domingo, 9 de junho de 2024

O governador Elmano deveria ir ao cinema





Li e recomendo a leitura da entrevista dada por Elmano de Freitas ao jornal O Globo, publicada na edição deste domingo 9 de junho.

A entrevista é intitulada “A esquerda tem que atualizar o discurso e propor ação dura contra o crime” e pode ser lida no endereço abaixo:

https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/06/09/entrevista-a-esquerda-tem-que-atualizar-o-discurso-e-propor-acao-dura-contra-o-crime-diz-governador-do-ceara.ghtml

Evidentemente, o governador é responsável pelo que disse, não pelo que foi publicado, muito menos pelo título e pelo "olho" da entrevista. Quem responde por isto é O Globo.

No "olho" da entrevista está escrito, por exemplo, que “a esquerda não pode mais achar que a injustiça social é o único motivo da violência urbana”.

Pergunto: quando foi que a esquerda achou que o “único” motivo da violência urbana foi a injustiça social?

Respondo: nunca.

O próprio Elmano diz outra coisa, na entrevista. Mas isto não impede de O Globo atribuir a ele algo que a própria entrevista publicada desmente.

Assim sendo, o que vem a seguir é uma crítica à entrevista tal e qual foi publicada, inclusive na esperança de que a assessoria de imprensa do governador diga que minha crítica é injusta, pois não foi o que Elmano falou.

A primeira pergunta do Globo é a seguinte: “A segurança pública é sempre citada como uma dificuldade da esquerda. O senhor acha que esse campo ideológico ficou para trás nesse debate?”

A resposta de Elmano é a seguinte: “Nenhuma força política no país apresentou até agora uma proposta consistente. Mas a esquerda tem que se atualizar, porque por muito tempo enfatizamos que a injustiça social, a desigualdade e a pobreza são causas importantes da violência nos centros urbanos, e ainda acredito nisso. Só que não é a única causa. Se olharmos a nossa experiência no primeiro e segundo governos do presidente Lula, a vida do povo brasileiro melhorou muito, e nesse período a violência também aumentou. A vasta maioria de homicídios é por disputa de território de organizações criminosas”.

O governador é, na minha opinião, injusto com a esquerda. Não é fato que não tenhamos apresentado “até agora uma proposta consistente”. O nosso principal problema, na minha opinião, é que, na maioria dos casos, a política de segurança implementada nos nossos governos não é aquela que formulamos, mas sim a que herdamos de governos anteriores ou, mais simplesmente, aquela que o comando real das forças de segurança decide aplicar.

O governador diz que precisamos nos atualizar, porque – segundo ele – “a vasta maioria de homicídios é por disputa de território de organizações criminosas”. Novamente, não acho que a existência de organizações criminosas seja uma novidade para a qual não teríamos nos atentado. O nosso problema, neste particular, na minha opinião, é que desmontar essas organizações exige – hoje mais do que ontem – uma operação política e de segurança que nossos governos, até hoje, não quiseram ou não puderam implementar, entre outros motivos porque nossos governos – honrosas exceções à parte – não comandam efetivamente as forças de segurança.

Ainda na resposta à primeira pergunta de O Globo e desmentindo o "olho" já citado, Elmano diz que segue acreditando que “a injustiça social, a desigualdade e a pobreza são causas importantes da violência nos centros urbanos”, mas - segundo Elmano - nos dois primeiros governos Lula “a vida do povo brasileiro melhorou muito, e nesse período a violência também aumentou”. 

Essa resposta de Elmano tem várias camadas. Vou me focar apenas numa: a não ser que acreditemos que a violência é efeito colateral da pobreza material enquanto tal, é óbvio que certo tipo de pobreza pode diminuir e certo tipo de violência aumentar. 

A segunda pergunta de O Globo é a seguinte: “Não existir um ministério específico para segurança pública atrapalha?”

A resposta de Elmano começa assim: “sou favorável a ter o Ministério da Segurança Pública”. Eu também, o PT também, mas como já foi dito antes, uma vez no governo fazemos algo diferente do que foi proposto durante a campanha. 

Mas o exemplo dado por Elmano é revelador: “A polícia passa anos para prender um cara muito perigoso, e às vezes essa pessoa é solta por decisão judicial, talvez porque o inquérito teve uma falha processual”.

Claro que há falhas processuais, claro que há caras perigosos “à solta”, mas o crime organizado, as milícias, a infiltração do crime no aparato de Estado, as quadrilhas internacionais, as conexões empresariais (inclusive no setor financeiro e no agro), as conexões políticas (a começar pela família do cavernícola), tudo isso transcende o exemplo citado. 

E porque dar este exemplo? Porque é o típico exemplo constante da “narrativa” convencional, que desvia o olhar para o lugar errado, que converte o combate ao crime em tema de prisão/soltura de "caras".

A terceira pergunta do O Globo é a seguinte: “a esquerda deixou colar em si mesma o rótulo de que ‘defende bandido’?”

A resposta de Elmano é a seguinte: “A diferença que nós temos com a extrema-direita é que eles defendem uma política de segurança sem lei, em que pode tudo: torturar, matar, descer a um nível que o Estado civilizado não pode permitir. Mas a esquerda tem que atualizar o discurso e propor uma ação muito dura contra o crime. É defender claramente que as organizações criminosas são inimigas do povo no seu dia a dia, e que querem abalar nossas instituições. Precisamos de um projeto com oportunidades para a população, mas, se a pessoa resolver ir para o mundo do crime, vamos tratá-la como inimiga do povo e da democracia”.

Vamos por partes: a principal diferença entre a esquerda e a extrema-direita é que a extrema-direita é criminosa. Não apenas criminosa no combate ao crime, mas criminosa como sócia do crime, em todas as suas pontas. 

Por exemplo: não existe melhor política de recrutamento para o crime, do que a política de guerra às drogas, o punitivismo e a política de encarceramento em massa. Temas que não comparecem na entrevista, nem por obra do Globo, nem por iniciativa de Elmano.

Coerente com este silêncio, a linha adotada por Elmano na segunda parte da resposta não é uma solução, mas sim uma concessão. Concessão ao pensamento de direita. Vejam a frase: “Precisamos de um projeto com oportunidades para a população, mas, se a pessoa resolver ir para o mundo do crime, vamos tratá-la como inimiga do povo e da democracia”.

Sei que nos gabinetes há quem acredite que os “projetos” viram realidade no dia seguinte ao seu anúncio, mas na vida real há uma longa distância entre apresentar um “projeto” e efetivamente mudar a vida das pessoas.

Ademais, de que “pessoa” Elmano está falando? Segundo sua frase dá a entender, trata-se do pobre a quem o governo ofereceu “oportunidades” e, mesmo assim, “resolveu” ir para o “mundo do crime”. 

Esse tipo de raciocínio mostra que, ao tentar uma “atualização do discurso”, podemos acabar caindo na mesma retórica que as classes dominantes utilizam faz tempo: a das “classes perigosas”.

Em terceiro lugar, o discurso segundo o qual as “organizações criminosas são inimigas do povo no seu dia a dia, e que querem abalar nossas instituições” foi e segue sendo utilizado, aqui no Brasil e em outros lugares, pela extrema-direita que quer militarizar ainda mais a segurança pública e quer adotar o terrorismo de Estado. E como várias de “nossas instituições” tem seus criminosos de estimação, o resultado final deste tipo de política muitas vezes não é o sucesso no combate ao crime, mas sim interferir na correlação de forças entre diferentes quadrilhas.

A seguir, O Globo pergunta: “Roberto Sá, seu novo secretário de Segurança, deixou o cargo no Rio sob intervenção federal em 2018, após o esgotamento de programas como a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O que ele pode fazer no Ceará?”

Segundo entendi, Elmano acha que o problema das UPPs no Rio de Janeiro foi a falta de recursos. Se é isto mesmo, então vivemos em mundos diferentes.

Em seguida, O Globo faz duas perguntas sobre a relação com a família Gomes. Sobre Ciro, Elmano bate na tecla da "mágoa". Sobre Cid, diz que “fui candidato para continuar o projeto que o Cid começou”. Espero que a resposta tenha sido editada. Pois se a relação do governador do PT com Cid é essa, de "continuidade de projeto", temos mesmo um problema que transcende a política de segurança.

Na sequência, O Globo afirma que Rui Costa, Wellington Dias e Camilo Santana teriam sido “vitrines” quando eram governadores e estariam, enquanto ministros, enfrentando “desgastes”.

A resposta publicada (novamente, espero que a edição de O Globo tenha sido a responsável) aponta duas diferenças: base parlamentar e equilíbrio fiscal, que existiriam onde fomos governo estadual e ainda não existiriam no caso do governo federal.

Obviamente, não caberia a Elmano responder como se deve a essa provocação feita pelo O Globo. Mas é óbvio que o buraco é mais embaixo, digamos assim. No caso específico da segurança, a situação da Bahia é calamitosa; e não é assim, nem por conta da situação fiscal, nem por conta da falta de base parlamentar.

A última pergunta de O Globo é: “No futuro do PT sem Lula, espera que o protagonismo seja dos governadores do Nordeste?”

Elmano diz algumas coisas, entre as quais a de que “temos de ter uma atenção à renovação de quadros no partido”, o que – segundo ele – estaria ocorrendo no Ceará.

Talvez tenha escapado a Elmano, ou talvez ele tenha percebido mas optado por não responder, ou ainda tenha respondido e a edição tenha cortado, que não queremos fazer como o antigo PMDB e outros partidos fizeram, a saber, entregar seu comando aos governadores e parlamentares. 

Se algum dia isso ocorrer, aquele PT que foi criado em 1980 terá se convertido em outra coisa.

A entrevista publicada termina com as seguintes palavras: “atualização programática em áreas como a segurança”. Nesse espírito da "atualização", recomendo ao governador que vá ao cinema e assista, ou assista de novo se já viu, o filme Grande Sertão, do Guel Arraes.

Tudo que aparece lá, dialoga com o debate sobre segurança. Principalmente o personagem que dá "viva à Lei!"

Um último comentário: se não acelerarmos e muito as mudanças políticas, culturais, econômicas e sociais, é inevitável que nossos governos sejam chamados a enfrentar um crescente problema de segurança pública. E se formos conservadores no trato das questões políticas, culturais, econômicas e sociais, será também inevitável que sejamos cada vez mais conservadores no trato das questões de segurança. Isto é o que tem ocorrido com vários dos governadores de esquerda, petistas inclusive. E tem gente que chama isto de "atualização". 

 

Abaixo a entrevista comentada

Entrevista 'A esquerda tem que atualizar o discurso e propor ação dura contra o crime', diz governador do Ceará

https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/06/09/entrevista-a-esquerda-tem-que-atualizar-o-discurso-e-propor-acao-dura-contra-o-crime-diz-governador-do-ceara.ghtml

Representante da nova geração de governadores petistas no Nordeste, o cearense Elmano de Freitas avalia que a esquerda não pode mais achar que a injustiça social é o único motivo da violência urbana. É preciso, diz, que as organizações criminosas sejam tratadas como “inimigas do povo brasileiro”.

Favorável à criação de um Ministério da Segurança Pública, ideia rechaçada no início do governo Lula, o governador defende mais policiamento nas ruas para reagir à escalada recente de homicídios no estado, e culpa o cenário de disputas entre facções criminosas. Na semana passada, o ex-secretário de Segurança do Rio Roberto Sá assumiu a pasta correlata no Ceará.

Elmano chama ainda de “atabalhoada” e “descabida” a postura do ex-governador e presidenciável Ciro Gomes, que levou a um rompimento entre PT e PDT no estado.

A segurança pública é sempre citada como uma dificuldade da esquerda. O senhor acha que esse campo ideológico ficou para trás nesse debate?

Nenhuma força política no país apresentou até agora uma proposta consistente. Mas a esquerda tem que se atualizar, porque por muito tempo enfatizamos que a injustiça social, a desigualdade e a pobreza são causas importantes da violência nos centros urbanos, e ainda acredito nisso. Só que não é a única causa. Se olharmos a nossa experiência no primeiro e segundo governos do presidente Lula, a vida do povo brasileiro melhorou muito, e nesse período a violência também aumentou. A vasta maioria de homicídios é por disputa de território de organizações criminosas.

Não existir um ministério específico para segurança pública atrapalha?

Eu sou favorável a ter o Ministério da Segurança Pública. Ajudaria a dar o foco nessa integração, com uma política de segurança que articule todos os entes federativos e Poderes. É importante trazer junto Judiciário e Ministério Público. A polícia passa anos para prender um cara muito perigoso, e às vezes essa pessoa é solta por decisão judicial, talvez porque o inquérito teve uma falha processual. Isso desestimula. Hoje, nosso grau de integração está deixando a desejar.

A esquerda deixou colar em si mesma o rótulo de que “defende bandido”?

A diferença que nós temos com a extrema-direita é que eles defendem uma política de segurança sem lei, em que pode tudo: torturar, matar, descer a um nível que o Estado civilizado não pode permitir. Mas a esquerda tem que atualizar o discurso e propor uma ação muito dura contra o crime. É defender claramente que as organizações criminosas são inimigas do povo no seu dia a dia, e que querem abalar nossas instituições. Precisamos de um projeto com oportunidades para a população, mas, se a pessoa resolver ir para o mundo do crime, vamos tratá-la como inimiga do povo e da democracia.

Roberto Sá, seu novo secretário de Segurança, deixou o cargo no Rio sob intervenção federal em 2018, após o esgotamento de programas como a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O que ele pode fazer no Ceará?

Precisamos de uma presença mais forte de polícia na rua para enfrentar a sensação de insegurança, e o Roberto tem essa experiência. Ele é também delegado da Polícia Federal, e sua escolha passou por uma conversa minha com o diretor-geral Andrei (Rodrigues, da PF), dentro dessa ideia de integração. No Rio, quando ele foi secretário, havia calamidade financeira, salários não pagos, falta de viatura. O Ceará tem uma realidade diferente hoje, com investimento em tecnologia e contratação de profissionais de segurança.

PT e PDT romperam no Ceará. Com Ciro Gomes não tem mais diálogo?

Não posso sentar à mesa com alguém que faz uma acusação genérica de que meu governo tem corrupção e, quando peço judicialmente para apresentar um fato, a pessoa se esconde. Apenas porque quer fazer denúncia barata, como também já fez em relação ao presidente Lula. Um requisito básico é ter respeito. Infelizmente, a mágoa de ter sido derrotado da forma que foi na eleição de 2022, inclusive na sua cidade, em Sobral (CE), gerou no coração do Ciro uma situação em que não consegue colaborar com nada. O povo já deu a resposta nas urnas a uma linha política absolutamente atabalhoada, descabida e marcada por muito ódio.

Já o irmão dele, o senador Cid Gomes (PSB), é aliado do seu pré-candidato à prefeitura de Fortaleza, o petista Evandro Leitão. É uma relação similar à que teve com o ex-governador, hoje ministro da Educação, Camilo Santana. O PT do Ceará é tutelado pelo Cid?

Fui candidato para continuar o projeto que o Cid começou: escola de tempo integral, interiorização da saúde pública, ações concretas de emprego e renda. Estamos num processo de continuidade das políticas públicas, o que é uma das grandes conquistas do Ceará. O Estado brasileiro tem a meta de alfabetizar 80% das crianças em 2030; o Ceará alcançou isso em 2023 e hoje tem 85%.

Ex-governadores do Nordeste que foram vitrines do modelo de gestão do PT , como Rui Costa (Casa Civil), Wellington Dias (Desenvolvimento Social) e o próprio Camilo, enfrentam agora desgastes à frente de ministérios em Brasília. Como avalia isso?

Nos estados em que o PT governa, sempre trabalhamos para garantir equilíbrio fiscal, porque sabemos que isso é necessário para a população receber política pública. Essa é uma diferença hoje no caso da União, que busca as condições para recuperar esse equilíbrio. A segunda dificuldade é que, enquanto no Ceará tenho 35 dos 47 deputados na base, o presidente Lula não tem essa condição no Congresso. Mesmo assim, Lula conseguiu aprovar reforma tributária, Pé de Meia, Bolsa Família reforçado, volta do Minha Casa Minha Vida.

No futuro do PT sem Lula, espera que o protagonismo seja dos governadores do Nordeste?

Protagonismo se decide na atividade política real, não é uma definição de gabinete ou de discursos. Eu acho, isso, sim, que temos de ter uma atenção à renovação de quadros no partido. Aqui no Ceará estamos vivenciando isso, dando o passo para novas lideranças se afirmarem, além de discutir uma atualização programática em áreas como a segurança.


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