quinta-feira, 28 de junho de 2018

Boito e o "neodesenvolvimentismo"



A Revista IHU Online divulgou entrevista do professor Armando Boito Jr., publicada originalmente no dia 19 de junho pelo Jornal da Unicamp.

A entrevista, intitulada “Fratura em frente neodesenvolvimentista decretou queda de Dilma”, pode ser lida no endereço abaixo:


A entrevista ajuda a divulgar um livro de Armando Boito, intitulado Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT.

Na entrevista, a argumentação de Boito gira em torno da afirmação de que existiria uma fração da burguesia brasileira, fração que ele denomina de “grande burguesia interna”, “cujos interesses tinham adquirido primazia na política econômica dos governos do PT em detrimento dos interesses do capital internacional”.

A aliança entre os setores populares e esta burguesia teria constituído uma “frente política neodesenvolvimentista” que supostamente “sustentava os governos do PT”.

Mas parte desta “grande burguesia interna” teria se afastado do governo Dilma, rompendo a “frente neodesenvolvimentista” e abrindo caminho para o impeachment.

A interpretação de Boito parece explicar de forma didática o porquê da movimentação de determinadas forças políticas e sociais.

Mas esta explicação procede? Vejamos a entrevista.

A primeira pergunta feita pelo Jornal da Unicamp é: Por que, na sua opinião, o “neodesenvolvimentismo” de Lula se tornou insustentável?

O ponto de partida, portanto, é o de que Lula teria aplicado o tal “neodesenvolvimentismo”.

A entrevista, ao menos na versão publicada, não questiona onde e como teria sido feita esta opção, no que consistiria o “neodesenvolvimentismo” e quais suas diferenças com o desenvolvimentismo.

Boito responde a pergunta falando das movimentações políticas e sociais que desaguaram no impeachment.

Ou seja, o neodesenvolvimentismo teria se tornado insustentável porque “rachou” a base política que o sustentava.

Vamos admitir, para facilitar a discussão, que as coisas tenham se dado da forma como Boito descreve.

Por quais motivos o tal racha ocorreu, por quais motivos a tal “grande burguesia interna” teria rompido a tal “frente neodesenvolvimentista”?

Na entrevista, Boito diz o seguinte: “a ofensiva restauradora do campo neoliberal ortodoxo” ocorreu “num momento de aguçamento das contradições no interior da frente política neodesenvolvimentista que sustentava os governos do PT”.

Mas por quais motivos as contradições se aguçaram? [essa e as demais perguntas, salvo se estiverem em negrito, são minhas, não da entrevista]

Segundo Boito, em toda a América Latina, “o capital internacional e os Estados Unidos estavam retomando a iniciativa política”. No Brasil, a “grande burguesia interna” tinha “adquirido primazia na política econômica dos governos do PT em detrimento dos interesses do capital internacional”. A grande burguesia interna teria “conflitos moderados com o capital internacional. Pois bem, parte importante dessa grande burguesia interna afastou-se do governo Dilma”. 

Por quais motivos esta “grande burguesia interna afastou-se do governo Dilma”?

Boito diz que “a crise econômica e a propaganda oposicionista por novas reformas neoliberais – trabalhista, previdenciária e outras – atraíram boa parte da burguesia interna. Ela se bandeou para o campo neoliberal ortodoxo, que vocaliza os interesses do capital internacional e que tinha no PSDB o seu representante partidário”.

Ou seja, a grande burguesia interna teria se aliado ao capital internacional por causa da crise econômica e da propaganda por novas reformas neoliberais.

Como a propaganda neoliberal não cessou entre 2003 e 2016, parece evidente que o fato relevante, a novidade que teria gerado uma mudança de postura por parte da grande burguesia interna, foi a crise econômica.

Acontece que o próprio Boito afirma que esta “grande burguesia interna” tinha apoiado “o programa neoliberal”, ainda que com ressalvas, “nos governos Collor, Itamar e no primeiro governo FHC”.
Portanto, foi no segundo mandato de FHC, o mandato marcado por uma crise econômica, que a grande burguesia interna “afastara-se dele e se aproximara do programa neodesenvolvimentista propagandeado pelo PT desde o final dos anos 1990”.

Não lembro do PT denominar de “neodesenvolvimentista” seu programa do final dos anos 1990. Mas isto é, do ponto de vista do mérito, um problema secundário, embora ganhe alguma importância devido ao estilo com que Boito desenvolve seus argumentos.

O problema principal é que a “grande burguesia interna” teria se afastado do neoliberalismo e depois da suposta “frente neodesenvolvimentista”, em ambos casos devido a uma crise econômica.

Boito chega a dizer que “a burguesia interna realizou um movimento pendular na história política recente do país. No momento, o movimento do pêndulo aponta para a direita”.

Mas o que causa este movimento pendular? E o que explicaria as diferentes posições no interior da tal “grande burguesia interna”?

Na entrevista Boito diz que um “segmento importante dessa fração burguesa” [as construtoras nacionais] foi “colocado fora de combate já no início da crise política”, enquanto “outros segmentos dessa mesma fração iniciaram um caminho de volta, reconciliando-se com o neoliberalismo”.

O que explica estas diferentes posturas? Na entrevista, a explicação não aparece. O que aparece é uma descrição do movimento, não a explicação das causas do movimento. A explicação, inclusive as nuanças, estaria no livro.

O Jornal da Unicamp pergunta: O senhor falou da burguesia interna. Mas e as demandas e o papel dos movimentos sociais na aliança que sustentou o PT?

Boito responde que “o principal conflito no processo político brasileiro nos anos recentes se deu entre, de um lado, a burguesia interna (que depende do capital internacional, mas, ao mesmo tempo, possui conflitos moderados com ele), e, de outro, esse capital internacional e os setores da burguesia brasileira a ele integrados”.

Ou seja: no final dos anos 1990 a “grande burguesia interna” se aproximou do programa “neodesenvolvimentista” do PT, o PT ganhou as eleições presidenciais de 2002 e seguintes, mas o conflito fundamental da política brasileira teria continuado a ser dar entre dois setores burgueses.

Não haveria, portanto, uma diferença fundamental entre a história do Brasil antes e depois de 1989, nem antes e depois de 2002. O “principal conflito no processo político brasileiro” teria continuado a se dar entre dois setores burgueses.

Haveria dois campos em disputa: um “campo neodesenvolvimentista, dirigido pela grande burguesia interna” e um “campo neoliberal ortodoxo, dirigido pelo capital internacional”.

Boito vincula esta situação com o seguinte: “o movimento popular encontrava-se segmentado e voltado para reivindicações específicas. Não possuía programa político próprio nacionalmente organizado”.

Se Boito tem razão, então a “grande burguesia interna” dirigia uma frente que era formalmente encabeçada pelo PT. Logo, caberia explicar qual o lugar do PT: um partido popular subalterno? Um partido burguês disfarçado? Outra alternativa? Qual a posição de classe do PT? Que setores sociais ele representava? Qual sua relação com o “movimento popular”?

A entrevista não pergunta e tampouco Boito responde. Vale a pena conferir o que é dito e o que não é dito a respeito no já citado livro.

Acerca dos demais setores da sociedade brasileira, Boito diz que “classe média abastada foi a base de apoio do golpe, não a sua força dirigente. Do lado do campo progressista, os movimentos sindical e popular tiveram papel importante no desencadeamento da crise, mas não defenderam à altura das necessidades o mandato de Dilma Rousseff”.

Acerca d sindicalismo, Boito diz que ele “cresceu muito entre 2003 e 2013. O número de greves aumentou ano a ano. Em 2003 ocorreram 312 greves. Dez anos depois, foram mais de duas mil greves. As conquistas salariais são claras: enquanto em 2003, apenas 18% dos acordos e das convenções coletivas haviam sido reajustados acima da inflação, em 2013, 95% deles alcançaram esse objetivo”. Portanto, diz Boito, “era muito mais fácil manter a unidade da frente política neodesenvolvimentista em 2003 que em 2013”.

Pessoalmente considero esta frase a mais interessante de toda a entrevista. Pois se entendi direito o que foi dito, teria sido “mais fácil manter” a tal frente neodesenvolvimentista enquanto as greves eram em menor número e as conquistas salariais mais baixas.

Portanto, a mudança de posição da “grande burguesia interna” teria sido resultado, não da propaganda neoliberal, nem da crise econômica, mas do aumento progressivo dos salários diretos e indiretos, num contexto de crise econômica internacional.

Mas isto não é verdade apenas para um setor da burguesia, isto vale para o conjunto da burguesia. Nesse sentido, o impeachment não preciso ser explicado como produto de um conflito entre dois setores da burguesia, nem como resultado de uma cisão numa frente neodesenvolvimentista.

A explicação pode ser a seguinte: um governo de base popular, acossado por uma aliança entre o grande capital e os setores médios, perde a batalha quando adota uma política ortodoxa que afugenta parte de seu apoio na classe trabalhadora.

Para além da diferente compreensão da realidade, as decorrências de uma ou outra explicação também são (ou podem ser, para a esquerda) muito distintas.

Numa, o movimento principal da esquerda deve consistir em reconquistar a classe trabalhadora. Noutra, reconquistar a classe trabalhadora é condição necessária, mas não suficiente: seria necessário reconquistar a grande burguesia interna, reconstruir a tal frente neodesenvolvimentista.

Boito diz que há “uma linha de continuidade entre os governos FHC e os governos Lula e Dilma. Todos eles operam dentro do modelo econômico capitalista neoliberal. Porém, as políticas econômica, externa e social dos governos tucanos e petistas são diferentes. Os governos de FHC privilegiaram os interesses do capital internacional (...) A política econômica dos governos liderados pelo PT passou a priorizar os interesses das grandes empresas nacionais”.

Aqui há dois problemas misturados: um é saber se efetivamente “a política econômica dos governos liderados pelo PT passou a priorizar os interesses das grandes empresas nacionais”; outra é saber se esta prioridade, caso existisse, equivaleria a dizer que havia um “campo neodesenvolvimentista, dirigido pela grande burguesia interna”.

Os dados disponíveis não permitem uma resposta simples para a primeira questão. Até porque o capital financeiro privado nacional é, salvo engano, parte integrante desta “grande burguesia interna”.

Por outro lado, priorizar os interesses das grandes empresas nacionais é igual a “neodesenvolvimentismo”? Os governos do PT seriam instrumentos de um “campo” dirigido pela “grande burguesia interna”?

Boito, na minha opinião, vê uma “frente” onde ela não existe, nem nunca existiu. Um conjunto de políticas e a vontade que alguns setores tinham, de construir uma aliança, não bastam para falarmos de uma “frente”.


Boito diz “que Lula e Dilma não romperam com o modelo econômico capitalista neoliberal. Operaram na margem do permitido por esse modelo. Por isso, o reformismo petista foi superficial. Esse elemento de continuidade levou muitos analistas a sustentarem a tese de que os governos petistas eram mera continuidade dos governos tucanos. Discordo dessa tese e discuto isso no livro. Se o PT tivesse dado continuidade aos governos do PSDB, este último não teria permanecido na oposição e, muito menos, protagonizado um golpe de Estado contra o governo Dilma”.

Boito tem razão nesta constatação: os governos Lula e Dilma, mesmo que tenham elementos de “continuidade”, não eram “mera continuidade”.

Mas isto não implica naquilo, ou seja, admitir que não tenham sido “mera continuidade” não implica em aceitar que tenham sido “neodesenvolvimentistas”, até porque para isso seria necessário que houvesse – da parte de uma fração da burguesia – uma disposição de construir uma aliança que mereça este nome.

Negócios, financiamento de campanhas e declarações não são suficientes para que falemos em uma “frente”, em que um setor do capital estaria dirigindo uma frente integrada pelo PT, frente que se oporia a outro setor da burguesia.

Mais adiante, a entrevista pergunta sobre o “neopopulismo” dos governos petistas.

Boito responde que “fala em neopopulismo, mas num sentido diferente daquele que é usado pelos liberais e conservadores de vários matizes”. Segundo ele, “foi essa a política do PT para os trabalhadores da massa marginal”. “De um ponto de vista de esquerda, vale ressaltar que essas massas se mantiveram desorganizadas, como é típico da política populista. Tal apoio eleitoral, mas desorganizado, funciona bem enquanto o voto tiver um peso importante. Porém, quando grande parte da burguesia e também a alta classe média decidiram abandonar – mais uma vez na história do Brasil! – a disputa democrática e partir para um golpe de Estado, esse apoio revelou-se inócuo”.

Neodesenvolvimentismo e neopopulismo remetem para o período do trabalhismo varguista. Ali de fato havia um conflito entre dois setores da burguesia, com o Partido Comunista cumprindo um papel de aliado secundário.

Nos governos Lula e Dilma, o protagonismo político do PT era de outra natureza. Portanto, voltamos a recolocar as questões acima: se Boito está certo, se existia a tal frente e se a burguesia interna era sua força dirigente, qual o papel do PT? Quem ele representava na tal frente?  

Boito considera que a contribuição mais original do seu livro provém “da análise do conflito político como um conflito de classes e de frações de classe”. Dá como exemplo a caracterização que ele faz dos “governos do PT como governos da frente política neodesenvolvimentista sob a hegemonia da grande burguesia interna”. Cabe conferir no livro, portanto, como ele caracteriza o PT do ponto de vista das classes sociais e frações de classe.

O mais interessante, entretanto, é o desdobramento que esta discussão pode ter sobre a estratégia futura da esquerda. Boito acha que há espaço para governos neodesenvolvimentistas, “tanto que os principais países da América Latina trilharam esse caminho nos últimos anos”. Neste mesma linha, poder-se-ia concluir o contrário: a crise de praticamente todos os governos ditos progressistas e de esquerda na América Latina prova que o “espaço” para este tipo de experimento, seja lá que nome dermos a ele, é reduzido.

Mas a questão central é saber se existe ou não a possibilidade, para a classe trabalhadora, de uma aliança estratégica com um setor da grande burguesia. Confiram o livro.

Segue abaixo a íntegra da entrevista citada. 


Fratura em frente neodesenvolvimentista decretou queda de Dilma, avalia Boito Jr

http://www.ihu.unisinos.br/580170-fratura-em-frente-neodesenvolvimentista-decretou-queda-de-dilma-avalia-boito-jr

Passados cerca de dois anos do impeachment de Dilma Rousseff, predominam duas teses sobre a deposição da presidente. A primeira a entende como efeito da retomada do poder pelas elites. A segunda leitura atribui sua queda à intensificação dos conflitos entre os blocos políticos e ideológicos da direita e da esquerda.
Para Armando Boito Jr., professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nenhuma dessas leituras é capaz de apreender os processos que desencadearam uma das maiores crises políticas da história recente do país. No livro Reforma e crise política no Brasil: Os conflitos de classe nos governos do PT, lançado em coedição pelas editoras da Unicamp e da Unesp, o cientista político analisa a ascensão e a queda dos governos petistas como efeito de uma ampla, diversificada e instável aliança que colocou lado a lado diversos segmentos ligados aos trabalhadores e setores do empresariado nacional que não compactuavam com as propostas neoliberais, predominantes no cenário internacional no começo na época em que o PT ascendeu ao poder.
Essa aliança, que levou Lula à presidência em 2003, foi o sustentáculo do programa econômico neodesenvolvimentista, gerador de crescimento econômico e das políticas de redistribuição de renda. Para Boito Jr., a derrocada desse projeto ocorreu à medida que se intensificaram os conflitos e as contradições entre os grupos que integravam a coalizão, tendo como pano de fundo, já no governo Dilma, a desaceleração do crescimento econômico, as manifestações de junho de 2013, além da guinada liberal da política econômica da petista.
Nesse cenário, os setores empresariais que lideravam a aliança mudaram de posição, acatando o ideário e as propostas neoliberais, o que resultou no encerramento do ciclo neodesenvolvimentista e no avanço das reformas neoliberais capitaneadas por Michel Temer. 
Foto: Antonio Scarpinetti. Fonte: Reprodução Agência Brasil
A entrevista é publicada por Jornal da Unicamp, 19-06-2018.
Eis a entrevista.
Por que, na sua opinião, o “neodesenvolvimentismo” de Lula se tornou insustentável?
A crise do impeachment foi o resultado de uma ofensiva restauradora do campo neoliberal ortodoxo num momento de aguçamento das contradições no interior da frente política neodesenvolvimentista que sustentava os governos do PT. Essa frente não se uniu na defesa do governo.
Em toda a América Latina o capital internacional e os Estados Unidos estavam retomando a iniciativa política. Havia uma fração da burguesia brasileira, que denomino “grande burguesia interna”, cujos interesses tinham adquirido primazia na política econômica dos governos do PT em detrimento dos interesses do capital internacional. Essa fração tem conflitos moderados com o capital internacional. Pois bem, parte importante dessa grande burguesia interna afastou-se do governo Dilma. A crise econômica e a propaganda oposicionista por novas reformas neoliberais – trabalhista,previdenciária e outras – atraíram boa parte da burguesia interna. Ela se bandeou para o campo neoliberal ortodoxo, que vocaliza os interesses do capital internacional e que tinha no PSDB o seu representante partidário.
Essa fração burguesa, que nos governos Collor, Itamar e no primeiro governo FHC, tinha apoiado, com ressalvas, o programa neoliberal, afastara-se dele e se aproximara do programa neodesenvolvimentista propagandeado pelo PT desde o final dos anos 1990. A partir de 2003, a burguesia interna seguiu com os governos Lula. Em 2005, durante a “Crise do Mensalão”, a burguesia interna saiu em defesa do governo Lula. Em 2015, seu comportamento foi outro. Convém lembrar que um segmento importante dessa fração burguesa foi colocado fora de combate já no início da crise política. Refiro-me ao resultado da ação da Operação Lava Jato contra as grandes construtoras nacionais.
Porém, outros segmentos dessa mesma fração iniciaram um caminho de volta, reconciliando-se com o neoliberalismo. Ou seja, a burguesia interna realizou um movimento pendular na história política recente do país. No momento, o movimento do pêndulo aponta para a direita.
O senhor falou da burguesia interna. Mas e as demandas e o papel dos movimentos sociais na aliança que sustentou o PT?
O principal conflito no processo político brasileiro nos anos recentes se deu entre, de um lado, a burguesia interna (que depende do capital internacional, mas, ao mesmo tempo, possui conflitos moderados com ele), e, de outro, esse capital internacional e os setores da burguesia brasileira a ele integrados.
No livro, desenvolvo isso com nuanças, dados e explicações. De todo modo, a verdade é que as classes dominadas se dividiram entre os dois campos dirigidos pelas forças burguesas acima citadas: o campo neodesenvolvimentista, dirigido pela grande burguesia interna, e o campo neoliberal ortodoxo, dirigido pelo capital internacional.
Por que isso se passou dessa forma? Porque o movimento popular encontrava-se segmentado e voltado para reivindicações específicas. Não possuía programa político próprio nacionalmente organizado. Isso não significa que as classes populares não tiveram peso na crise política.
Do lado conservador, a classe média – basicamente, sua fração superior (que não faz parte da classe dominante) – teve papel decisivo no golpe parlamentar. Seus movimentos recém-criados, com apoio ativo da mídia, lograram organizar grandes manifestações de apoio à Operação Lava Jato, influenciando a votação do impeachment no Congresso Nacional. Mas essa classe média abastada foi a base de apoio do golpe, não a sua força dirigente. Do lado do campo progressista, os movimentos sindical e popular tiveram papel importante no desencadeamento da crise, mas não defenderam à altura das necessidades o mandato de Dilma Rousseff.
O que isso significa?
sindicalismo cresceu muito entre 2003 e 2013. O número de greves aumentou ano a ano. Em 2003 ocorreram 312 greves. Dez anos depois, foram mais de duas mil greves. As conquistas salariais são claras: enquanto em 2003, apenas 18% dos acordos e das convenções coletivas haviam sido reajustados acima da inflação, em 2013, 95% deles alcançaram esse objetivo.
Era muito mais fácil manter a unidade da frente política neodesenvolvimentista em 2003 que em 2013. Pior. Quando o governo Dilma foi atacado, o sindicalismo não saiu em sua defesa, tendo em vista as reivindicações do movimento sindical que o governo ignorara. As relações políticas entre um e outro não estavam muito boas. O ajuste fiscal de Joaquim Levy agravou esse quadro. Apenas as cúpulas de três centrais sindicais saíram em defesa do governo; os grandes sindicatos ausentaram-se das mobilizações.
No Brasil, o sindicalismo é politicamente fraco. As centrais não exercem seu papel. Os sindicatos de base não dão educação política ao trabalhador. Quem, de fato, se mobilizou em defesa do governo Dilma foram as organizações do movimento popular – MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra], MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto], MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens] e outras. Mas essas organizações, que se apoiam nos trabalhadores da massa marginal, organizam apenas uma parte diminuta desse grande contingente. A resistência ao golpe parlamentar foi frágil.
Qual a marca dos governos petistas? Por que o senhor afirma que eles se diferenciam dos governos do PSDB?
Há uma linha de continuidade entre os governos FHC e os governos Lula e Dilma. Todos eles operam dentro do modelo econômico capitalista neoliberal. Porém, as políticas econômica, externa e social dos governos tucanos e petistas são diferentes.
Os governos de FHC privilegiaram os interesses do capital internacional, tinham uma política externa de submissão aos Estados Unidos, suprimiram direitos e implantaram uma política repressiva e dura contra os movimentos sociais. Basta lembrar a repressão à greve dos petroleiros de maio de 1995 e a criminalização do MST.
A política econômica dos governos liderados pelo PT passou a priorizar os interesses das grandes empresas nacionais. Esses governos adotaram a política externa Sul-Sul, implantaram políticas sociais de combate à pobreza e passaram a reconhecer o direito dos trabalhadores à reivindicação. Porém, Lula e Dilma não romperam com o modelo econômico capitalista neoliberal. Operaram na margem do permitido por esse modelo. Por isso, o reformismo petista foi superficial.
Esse elemento de continuidade levou muitos analistas a sustentarem a tese de que os governos petistas eram mera continuidade dos governos tucanos. Discordo dessa tese e discuto isso no livro. Se o PT tivesse dado continuidade aos governos do PSDB, este último não teria permanecido na oposição e, muito menos, protagonizado um golpe de Estado contra o governo Dilma.
Como o senhor compreende o governo Michel Temer nesse cenário?
Ele é fruto de uma ofensiva política restauradora do campo neoliberal. Nesse sentido, retoma o programa dos governos tucanos da década de 1990 em condições históricas novas.
A política neoliberal tem dois inimigos: os mecanismos de proteção e promoção da economia nacional e os direitos dos trabalhadores. Talvez seja possível dizer que, na década de 1990, os governos neoliberais priorizaram o desmonte do Estado desenvolvimentista, enquanto agora, sob Michel Temer, o neoliberalismo elegeu o desmonte da proteção social como objetivo principal.
O que é o “neopopulismo” dos governos petistas?
Falo em neopopulismo, mas num sentido diferente daquele que é usado pelos liberais e conservadores de vários matizes. Os trabalhadores da massa marginal que, isoladamente, são o segmento social majoritário da população brasileira, têm muita dificuldade de se organizar devido à sua heterogeneidade e ao seu poder de pressão reduzido – encarregados de serviços domésticos, trabalhadores autônomos de baixa qualificação, vendedores ambulantes, camponeses com pouca terra em situação de penúria, subempregados etc.
Essa é a situação em que tanto os partidos quanto o próprio Estado podem fazer uma interpelação de tipo populista. Tomar a iniciativa de favorecer tais trabalhadores e esperar, em retorno, seu apoio político eleitoral. Apenas eleitoral, porque a interpelação populista os mantém politicamente desorganizados. Foi essa a política do PT para os trabalhadores da massa marginal. Os governos do PT atenderam, e isso foi um dos seus méritos, os interesses dessa população – Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, entre outros. O apoio desse contingente aos governos Lula e Dilma não se deve ao fato de Lula ter ludibriado as massas.
De um ponto de vista de esquerda, vale ressaltar que essas massas se mantiveram desorganizadas, como é típico da política populista. Tal apoio eleitoral, mas desorganizado, funciona bem enquanto o voto tiver um peso importante. Porém, quando grande parte da burguesia e também a alta classe média decidiram abandonar – mais uma vez na história do Brasil! – a disputa democrática e partir para um golpe de Estado, esse apoio revelou-se inócuo.
O impeachment de Dilma Rousseff pode ser interpretado como resultado de um conflito de classes?
Pode e deve. Trata-se de conflito distributivo de classe. Não temos uma situação de luta de classes, que coloca em jogo a forma de organização da vida social: um polo lutando para implantar um programa socialista e outro empenhado na manutenção do capitalismo. Esse tipo de polarização não existe atualmente no Brasil. Mas existe um conflito de classes pela redistribuição da riqueza produzida.
Quais são as contribuições mais originais da sua análise?
Caberá ao leitor do meu livro avaliar. De minha parte, penso que o mais original provém da análise do conflito político como um conflito de classes e de frações de classe. Procuro mostrá-lo na economia, mas também evidenciar como ele se manifesta em outras esferas.
A ideologia e as instituições possuem sua dinâmica específica, mas estão também ligadas aos conflitos de classe e de fração. Sem detectar essa ligação, não se vai muito longe. Daria como exemplo a análise que faço, num dos capítulos do livro, da Operação Lava Jato.
Também os governos, eu os caracterizo pela sua natureza de classe. Não me satisfaço com as classificações habituais “governo de direita”, “de esquerda”, “de centro” etc. Isso tudo é muito superficial. Exemplifico com minha caracterização dos governos do PTcomo governos da frente política neodesenvolvimentista sob a hegemonia da grande burguesia interna. Esse enfoque permitiu evidenciar dimensões da atual conjuntura que são ignoradas ou descuradas na maioria das análises disponíveis, que costumam examinar o processo político como um conflito entre correntes de opinião e/ou entre instituições. Procuro demonstrar que ele ignora uma dimensão em boa parte oculta da vida política, que cabe ao analista evidenciar.
Está muito em voga também recorrer à noção de “elite” para explicar o golpe de 2016. Ela é utilizada de modo vago. Amalgama-se burguesia e classe média e ignora-se a presença popular no processo. Em relação às análises que utilizam o conceito de classe social, a maioria delas trabalha com uma divisão simplificada que opõe “o capital” ao “trabalho”, a burguesia aos trabalhadores. Isso não explica os conflitos no topo da sociedade e do próprio Estado.
Minha análise considera a multiplicidade de classes (burguesia, classe média, operariado etc.) e de frações de classe (burguesia interna, capital internacional, o campesinato rico e o campesinato pobre e outras) envolvidas no processo político brasileiro, que é o que o torna muito complexo.
Num mundo onde o capital financeiro circula cada vez mais rapidamente conquistando espaço e fazendo valer seus interesses, há espaço para governos neodesenvolvimentistas?
Sim, existe. Tanto que os principais países da América Latina trilharam esse caminho nos últimos anos.
Bolívia, cujo projeto ainda está de pé, Venezuela e Equador, que estão em crise, aplicaram políticas para ultrapassar o programa neoliberal. Brasil e Argentina, onde o neoliberalismo foi restaurado, aplicaram, durante anos, políticas neodesenvolvimentista sem romper totalmente com o modelo neoliberal.
Se inserirmos a Ásia no campo de observação, o mundo aparecerá mais heterogêneo do que sugerem a mídia e os políticos conservadores. No momento, o neodesenvolvimentismo está derrotado no Brasil. Mas não é possível saber se não poderá voltar em breve. O capital financeiro internacional está muito forte, mas não pode tudo.
O seu livro situa-se no campo do marxismo, hoje minoritário nas ciências políticas brasileiras. De que modo essa abordagem ajuda a compreender o atual momento do Brasil?
Eu utilizo a teoria política marxista, que é sofisticada e ambiciosa, pois é parte do materialismo histórico, o qual abarca a economia, a cultura e a história. Atualmente, na Ciência Política predomina o neoinstitucionalismo, que é um enfoque limitado, mas contribui no estudo das instituições políticas.
Da maneira como utilizo a teoria marxista, ela comporta a incorporação, com retificações, dos aportes de outros campos, inclusive do institucionalismo. O marxismo, como é próprio da prática científica, tem de se desenvolver e se renovar. Porém, o institucionalismo, que é uma teoria de médio alcance, padece de um problema de base, já que separa as instituições políticas da economia e da sociedade. Da perspectiva da teoria marxista, essa separação não se sustenta.
Em que medida a deposição de Dilma Rousseff assemelha-se a processos parecidos em outros países?
Há uma hierarquia de poder econômico, político e militar em escala mundial. O topo é ocupado pelos Estados imperialistas. Exportam capitais, financeiro e produtivo para os países dependentes, controlam fontes de matérias-primas e de energia e promovem a guerra para defender seus interesses.
Recentemente descobriram como utilizar mobilizações populares a seu favor e também lançaram mão, em escala mundial, das campanhas que se dizem contra a corrupção. Aplicam essa política em toda a periferia do sistema. Na América Latina, o imperialismo retomou a ofensiva política, logrando, em harmonia com interesses de algumas classes e frações de classe latinoamericanas, contribuir decisivamente para a deposição ou derrota eleitoral de governos neodesenvolvimentistas e para colocar em crise governos populares do continente.
Em países como a Argentina, onde o partido peronista tem grande representação parlamentar, só puderam chegar ao poder pelo voto. Um impeachment, como no Brasil ou no Paraguai, seria inviável. No Brasil, onde o partido que liderava o governo reformista dependia de uma base parlamentar heterogênea, fisiológica e conservadora, foi possível aplicar a estratégia denominada neogolpismo.
Pode-se dizer que ele é composto, basicamente, por: mobilização de rua com base em denúncia sempre seletiva – ou falsa – de corrupção, erosão da base parlamentar e, por fim, a construção de um processo de impeachment que aplica a lei também de modo seletivo (todos sabem que as denominadas pedaladas fiscais são prática corrente no Brasil, mas só serviram de base para o impeachment de Dilma Rousseff).
O fato é o seguinte: a violação da universalidade da lei significa que o impeachment foi um golpe. Esse golpe foi uma demonstração de força, até porque a resistência a ele, como mostro no último capítulo do meu livro, foi frágil. Mas, por enquanto, as forças que ocuparam o poder não liquidaram a democracia liberal. Elas terão de vencer também pelo voto. Essa é a grande incógnita na conjuntura atual.


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