Vale a pena comprar e ler Cypherpunks (Boitempo, 2013), de Julian
Assange, Jacob Appelbaum, Andy Muller-Maguhn e Jérémie Zimmermann.
O livro tem três pontos fortes:
1.Desmonta a visão ingênua acerca da internet como o espaço da liberdade.
Julian Asssange
alerta para a militarização do ciberespaço: Quando nos
comunicamos por internet ou telefonia celular, nossas comunicações são
interceptadas por organizações militares de inteligência. É como ter um tanque
de guerra dentro do quarto. É como ter um soldado embaixo da cama. (p. 53)
Jacob diz ser uma
maluquice imaginar que entregamos todos os nossos dados pessoais a estas empresas, e
que elas se transformaram basicamente em uma polícia secreta privatizada. E, no
caso do Facebook, chegamos a democratizar a vigilância. Em vez de pagar as pessoas, como o Stasi fazia na Alemanha
Oriental, nós as recompensamos como uma cultura -agora elas vão para a cama. E
divulgam as novidades para os amigos (...) (p. 75)
Andy revela que, na
estrutura do banco de dados do Facebook, eles não chamam as pessoas de assinantes, usuários
ou qualquer termo do gênero; eles as chamam de alvos... (p. 75)
Julian comenta que a computação em nuvem na prática significa
enormes clusters de servidores, montados em uma única localização. (p. 92).
E nas notas se
esclarece que a metáfora nuvem
mascara o fato de que todos os dados e metadados dos usuários ficam armazenados
em um computador remoto em algum centro de dados, muito provavelmente
controlado por uma grande empresa e, portanto, no lugar de o usuário ter o
controle total sobre seus dados, alguém detém esse controle. (p. 99)
O livro é bastante esclarecedor sobre o armazenamento em
massa dos dados e o caráter de fato público das informações postadas na
internet: não importa o grau de publicidade que voce gostaria de
atribuir a seus dados, a cada vez que voce clica no botão publicar, dá esses
dados primeiro ao Facebook, e em seguida permite o acesso a outros usuários.
(p.72)
Esclarecedor, também, acerca de algumas decisões judiciais: segundo
um tribunal, na internet, voce
não pode ter uma expectativa de privacidade quando voluntariamente revela
informações a um terceiro e, a propósito, todo mundo na internet é um terceiro.
(p.74)
2.Desmonta a mitologia sobre o caráter democrático dos Estados
Unidos
O livro lembra que depois de vencer sua
primeira campanha presidencial com uma plataforma de transparência de governo,
levou a juízo mais denunciantes sob os termos do Espionage Act do que todas as
administrações anteriores juntas.
Julian Assange diz
que no Ocidente a coisa é muito mais sofisticada em termos do número de camadas
de desonestidade e obscurecimento sobre o que está realmente acontecendo. (p 128)
Especialmente surreal
o caso de John Gilmore, que apelou na Suprema Corte contra uma lei secreta,
perdeu, tem que cumprir a lei, mas ninguém tem acesso a tal lei, por ser
secreta!!!! (p. 140).
3.Confirma a importância da batalha pela internet, incluindo aí a
alfabetização digital das classes trabalhadoras.
Julian fala da necessidade de uma população global bastante
instruída, deixando claro que não está falando de educação formal. (p. 155)
Isto posto, vamos aos pontos frágeis do livro, ou melhor, do
diálogo mantido pelos autores: a economia política e a estratégia política
deles é, na melhor das hipóteses, de inspiração anarquista. .
Basta dizer que a alternativa central que eles apresentam é a
criptografia, para defender a privacidade contra o Estado totalitário.
Aliás, o debate sobre o público e o privado é feito de
maneira confusa, sem que se estabeleça clara distinção entre o
privado-individual e o privado-empresarial, entre o Estado-garantidor do
público e o Estado-garantidor do privado.
Falei de inspiração anarquista, mas poderia falar também da
tradição populista radical presente nos Estados Unidos. É por isto
que, numa das passagens mais estranhas do texto, Julian Assange faz uma
espécie de elogio ao fato da Constituição dos Estados Unidos conceder aos
cidadãos do país o direito de portar armas: as
pessoas estão armadas e, caso se irritem o suficiente, simplesmente pegam suas
armas e retomam o controle pela força.
Embora ele pondere ser necessário refletir se esse tipo de argumento continua
válido nos dias de hoje, sua ponderação é devida à evolução dos tipos de
armamentos!!!
O relevante, contudo, está na analogia: ele considera que devemos
considerar a criptografia como uma arma que deve ser disponibilizada para todos
(p.80)
As reflexões sobre a criptografia são, em algumas passagens,
fortemente utópicas: segundo Jacob, a
força de praticamente todas as autoridades modernas provém da violência ou da
ameaça da violência. É preciso reconhecer que, com a criptografia, nem toda a
violência do mundo poderá resolver uma equação matemática.
Julian Assange é mais realista e, por isto mesmo, sua utopia tende
à distopia: a criptografia pode resolver o problema da
interceptação em massa que ameaça a civilização do mundo inteiro. (...) Mesmo
assim, acredito que estamos lidando com forças econômicas e políticas
incrivelmente poderosas, ... e provavelmente o que vai acontecer é que as
eficiências naturais das tecnologias de vigilância, ..., nos levarão aos poucos
a nos transformar em uma sociedade de vigilância totalitarista global (....) E
talvez tenhamos os últimos sobreviventes livres, aqueles que sabem usar a
criptografia para se defender dessa vigilância total, e alguns outros (....)
neoludistas (página 81)
Já a visão de Jérémie é politicamente frustrante: a idéia é aumentar os custos
políticos das más tomadas de decisão (p. 91).
O ponto de partida (a defesa da privacidade contra o Estado
totalitarista) repousa numa economia política conservadora.
Alguns exemplos:
Jacob: talvez
queiramos um capitalismo socialmente limitado... (p. 111)
Julian: o mercado
precisa ser regulado para ser livre (115)
Andy: voce está
dizendo que precisamos de um sistema economico totalmente diferente? Porque nos
dias de hoje o valor não émais vinculado ao valor econômico. (....)
Jacob: não estou
discutindo se precisamos ou não de um ssitema econômico diferente. Não sou
economista (117)
Na falta de uma economia política crítica do capitalismo, não se
consegue enfrentar adequadamente o tema central da arquitetura,
abordado por Julian: um dos pontos fundamentais que os cypherpunks reconheceram
é o fato de a arquitetura efetivamente determinar a situação política, de forma
que se tivermos uma arquitetura centralizada, mesmo que as melhores pessoas do
mundo estejam no controle dela, essa centralização é um verdadeiro imã de
pessoas mal-intencionadas, que usam o poder de maneiras que os designar
originais jamais usariam. E é importante saber que a motivação para isso é
monetária. (p103)
O momento em que a inspiração anarquista (Proudhon?) fica mais
clara é no debate sobre o dinheiro, que para Andy não passa de bits (p. 107)
O debate está nas páginas 108 e 109 e versa sobre dinheiros
alternativos (Chaum, Bitcoin). Seu pior momento é a capitulação do próprio
Julian, que fala que este dinheiro alternativo pode dar certo quando for
adotado pelos provedores de internet e pela indústria de serviços na internet,
que então farão um lobby para impedir que ele seja banido (p. 110).
Se falta economia política, falta também uma visão política
adequada.
Exemplo: para Julian Assange, elites nacionais competindo
umas com as outras são uma coisa do passado. Hoje elas estão se unindo e se
alavancando. (p. 93) Análise que não suporta o que o próprio Julian diz
acerca dos conflitos jurisdicionais entre Rússia e EUA, acerca de Visa,
Mastercard e Paypal (p.105).
Outro exemplo: o debate entre Jacob e Julian (pp 96-97)
sobre vanguarda: segundo Jacob o
movimento peer-to-peer é explicitamente contra tal vanguarda política,
enquanto Julian se considera um
pouco de vanguarda.
A ausência de uma visão política global, estratégia, talvez explique
o desfecho do livro, onde Julian se esforça para falar das potencialidades
utópicas, mas ao final parece se render a distopia: as únicas pessoas que serão capazes
de manter a liberdade que tínhamos, digamos, vinte anos atrás --porque o Estado
de vigilância já eliminou grande parte desta liberdade, nós é que ainda não
percebemos isso-- são aquelas que conhecem intimamente o funcionamento do
sistema. Então só uma elite high-tech rebelde é que será livre, esses ratos
espertos correndo pela ópera. (p. 155-157 -a imagem do rato na ópera remete
a algo que Julian viu em Sidney).
Pontos frágeis a parte, o livro é muito interessante.
Mesmo sabendo que as operações do Wikileaks só trouxeram a
luz uma pequena fração do contéudo secreto (p.
146), foram um belo golpe contra a diplomacia secreta, contra os governos
secretos, contra a manipulação. Portanto, por este e por outros motivos, Assange e seus colegas merecem toda a solidariedade. E tem coisas muito interessantes a dizer.
E a luta pelo controle da internet efetivamente é parte importante
da construção das ferramentas de uma nova democracia.
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