Segue a polêmica sobre o pacote de cortes de gastos apresentado pelo governo e votado pelo congresso.
Parte da polêmica envolve o fato de alguns parlamentares petistas terem votado contra a proposta do governo.
Na PEC, Natália Bonavides, Rui Falcão e Dionilso Marcon votaram não.
No PLP 210/2024, Rui Falcão votou não.
No PL 4614/2024, Érika Kokay, Luizianne Lins, Dionilso Marcon, Natália Bonavides, Rui Falcão e Tadeu Veneri votaram não.
Existe quem acredite que petistas devem votar a favor de qualquer coisa que venha do governo.
Mas como essa previsão não consta do estatuto partidário e como não houve fechamento de questão, é necessário analisar o mérito, ou seja, o que foi efetivamente votado e aprovado.
Para isso, solicitamos à assessoria da deputada federal Natália Bonavides, mais especificamente ao companheiro Magnus Marques, que fizesse um relato didático do que foi a voto e do que foi aprovado.
O texto que segue abaixo é uma edição do relato de Magnus. Agradecemos críticas e correções.
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O pacote proposto pelo governo foi levado a voto no Congresso através de três instrumentos: um projeto de emenda constitucional (PEC), um projeto de lei (PL) e um projeto de lei complementar (PLP).
Para ser aprovada, uma PEC precisa de 3/5 dos votos.
Para ser aprovado, um PL precisa de maioria dos presentes (sendo necessário que esteja presente a maioria absoluta).
Para ser aprovado, um PLP precisa de maioria absoluta dos votos.
Há uma série de detalhes adicionais, que embora politicamente relevante, não detalharemos, do tipo votação de urgência, não ter sido submetido a debate em comissões, a assinatura formal do projeto, o “apensamento” de uma PEC a outra PEC já existente etc.
O foco a seguir será no mérito.
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EMENDA CONSTITUCIONAL
A PEC 45, contendo parte do pacote de contenção de gastos do governo, foi apensada a PEC 31/2007.
Foi aprovada na Câmara, foi aprovada no Senado e foi promulgada pelo Congresso na sexta-feira dia 20 de dezembro de 2024.
A PEC tratava de dois grandes temas: corte no abono salarial e supersalários.
A decisão de juntar estes dois temas deriva da decisão de apresentar o pacote de cortes como salomônico.
Supersalários
O projeto enviado pelo governo previa corte nos chamados supersalários. A proposta original estabelecia que haveria uma Lei Complementar (que exige maioria absoluta), que definiria em caráter nacional quais são as chamadas verbas indenizatórias. As verbas indenizatórias foram um “jeitinho” que o sistema de justiça deu para que seus membros ganhem salários milionários. Essa permissão não existe na Constituição. Hoje, quem ganha supersalários está na ilegalidade (embora seja uma ilegalidade sustentada em interpretações judiciais). Interpretações judiciais feitas pelos mesmos que estabelecem as verbas indenizatórias. Com a previsão de que as indenizações deveriam ser reguladas por Lei Complementar, só as verbas previstas nessa Lei poderiam superar o teto constitucional. Isso impediria que o sistema de justiça continuasse criando penduricalhos para que seus membros ganhem mais que o teto.
Contudo, o Congresso fez duas alterações importantes no projeto originalmente enviado pelo governo.
Ao invés de Lei Complementar, o Congresso previu que a regulamentação deveria ser dar através de Lei ordinária. Como Lei ordinária não exige quórum qualificado para aprovação, será mais fácil que um futuro lobby inclua novos penduricalhos numa Lei que ainda não foi aprovada. Com o agravante de que essas alterações poderão ser feitas através de votação simbólica, o que facilita ainda mais o lobby.
A segunda alteração tornou inócua a previsão de corte nos supersalários. Isso porque criaram uma regra de transição que não existia na proposta enviada pelo governo. A regra de transição é a seguinte: enquanto não for aprovada a Lei ordinária regulamentando a questão, as verbas indenizatórias já vigentes (previstas por leis estaduais etc.) poderão continuar superando o teto constitucional.
Na prática, constitucionalizaram os supersalários, em troca da promessa de que, vão cortar.
Sem essa regra de transição, em tese os supersalários seriam legalmente extintos em decorrência da promulgação da PEC (em tese, porque alguma entidade representativa de magistrados poderia judicializar e conseguir assim manter os penduricalhos tal como estão).
Abono salarial
A PEC reduziu o universo de beneficiários do abono salarial.
Antes da PEC, ganhavam o abono quem recebia até dois salários mínimos.
A partir da PEC, esse universo vai ser reduzido gradativamente.
Em 2025, vai continuar recebendo quem ganha até o valor equivalente a duas vezes o valor do salário mínimo vigente. Nos anos seguintes, o valor limite de remuneração para quem ganha o abono vai ser atualizado apenas com base na inflação, até que esse valor se iguale a quem ganha 1,5 salário mínimo. E a partir daí, só vai ganhar abono quem recebe até 1,5 SM.
Enquanto no tema dos supersalários, o Congresso piorou a proposta vinda do governo, no tema do abono o Congresso manteve a proposta do governo.
Outros temas
Alem dos supersalários e do abono, a PEC tratou de outros assuntos.
A PEC prevê que vai ser possível a edição de Lei complementar estabelecendo condições e limites para a concessão de benefícios tributários. A medida é positiva, porque prevê um mínimo de regulamentação acerca desses benefícios. Mas qual será esta regulação, só saberemos no futuro.
A PEC permite que a lei orçamentária limite gastos com subsídios fiscais. Idem comentários anteriores.
A PEC aprovada na Câmara permitia o uso do Fundeb para financiamento da alimentação escolar. Isso foi retirado no Senado. Críticos da PEC entendiam que, mantida a permissão, ela produziria uma redução no valor disponível para outros fins e permitiria à União reduzir o financiamento da alimentação escolar por programa próprio.
A PEC estabelece que parte dos recursos do FUNDEB deve ser usado para ampliação das vagas da educação em tempo integral. Originalmente, o governo tinha proposto que fossem 20% do FUNDEB para educação em tempo integral. Entretanto, isto não foi aprovado, mas sim o que segue: em 2025, deve ser 10% dos repasses da União, e de 2026 em diante, deve ser 4%. Críticos da PEC afirmaram que essa previsão dificulta o pagamento do piso dos professores, já que é o Fundeb que contribui para que governos estaduais e prefeituras paguem os salários dos trabalhadores da educação. Os críticos sustentam que o certo seria destinar mais recursos para a educação para financiar a educação em tempo integral, e não desviar parte dos recursos do Fundeb para esse fim.
No projeto aprovado, a vinculação do uso de um percentual do FUNDEB para educação em tempo integral vai durar até que sejam cumpridas as metas do PNE sobre educação em tempo integral
A PEC prorroga para a DRU até 2032. Na prática, isso leva ao subfinanciamento da seguridade social, uma vez que parte do recurso da seguridade pode ser usado para outros fins.
A PEC limita a criação e a prorrogação de vinculações constitucionais e legais, tendo como parâmetro os limites do arcabouço fiscal.
Como se viu na descrição acima, os cortes aprovados na PEC não afetaram o andar de cima, mas afetaram o andar de baixo.
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PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR
O PLP 210/2024 define limites aos benefícios fiscais, às emendas e aos gastos com pessoal.
Foi aprovado na Câmara e no Senado.
A mistura, num mesmo projeto, de gastos decididos pelo Congresso com emendas parlamentares, de gastos decididos pelo governo para beneficiar empresários e de verbas para pagar salários de funcionários públicos, deriva da decisão tomada pelo governo, de parecer salomônico.
Emendas parlamentares
O PLP permite o contingenciamento de até 15%, na proporção do aplicado às demais despesas, dos valores destinados para emendas parlamentares não impositivas (que são basicamente as emendas de comissões).
O projeto original garantia contingenciamento dos valores destinados a todas as emendas (um avanço tímido com relação ao sequestro do orçamento do governo por parte do congresso).
Mas o texto aprovado permite esse contingenciamento apenas sobre 15% das emendas não impositivas. Na prática, portanto, se está transformando as demais 85% em impositivas.
Detalhe adicional: esse bloqueio só vai ser permitido para que o governo cumpra o limite do arcabouço. Portanto, se for verificado que o valor das despesas obrigatórias cresceu menos do que o previsto, o bloqueio vai ser desfeito. Esse acréscimo não havia no projeto original e seu efeito prático é estimular o Congresso a reduzir o valor das despesas obrigatórias.
Benefícios tributários
O PLP estabelece que, em situação de déficit fiscal e se houver redução dos valores disponíveis para os gastos discricionários, está proibida a ampliação, criação ou prorrogação de benefícios tributários. Esse impedimento dura até que volte a haver superávit. Em situação de calamidade, essa vedação é excluída.
Gastos com pessoal
O PLP estabelece, como regra provisória até 2030, que em situação de déficit fiscal e se houver redução dos valores disponíveis para os gastos discricionários, até que volte a haver superávit, limita o crescimento real de gastos com pessoal a 0,6%. Desse limite, ficam fora os gastos determinados por decisão judicial.
Essa regra não impede a correção do salário dos servidores, com base na inflação. E não impede que haja aumento real e novas contratações, dentro do limite de 0,6% acima da inflação. Em situação de calamidade, essa vedação é excluída.
Outros itens
O PLP submete ao limite do arcabouço (limite que pode variar de 0,6% a 2,5%) o crescimento de gastos com benefícios da seguridade social em caso de prorrogação ou criação de benefícios
O PLP permite que o superávit de alguns fundos possa ser utilizado para amortizar a dívida pública, a saber:
-Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD);
-Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (FUNSET);
-Fundo do Exército;
-Fundo Aeronáutico;
-Fundo Naval.
Nesse ponto, houve alteração com relação ao projeto original: saíram da lista os Fundos da marinha mercante e da segurança pública.
O PLP revoga a recriação do DPVAT. Essa foi uma condição que a extrema direita impôs ao governo para não atrasar a aprovação desse item do pacote. O seguro DPVAT é uma garantia para as vítimas de acidente. O fundo que o financia zerou. Vale dizer que apesar do DPVAT ter sido recriado, os governadores de direita estavam se recusando a cobrar. Agora o assunto foi resolvido, em favor da direita.
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PROJETO DE LEI
O PL 4614/2024 tratava dos cortes no salário mínimo e no Benefício de Prestação Continuada (BPC).
O PL foi aprovado nas duas casas e está aguardando sanção. Existe uma promessa do governo federal, de vetar trechos do que foi aprovado acerca do BPC.
Benefício de Prestação Continuada
O PL exige cadastro biométrico para recepção de qualquer benefício da seguridade social. Esse cadastro deve ser refeito a cada 24 meses para os benefícios do CadÚnico. Quem não se recadastrar, vai ter o benefício suspenso. Mas, antes da suspensão, o poder público deve notificar a família 90 dias antes do fim do prazo. Quem vive em lugar de difícil acesso (ou tiver em qualquer situação excepcional, como mobilidade reduzida), vai poder ter esse prazo ampliado em 6 meses, prorrogável por mais 6 meses.
O PL estabelece que, a partir de 2025, o poder público vai estabelecer um cronograma de recadastro para quem está com cadastro desatualizado a 18 meses.
O PL estabelece que, para receber os benefícios do CadÚnico, as famílias formadas por apenas uma pessoa terão que ter o cadastro atualizado com atendimento na própria residência.
Vale dizer que o texto aprovado moderou as mudanças que foram propostas pelo governo. Por exemplo: na proposta original, seriam prejudicadas mães solos que recebem pensão e idosos que recebem auxílio dos filhos, uma vez que passaria a ser contabilizada a renda de quem ajuda, mas não mora com a pessoa.
A proposta original incluía no cálculo da renda irmãos casados e filhos casados que morassem com a pessoa beneficiária, assim como passava a contar como renda o BPC recebido por outros membros da mesma família. Essas propostas não constam da proposta aprovada.
Por outro lado, o texto aprovado prevê que para a concessão do benefício será considerada uma avaliação sobre o grau da deficiência. Diante dos protestos universais, o governo assumiu o compromisso de vetar esse item (cabendo perguntar por qual motivo ele foi incluído).
Salário mínimo
O PL estabelece um teto (de 2,5% acima da inflação) e um piso (de 0,6% acima da inflação) para o crescimento do salário mínimo.
Hoje, a regra é: inflação + variação do PIB do penúltimo ano.
Segundo o PL, se houver crescimento do PIB acima de 2,5%, este crescimento não será mais transferido ao salário mínimo.
Por outro lado, caso o crescimento do PIB seja inferior a 0,6%, o salário mínimo cresceria 0,6%.
O governo afirma que esta regra garante aumento real mesmo em cenário de estagnação econômica. Mas como vimos nos governos Temer, Bolsonaro e inclusive agora, quando se trata de piorar, não é difícil alterar a lei do salário mínimo.
Por outro lado, o teto de 2,5% já vai ter efeito em 2025, que seria o primeiro ano em que o salário mínimo seria beneficiado pelo “efeito Lula de crescimento do PIB”. Em 2023, crescemos mais de 3%. Com o limite de 2,5%, o salário mínimo não vai incorporar este crescimento. A diferença é algo em torno de 10 reais ao mês ou 120 reais ao ano.
No ano de 2026, vai acontecer o mesmo. Devemos crescer mais de 3% em 2024, e o limite de 2,5% vai prevalecer em 2026.
Outros temas
O PL proíbe que o judiciário crie hipóteses de dedução de gastos quando da avaliação da renda. O texto prevê que só pode deduzir o que for previsto em lei.
O PL permite que ato unilateral do poder executivo mude o limite de renda para alguém ser beneficiário do Bolsa Família e o tempo máximo de recebimento do benefício.
O PL estabelece que o poder executivo vai estabelecer um limite máximo de famílias unipessoais beneficiários por município
Como se viu na descrição acima, os cortes aprovados no PL exclusivamente o andar de baixo.
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O que foi lido até agora é uma edição do texto elaborado, originalmente, por Magnus Marques.
Adiante, alguns comentários adicionais, de minha responsabilidade.
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COMENTÁRIOS ADICIONAIS
O pacote apresentado pelo governo não foi submetido a debate prévio, nem com o Partido dos Trabalhadores, nem com os sindicatos, nem com os movimentos sociais, nem mesmo com o próprio governo. Tampouco foram submetidos ao trâmite normal de debates, no Congresso Nacional.
O pacote foi elaborado e tramitou sob forte pressão, em especial a desvalorização do real frente ao dólar, a alta da taxa de juros e o crescimento da inflação.
O pacote previa, desde o início, uma distribuição desigual do ajuste. Segundo tabela divulgada pelo próprio ministério da Fazenda, no biênio 2025 e 2026 o corte seria de R$ 71,9 bilhões, distribuído mais ou menos assim:
-os militares contribuiriam com 2 bilhões;
-provimento e criação de cargos também com 2 bilhões;
-o Distrito Federal com 2,3 bilhões
-a cultura com 3 bilhões;
-subsídios e subvenções contribuiriam com 3,7 bilhões;
-a DRU com 7,4 bilhões;
-o Fundeb com 10,3 bilhões;
-as emendas parlamentares com 14,4 bilhões;
-e 26,6 bilhões de reais da economia viriam de “gastos” feitos com o andar de baixo, assim distribuídos: 0,7 do abono salarial; 11,9 do salário mínimo; 5 do bolsa família; 4 do BPC; 5 da “biometria”, que nas explicações da Fazenda se aplica no caso do BPC e do Bolsa Família.
Não conhecemos os novos cálculos do MF, com base no que foi efetivamente aprovado, mas a descrição feita anteriormente indica que seguramente cresceu o peso proporcional dos cortes feitos contra o andar de baixo.
Desconhecemos o que foi/será feito quanto aos militares e o que foi/será feito quanto às mudanças no Imposto de Renda. Lembrando que estas e outras promessas (emendas, supersalários) foram usadas como argumento para convencer algumas pessoas a “também” fazer cortes contra o andar de baixo.
Setores do governo argumentam que teria havido um crescimento explosivo de alguns “gastos”. Diz-se, por exemplo, que o BPC poderia superar o BF em cinco ou sete anos; que o BF é hoje três vezes maior, como proporção do PIB, do que era nos anteriores mandatos presidenciais petistas; que o Fundeb seria mais de duas vezes maior; que haveria o piso da enfermagem etc.
Estes mesmos setores do governo, entretanto, não disseram – ao menos até agora – como pretendem enfrentar os gastos tributários e os gastos com juros.
O desequilíbrio nas propostas contribui para a tese, disseminada pela direita, de que o "problema" estaria no "populismo".
No que toca aos juros, a aparição conjunta do presidente Lula com o presidente do Banco Central passou a ideia, para muita gente, de que o problema não estaria na “independência” do BC, mas sim na pessoa de seu presidente. Ou seja: se a taxa de juros seguir alta, não caberia reclamar.
Talvez por isso, em recente entrevista, o Ministro da Fazenda indicou que vem mais ajuste fiscal por aí.
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