Texto publicado na coletânea A esperança é vermelha.
O resultado da eleição de 2010 deu continuidade ao
processo iniciado em janeiro de 2003, quando Lula tomou posse. Trazendo como
novidades importantes a eleição de uma mulher e a derrota de uma oposição
extremamente reacionária, cuja agressividade explica a mobilização mais ou
menos espontânea de militantes e eleitores que, mesmo não simpatizando com o
governo Lula, com PT ou com Dilma, preferiram evitar o risco de um retrocesso.
Na campanha eleitoral, Dilma apresentou-se como a
“continuidade da mudança”. Mas na prática enfatizou-se a continuidade, pouco ou
nada se falando das mudanças. Ocorre que as mudanças já começaram.
Internacionalmente, o governo Dilma atuará num cenário
dominado não apenas pela crise e instabilidade econômica, mas também por cada
vez maior instabilidade política e militar.
Internamente, se reduz a margem de manobra do governo
para melhorar a vida dos pobres, sem tocar nas grandes riquezas. Noutras
palavras: nos marcos da atual estrutura tributária e macroeconômica, não será
mais possível ampliar significativamente os investimentos econômicos e sociais.
Como o cenário internacional é negativo, tudo aponta para a agudização do
conflito redistributivo no país, seja tributário, salarial, seja pela alta nos
preços, pela alta dos juros etc.
Politicamente, isto explica parte do tom radical
assumido pela oposição na campanha eleitoral, e que deve predominar ao longo do
mandato Dilma. E que precisa ser contrabalançado por intensa mobilização social
das camadas populares.
Tendo em vista que José Serra alcançou 44% dos votos,
elegendo ainda 11 governadores, inclusive em São Paulo e Minas Gerais, cabe
perguntar quais as bases de massa da oposição.
Primeiro: a política de melhorar a vida dos pobres,
sem tocar na riqueza dos milionários, reforça o preconceito de uma parcela dos
setores médios contra nós. Pois na prática estes setores perdem, em relação aos
pobres, especialmente em termos de status.
Segundo:
melhorar a vida material dos pobres, sem melhorar em grau equivalente a sua
cultura política, deixa uma parcela dos que melhoraram de vida sujeitos à
influência das igrejas conservadoras e do Vaticano, dos meios de comunicação
monopolistas e da educação tradicional.
Terceiro:
o PT ganhou sua terceira eleição presidencial, mas ao mesmo tempo enfrenta cada
vez mais dificuldades para hegemonizar o processo e enfrenta, ao mesmo tempo,
um antipetismo cada vez mais duro.
A estes
três, agregamos dois outros problemas estratégicos:
Manter
o apoio dos 56% que votaram em Dilma implica em, pelo menos, manter as taxas
atuais de crescimento econômico e distribuição de renda. Devido ao cenário
internacional, isto só será possível caso se adotem medidas urgentes de
proteção da economia nacional.
Finalmente,
os resultados de 2010 mostram um crescimento em relação a 2006, mas uma quase
estagnação em relação a 2002, tanto na eleição majoritária, quanto na eleição
proporcional. Mantida a atual legislação eleitoral, é pouco provável, para não
dizer praticamente impossível, formar uma maioria de esquerda no Congresso
brasileiro. O que coloca em questão a viabilidade da estratégia de transformar
o Brasil pela via eleitoral.
A
direção do PT têm consciência disto tudo, naturalmente com diferentes
interpretações e alternativas. A dúvida é se conseguiremos solucionar estes
problemas estratégicos.
Nos
últimos anos, ocorreu um empobrecimento de nossa elaboração ideológica,
programática e estratégica. Há um descompasso cada vez maior, entre a
complexidade das questões postas diante de nós, no mundo, na América Latina e
no Brasil, vis a vis nossa capacidade de refletir coletivamente sobre estes
assuntos.
Este
empobrecimento intelectual foi acompanhado da terceirização de aspectos
importantes da capacidade dirigente do PT, seja em favor das nossas bancadas
parlamentares, seja em favor dos governos que encabeçamos, seja para a pessoa
de Lula. Cresceu muito a distância entre a influência moral e eleitoral do PT,
vis a vis a capacidade efetiva de direção de nossas instâncias.
Em
terceiro lugar, ocorreu um processo de “normalização” do PT, de nossa
integração ao establishment.
Durante
muitos anos, o PT cumpriu um papel civilizatório na política brasileira. Pouco
a pouco, por diversos motivos, entre os quais o financiamento privado das
campanhas eleitorais, fomos nos adaptando a certos hábitos e costumes da
política brasileira, dos mais ridículos aos mais graves, entre os quais tratar
a eleição como mercado de votos.
Vale
dizer que nossa integração ao establishment não se dá como decorrência
automática de nossa conversão em partido de governo. Aliás, ironicamente, as
vezes nossos governos são mais inovadores e atraentes do que nossas instâncias
partidárias, que têm se transformado em “agências reguladoras” de nossa
participação nos processos eleitorais, burocratizadas, sem vida, controladas
por esquemas cada vez mais tradicionais.
Como
decorrência disto tudo, uma parcela importante da juventude não se identifica
mais com o PT. Se isto não mudar, teremos crescentes dificuldades eleitorais,
pois na próxima eleição e na outra, não adiantará comparar nosso governo com o
passado, pois para os mais jovens, nós também fazemos parte do passado.
Também
como decorrência disto, cresce o espaço para uma terceira via: somados os votos
de Marina, com brancos, nulos e abstenções, temos um resultado superior ao
obtido por Serra.
Outra
dificuldade por nós enfrentada está na relação com os chamados aliados.
Precisamos
de aliados para vencer eleições e para governar. Mas, nas atuais regras do
jogo, a mesma política de alianças que parece cumprir um papel positivo na
nossa vitória nacional, não contribui para um salto no tamanho de nossas
bancadas parlamentares e no número de nossos governos estaduais. Isto, mantidas
as atuais regras do jogo, colabora para impor um teto, um limite de crescimento
ao PT.
Ironicamente,
apesar da ampla política de alianças, o antipetismo cresce entre os aliados,
assim como cresce na sociedade, alimentado por duas fontes aparentemente
contraditórias: de um lado, os que continuam deplorando o radicalismo petista;
de outro lado, os que condenam o pragmatismo.
Resumindo
tudo o que foi dito até agora: com a eleição de Dilma e durante o seu mandato
devem se acentuar as contradições que atravessaram a política brasileira nos
últimos oito anos.
Terá
continuidade a disputa entre neoliberais e antineoliberais. O lobby em
favor de Palocci, do ajuste fiscal e da alta de juros, para não falar do que
ocorre no G20, na Europa e nos EUA, mostram que o neoliberalismo está muito
longe de ter sido derrotado, no Brasil e fora dele.
Continua,
também, a disputa entre desenvolvimentismo conservador e desenvolvimentismo
democrático, aquele no qual o crescimento é combinado com mudanças
progressistas na distribuição de poder, renda e riqueza.
Numa escala
mais reduzida, terá prosseguimento também a disputa entre capitalismo e
socialismo, sendo que parcela hegemônica dos socialistas brasileiros voltou a
ser o que foi em grande parte do século XX: ala esquerda do desenvolvimentismo.
Neste
sentido, a disputa PT versus PSDB expressa, nos tempos modernos, a polarização
que marcou toda a história brasileira, entre duas vias de desenvolvimento: a
conservadora (crescimento sem distribuição) e a democrática (crescimento com
distribuição). O fato de expressar uma característica estrutural da sociedade
brasileira não implica que esta polarização seja inevitável, que ela não possa
ser desfeita ou, ainda, que ela não possa comportar baixos teores
programáticos.
Trabalham
contra a polarização PT versus PSDB : os setores da ultraesquerda que não
enxergam diferenças entre petistas e tucanos e buscam, portanto, construir uma
“verdadeira alternativa” ; a candidata Marina Silva e seus apoiadores “verdes”,
que buscam construir uma terceira via competitiva em 2014 ; setores da
oposição, que defendem construir um discurso oposicionista de novo tipo;
setores da coligação que apoiou Dilma, que trabalham para construir uma
candidatura presidencial não petista em 2014 ; setores do PT, que defendem um
acordo com setores da oposição, supostamente para isolar os fundamentalistas de
direita. Até o momento, contudo, a realidade tem pesado mais do que o desejo
dos setores acima citados.
A crise
internacional será prolongada e vai se aprofundar, crescendo o número dos que
falam em guerra como uma saída.
O
compromisso de “seguir mudando” exigirá alocar recursos compatíveis. O Estado
brasileiro não dispõe de recursos suficientes para manter e ampliar o volume de
investimentos necessários, seja para manter altas taxas de crescimento, seja
para ampliar as políticas sociais. O conflito distributivo vai se ampliar. Uma
reforma tributária (regressiva ou progressiva) será inevitável. A pressão pelo
ajuste fiscal é a resposta da direita a este dilema, resposta que possui pontos
de apoio internos à coligação governista.
A
dinâmica reacionária de setores médios e ricos imporá polarizações. Como sempre
dissemos, “a burguesia não nos faltará”. Contra os ingênuos e os conciliadores,
fala mais alto a atitude agressiva da direita, que reage a um governo moderado
e conciliador como se estivesse diante de um governo socialista e
revolucionário.
Por
outro lado, a luta por melhorias sociais também produzirá deslocamentos. As
classes trabalhadoras já demonstraram, ao longo destes quase oito anos, que
sabem aproveitar o momento favorável da economia para ampliar seus ganhos. Esta
dinâmica de lutas sociais terá prosseguimento no próximo período, estimulando
também um quadro de polarização entre dois projetos de país.
Por
isto, nosso movimento estratégico exige derrotar efetivamente a oposição,
reduzindo a sua base de massa e eliminando duas de suas fontes de poder : o
financiamento privado das campanhas eleitorais e o monopólio da comunicação.
Para
derrotar a oposição neste sentido, não apenas eleitoral, mas também político-ideológico,
é preciso abandonar as ilusões administrativistas e valorizar o papel
estratégico do Partido: o de mudar a correlação de forças, para conquistar o
poder. Cabe ao Partido colocar na sua agenda a luta pela reforma política, pela
quebra do monopólio da comunicação, pela ampliação e mudança qualitativa nas
políticas sociais. Assim como enfrentando os temas da Defesa, dos Direitos
Humanos e da Justiça.
Assim
como cabe ao Partido, num plano tático, desmascarar as várias caras da oposição
(da reacionária até a supostamente light de Aécio) e conduzir a oposição
nos estados e municípios por ela governados, preparando desde já as eleições de
2012.
Cabe ao
Partido, principalmente, voltar a fazer trabalho de massa, de disputa política
permanente, inclusive ideológica. Hegemonia exige disputa cotidiana e
incansável. Não se trava apenas nos períodos eleitorais. E não se trava apenas,
nem mesmo principalmente, a partir do governo. Um dos problemas do governo Lula
foi que setores do Partido se acomodaram e aceitaram terceirizar, para o
presidente, um papel que cabe ao Partido : o do diálogo com as grandes massas
populares. Papel que o Partido só executará se tiver quadros capacitados e um
processo permanente de formação destes quadros.
Nossa
vitória se deve ao apoio das camadas populares. E são elas que devem continuar
sendo a prioridade do nosso governo federal. Neste sentido, o PT não pode
incorporar o discurso de que somos um “país de classe média” e da “igualdade de
oportunidades”, sem perceber que o país de onde se extraíram estes dois
paradigmas é o Estados Unidos, onde a esquerda foi sufocada, entre outras
razões, pelo estabelecimento de uma visão de mundo que deixa em segundo ou
terceiro plano os valores coletivos e sociais.
Uma das
maiores ameaças ao sucesso do nosso governo e à sua continuidade em 2014 está
na ilusão de que se pode seguir avançando indefinidamente sem enfrentar temas
cruciais como a progressividade tributária, o imposto sobre grandes fortunas e
o monopólio/oligopólio da comunicação. E, principalmente, sem que o PT recupere
a prática da luta político-ideológica permanente, ininterrupta e militante.
Na
campanha eleitoral, estes temas ou não foram tratados, ou não foram tratados
adequadamente. E não adianta jogar a culpa na oposição de direita. Pois ficou
evidente, no primeiro debate do segundo turno, que, quando quisemos,
conseguimos pautar a campanha. A verdade é que nossa campanha acomodou-se, em
parte por influência de setores internos que preferiam ganhar sem derrotar, que
não aceitavam facilmente a ideia de comparar governos, de sepultar uma vez mais
a herança maldita.
O que
ocorreu com nosso programa de governo, tanto no primeiro quanto no segundo
turno, é uma expressão desta acomodação. No primeiro turno, tivemos o episódio
patético e constrangedor ocorrido quando do registro da candidatura Dilma. Como
todos sabem, agora é obrigatório que as candidaturas apresentem seu programa,
quando do registro na justiça eleitoral. Para o PT esta obrigação legal nunca
foi necessária: desde 1982 sempre apresentamos nossos programas de governo.
Ocorre que a candidatura Dilma não é uma candidatura apenas do PT, mas sim de
uma ampla coligação de partidos. Por isto, a coordenação da campanha decidiu
que seria apresentado um texto-síntese. Mas, por razões que nunca foram
totalmente esclarecidas, esta síntese não foi redigida e, no momento do
registro da candidatura Dilma, um advogado contratado pelo setor jurídico da
campanha registrou o programa do Partido e não a síntese que deveria ter sido
elaborada pela campanha. Quando a confusão foi descoberta, a emenda conseguiu
ser pior do que o soneto : o legítimo programa do PT, que não deveria ter sido
inscrito, foi achincalhado publicamente ; e um novo texto foi inscrito, a
partir de um “copidesque” do programa do PT, um resumo que chegou ao absurdo de
suprimir a defesa do imposto sobre grandes fortunas. E foi com este texto que
enfrentamos o primeiro turno, pois ao que tudo indica predominou na coordenação
de campanha a ideia de que o programa era desnecessário e causaria polêmica.
Que, como sabemos, deu-se por vários motivos, inclusive pela ausência de um
programa oficial.
Quando
iniciamos o segundo turno, estava claro que haveria um embate programático. E,
novamente, a expectativa era de que o programa seria enfim publicado, inclusive
os programas setoriais. Mas foi só no final do segundo turno que se publicou,
não o programa, mas um panfleto minimalista com 13 “compromissos
programáticos”. Sobre o conjunto destes acontecimentos, temos a obrigação de
dizer que consideramos uma vergonha, não há outra palavra, que nossa
coligação não tenha publicado um programa de governo que mereça este nome.
Registre-se que tampouco a candidatura Serra apresentou programa. Por outro
lado, é lamentável a influência religiosa sobre nossa campanha. É revelador que
depois de anos falando de “republicanismo” e “revolução democrática”, setores
do nosso Partido não tenham conseguido sustentar posições laicas e tenhamos
tido que buscar o aval de bispos, padres e pastores mais progressistas, para
não falar das invocações divinas. É igualmente revelador que alguns dirigentes
partidários tenham encampado críticas a bandeiras feministas e humanistas,
mostrando que certo reacionarismo não é exclusivo das fileiras da oposição.
Para não falar na atitude temerosa com que se abordou o tema da redução da
jornada de trabalho, mostrando o quão profunda é a hegemonia da economia
política do Capital sobre os setores desenvolvimentistas da nossa coligação e
do próprio PT. Novamente, o extremado reacionarismo da candidatura Serra não
pode ser apresentado como álibi.
No
fundo destes erros e vacilações, está uma incompreensão do que significa
disputar hegemonia, como se fazê-lo implicasse em demarcar menos, em debater
menos, em polarizar menos. Quando se trata exatamente do contrário disto. A
disputa de hegemonia exige fazer, em sentido e conteúdo oposto, tudo aquilo que
as classes dominantes fazem contra nós todo santo dia: guerra de posição.
É
preciso reconhecer, aliás: diferentemente de 2006, a direita, apesar da derrota
eleitoral, não saiu desmoralizada da campanha. No primeiro turno, enquanto do
nosso lado muitas vezes faltou emoção e mesmo campanha no antigo sentido da
palavra, do lado deles se constituiu um “núcleo duro” reacionário, que se projetará
pelos próximos anos. Nós ganhamos na defensiva; eles perderam com discurso de
vitoriosos.
Lembramos
que foi vitoriosa, no Congresso do PT, a política de construir um amplo leque
de aliados já no primeiro turno, estabelecendo uma polarização eleitoral de
tipo plebiscitário. Embora não fosse explicitada, havia a intenção de liquidar
a fatura já no primeiro turno.
O leque
de aliados foi amplo, incluiu o PMDB, ampliou o tempo de TV e vitaminou a
candidatura presidencial. Mas não impediu a existência de uma “terceira via”
eleitoral (a candidatura Marina), tampouco garantiu a vitória no primeiro
turno. Apesar disso, não se pode dizer que a política de alianças tenha sido
eleitoralmente prejudicial na disputa presidencial. Até porque os erros
cometidos na condução da campanha tiveram origem no próprio PT e não se devem a
pressões de aliados – parte desses erros, aliás, deve ser creditada à
influência ideológica do inimigo sobre integrantes da nossa própria coordenação
de campanha.
O mesmo
não vale para as eleições estaduais. O que ficou mais uma vez claro, nesta
eleição, é que a política de alianças nacional significa uma barreira objetiva
para o crescimento do PT nas eleições para governos estaduais.
Além
das alianças eleitorais, determinadas alianças sociais também não passaram pelo
teste das urnas. Depois de dois mandatos em que o agronegócio foi tratado como
aliado, colhemos uma derrota naqueles estados onde o agronegócio é hegemônico!
O
número de governadores eleitos pelo partido é baixo, quando se leva em conta o
fato de que será iniciado nosso terceiro mandato presidencial consecutivo!
Sofremos uma derrota muito grave no Pará, desconstruímos as alternativas
petistas no Piauí. Nossa vitória no Acre está maculada pela votação obtida pela
candidatura Serra. Sofremos uma derrota gravíssima em Minas Gerais, como
resultado da política pró-Aécio de Pimentel e do aliancismo pró-PMDB. O apoio
de setores do PT garantiu a vitória da oligarquia Sarney no Maranhão, o que é
uma vergonha para nossa história. Em São Paulo, não fomos ao segundo turno em
certa medida devido à política implementada por Lula, que defendia Ciro Gomes
como candidato, nos impondo uma perda de tempo que custou caro na reta final.
Precisamos
de alianças para vencer, para governar e para transformar o país. O governo
Dilma, como o governo Lula, será um governo de centro-esquerda com aliados de
direita. Mas o PT é um partido de esquerda e deve saber combinar o apoio ao
governo com a disputa interna e externa pelos rumos deste mesmo governo.
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