terça-feira, 4 de outubro de 2011

Sísifo é brasileiro?

O texto abaixo ("Brasil, um caso à parte?") é a parte final de Sísifo é brasileiro, segundo capítulo da tese de doutorado "A metamorfose". Os demais capítulos da tese chamam-se: "Da Vila Euclides à Granja do Torto"; "Os sujeitos ocultos da política brasileira"; "Do governo dos trabalhadores ao superávit primário"; "O governo Lula"; "A intelectualidade petista e o governo Lula"; "Luta socialista e hegemonia burguesa no Brasil".


Brasil, um caso à parte?

Apesar (ou exatamente por causa) deste quadro, os anos 1990 terminam com o PT e o Brasil sendo vistos ainda de maneira promissora pela maior parte da esquerda mundial[1]: um dos maiores países capitalistas do mundo, uma esquerda eleitoralmente forte, com uma importante retaguarda social (onde despontavam o Movimento Sem Terra, a Central Única dos Trabalhadores e a União Nacional dos Estudantes), uma intelectualidade crítica ao neoliberalismo[2] e governos “democráticos e populares” a frente de um número crescente de cidades e estados. Intelectuais que posteriormente se transformariam em críticos duros diziam então que:

“Desmitificando las defensas ideológicas de la hegemonia capitalista, se abre el camino hacia la compreension del renacimiento de la política socialista: em Brasil, el Partido de los Trabajadores com sus 30 millones de votantes, em Méjico com el renacimiento del movimiento guerrillero zapatista, em Suráfrica y Corea del Sur con los movimientos populares de masas”. (Petras e Vieux, 1994, p. 10)

É claro que, durante os anos 1990, já se identificavam fortes afinidades com a situação, já descrita, da esquerda internacional: a crescente moderação programática do Partido dos Trabalhadores, principal força política da esquerda brasileira; as concessões que os governos democráticos e populares faziam a aspectos importantes do receituário neoliberal[3]; um paulatino distanciamento entre a esquerda eleitoral e os setores mais radicalizados do movimento social[4]; e o crescimento, na intelectualidade, de uma postura crítica ao marxismo.[5]

Mas nada disto empanava o fato de que o Brasil parecia ser, aos olhos de parcela importante da esquerda nacional e internacional, o elo mais fraco da corrente, o país que cumpriria um papel parecido com o da Rússia no início do século XX, com o da a China após a Segunda Guerra Mundial e com o de Cuba para os latino-americanos, a partir de 1959.[6]

E, melhor que tudo, pelo menos aos olhos de intelectuais como Jorge Castañeda, o Brasil parecia estar fazendo isso sem recorrer aos métodos bolcheviques, mas sim através do democrático método da disputa eleitoral e criando novas formas de democracia, expressas no badalado orçamento participativo.[7]

A realização, em Porto Alegre, de várias edições do Fórum Social Mundial[8], tomou como alimento e também reforçou esta crença, amplamente difundida na esquerda mundial, de que no Brasil estaria emergindo uma importante contra-corrente da história. Como disse Sader (2005):

“O Brasil estava na contramão, tinha Lula, PT, CUT, Fórum Social Mundial, orçamento participativo. Podia ser.”

Também por isto, a eleição de Lula presidente da República, em 2002, foi recebida de maneira entusiasmada, no Brasil e fora dele. Parecia ter chegado a hora de materializar um eixo do bem [9], latino-americano e mundial.[10]

Dois anos e alguns meses depois da eleição de Lula, houve uma reversão generalizada destas expectativas. Embora cumpra um papel relativamente elogiado nas relações internacionais[11], no âmbito da política nacional há uma continuidade assumida (e comemorada) da macroeconomia adotada pela gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)[12], com as consequências sociais conhecidas.

Nas insuspeitas palavras do ministro Antonio Palloci, em depoimento à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal:

“Os ganhos da política econômica são resultado de uma década de esforço. (...) Refiro-me aqui à coragem do presidente Lula, de ter contrariado inclusive orientações políticas anteriores, de ter se sujeitado a críticas importantes, para fazer aquilo que precisava ser feito.”[13]

Em texto publicado antes das eleições de 1994, Emir Sader perguntava se o PT, uma vez conquistada a presidência da República:

“Pode se deixar engolir e paralisar pela institucionalidade construída para o governo das minorias sobre as maiorias? Pode ser vítima de alianças que descaracterizem o conteúdo fundamental de seu programa de transformações, centrado nos trabalhadores, ao invés de ampliar e aumentar seu potencial mediante essas alianças? O PT pode, enfim, uma vez no governo do Brasil, fracassar, pela via da renúncia formal –ou pela via dos fatos-, aos postulados fundamentais da transformação da sociedade e do sistema político na direção da democracia radical, solidária e humanista? Ou ser derrotado e derrubado por não saber despertar a consciência, ajudar a organizar e liderar o movimento pelos direitos da cidadania do conjunto da população brasileira?” (Sader, 1994, p.65)

Os questionamentos feitos por Sader e repetidos por tantos outros, de 1990 até 2002, não tiveram o condão de conjurar o temido desfecho. epetidos por tantos outros, de 1990 atovimento pelos direitos da cidadania do conjunto da populaç a projetos de fraç sem colocaQue conclusões extrair, de maneira ainda preliminar, desse processo?

Capitalismo e socialismo no século XX

Vista por quem mantém compromissos com o socialismo, o breve século XX (Hobsbawn,1995) recorda Sísifo, condenado a empurrar uma pedra morro acima, para vê-la desabar mais adiante e ter que recomeçar novamente, eternamente.[14]

Esta imagem, já usada no caso da esquerda francesa (Halimi, 1993) perturba, explícita ou implicitamente, todos os que continuam tentando dar bases teóricas e viabilizar praticamente o socialismo, neste início do terceiro milênio.

Esta perturbação não atinge, ou não atinge com a mesma força, os que acreditam no socialismo como agente civilizatório do capitalismo. Para estes satisfaz saber que a história dos últimos 150 anos confirmou, em última análise, que tudo aquilo que a sociedade capitalista moderna possui de “civilizada”, o possui graças ao esforço e ao sacrifício do movimento socialista e da esquerda de maneira geral. (Hobsbawn, 1995)

Deste ângulo, em que o socialismo é encarado apenas como uma etapa superior do movimento democrático, liberal e progressista iniciado pela burguesia contra a sociedade feudal, episódios mais “desagradáveis” da história do movimento socialista podem ser apresentados exatamente como “desvios” resultantes da vã tentativa de superar o capitalismo. Para os partidários desta visão, é exatamente quando se torna radicalmente anticapitalista, que o socialismo abandona seus propósitos reformistas e humanitários, convertendo-se em totalitarismo.[15]

Mas para aqueles que defendem o socialismo como ideologia, movimento social e movimento político anticapitalista radical, ou seja, que visa superar o modo de produção capitalista, a história dos últimos trinta anos deixa muitas interrogações.[16]

É verdade que o capitalismo se confirmou como profundamente contraditório, sofrendo crises cíclicas e cada vez mais devastadoras. Ocorre que só muito raramente tais crises desdobraram-se em processos revolucionários. Desde as referências de Marx ao espectro do comunismo (1847-1848), até as notícias da ofensiva final da esquerda salvadorenha (1988-1989), a história da esquerda tem sido marcada por muitas “revoluções que faltaram ao encontro”. Além disso, apenas uma parte dos processos revolucionários resultou na vitória de forças ligadas ao movimento socialista e na constituição de governos estáveis pós-revolucionários. Mais relevante ainda: não há caso de revolução socialista triunfante em nenhum dos países capitalistas mais avançados. (Arcary, 2004)

Estes problemas foram fartamente compensados, no imaginário do movimento socialista revolucionário, pelo impacto mundial de revoluções vitoriosas (com destaque para Rússia, China, Cuba e Vietnã), pela importância geopolítica dos países cujos governos surgiram dessas revoluções, bem como pelos efeitos que a existência de um “campo socialista” produziu nas condições de luta e vida dos trabalhadores dos países capitalistas “avançados”.

Enquanto o socialismo reformista (Bernstein, 1982; Arcary, 2004) se alimentava dos progressos “civilizatórios” que a esquerda obtivera sob o capitalismo, o socialismo revolucionário se alimentava do progresso político e social verificado nas regiões que (acreditava-se) a revolução teria definitivamente libertado do capitalismo.

Isto, combinado com os avanços do movimento de libertação nacional e do desenvolvimentismo nos países da periferia capitalista, gerou durante a segunda metade do século XX, a impressão de que, apesar de tudo, o socialismo avança. (Hobsbawn, 1995)

A contra-ofensiva do Capital

Ocorre que, no último quartel do século XX, todos estes “progressos” foram detidos, tendo início um movimento de regressão. Os países libertos da opressão colonial vêm sendo novamente subordinados a interesses metropolitanos.[17] Os países que se industrializaram após a Segunda Guerra Mundial passaram a experimentar certa desindustrialização. As conquistas obtidas pela classe trabalhadora nos países capitalistas centrais, materializadas no chamado Estado de bem-estar social, foram atacadas e parcialmente anuladas.[18] E, durante os anos 1990, o desmanche do chamado campo socialista abriu uma nova fronteira de expansão para o capitalismo.[19]

O retrocesso generalizado das posições conquistadas pela esquerda, ao longo do século XX, foi acompanhada por transformações no funcionamento do capitalismo, bem como por transformações nas classes trabalhadoras, tais como a redução do campesinato[20] e a ampliação da proletarização vis a vis a perda de peso relativo do operariado industrial.

Todos estes fenômenos tiveram duríssimos efeitos sobre os partidos de esquerda. No ângulo programático, muitos partidos comunistas derivaram para formulações de tipo social-democrata (ou seja, centradas na idéia de realizar reformas que melhorem as condições de vida para as maiorias sociais, sem tocar nos fundamentos do capitalismo, ou seja, a propriedade privada dos grandes meios de produção).

Muitos partidos social-democratas (e também comunistas) derivaram, por sua vez, para formulações de tipo neoliberal (ou seja, centradas na idéia de que o bom funcionamento da sociedade e, inclusive, a possibilidade de melhoria nas condições de vida das maiorias sociais, depende do livre-funcionamento do capitalismo, que deve ser liberto das regulamentações típicas do welfare state).

Um dos efeitos mais profundos da contra-ofensiva do Capital foi no terreno ideológico:

“A crença de que não havia outra alternativa teve um efeito particularmente desmobilizador nos movimentos operários. (...) a própria “idéia de poder” é uma fonte importante do poder dos trabalhadores. Mobilizações durante todo o século passado foram alimentadas pela crença de que os operários de fato têm poder e, mais do que isso, de que seu poder pode ser usado para efetivamente melhorar suas condições de trabalho e de vida. O que a globalização fez mais do que qualquer outra coisa (...) foi ‘invalidar essa crença secular no poder dos trabalhadores’ e criar um ambiente discursivo que desinflou dramaticamente o moral político popular e a vontade de lutar por mudanças. Tais alterações nas crenças dos trabalhadores espelham, em parte, as mudanças ocorridas nos poderes de barganha estrutural e associativo, mas, sem dúvida, também desempenham papel independente na dinâmica dos movimentos sociais.” (Silver, 2005, p. 32)

Considerando de conjunto os fenômenos ocorridos no último quartel do século XX, a metamorfose sofrida pelo Partido dos Trabalhadores pode ser compreendida como situação particular de um processo geral. E, nesse caso, a aparente anomalia que reservava ao governo Lula a condição de inaugurador de um novo ciclo socialista ou algo do gênero, não seria mais do que uma miragem, uma ilusão ótica causada pelo desenvolvimento desigual e combinado, uma colateral damage das vantagens do atraso.

Mas é preciso problematizar esta conclusão, sob o risco de construirmos uma versão fatalista de esquerda do Tina[21]. É importante lembrar que o caminho seguido pelo PT foi resultado de disputas concretas, cujo desfecho decorreu de opções feitas por indivíduos, grupos e classes sociais, em condições muito específicas, não podendo ser simplesmente deduzido de supostas ou reais tendências internacionais. É o que busco demonstrar, analisando a trajetória do Partido dos Trabalhadores.


[1] Essa postura foi particularmente forte entre os impulsionadores do chamado Fórum Social Mundial.
[2] Os motivos da postura crítica da intelectualidade frente ao neoliberalismo são desenvolvidos, de maneira bastante saborosa, por Arcary e Badaró apud Demier (2003).
[3]Recomenda-se, a esse respeito, a leitura de Dando a volta por cima (Palloci Filho, 1996) e Governo e cidadania: balanço e reflexões sobre o modo petista de governar (Trevas, 1999).
[4] Esse distanciamento é bastante visível no caso do MST,  mas ocorre também na relação entre sindicatos, PT e governos encabeçados pelo PT.
[5]Virgínia Fontes apresenta uma interpretação interessante deste processo (Demier, 2003).
[6] A respeito da influência dessas revoluções na esquerda brasileira, ver História do Marxismo no Brasil, volume I (Reis Filho, 1991).
[7]Sobre o “orçamento participativo”, ver Wainwright (2005) e Genro & Souza (1997). Há uma bibliografia bastante extensa sobre o tema.
[8] Para um balanço do Fórum Social Mundial, ver Leite (2003). Para uma análise crítica ao Fórum Social Mundial, ver Coggiola (2004) e Petras (2005). Para uma análise dos pressupostos teóricos de um dos setores que impulsionam o FSM, ver as obras de Boaventura de Souza Santos. Para uma crítica de Boaventura, ver José Paulo Netto.
[9]A expressão eixo do mal é muito utilizada pelos ideólogos do governo Bush Jr.
[10] A respeito de outro integrante do “eixo do bem”, o governo Tabaré Vazques no Uruguai, ler Fernandéz (2004).
[11] Para uma análise elogiosa da política internacional do governo Lula, ver Sader (2004). Para uma visão crítica, ver Coggiola (2004).
[12] Para uma análise crítica da política econômica implementada pelo governo Lula, ver Paula (2003) e Sicsú (2003 e 2005).

[13] A citação foi extraída do jornal FSP, edição de 17 de novembro, p. 15.
[14]Personagem da mitologia grega. Segundo Moreno, Sísifo enganou várias vezes o próprio Zeus, o rei dos deuses (http://educaterra.terra.com.br/sualingua/02/02_alusao2.htm). Como castigo, foi condenado, quando morreu, a rolar uma pesada pedra até o pico de uma das montanhas mais altas dos Infernos. O detalhe torturante é que esta pedra tinha um peso calculado de tal forma que, a poucos metros do cume, faltavam forças a Sísifo e a pedra rolava encosta abaixo, começando tudo outra vez, pela eternidade. A expressão hoje designa qualquer trabalho que pareça interminável (...)”.  

[15] Acerca do debate sobre socialismo no PT, recomenda-se a leitura da coleção publicada pela Fundação Perseu Abramo, intitulada “Socialismo em discussão”.
[16] Minhas opiniões sobre o tema estão no livro Socialismo no século XXI (Guimarães, 2005).
[17]É muito comum, a esse respeito, o emprego do termo “recolonização”.
[18]Esta opinião é contestada por Guimarães (2004). Para ele, “como consequência do domínio do paradigma neoliberal e também por ignorância dos processos históricos ativos de adaptação e mudanças nos Estados de Bem-Estar social nos países centrais, tornou-se corrente a tese da falência do Welfare State. Há já toda uma literatura consagrada, conceitual, analítica e embasada em pesquisas empíricas que demonstra o inverso disso”. Minha interpretação é que Guimarães doura a pílula, numa atitude coerente com suas opiniões complacentes para com certas teses da centro-esquerda.
[19] As mudanças ocorridas no Leste Europeu, Rússia e China incorporaram, ao mercado de trabalho mundial, uma enorme massa de trabalhadores, o que colaborou para o “enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores e o começo de uma corrida ao fundo do poço em termos de salários e condições de trabalho em escala mundial” .(Silver, 2005)
[20] A redução do campesinato é tratada por Stédile (2000) e por Hobsbawn (1995).
[21] Acrônimo de There is no alternative, Tina era um dos muitos apelidos de Margaret Thatcher. Outro, tão conhecido quanto, era “A dama de ferro”, cunhado pelo jornal soviético Red Star.

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