No futuro, os historiadores que tiverem acesso à gravação da
reunião realizada, no dia 9 de abril de 2020, pelo Diretório Nacional do
Partido dos Trabalhadores, provavelmente concluirão tratar-se de um tesouro.
Isto porque nesta reunião manifestaram-se, de maneira muito didática, todas as
contradições deste que segue sendo o maior partido de esquerda do Brasil.
A reunião foi realizada utilizando uma plataforma denominada
zoom, que grava, permite a transmissão de dados para outras plataformas e,
dizem, também invade os computadores de quem baixou o aplicativo. A primeira
parte da reunião foi transmitida pela TV do PT; a segunda parte foi restrita
aos participantes e, claro, a vigilância digital de quem tivesse os meios para
tanto.
Na primeira parte da reunião, falaram os governadores Rui
Costa da Bahia, Wellington Dias do Piauí, Fátima Bezerra do Rio Grande do
Norte; os prefeitos Edinho de Araraquara, Fabiano Horta de Maricá e Ary Vanazzi
de São Leopoldo; o senador e ex-ministro da Saúde Humberto Costa e a
companheira Eliane Cruz, coordenadora do setorial nacional de saúde do PT; a companheira Lucinha,
secretária nacional de movimentos sociais do PT; também falaram Dilma, Haddad e
Lula, tudo isto sob a “ancoragem” da companheira Gleisi Hoffmann, presidenta
nacional do Partido dos Trabalhadores.
A fala dos governadores foi uma descrição da tragédia
sanitária, social e econômica –não apenas a da que já está em curso, mas
principalmente da que está por vir. Rui Costa, por exemplo, disse que caiu 40%
a emissão de notas fiscais e que a previsão de queda do ICMS é de 4 bilhões de
reais. E relatou um episódio síntese: a tentativa de distribuir 200 cestas
básicas terminou em tumulto, com cerca de 5 mil pessoas disputando. Wellington
Dias, por sua vez, reconheceu que “demorei muito para entender”, mas hoje
percebe que a linha de Bolsonaro é provocar o caos, o que inclui atitudes sórdidas
como o confisco, pelo governo federal, de 59 respiradores do governo do Piauí.
Fátima Bezerra falou em tragédia, que os estados estão pedindo socorro e alertou
que há especialistas falando da necessidade de toque de recolher.
No meio da fala dos
governadores, José Guimarães, líder da minoria na Câmara dos Deputados,
interveio para relatar o impasse – na sessão virtual do parlamento – exatamente
acerca da votação de uma legislação que ajudaria os estados a mitigar suas
dificuldades financeiras.
Paremos por aqui o relato, para brevíssimos comentários.
Primeiro: os relatos são dramáticos e ainda estamos longe do pico da crise.
Pergunta: o que está sendo feito hoje, permitirá enfrentar o sabemos que virá
amanhã? Segundo: ajuda a enfrentar o que virá, reclamar do fato do presidente
da República estar “politizando” e “ideologizando” o debate, ou melhor seria
que nós fizéssemos o inevitável, a saber “politizar” e “ideologizar” também, mas em sentido diametralmente oposto ao do
presidente? Ou seja: se ele opera para manter e ampliar seu poder, não
deveríamos nós operar para tirar o cavernícola de lá, antes que seja tarde
demais? Terceiro: Camilo, governador do Ceará, não participou da reunião.
Voltemos ao relato da reunião. Depois dos governadores,
falaram os prefeitos. Edinho Silva disse que vivemos algo “semelhante a uma
terceira guerra mundial”, não apenas no que diz respeito a catástrofe
humanitária, mas também no que diz respeito a economia. E a partir deste
raciocínio, engatou uma série de afirmações muito interessantes, do tipo: os
neoliberais estão na defensiva, o SUS é central para enfrentar a crise, os
sinais trocados entre poderes prejudicam a quarentena, a catástrofe é uma
oportunidade para defender o papel do Estado prestador de serviços, defensor
dos pobres e a solidariedade. A mesma ênfase na solidariedade esteve presente
na fala de Fabiano Horta, de Maricá, que agregou uma enfática defesa de que “os
informais são a economia real” (embora, como saibamos, parte dos recursos de
Maricá provenham dos royalties do petróleo, algo bem real e nada informal). De
Ary Vanazzi, destacamos duas ideias: a seguir na atual toada, as prefeituras
municipais vão se converter em “massas falidas” e que não haverá “volta à
normalidade”.
Paremos novamente o relato (que pode, suponho, ser conferido
na página eletrônica do PT, por onde foi transmitida a sessão da manhã do
Diretório) e façamos algumas perguntas: 1) como eliminar o contraste de
orientações entre os “poderes”, sem tirar da presidência o epicentro da orientação
errada? 2) é possível mudar radicalmente a orientação das políticas do Estado,
sem mudar sua própria natureza, as classes que o comandam e principalmente a
sociedade como um todo? 3) nossa meta é a “solidariedade” ou o socialismo? 4)
e, finalmente, mas o mais importante: se não voltaremos à normalidade
pré-crise, por qual novo normal devemos lutar? Qual a alternativa sistêmica,
que devemos apresentar à esta crise sistêmica?
Voltemos ao relato. O ex-ministro da Saúde e hoje senador
Humberto Costa fez uma didática descrição da evolução da pandemia no Brasil. E fez
uma apurada crítica dos problemas de gestão e de linha adotados pelo Mister
Mandetta (MM), da falta de recursos (22,5 bilhões roubados do SUS pela EC95),
dos problemas e furos na política de isolamento realmente existente. Lembrou
que a quantidade de testes realizadas no Brasil é irrisória frente às
necessidades e frente ao que fazem outros países. Mostrou como a ausência de
recursos para os laboratórios públicos de excelência, como a Fiocruz, está por
detrás dos atuais problemas. Falou da insuficiência de leitos em geral e de
leitos de UTI em particular, assim como de sua desigual distribuição regional e
de sua inaceitável repartição entre leitos públicos e privados. Alertou que o
pico da crise será entre abril e maio de 2020, havendo estimativas de 44 mil
mortos. Comentou sobre o problema da compra de ventiladores mecânicos e da
falta de pessoal qualificado. Em resumo, a fala de Humberto, complementada pela
fala da companheira Eliane Cruz, apontou em dois sentidos fundamentais: a) nas
próximas semanas, haverá um colapso sanitário; b) a gestão Mandetta é parte do
problema, naõ parte da solução. Ambos também falaram do tema da cloroquina.
Sobre isto, um único comentário: há anos, um setor do Partido
e da esquerda brasileira vem insistindo na tecla de que o tema da Saúde é não
apenas estratégico, mas também devia ser parte fundamental de nossa tática
política. Mas isso nunca foi consenso dentro do Partido, o que se traduzia por
diferentes orientações quanto ao setor privado de saúde, quanto aos recursos
para o setor público e quanto a centralidade do tema em nosso programa e
plataforma. Hoje, todo mundo se dá conta da importância do SUS. Mas a questão
é: estamos todos falando a mesma coisa? Ou no day after continuarão a existir,
entre nós, os que regateiam recursos, os que passam a mão na cabeça da medicina privada, inclusive
internacional?
Depois falaram os líderes das bancadas do PT na Câmara e no
Senado. Seu relato, reforçado por outros que falaram antes e depois, confirma
que o ultraliberalismo continua comandando a cabeça da maioria do Congresso,
que a cada volta na esquina busca aprovar (como o Plano Mansueto, a carteira
verde e amarela) ou aprova (a compra de títulos podres pelo BC) medidas que
fazem parte do programa Bozo-Guedes. Mas também ficou claro que há
interpretações diferentes sobre a profundidade, maior ou menor, das diferenças
entre o governo e a maioria do Congresso.
Sobre a fala dos dois parlamentares, um comentário acerca do
que disse o senador Rogério Carvalho: novos surtos e pandemias virão no futuro.
Se isto é verdade, é tudo indica que é, uma coisa é certa: uma sociedade
organizada em torno da desigualdade, não é uma sociedade, é um matadouro. E não
há solidariedade que resolva isso. O que pode resolver isso é reorganizar a
sociedade, agora em torno da igualdade.
As falas finais foram da companheira Lucinha, da executiva
nacional do PT, sobre a campanha de solidariedade articulada pelas frentes e
movimentos. A esse respeito, recomendamos que se busquem as informações detalhadas na página do PT e das frentes. Depois falaram Dilma, Haddad e Lula.
Dilma Rousseff chamou a atenção para as consequências
advindas da duração desta crise; denunciou que faltam testes, porque se
houvesse testagem de massa seria impossível não reconhecer a gravidade da crise
sanitária; defendeu uma política de reconversão industrial; lembrou que agora
há muito neoliberal posando de “keynesiano desde criancinha”; defendeu a
ruptura da EC95, a reconversão industrial e a necessidade de proteger os mais
frágeis; propôs o anulação da dívida externa dos países mais pobres do mundo,
inclusive para contribuiu no combate ao corona nesses países; propôs ações
coordenadas no âmbito da América Latina e dos organismos unilaterais; e chamou
a atenção que o caminho para crescer depois da crise não é o corte de gastos,
pelo contrário. E concluiu falando do tema dos médicos e da água.
Fernando Haddad disse ser um alento ouvir as lideranças do
PT, falou contra a politicagem e a ideologização, que o pouco que está sendo de
positivo no combate a crise tem como origem o PT e os setores de esquerda. E
defendeu que a primeira coisa a fazer é mudar o regime fiscal, convencer a
centro-direita e constituir uma frente para salvar o país do governo.
Lula destacou o fato da reunião estar sendo transmitida ao
vivo, criticou o atraso na divulgação dos dados da pandemia pelo governo brasileiro,
destacou as duas táticas de Bolsonaro (falar do remédio e defender a volta ao
trabalho), atacou Guedes e sua política tatcheriana e disse que na parte da tarde
daria sua opinião sobre a política.
Sobre este momento final, um único comentário: ou nacionalizamos o
setor financeiro, ou todo o resto é papo. Na campanha de 2018, a maioria do diretório nacional do PT recusou
incluir esta proposta no programa de governo de Haddad. E o problema só faz
crescer e se tornar mais evidente, a cada dia que passa. O oligopólio
financeiro é o setor mais nocivo do grande capital e o maior obstáculo a qualquer
política – de curto, médio ou longo prazo – que se queira fazer, seja em
benefício do povo, seja em benefício do desenvolvimento nacional. A timidez
nesse terreno é o equivalente programático a timidez (digamos assim) que muita
gente exibe, na hora de falar o que fazer contra um governo eugenista, miliciano
e neofacista.
Mas isso fica para a sessão da tarde.
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