1.Trata-se de uma versão preliminar (ler ao final). É preciso ler com atenção a versão definitiva, que será divulgada provavelmente no aniversário do PT.
2.O movimento político é claro: reunir DS, Tarso, setores do campo ex-majoritário (especialmente os governadores) e setores (ou todo) o Movimento PT. Um novo centro político para o Partido.
3.O "modus operandi" é o mesmo que adotamos quando fizemos a Carta aos petistas. A diferença é que, desta vez, a DS buscou Tarso Genro como interlocutor. A DS decidiu fazer um "movimento ao centro", mas garantiu que pretende manter relações conosco. Para usar uma imagem ao gosto de nosso presidente da República: foi ao baile com o Tarso, mas prometeu que dançará uma valsa conosco.
4.Esta promessa não é demagógica. Acontece que, como o Partido experimentou um deslocamento à esquerda, há muitos pontos de contato entre o que é dito no texto e o que é defendido por várias outras tendências, campos e indivíduos no Partido.
5.Entretanto, para que o Congresso faça sentido, é preciso que se debatem idéias. O propósito destes Comentários é exatamente este: debater, de forma inicial, a versão preliminar do texto impulsionado por Tarso Genro e pela DS.
6."Literariamente", o texto combina três características: a) uma entonação otimista, com a conjuntura, com as perspectivas, com a nossa capacidade de enfrentar os problemas passados e os desafios futuros; b) é uma semi-resolução, ou seja, com mínimas alterações pode se transformar de texto de tendência em texto do Partido; c) apresenta de maneira encadeada muitos raciocínios petistas, alguns lugares comuns e várias afirmações duvidosas, de maneira que teses extremamente polêmicas se insinuam de maneira quase imperceptível.
7.Noutras palavras: trata-se de um texto "nelsonrodriguiano": sedutor, mas um pouquinho enganoso. Capaz de atrair aliados à direita e à esquerda.
8.Qual o centro teórico, o "fundamento programático essencial" desta "proposta de reconstrução partidária"? Segundo o próprio texto, trata-se da "incorporação radical de valores republicanos na formulação do socialismo petista".
9.A expressão "valores" aparece duas vezes no texto: no parágrafo 2 ("valores do socialismo democrático) e no parágrafo 25 ("valores republicanos"). A compreensão adequada deste texto, do ponto de vista teórico, exigirá debulhar este conceito (valores), tarefa a que nossos filósofos poderiam dedicar-se com rigor.
10.Ao menos no caso do socialismo, o termo "valores" serve para sublimar a necessidade de transformações reais: desaparece a socialização dos meios de produção e no seu lugar introduzimos "valores" socialistas no capitalismo realmente existente.
11.O que seriam, exatamente, os "valores republicanos"? O texto não os apresenta de maneira didática e explícita, mas sim de forma dispersa e principalmente implícita: trata-se do controle democrático do Estado, a separação entre poderes, a distinção entre Estado e sociedade. Nos marcos do capitalismo, é bom lembrar.
12.Perguntamos: qual a novidade disto? Ao ler as passagens explícitas, a coisa fica mais clara: o parágrafo 14 defende "a consolidação de uma verdadeira ética republicana, no interior do Partido e na relação do Partido com o Estado e com a sociedade". O parágrafo 15 diz que o PT quer abrir caminho para a construção de uma sociedade "socialista, democrática, republicana e pluralista". O parágrafo 16 diz que falta entre nós uma "cultura republicana que reconheça os limites claros entre as funções do Partido, de um lado, e de outro, a ação de militantes que cumprem responsabilidades públicas".
13.Ou seja: trata-se da abordagem democrático-liberal do tema da política e do Estado. Referência provável: Bobbio. Ou, na imortal frase de Wladimir Palmeira acerca de Tarso Genro: cartola socialista, coelho liberal.
14.Quando Tarso fala da "incorporação radical de valores republicanos na formulação do socialismo petista", ele está se referindo a aceitação de um conjunto de teses acerca do papel do Estado e da política, teses que ele contrapõe ao "dogmatismo messiânico originário das experiências socialistas". Noutras palavras: ao bolchevismo. Pelo visto, ao contrário da musiquinha cantada no I Congresso do PT, "a culpa, a culpa, a culpa", não é "da Articulação", mas de Lenin.
15.Uma pequena pesquisa revela que falta incorporar "valores socialistas" no texto proposto por Tarso e pela DS. Vejamos algumas, digamos, curiosidades da versão preliminar a que tivemos acesso:
a)o termo "capitalismo" quase não aparece. Há uma referência à terceira revolução industrial capitalista. Ou seja, como é comum numa certa tradição, às duras críticas ao socialismo real não são acompanhadas de uma análise, mesmo que superficial, mesmo que para "saudar a bandeira", do capitalismo realmente existente;
b)os termos "imperialismo" e "imperialista" tampouco são utilizados no texto, aliás salvo engano não aparecem em nenhum instante. Não deixa de ser interessante que um texto que faz questão de demarcar com o populismo, não cuide de analisar o fenômeno mais importante do século XX e que continua sendo a força dominante no século XXI;
c)a expressão "revolução" aparece cinco vezes: três vezes adjetivada ("revolução democrática"), uma vez para falar da "terceira revolução industrial capitalista" e outra para falar da "revolução digital-informática";
16.Voltemos ao três parágrafos finais do texto. Lá está escrito o seguinte:
24. Os que firmam o presente documento chamam o conjunto dos militantes do Partido dos Trabalhadores, no curso da preparação do III Congresso, para a formação de um novo campo político que assuma as responsabilidades de desbloquear as relações internas e constituir, solidariamente, as bases para a construção de novas formas de direção, pluralistas, para a construção de consensos dentro do Partido e para a retomada de um diálogo orgânico e solidário em relação aos movimentos sociais. Isso implica na tarefa de desbloquear as relações internas, dando um passo adiante no método de elaboração de teses e sínteses partidárias.
26. Esta tarefa estratégica deve estar em consonância com os seguintes objetivos imediatos: novos padrões éticos no interior do Partido; uma nova direção plural e de unidade, que construa as políticas do Partido nas suas instâncias legais, através da troca de argumentos e de debates democráticos; uma nova estrutura partidária, ampla, democrática e militante; apoio ao Governo do Presidente Lula, sem que o Partido deixe de operar como um sujeito político crítico e propositivo, em relação aos rumos do governo; construção de um pólo mobilizador das reivindicações das forças de esquerda da sociedade brasileira, retomando o sentido estratégico de um Partido socialista e democrático, como instrumento de transformação da sociedade brasileira.
15.Como se vê, o uso do cachimbo deixa a boca torta. Desbloquear as relações internas é uma tarefa nobre, mas que deve ser de todo o Partido. Atribuir a um "novo campo político" a tarefa de "asumir as responsabilidades" disto é reeditar a confusão entre o Partido e uma de suas tendências (ou frações). Confusão que está na base dos problemas que tivemos no período em que o "campo majoritário" foi maioria absoluta no Diretório Nacional.
16.A crítica ao dogmatismo messiânico originário das experiências socialistas ditas "reais", no final do texto, não é acompanhada de nenhuma referência, nem mesmo ritual, ao dogmatismo social-democrata que hegemonizou a produção política e teórica do Partido na última década. E combina com a visão fundamentalmente negativa que os autores do texto parecem ter, acerca do que foi a tentativa de construção do socialismo no século XX.
17.É sintomático,a este respeito, que a síntese feita no parágrafo 6 do texto diga que o PT "nasceu defendendo o socialismo e a democracia, criticando a ditadura do partido único nos países do leste europeu, o mandonismo e a burocracia, assim como opondo-se frontalmente à exploração, à alienação, à discriminação e à opressão política e social"; mas não diga que o PT nasceu criticando a social-democracia. Noutra passagem, o texto fala que estas experiências faliram, mas não explica por qual motivo faliram, silêncio que talvez expresse (assim esperamos) a existência de divergências entre seus signatários. Isto nos leva a perguntar: afinal, qual é a transformação da sociedade brasileira defendida pelo documento? Vejamos os trechos que tratam do tema:
18.Nos parágrafos 4 e 5, afirma-se que os avanços que teriam marcado o primeiro governo Lula teriam também acumulado forças para que o segundo mandato inscreva-se como um governo de esquerda democrática pós-neoliberal. Trata-se agora de concluir a transição do paradigma neoliberal e conduzir o país ao desenvolvimento com forte distribuição de renda, apresentando ao mundo a possibilidade de um outro caminho.
19.Acontece que "concluir a transição do paradigma neoliberal" não é um ato intelectual, é um ato político-social: trata-se de enfrentar e superar a dependência externa, a democracia e o Estado mínimos, bem como e principalmente a ditadura do capital financeiro. Neste terceiro terreno, antes de concluir, precisamos começar a transição.
20.Mas transição em direção ao quê? O que seria um governo de "esquerda democrática pós-neoliberal"? Seria um governo capaz de conduzir o país "ao desenvolvimento com forte distribuição de renda"? Um país "socialmente justo, construído com instituições democráticas sólidas, que abriguem a participação popular direta combinada com um Estado Democrático de Direito representativo e estável, que abra caminho para a construção de uma sociedade socialista, democrática, republicana e pluralista"?
21.No item 22 o texto relaciona algumas "ações estratégicas de larga influência no curso da revolução democrática": a reforma política, uma nova relação (participativa e de controle social) entre Estado e sociedade, a adoção de uma política econômica (inclusive com controle de entrada e saída de capitais), a defesa de uma política de democratização dos meios de comunicação e informação, a garantia da implementação da reforma agrária, o incentivo à agricultura familiar e a cooperação, o compromisso com a dimensão ambiental como um parâmetro estratégico ao desenvolvimento, o compromisso com a conquista de igualdades de gênero e de raça, com o combate à discriminação por razões de orientação sexual e ampla afirmação dos direitos humanos universalmente reconhecidos como conquistas civilizatórias da modernidade, o aprofundamento dos programas de educação inclusiva, democrática, pública e de qualidade, a construção da unidade sul-americana com aprofundamento do rumo internacional antineoliberal, a implementação de fortes políticas de desenvolvimento local e regional, como elementos fundamentais de construção consciente do território para um projeto de Nação.
22.Enquanto programa mínimo, parece de bom tamanho e, salvo melhor juízo, não temos divergências. Mas é preciso dizer que ele não toca na questão fundamental sobre a qual deve emitir opinião o programa de um Partido que, ao menos em tese, se propõe a organizar de outra maneira a sociedade: o que fazer com a atual estrutura de propriedade dos meios de produção.
23.Noutras palavras: apesar das seguidas referências ao socialismo, o programa proposto é "democrático capitalista". E, apesar da referência "de passagem" à reforma agrária, não é democrático-radical, pois não inclui nenhuma medida anti-monopolista, além de ser extremamente tímido nas medidas relativas ao capital financeiro e ao imperialismo. Claro que dizer isso pode nos fazer vítima da acusação de "dogmatismo messiânico", mas se vamos debater o "socialismo petista", então somos obrigados a dizer que só faz sentido falar de socialismo se falarmos de socialização dos grandes meios de produção, além de medidas anti-imperialistas, anti-monopolistas e anti-latifundiárias.
24.Podemos dizer que o texto expressa e combina dois genes: um, recessivo, é socialista; outro, dominante, é democrático. Democrático, aqui, no sentido clássico da palavra, ou seja: democrático-burguês. Como diz o próprio texto (ponto 11): "o PT surgiu como expressão política de um vasto conjunto de movimentos sociais, entidades de classe e correntes ideológicas, para promover uma revolução democrática que encaminhe a sociedade brasileira para um futuro radicalmente democrático".
25.Com perdão da blague: primeiro, tínhamos o socialismo; depois, passamos a chamá-lo de socialismo democrático; depois, tiramos o socialismo e sobrou só a democracia. Capitalista, of course.
26.Qual a base social deste programa democrático, desta revolução democrática? Segundo o ponto 12 do texto, nosso partido deve "expressar os anseios, desejos e críticas das forças sociais que busca representar, especialmente do mundo do trabalho tradicional e daquele originário da atual revolução digital-informática: trabalhadores da cidade e do campo, ativistas dos novos e novíssimos movimentos sociais e das demais classes e setores da sociedade que se conjugam historicamente na defesa de um projeto de nação".
27.Quais seriam as "demais classes e setores da sociedade que se conjugam historicamente na defesa de um projeto de nação"? Tirando os trabalhadores da cidade e do campo, sobram os diferentes setores da pequena-burguesia e da burguesia. Cuja presença num partido pró-revolução democrática não constituiria, é bom que se diga, nenhum absurdo. Com a palavra, os autores do texto.
28.Do ponto de vista da estratégia, o texto não afirma absolutamente nada. Afirma-se que "o PT deve ser uma importante vanguarda política na defesa de um país socialmente justo, construído com instituições democráticas sólidas, que abriguem a participação popular direta combinada com um Estado Democrático de Direito representativo e estável, que abra caminho para a construção de uma sociedade socialista, democrática, republicana e pluralista".
29.A questão é: como é que se vai "abrir" este "caminho"? Noutra passagem, o texto afirma a "especificidade da nossa revolução democrática, a matriz nacional, laica e culturalmente diversa da nossa experiência histórica, cujo vigor repousa na vitalidade de uma sociedade civil ativa, que rejeita o populismo e o autoritarismo". Acontece que parte expressiva desta "sociedade civil ativa" considera que o PT e o governo Lula são, exatamente, expressão do populismo e do autoritarismo. E resistem violentamente contra mínimas alterações em nossa estrutura econômica, política e social. Como lidar, estrategicamente falando, com isto? Novamente com a palavra, os autores do texto.
30.Isso nos remete ao último ponto sobre o qual gostaríamos de falar: a visão que o texto apresenta da crise do PT. Esta visão é, a nosso ver, limitada e pouco autocrítica. Limitada, por não vincular adequadamente a crise ao abandono do ideário socialista e a adesão a estratégia de centro-esquerda. Pouco autocrítica, porque não inclui nenhuma referência ao fato de parte de seus signatários terem sido responsáveis pela implementação da política que nos levou à crise de 2005.
31.Vejamos como se caracteriza a crise:
a)é uma crise que "se tornou pública durante o governo Lula" (portanto, seria anterior a ele);
b)é uma crise que foi "também impulsionada pela falência das experiências gestadas no século passado, em nome do socialismo e da social-democracia" (portanto, estamos falando das opções feitas pelo partido no início dos anos 1990);
c)é uma crise que "origina-se igualmente também da imposição de novas formas de exploração e alienação advindas da terceira revolução industrial capitalista" (portanto, é uma crise que têm relação com as alterações nas grandes relações sociais);
d)é uma crise "de corrupção programática e ética, não apenas conjuntural e não apenas decorrente de desvios comportamentais ou de pequenos abusos de poder e de confiança" (portanto, é uma crise que se abateu sobre o conjunto do Partido, embora haja responsabilidades diferenciadas);
e)é uma crise que "decorreu de concepções equivocadas na condução de distintas estratégias eleitorais, do distanciamento das organizações de base e do mundo do trabalho, e de um crescente desinteresse pela utopia socialista".
32.Dos cinco pontos arrolados acima, dois são constatações e dois citam a influência de fatores externos. O quinto ponto é o único que diz respeito às opções feitas pelo Partido, diante das mudanças ocorridas na correlação de forças nacional e mundial, durante os anos 1990. Neste ponto, o texto fala de "concepções equivocadas na condução de distintas estratégias eleitorais".
33.É absolutamente genial: o equívoco não está na adoção de uma estratégia eleitoral, mas sim na sua condução!!! Fala também em "desinteresse pela utopia socialista", quando na verdade o que assistimos foi o abandono do socialismo como alternativa real e a manutenção, bastante enfraquecida, do socialismo como "utopia". São estas duas opções equivocadas (a programática e a estratégica) que conduziram a uma mudança (e não exatamente ao abandono) das relações entre o Partido e a classe trabalhadora.
34.É natural que um documento assinado por Tarso Genro tenha dificuldades em tratar desta questão: ele foi um dos principais formuladores, entre nós, da estratégia eleitoral (ou de centro-esquerda).
35.É óbvio que a disputa de eleições e o exercício de governos constituem parte fundamental de uma estratégia socialista, na América Latina atual. Mas constituem parte, não "a" estratégia. Compreender esta diferença entre o todo e as partes é fundamental. E para esta compreensão, faz-se necessária uma autocrítica partidária acerca do rumo seguido nos anos 1990.
36.O que o texto propõe para superar a crise partidária? Vejamos:
a)mudanças na direção e na política;
b)revolucionar a estrutura de organização partidária;
c)reencontrar sua identidade programática;
d)restabelecer a ligação vital do partido com os movimentos sociais, com os sindicatos, cooperativas e associações de trabalhadores, hoje fragilizada pela insuficiente presença dos seus representantes nas instâncias de direção e de base do partido;
e)devolver o poder de decisão dentro do partido aos militantes de base, que, em sua maioria, representam essas lutas;
f)instituir no partido uma sustentação financeira transparente e controlada pelos petistas, que dependa, predominantemente, de suas próprias contribuições. Noutra passagem, o texto fala das "relações não-transparentes com os financiadores";
g)repudiar a eternização das "profissionalizações", que transformam militantes profissionais em integrantes conservadores do aparato partidário cuja preocupação passa a ser a sobrevivência no próprio aparato.
37.É curioso que o texto não enfrente, nem cite, algumas questões óbvias. Por exemplo: promete-se devolver (sic) o poder aos militantes de base, mas não se fala da relação entre os mandatários (parlamentares, governantes) e o Partido, optando-se por dar destaque ao tema dos burocratas do Partido. Como se vê, o texto preferiu não enfrentar, ao menos explicitamente, a tese do "partido dirigido pelos com votos".
38.O texto não faz referência a construção de uma escola ou de uma estrutura de comunicação partidárias.
39.Mais adiante, o texto critica a conduta do "campo majoritário" (sem nunca referir-se nominalmente a ele), afirmando que "o autoritarismo de grupo, em nosso meio, abrigado nestes expedientes, desconstituiu o debate político, a democracia interna e o diálogo entre posições; permitiu gestos de mandonismo burocrático e abriu espaços ao uso da força do Estado para manter os controles no Partido".
40.Isto é verdade. Mas que posição tiveram alguns dos autores do texto, nos momentos em que houve uma "discussão aberta sobre os rumos da política econômica"? Não seria o caso de combinar crítica com autocrítica?
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