Este texto é parte de um debate travado, no grupo
eletrônico da Articulação de Esquerda, acerca de algumas
ideias do professor Ricardo Antunes.
Abril de 2012
(...)
Voltando ao texto do Ricardo Antunes: seu objetivo é
compreender por que vem ocorrendo uma relativa desmobilização da sociedade
brasileira e, em particular, dos organismos de representação da classe
trabalhadora.
A questão traz, implícito, o seguinte raciocínio: o
nível e a forma de mobilização existente entre o final dos anos 1970 e o final
dos anos 1980 são paradigmáticos.
Infelizmente, este raciocínio é falso. O normal, o
padrão, o paradigma, não é a luta intensa, a mobilização intensa, a organização
intensa, a politização intensa.
O normal é a relativa desmobilização.
A questão traz implícita, também, uma certa
mitificação sobre o que de fato ocorreu nos anos 1970 e 1980.
Exemplo clássico: é verdade que houve avanços
significativos na luta pela autonomia e liberdade dos sindicatos. Mas é bom
lembrar, sempre é bom lembrar, que o novo sindicalismo que predominou nos anos
1980 não foi o das oposições sindicais, mas sim o sindicalismo tipo ABC, do
qual Lula é o exemplo principal: alguém que virou diretor e virou presidente do
sindicato, a partir de uma diretoria convencional, para não dizer pelega.
Juntando os dois raciocínios: os anos 1980 foram uma
exceção na história do Brasil, na história da esquerda brasileira e na história
do sindicalismo brasileiro, um período no qual setores formados principalmente
na luta sindical foram empurrados para uma ação política.
Nos anos 1990, quando a exceção refluiu, aqueles
setores voltaram para seu leito natural, para seu comportamento normal. Foi
esta esquerda anos 1990 (normal) que chegou ao governo em 2002.
Onde está a diferença entre isto que estou falando e
aquilo que Antunes fala? Poderia resumir a diferença nas aspas. Vejam o que ele
diz: a vitória da “esquerda” no Brasil ocorria quando ela estava mais
fragilizada, menos respaldada nos pólos centrais que lhe davam capilaridade,
como a classe operária industrial, os assalariados médios e os trabalhadores
rurais.
Veja:
quem ganhou as eleições de 2002 foi a esquerda realmente existente. E ganhamos
entre outros motivos porque esta esquerda estava respaldada nos pólos
centrais que lhe davam capilaridade, como a classe operária industrial, os
assalariados médios e os trabalhadores rurais.
Ao usar
aspas na palavra esquerda, ao duvidar do respaldo que o PT tinha em 2002 (e
segue tendo) na classe trabalhadora, Antunes revela que ele trabalha com
conceitos apriorísticos, não com as classes realmente existentes, na luta de
classes realmente existente.
Qual é
o problema deste tipo de análise?
O
problema não está no excesso de adjetivos. O problema está em que ela nos
remete para um beco sem saída.
Pois
uma coisa é dizer que ganhamos as eleições de 2002 num cenário completamente
diferente de 1989, com um PT completamente diferente, com uma classe
trabalhadora completamente diferente, com um cenário internacional e nacional
totalmente diferente.
Outra
coisa é não aceitar, não perceber que, apesar disto tudo, a realidade segue
contraditória.
Se o PT
é o Partido da Ordem, o PSDB é o que mesmo? Se o Brasil
estava desertificado em 2002 e o PT desvertebrado, por qual motivo
contabilizamos alguns progressos na vida da classe trabalhadora, de 2003 até
hoje?
Na
análise, como na realidade, a quantidade se transforma em qualidade. Uma coisa
é listar todos os fenömenos conservadores que atingiram o mundo, o Brasil e o
PT nos anos 1990. Outra coisa é recusar-se a ver o óbvio: que apesar disto
tudo, apesar de todos estes fenômenos, ainda sim conseguimos impedir o
neoliberalismo de ir até o fim, conseguimos impor derrotas eleitorais a eles,
conseguimos reverter parcialmente algumas políticas etc.
Vejam a
síntese que Antunes faz do governo Lula: sua política econômica ampliou a
hegemonia dos capitais financeiros; preservou a estrutura fundiária
concentrada; deu incentivo aos fundos privados de pensão; determinou a cobrança
de impostos aos trabalhadores aposentados, o que significou uma ruptura com
parcelas importantes do sindicalismo dos trabalhadores, especialmente públicos,
que passaram a fazer forte oposição ao governo Lula.
Suponhamos
que isto tenha sido 100% assim. Pergunto: foi só isso?
Antunes
sabe muito bem que não foi só isto. Mas vejamos o que ele diz: A sua
alteração mais significativa, no segundo mandato, foi uma resposta à crise
política aberta com o mensalão, em 2005. Era necessário que o novo governo
ampliasse sua base de sustentação, desgastada junto a amplos setores da classe
trabalhadora organizada. Foi então que ocorreu uma alteração política
importante: o governo ampliou o programa Bolsa-Família, uma política social de
perfil claramente assistencialista, ainda que de grande amplitude, que atinge
mais de 12 milhões de famílias pobres com renda salarial baixa e que por isso
recebiam um complemento salarial. E foi esta política social – assumida como
exemplo pelo Banco Mundial – que ampliou significativamente a base social de
apoio a Lula, em seu segundo mandado. Ela atingia os setores mais pauperizados
e desorganizados da população brasileira, que normalmente dependem das
políticas do Estado para sobreviver.
O
parágrafo anterior está fundamentalmente errado.
O erro
fundamental está no seguinte: depois de 2005, o governo Lula promoveu uma
inflexão na política macroeconômica, reduzindo as concessões ao setor
neoliberal e ampliando as políticas de corte desenvolvimentista.
A
bolsa-família faz parte destas políticas, mas está longe de ter sido a política
mais relevante, nem macroeconomicamente, nem microeconomicamente. O relevante
foi a política de elevação do salário mínimo, com impacto nas aposentadorias,
mais a geração de empregos, mais a formalização.
Os
dados comprovam isto. Mas admitir isto contradiz a tese, tão adorada pelos
esquerdistas e pelos tucanos, segundo a qual a popularidade de Lula provém do
assistencialismo.
Mas
como não dá para negar a realidade, Antunes concede que em comparação ao
governo de FHC, a política de aumento do salário mínimo, ainda que responsável
por um salário vergonhoso e inconcebível para uma economia do porte da
brasileira, significou efetivos ganhos reais em relação ao governo tucano.
Antunes
também reconhece que, em 2007/08, o governo tomou medidas claras no
sentido de incentivar a retomada do crescimento econômico (...) expandindo
fortemente o mercado interno brasileiro.
Mas,
insisto: a quantidade se converte em qualidade. Ao superestimar o papel do
bolsa família (ou seja, daquilo que Antunes chama de assistencialismo) e ao
subestimar o papel do emprego, do salário mínimo e do reajuste nas
aposentadorias, Antunes chega a conclusões políticas equivocadas sobre o
governo Lula.
Uma
destas conclusões, também implícita, é a seguinte: como os pilares da tragédia
brasileira não foram tocadas pelo governo Lula, como a classe trabalhadora está
supostamente em luta contra estes pilares, logo a classe trabalhadora só não se
chocou contra o governo Lula porque as direções sindicais foram cooptadas.
Veja: a
cooptação sindical pelo Estado é a regra, no Brasil, desde os anos 1930. Apesar
disto, em várias conjunturas o movimento sindical cumpriu um papel firme em
defesa da classe trabalhadora. E, em todas as conjunturas, a classe
trabalhadora sofreu mais pela ausência dos sindicatos (mesmo que cooptados) do
que pela presença deles.
Evidente
que devemos lutar por um sindicalismo independente do Estado. Mas atenção:
frente a política sindical neoliberal, a postura hegemônica no governo Lula é
um avanço relativo, não um retrocesso.
Podemos
e devemos dizer que está muito, muito longe, do que defendemos. Mas eu prefiro
um governo que reconhece e repassa verbas para o movimento sindical, do que um
governo que tem como política sistemática asfixiar e destruir o movimento
sindical.
Por fim
um detalhe curioso: Antunes, assim como a Veja, não gosta de que centenas
de ex-sindicalistas passaram a participar, indicados pelo governo, do conselho
de empresas estatais e de ex-estatais, com remunerações polpudas.
Eu acho
que as remunerações polpudas deveriam ser cortadas e são sim um fator de
corrupção pessoal, política e ideológica. Mas não acho que seja um defeito do
governo Lula indicar ex-sindicalistas para cargos importantes. O defeito é o
oposto: ter mantido tantos tucanos, tantos direitistas, tanta gente ligada ao empresariado.
Por
fim: Antunes fala que para a retomada de um sindicalismo de classe e de
esquerda, há um bom caminho a percorrer. Mas talvez seu primeiro desafio seja
criar um pólo sindical, social e político de base que não tenha medo de
oferecer ao país um programa de mudanças profundas, capazes de iniciar a
desmontagem das causas estruturantes da miséria brasileira e de seus mecanismos
de preservação da dominação.
Certamente
temos um bom caminho a percorrer.
Uma
analogia: trata-se de fazer existir, nos dias de hoje, exista um pólo sindical,
social e político que cumpra papel semelhante ao que cumpriu o ABC no final dos
anos 1970.
Mas
para que isto ocorra, o primeiro desafio não é o de ter uma
vanguarda que não tenha medo.
O
primeiro desafio é o de perceber que, como nos anos 1970, uma nova vanguarda
vai surgir das lutas da classe trabalhadora realmente existente. E não da
classe trabalhadora dos nossos sonhos, na conjuntura dos nossos sonhos.
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