Há muito tempo, a long time ago, uma certa esquerda metia a boca na palavra “progresso”, acusada de sintetizar as perversões de uma estirpe do marxismo que incluiria Engels e Stalin. Hoje, 40 anos depois, encontro quem salive satisfeito toda vez que escuta a palavra “progressista”. Ver como aquilo deu nisso é uma das coisas boas no envelhecer: ver as piruetas que o mundo (e as pessoas) dão.
Pensei nisto ao ver o sempre elegante e bem escrito
texto, publicado hoje no Sul21, do companheiro Tarso Genro. O texto intitula-se
“Lula, Ciro: o vazamento benigno lembra Mattelart em Porto Alegre” e está
reproduzido ao final.
O texto começa com uma ode a democracia liberal, que
faço questão de reproduzir na íntegra: “A conversa entre líderes, o contato
pessoal, o diálogo público e inclusive a controvérsia radical entre
personalidades ideologicamente opostas, que integram o modo de fazer política
na democracia, fazem a superioridade – em termos políticos – da democracia
liberal em relação aos regimes de partido único e às ditaduras e totalitarismos
em geral”.
O divertido nesses e noutros elogios à democracia
liberal é que lança luz de maquiagem sobre o que ocorre nos salões de festa, mas esconde o
que ocorre nas periferias. Mas claro: não devemos incomodar o intercâmbio de salamaleques,
com a lembrança de que o povo não é convidado a participar deste “modo superior”
de fazer política, que seria supostamente característico da democracia liberal.
Tarso, claro, lembra que as vezes a “quando a democracia é assaltada nos seus fundamentos, seja pela perversão da informação, pela violência ou pelos oligopólios midiáticos – pela força do dinheiro instalada no modo de fazer política – a democracia resseca”.
O que Tarso não lembra é que isso
não ocorre às vezes, isso ocorre o tempo todo. Não existe “democracia liberal” que não seja o tempo todo “assaltada” pela força do dinheiro, dos oligopólios,
pela violência. Exatamente porque a democracia liberal é... liberal, ou seja, é uma democracia burguesa, não é para todos. Os Estados Unidos são o maior exemplo disso.
E quando aquelas medidas preventivas não funcionam, quando o povo ameaça querer participar em pé de igualdade da festa, aqueles mesmos democratas liberais, em nome de manter a democracia liberal, apelam aos cavernícolas.
E depois que os cavernícolas fizeram o serviço sujo, os democratas liberais se dizem horrorizados com os excessos (que, claro, teriam sido causados pelos excessos originais cometidos pelo povo e/ou pela esquerda) e convocam certa esquerda a dar uma mãozinha para reestabelecer o status quo anterior.
Status quo ante que certa esquerda passa a defender como se fosse a coisa mais
linda e maravilhosa do mundo. Só Dark explica.
Mas voltemos a Tarso.
Segundo ele, quando as instituições
“são assaltados pelo medo ou pelo oportunismo e os partidos podem tornar-se
amorfos e passar de uma fase de inércia para uma fase de decadência ou
irrelevância”, chegaria “a hora das reservas morais acumuladas na esfera da
política, dos homens e mulheres que -mais além dos curtos espaços da
conjuntura- encarnam o espírito das épocas futuras, superam as suas
adversidades, concertam acordos e consensos para derrotar, o mal maior: a hidra
do fascismo, no nosso caso concreto,
aliada da ignorância, da má fé, do negacionismo da ciência, da razão e autor da
semeadura da política necrófila”.
Teria o muito que dizer sobre esta ode ao "papel do homem na história". Mas me confesso mesmo é encantado com a porção Cervantes que se esconde em Tarso. Pois não é fácil transformar as motivações vis de uns e pueris de outros, em uma história épica.
Como historiador bissexto, espero que
algum dia seja divulgada toda a história do encontro Lula e Ciro: quem sugeriu,
quem marcou, a data, o que foi dito, a quem foi informado e, principalmente,
por quais motivos o encontro vazou no momento e na forma com que vazou. Quando
isso ocorrer, será possível diferenciar realidade e lenda, os motivos reais e as "nobres intenções".
Mas adianto o seguinte: ao contrário do que diz Tarso, a história não foi “benignamente vazada por alguma alma inteligente”, nem foi um “acaso”.
A história foi vazada na hora e da forma adequadas, para ajudar a candidatura do PDT no Ceará. E Ciro não é, de jeito nenhum, um dos “grandes líderes democráticos do país”. O comportamento de Ciro no segundo turno de 2018 impede que ele receba esta medalhinha.
Mas, é claro, o coração de certos petistas é grande, grande demais,
tão grande que toda vez que encontram um escorpião, sempre perguntam a ele:
isto é um ferrão?
Pulo a parte erudita do artigo de Tarso e vou direto ao final: nosso companheiro acha que o “encontro de Lula com Ciro”, “se for regado pela ação
consciente de ambos os líderes, pode restaurar a vontade democrática da nação e
jogar a extrema direita fascistóide e seus asseclas ultraliberais no lugar da
História que eles merecem: o das tristes lembranças do lixo autoritário. Flávio
Dino, Requião, Freixo, Boulos, Haddad, Juliano Medeiros, Lupi, Marina,
dirigentes do PSB e dos pequenos partidos de esquerda, sabem que nas
circunstâncias atuais só a ampla unidade contra o fascismo é o antídoto
histórico para recuperar o espaço político de lutas que foi empestado pelo
fascismo”.
Deixando para outra hora os saborosos detalhes escondidos no parágrafo anterior, passo direto ao que me parece ser o 8 mental em que está presa parte da esquerda brasileira: a principal tarefa da esquerda é derrotar o fascismo; a luta contra o fascismo exige ampla unidade; a ampla unidade exige abrir mão de posições particulares; logo, a ampla unidade se faz pelo centro e não pela esquerda.
Esta
análise contém na minha opinião quatro defeitos:
1/identifica mal nosso inimigo: o “fascismo” de
Bolsonaro não é a causa, é uma das consequências da reorientação que a classe dominante
brasileira e mundial fizeram a partir da crise mundial de 2008. É absolutamente insuficiente
uma política focada exclusivamente numa das cabeças da hidra;
2/atribui ao centro capacidades que ele não tem: em
tempos de polarização, as forças de “centro” se esvaziam. Para que as forças de
centro possam de fato liderar a luta contra a direita, elas terão que se deslocar efetivamente (ou seja, programática e politicamente) para a esquerda. E o centro realmente existente no Brasil de hoje
está fazendo o oposto disto: está se deslocando para a direita, assumindo o
programa ultraliberal e conciliando com o bolsonarismo;
3/destrói nossas chances de futuro: o Brasil avançou, entre 1989 e 2014, porque a esquerda polarizou a disputa política. A esquerda pode perder a capacidade de polarizar? Pode, sempre pode. Mas perder a capacidade por derrota é uma coisa; perder a capacidade por capitulação, por tradição, por desistência, por inapetência, é outra coisa;
4/na prática, elimina da equação a única variável capaz de virar o jogo: não é a unidade política por cima, mas a mobilização popular por baixo que pode derrotar o "bolsonarismo", o ultraliberalismo e tudo o mais. A depender de como se construa a pretendida "unidade", o povo ficará alheio e como espectador.
Obviamente, dar conta destas questões exige uma esquerda que não esteja hipnotizada pela democracia liberal. Aliás, foi exatamente esta hipnose republicana que nos trouxe à situação atual.
Segue abaixo o texto criticado
Lula, Ciro: o vazamento benigno lembra Mattelart em
Porto Alegre
Publicado em: novembro 1,
2020
Ciro Gomes e Lula (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)
Tarso Genro (*)
A conversa entre líderes, o contato pessoal, o diálogo público e
inclusive a controvérsia radical entre personalidades ideologicamente
opostas, que integram o modo de fazer política na democracia, fazem a
superioridade – em termos políticos – da democracia liberal em relação aos
regimes de partido único e às ditaduras e totalitarismos em geral. Quando
a democracia é assaltada nos seus fundamentos, seja pela perversão
da informação, pela violência ou pelos oligopólios midiáticos – pela força do
dinheiro instalada no modo de fazer política – a democracia resseca:
as instituições são assaltados pelo medo ou pelo oportunismo e
os partidos podem tornar-se amorfos e passar de uma fase de
inércia para uma fase de decadência ou irrelevância.
Quando este fenômeno se instala é a hora das reservas morais
acumuladas na esfera da política, dos homens e mulheres que -mais além dos
curtos espaços da conjuntura- encarnam o espírito das épocas futuras,
superam as suas adversidades, concertam acordos e consensos para derrotar, o
mal maior: a hidra do fascismo, no nosso caso concreto, aliada
da ignorância, da má fé, do negacionismo da ciência, da razão e autor da
semeadura da política necrófila. Por isso a conversa de Lula e Ciro, dois
dos grandes líderes democráticos do país, benignamente vazada por alguma
alma inteligente, pode fazer história no país.
Na sua “História da Utopia Planetária” (Sulina, P.Alegre
2002), Armand Mattelart – numa parte do seu livro em que fala da
“democracia telegráfica ou do nascimento de uma utopia”- escreve o
seguinte: “não
há democracia possível ‘além do alcance da voz’, acreditava Jean-Jaques
Rousseau”. Esta posição é “contestada por Alexandre Theóphile-Vandermond
(1735-1796) que, em março de 1795, se apóia em outra língua, a de de
sinais do código telegráfico”, para tentar desmentir Rousseau, já
que o alcance da voz fora superado pelo som da linguagem cifrada.
Independentemente do sentido que Mattelart empresta ao seu
raciocínio, é claro que Rousseau, o filósofo, e Teóphile-Vandermond,
o matemático-músico e químico, se confrontam no espaço da razão. Sobre
o debate, prossegue o autor, “Barrére também se empolgou” (dizendo que
o telégrafo é) um meio que tende a consolidar a unidade da
República, pela ligação, íntima e súbita, que ele dá a todas as suas
partes…”.
Neste livro, reiterando o que já tinham expressado
Castoriadis, Mário Soares, Boaventura Souza Santos, Eduardo Galeano,
Ettore Scola, Mássimo Dalema, Álvaro Cunhal, Chico Buarque e muitas
outras personalidades das artes, da ciência e da política, Mattelart
escreveu na sua contracapa: “Sinto-me especialmente feliz por ver este
livro publicado em Porto Alegre (…) porque ao organizar o I Fórum
Social Mundial, em janeiro de 2001, a cidade tornou-se um símbolo
universal: o da crença de que um outro mundo é possível”.
Mattelart acrescenta um dado curioso: “o templo da religião da
humanidade, na capital gaúcha, e as estátuas de alguns de seus governantes
não são testemunhos da influência durável, deixada aí pela utopia
contista? No fim das contas, não é por acaso que esta história da utopia
planetária seja lançada em Porto Alegre! A fluidez na informação do mundo,
que revolucionou a distância entre as pessoas, a partir dali, reforçou a
“ligação, íntima e súbita” entre os humanos.
A reflexão de Mattelart, carregada do orgulho que temos –
milhares de nós – pela construção desta experiência, choca-se com o tempo
vivido deste pesadelo de obscurantismo e ódio de classe,
que prepararam a política necrófila e genocida que nos sufoca. Ela
se firmou com a patética empulhação dos “dois extremos”, apoiada
nas classes dominantes, que agora se olham no espelho e vêem, nele,
o rictus doentio do seu ídolo oco de ideias e lotado de
impulsos assassinos. A estratégia da falsidade que jogou com o medo
dos extremos leva-os ao abismo e saltar sobre ele exige acasos conjugados,
perseverança e sobretudo recuperar o que Mattelart apontou como
necessidade de renegar o aprofundamento do abismo e das
“dissociações entre os mundos sociais”.
A subjetividade política aí conquistada pode ordenar o
“mapa caótico de fragmentações”, para fazer surgir os “bolsões
de resistência”: os acasos, às vezes, chegam nas horas certas,
a perseverança e a capacidade política -de liderar e propor- sempre
são recuperadas juntando os pedaços daquele mapa fragmentado, com a
voz unitária dos líderes, através de um programa mínimo de unidade
imediata, para superarmos o pior das três crises: a econômica, a sanitária
e a ambiental.
Chego no ponto que me interessa na atual conjuntura: o “vazamento
benigno” do encontro de Lula com Ciro é um acaso que, se for regado pela
ação consciente de ambos os líderes, pode restaurar a vontade democrática
da nação e jogar a extrema direita fascistóide e seus asseclas
ultraliberais no lugar da História que eles merecem: o das tristes
lembranças do lixo autoritário. Flávio Dino, Requião, Freixo, Boulos,
Haddad, Juliano Medeiros, Lupi, Marina, dirigentes do PSB e dos pequenos
partidos de esquerda, sabem que nas circunstâncias atuais só a ampla
unidade contra o fascismo é o antídoto histórico para recuperar o espaço
político de lutas que foi empestado pelo fascismo.
(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul,
prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro
das Relações Institucionais do Brasil.
"perder a capacidade por capitulação, por tradição, por desistência..." Salvo engano, vc quis dizer "traição" e saiu um "d" no meio, não?
ResponderExcluir