início da “Guerra Fria”, o Bogotazo, o golpe na Guatemala. Mas o que parece ter empurrado Fidel para uma militância nitidamente revolucionária --no sentido político desta palavra-- foi o duplo impacto do suicídio de Chibas (1951) e do golpe de Batista (1952), que reduziram muito as possibilidades eleitorais da oposição democrática cubana.

            Politicamente, Fidel era então um nacionalista e um democrata radical, com fortes ligações com os setores populares e médios de Cuba. Há controvérsias, mas mesmo que os conhecesse bem, suas referências não eram Marx ou Lenin, mas sim José Martí -- “autor intelectual” do assalto ao Quartel Moncada. Foi com essa bagagem ideológica que ele enfrentou o tribunal de Batista, a prisão, o exílio e organizou a “invasão” de Cuba.

            A partir daí, Fidel começou a transformar-se em um revolucionário social. O ponto decisivo dessa mutação foi a guerrilha --que encontrou sua principal base social nos trabalhadores rurais, e que correspondeu a estes com um nível crescente de radicalização (aliás, esta é a chave explicativa dos conflitos internos ao M-26-7, durante a guerrilha, e também da crescente influência de Che Guevara). A mutação se acelerou no governo, no conflito entre os interesses populares e os setores burgueses e pró-norte-americanos. E se completou na resistência ao desembarque gusano-yankee em Praia Girón.

            Da mesma forma como A história me absolverá foi a peça maestra do revolucionário político, o discurso de Fidel em 16 de abril de 1961, após a vitória na Baía dos Porcos, é a afirmação plena do revolucionário social: se tudo o que queremos fazer em Cuba é socialismo, então a revolução é socialista...

            A transformação do revolucionário social em comunista --no sentido dominante que este termo tinha nos anos 60, ou seja, soviético-- é bem mais complexa. Por um lado, as necessidades econômicas e de defesa de Cuba, vis a vis a proximidade de um inimigo agressivo, empurravam o país em direção ao guarda-chuva soviético. Por outro lado, a revolução cubana desmoralizou muitos dos dogmas do tipo de marxismo-leninismo hegemônico no movimento comunista da época.

            Segundo este, os Partidos Comunistas tinham por definição um papel de vanguarda nas revoluções socialistas --mas em Cuba o PSP cumpriu um papel secundário, e muitas vezes oposto às necessidades revolucionárias. Para o comunismo “oficial”, a revolução em países atrasados devia percorrer primeiro uma etapa democrática-nacional-capitalista, e só depois a socialista --mas em Cuba as “etapas” se confundiram num fluxo contínuo. Para o senso-comum da maioria dos comunistas, era impossível fazer uma revolução contra o Exército e nas barbas dos Estados Unidos --e em Cuba ocorreram ambas as coisas. As diferenças continuaram depois da tomada do poder --basta lembrar os experimentos de política econômica e as relações internacionais. E persistiram depois, quando Cuba já se encontrava sob forte hegemonia soviética  --basta lembrar o apoio cubano às guerrilhas latino-americanas, para o desespero da linha
“pacífica” predominante nos partidos comunistas. Para o bem e para o mal, Fidel nunca foi o “marxista-leninista” que as academias soviéticas (e norte-americanas) desejariam, como aliás descobriram os setores do PSP que tentaram se apoderar das ORI.

            Vale lembrar o esforço feito para emprestar a José Martí a mesma estatura de Lenin. Segundo os cubanos, Martí teria se antecipado ao revolucionário russo, em duas questões fundamentais: na análise do imperialismo e na teoria do Partido. Em isto sendo verdade, estaria mais do que legitimada a raiz autóctone da revolução e do socialismo cubanos. Não é preciso dizer o quanto este tipo de formulação destoa da hierarquia canônica do “marxismo” de tipo soviético.

            Entre o Primeiro Congresso do PCC (1975) e a debacle do “campo socialista”, passaram-se quinze anos. O desmanche do bloco soviético impactou a economia cubana, atingindo fortemente um dos pilares da hegemonia comunista na ilha: a relativa igualdade social. Fidel tomou distância dos soviéticos, demarcou suas diferenças com as reformas de Gorbachev e reforçou o componente nacional de sua ideologia. Num discurso proferido em 1986, ele dirá que o marxismo-leninismo é profundamente internacionalista e, por sua vez, profundamente patriótico. (Esta idéia, bastante questionável do ponto de vista teórico, esteve presente em outros processos, mas refletindo práticas diferentes: na URSS, estimulou o chauvinismo de grande potência; na China, o isolacionismo; na Albânia, a megalomania do “farol” do socialismo; em Cuba, um internacionalismo militante e de massas.)

A partir da segunda metade dos anos 80, centenas de articulistas de direita ou de esquerda previram que Fidel e o PCC teriam o mesmo destino de seus congêneres do Leste Europeu. Depois, passaram a identificar o modelo cubano com o modelo chinês, com a diferença de Cuba não possuir as mesmas condições materiais. Finalmente, como Fidel e os comunistas teimavam em não cair, a crítica mudou de tom: o modelo castrista seria responsável pela extrema pobreza da maioria dos cubanos. Alguns críticos são mais sofisticados: dizem que o povo cubano experimenta três malefícios: a ditadura do PC, os resquícios do modelo econômico soviético e as reformas capitalistas adotadas na última década.

Nesse novo contexto, muitos que defendiam o (e recebiam ajuda do) PC cubano e Fidel tornaram-se seus críticos. Algumas pitonisas passaram a predizer que o julgamento da história penderia contra Fidel.

As reformas capitalistas

            Desde a revolução russa de 1917, há um debate sobre a natureza das sociedades que, ao longo do século vinte, foram convencionalmente chamadas de socialistas. As teorias são variadas: despotismo oriental, capitalismo de estado, estados operários burocraticamente degenerados, socialismo real, socialismo de caserna...

            A debacle da URSS e do Leste Europeu trouxe elementos novos para este debate. Entre eles saber porque alguns países --como a China, Coréia do Norte, Vietnã e Cuba—não foram atingidos, pelo menos até agora, pelo desmanche. Outro é saber em que medida as “reformas econômicas”, realizadas nos últimos anos, alteraram a natureza daquelas sociedades.

            A idéia dominante –inclusive em amplos setores da esquerda—é que esses países estariam em marcha batida para alguma espécie de capitalismo pleno, cabendo aos Partidos Comunistas a direção deste processo de restauração. Outra idéia bastante forte é a de que a contradição entre Cuba e os Estados Unidos, hoje, se daria no terreno nacional (potência imperialista versus soberania de um pequeno país) e não mais no de projetos societários contraditórios entre si (comunismo/socialismo versus capitalismo).

            Independente da posição que tenhamos acerca deste debate mais geral, algumas conclusões podem ser tiradas:

            O modelo econômico adotado por Cuba a tornou altamente dependente do bloco dirigido pela URSS. Quando este dissolveu-se, Cuba perdeu, simultaneamente, o comprador de seus produtos de exportação e o fornecedor de suas importações. Nessas circunstâncias, Cuba teve que adotar medidas de restrição do consumo; as informações de que dispomos indicam que tais medidas foram relativamente igualitárias, preservando em especial as crianças e atingindo a liderança do Partido e do Estado. Nos tempos neoliberais que correm, isso não é pouco.

Ao mesmo tempo, Cuba teve que gerar divisas (para importar) e substituir importações (para não precisar mais importar). Isso, vale lembrar, sob a pressão do bloqueio norte-americano, que provoca um encarecimento nas importações. E principalmente sob uma restrição fundamental: a carência de algumas riquezas materiais, o que torna Cuba necessariamente dependente do comércio internacional, salvo um cavalar avanço tecnológico, que possibilitasse uma enorme substituição de matérias-primas.

O caminho adotado para conseguir “moeda forte” foi o de abrir o país ao turismo e às inversões estrangeiras. O resultado foi a criação de uma dupla economia: a economia do peso e a economia do dólar. Socialmente, isso significa cavar um fosso –de consumo, de oportunidades-- entre os que têm e os que não têm moeda estrangeira.  O resultado foi amplamente analisado num discurso feito por Raúl Castro, irmão de Fidel e seu provável sucessor, frente ao Comitê Central do PC Cubano. Nesse discurso, Raúl fala muito claro: corrupção, prostituição, mão de obra especializada recebendo em pesos muito menos do que mão de obra não especializada que recebe em dolar...

Mesmo os setores simpáticos a idéia de que Cuba persevera no caminho socialista reconhecem que, a prosseguir a situação atual, a desigualdade de rendas e de consumo pode se transformar em desigualdade de classes, numa escala que a revolução deixou para trás há décadas. E um modelo econômico que aprofunda desigualdades não pode ser considerado socialista.

            Por enquanto, a pressão norte-americana, o nacionalismo, as políticas sociais e a autoridade do PCC e de Fidel têm impedido que a insatisfação se transforme em oposição de massas contra o governo, evitando assim que Cuba tenha o mesmo destino da URSS e das “democracias populares” do Leste Europeu. Mas isso parece ter um limite: se não houver uma alteração na correlação de forças internacional, que permita um desafogo econômico, Cuba terá muitas dificuldades para impedir o crescimento da desigualdade e para conter seus desdobramentos políticos.

            A política atual do PCC (e de Fidel) possui diversas faces: por um lado, adota reformas capitalistas; por outro, incentiva fortemente o nacionalismo cubano; finalmente, combina uma diplomacia pragmática com o revigoramento de relações com os partidos socialistas e revolucionários de todo o mundo. Evidentemente, há uma contradição latente entre essas várias orientações, que podem refletir diferenças existentes no interior do PC, acerca de qual rumo adotar; ou, mais simplesmente, um ataque combinado em múltiplas frentes.

            A maioria das análises que preveem uma debacle cubana não levam em conta coisas como: o componente nacional da revolução cubana, que possui um peso tão grande quanto o igualitarismo social, na manutenção da hegemonia comunista; a atitude reacionária e imperialista dos Estados Unidos; a lembrança das condições políticas, econômicas e sociais pré-revolução, viva em setores da população; a influência política e ideológica de bom número de protagonistas da fase heróica da revolução; o fato do PCCubano, ao contrário do Chinês, recorrer com frequência à mobilização de massas em apoio à sua política. Mas, e isto é o principal, aquelas análises se esquecem ou minimizam um fato: o padrão de vida cubano, mesmo hoje, continua superior ao de todos os países latino-americanos semelhantes à Cuba. Isso para não falar do Brasil...

Dizem que os moradores da Alemanha Oriental tinham que ser mantidos na ignorância, para que não comparassem o seu padrão de consumo com aquele vigente na Alemanha Ocidental. Em Cuba, a equação se inverte: o contato com o que ocorre na maior parte da América Central e Latina mostra ao cubano médio que destino lhe espera caso os comunistas percam o poder. Essa é uma das causas pelas quais a insatisfação popular não se transformou em oposição de massas –coisa que as eleições e as manifestações populares revelam com bastante frequência.

No longo prazo, não se pode desconsiderar a possibilidade de a evolução das condições econômicas eliminar os aspectos socialistas da sociedade cubana. Mas no curto prazo, é a política que decidirá o futuro da ilha. Na política internacional, pela continuidade ou não do bloqueio; pela alteração ou não da correlação de forças, hoje ainda pró-neoliberal; e pela ocorrência ou não de um novo ciclo de revoluções socialistas. E na política interna, pela capacidade dos comunistas manterem um comportamento que não os desmoralize como direção nacional; pela manutenção de um padrão mínimo de igualdade econômico-social; e principalmente pela existência de “válvulas de escape” políticas, que não existiram ou não foram toleradas em diversos países do Leste Europeu.

A visita do Papa

            Fidel combina, latino-americamente, as características de chefe de partido, chefe de Estado e líder de massas. Ele não é um teórico --como outros dirigentes das revoluções socialistas ocorridas após 1917, Fidel foi basicamente um agitador e organizador, não um propagandista ou formulador. Apesar disso, é provável que seus textos, entrevistas e discursos continuem a ser estudados por muito tempo, qualquer que seja o desfecho imediato de sua vida. Isto porque a trajetória de Fidel é a expressão individual e concentrada da história recente cubana. E Cuba foi o mais longe que uma nação atrasada pode ir: transformou suas aspirações nacionais, sociais e democráticas em força motriz de uma revolução anti-imperialista e anti-capitalista. E mesmo hoje, em que foi obrigada a retroceder naquela estrada, Cuba continua mantendo um nível de igualdade, democracia e soberania muito superiores aos de outros países que experimentaram processos semelhantes. Da mesma forma, Fidel foi o mais longe que um democrata e nacionalista radical poderia ir, nas condições do seu tempo –tornou-se um comunista. E hoje, retrocedeu sem abandonar a indignação socialista.

            Um bom exemplo destas múltiplas facetas são suas declarações por ocasião da visita, à Cuba, do Papa João Paulo II. Como a imprensa brasileira não deu-lhes o espaço merecido, reproduzimos aqui os principais trechos do discurso pronunciado por Fidel, na cerimônia ocorrida no dia 21 de janeiro de 1998, na chegada do Papa:

[Vossa Santidade] não encontrará aqui aqueles pacíficos e bondosos habitantes que a povoavam quando os primeiros europeus chegaram a esta ilha. Os homens foram exterminados quase todos pela exploração e pelo trabalho escravo...; as mulheres, convertidas em objeto do prazer ou escravas domésticas. Houve também os que morreram sob o fio de espadas homicidas, ou vítimas de enfermidades desconhecidas importadas pelos conquistadores... No correr de séculos, mais de um milhão de africanos cruelmente arrancados de suas distantes terras ocuparam o lugar dos escravos índios já extintos... A conquista e colonização de todo o hemisfério se estima que custou a vida de 70 milhões de índios e a escravização de 12 milhões de africanos...          
Cuba, em condições extremadamente difíceis, chegou a construir uma nação. Lutou só com insuperável heroísmo por sua independência. Sofreu por isso, faz exatamente 100 anos, um verdadeiro holocausto nos campos de concentração, onde morreu parte considerável de sua população, fundamentalmente anciões e crianças...       
Hoje de novo se tenta o genocídio, pretendendo render através da fome, enfermidade e asfixia econômica total a um povo que se nega a submeter-se aos ditames e ao império da mais poderosa potência econômica, política e militar da história, muito mais poderosa que a antiga Roma... Como aqueles cristãos atrozmente caluniados, nós, tão caluniados como eles, preferimos mil vezes a morte que renunciar a nossas convicções. Igual que a Igreja, a Revolução também têm muitos mártires...
            Em sua longa peregrinação pelo mundo, voce deve ter podido ver com seus próprios olhos muita injustiça, desigualdade, pobreza; campos sem cultivar e camponeses sem alimentos e sem terra; desemprego, fome, vidas que podiam salvar-se e se perdem por uns centavos; analfabetismo, prostituição infantil, crianças trabalhando desde os seis anos ou pedindo esmolas para poder viver; bairros marginais, onde vivem milhões em condições desumanas; discriminação por razões de raça ou de sexo, etnias inteiras desalojadas de suas terras e abandonadas a sua sorte; xenofobia, desprezo para com outros povos, culturas destruídas ou em destruição; subdesenvolvimento, empréstimos usurários, dívidas incobráveis e impagáveis, intercâmbio desigual, mostruosas e improdutivas especulações financeiras; um meio ambiente que é destroçado sem piedade e talvez sem remédio; comércio inescrupuloso de armas com repugnantes finalidades mercantis, guerras, violências, massacres, corrupção generalizada, drogas, vícios e um consumismo alienante que se impõe como modelo idílico a todos os povos... São bilhões os que passam fome e sede de justiça; a lista de calamidades econômicas e sociais do homem é interminável...
           
            Nesse discurso, Fidel cumpriu todos os rituais diplomáticos; e além de chamar o Papa de “Sua Santidade”, apresentou-o como um crítico do neoliberalismo –o que muitos consideraram como concessão, outros como exagero e alguns como puro cinismo. Em qualquer caso, diplomacias a parte, Fidel fez questão de explicitar o prontuário da Igreja Católica:
           
            Fui estudante de colégios católicos até que me graduei bacharel. Me ensinavam, então, que ser protestante, judeu, muçulmano, hindu, budista, animista ou participe de outras crenças religiosas, constituia uma falta horrível, digna de severo e implacável castigo. Mais de uma vez, inclusive, se me ocorreu perguntar por que não havia alí crianças negras, sem que tenha podido todavia esquecer as respostas nada persuasivas que recebia...
            O respeito para com os crentes e não crentes é um princípio básico que os revolucionários cubanos inculcamos a nossos compatriotas. Esses princípios foram definidos e estão garantidos por nossa Constituição e nossas leis. Se alguma vez surgiram dificuldades, não foi nunca culpa da Revolução.   
            Admiro sinceramente suas valentes declarações sobre o ocorrido com Galileu, os conhecidos erros da Inquisição, os episódios sangrentos das Cruzadas, os crimes cometidos durante a conquista da América, e sobre determinados descobrimentos científicos não questionados hoje por ninguém, mas que em seu tempo foram objeto de tantos preconceitos e anátemas...
            Que podemos oferecer-lhe em Cuba, Santidade? Um povo com menos desigualdades, menos cidadãos sem amparo algum, menos crianças sem escolas, menos doentes sem hospitais, mais professores e mais médicos por habitantes que em qualquer outro país do mundo que Sua Santidade tenha visitado; um povo instruído, ao qual voce pode falar com toda a liberdade que deseje fazê-lo, e com a segurança de que possui talento, elevada cultura política, convicções profundas, absoluta confiança em suas idéias e toda a consciência e o respeito do mundo para escutá-lo. Não haverá nenhum país melhor preparado para compreender sua feliz idéia, tal como nós a entendemos e tão parecida a que nós predicamos, de que a distribuição equitativa das riquezas e a solidariedade entre os homens e os povos devem ser globalizados.

Alguns dias depois, em 25 de janeiro de 1998, Fidel pronunciou outro discurso, na cerimônia de despedida do Papa. Mais curto, o discurso não é menos duro:

            Creio que demos um bom exemplo ao mundo: voce, visitando o que alguns preferem chamar de último bastião do comunismo; nós, recebendo o chefe religioso a quem quiseram atribuir a responsabilidade de haver destruído o socialismo em Europa...
Era cruelmente injusto que sua viagem pastoral fosse associada a mesquinha esperança de destruir os nobres objetivos e a independência de um pequeno país bloqueado e submetido a uma verdadeira guerra econômica a quase 40 anos...            
Quantas vezes escuto ou leio as calúnias contra minha pátria e meu povo, urdidas  por aqueles que não adoram outro Deus que o ouro, recordo sempre aos cristãos da antiga Roma, tão atrozmente caluniados.. a calúnia tem sido muitas vezes na história a grande justificadora dos piores crimes contra os povos. Recordo também aos judeus exterminados pelos nazis, ou os 4 milhões de vietnamitas que morreram sob o napalm, as armas químicas e os explosivos. Ser cristão, ser judeu ou ser comunista não dava direito a ninguém a exterminá-los...
Me comove o esforço que Sua Santidade realiza por um mundo mais justo. Os estados desaparecerão; os povos chegarão a constituir uma só família humana. Se a globalização da solidariedade que voce proclama se estende por toda a Terra e os abundantes bens que o homem pode produzir com seu talento e seu trabalho se repartem equitativamente entre todos os seres humanos que hoje habitam o planeta, poderia criar-se realmente um mundo para eles, sem fome nem pobreza; sem opressão nem exploração; sem humilhações nem desprezos; sem injustiças nem desigualdades, onde viver com plena dignidade moral e material, na verdade liberdade, esse seria o mundo mais justo.

Democrata radical, revolucionário político, revolucionário social, comunista e nacionalista --há um fio de continuidade na trajetória de Fidel, e este fio é a própria história cubana. Castro teve a sorte e o azar de sobreviver a todas as fases da revolução, e se mantém um forte carisma entre seu povo e internacionalmente, é porque a própria revolução cubana, e as conquistas políticas e sociais que ela gerou, mantém uma forte atração sobre milhões.

            Como estamos falando de uma pessoa viva e atuante, num país a que a revolução concedeu uma enorme projeção internacional, é preciso cautela: as últimas cenas ainda estão por vir. Mas uma coisa parece certa: o segundo “julgamento da história” sobre Fidel dependerá do futuro da ilha, e as ações de Cuba e em Cuba dependerão, enormemente, do avanço das forças socialistas no resto do planeta. Ou seja: o movimento socialista conclui o século XX envolto no mesmo dilema percebido pelos bolcheviques em 1917: o isolamento internacional é a morte da revolução.

            Por isto, melhor que fazer previsões é fazer uma aposta, que envolve algo de sorte, algo de torcida, mas sobretudo de ação. E nossa aposta é que Cuba, mas temprano que tarde, receberá seu destacamento de reforço.

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