Texto
publicado na coletânea A esperança é vermelha.
A história do Brasil é marcada por três grandes
traços: dependência externa, desigualdade social e democracia restrita.
Para as classes dominantes, limitar a democracia
(inclusive com ditaduras) foi condição sine qua non para que o Brasil
pudesse crescer tão rápido, ampliando a desigualdade social.
Pois se houvesse democracia ampliada, poderia haver
crescimento com redução da desigualdade, algo que incomoda as classes
dominantes.
Uma das causas da vitória de Lula, na eleição
presidencial de 2002, é exatamente esta: uma pequena, mas significativa,
ampliação das liberdades democráticas, ocorrida desde os estertores da ditadura
militar, fez com que as classes trabalhadoras brasileiras tivessem a chance de
escolher candidaturas e partidos identificados com seus interesses imediatos e
históricos.
Ao lado deste acúmulo de forças por parte da esquerda,
tivemos outra causa, muito mais importante: a desmoralização do neoliberalismo
tupiniquim e do seu impulsionador-mor, o governo do socialdemocrata Fernando
Henrique Cardoso.
Observando historicamente: de 1946 até 1964, apesar
das restrições às liberdades democráticas, foi crescendo o apoio popular às
esquerdas. O golpe militar de 1964 deteve este processo.
De 1974 até 2002, primeiro na luta contra a ditadura,
depois contra a transição conservadora, depois contra o neoliberalismo dos dois
Fernandos (Collor e Cardoso), a esquerda manteve e ampliou seus espaços
políticos, até eleger o presidente da República.
Considerando que só em 1989 foram restituídas as
eleições diretas para presidente, podemos dizer que agora temos 22 anos de
democracia eleitoral ininterrupta; mais do que tivemos de 1946 até 1964.
Trata-se do mais longo período de democracia eleitoral
ininterrupta na história do Brasil. Em parte graças a isso, elegemos e
reelegemos Lula, assim como elegemos Dilma.
Porém,
o candidato neoliberal teve 44% dos votos na última eleição. E não existe uma
maioria de esquerda, nem mesmo de centro-esquerda, no Congresso Nacional.
Apesar dos partidos da base de sustentação do governo Dilma serem a maioria do
Congresso Nacional, a maioria da casa é programaticamente de centro-direita.
Além
disso, a maioria dos governos estaduais posiciona-se do centro para a direita.
E o mesmo pode ser dito dos deputados estaduais, vereadores, prefeitos, de
ambos os gêneros.
Não
apenas do ponto de vista programático, mas também do ponto de vista social, as
camadas populares, os negros, os pobres, as mulheres estão subrrepresentados
nos espaços de poder no país.
A
super-representação das elites conduz setores importantes da esquerda
brasileira a uma armadilha: para obter ou manter nossa representação
institucional, fazemos alianças com partidos de centro e de direita, com as
decorrentes concessões políticas e programáticas. O que pode levar a esquerda a
manter os espaços conquistados, mas sem garantia de ampliação, nem de aplicação
de políticas de transformação estrutural. Assim como pode conduzir, no médio
prazo, até mesmo à perda daqueles espaços e, mais importante ainda, pode nos
fazer perder a condição de esquerda.
Uma
pergunta que precisamos responder é: por qual motivo a ampliação das liberdades
democráticas – que inclui desde a eleição para todos os postos executivos e
legislativos, os movimentos político-sociais como as Diretas Já e o Fora
Collor, a adoção de mecanismos de participação popular e controle social do
Estado, assim como a auto-organização das classes trabalhadoras – ainda não foi
capaz de fazer com que a maioria social se tornasse também maioria política nas
instituições do poder?
A
resposta está num conjunto de fatores, dos quais cito quatro: 1) o
prolongamento do refluxo das lutas sociais, que impacta diretamente nas
organizações sociais; 2) o sistema político eleitoral, que não prevê
proporcionalidade na composição do Congresso Nacional e estabelece o
financiamento privado das campanhas eleitorais; 3) a hegemonia cultural das
classes dominantes; 4) o progressivo esgotamento da criatividade petista.
A
hegemonia cultural das classes dominantes tem uma importância óbvia. Oito anos
e seis meses com presidentes petistas resultaram em avanços materiais, em
termos de emprego, salário, crescimento da renda, acesso a serviços públicos
etc.
Mas a cultura política do povo não melhorou tanto
quanto sua vida material (que, por sua vez, não melhorou o quanto se faz
necessário).
A cultura política melhorou, mas melhorou pouco,
basicamente porque não foram tocados os principais aparatos de formação de opinião
pública, que continuam sendo monopolizados pelos setores conservadores: os
meios de comunicação de massa e a indústria cultural em geral; as escolas (que
mantiveram seus currículos e sua abordagem essencial); e as igrejas, que no
geral se inclinaram ideologicamente à direita, seja em favor do “sucesso
individual” evangélico, seja em favor do conservadorismo católico.
Quanto ao progressivo esgotamento da criatividade
petista, ele possui causas muito variadas, impossíveis de detalhar aqui. Mas o
fenômeno pode ser descrito de maneira muito simples: o PT foi, nos anos 1980,
um ponto fora da curva no sistema político brasileiro. E graças a isto, graças
a um comportamento muitas vezes atacado como radical, sectário ou excêntrico,
elevamos o nível dos desejos, das aspirações, do aceitável.
Mas, ao longo dos anos 1990, parcelas importantes do
PT e dos setores políticos e sociais que nucleamos mudaram de atitude. Numa
palavra: começaram a fazer todo o esforço para “normalizar” o Partido,
adaptando-nos, acomodando-nos aos usos e costumes da política brasileira.
Isto pode ter sido taticamente útil, mas
estrategicamente foi e é negativo, seja para o PT, seja para sociedade
brasileira, pois como já dissemos o radicalismo petista cumpria um papel
inestimável: convenciam pouco a pouco a maioria do povo brasileiro que
determinadas heranças, hábitos, costumes, práticas, eram inaceitáveis e
precisavam mudar desde a raiz.
Um dos subprodutos desta perda de criatividade que
acometeu nosso Partido é o empobrecimento de nossa reflexão sobre o mundo, o
continente e o Brasil. Nossa prática anda mais avançada que nossa reflexão.
Basta dizer que, surgido da crítica pela esquerda aos limites do
desenvolvimentismo, hoje o PT abraçou o desenvolvimentismo sem perceber que as
vezes é preciso sim diferenciar a cor dos gatos.
A verdade é que, hoje, nos falta uma teoria petista
que sirva de guia para o que estamos fazendo. Em certo sentido, mas apenas em
certo sentido, o que estamos tentando fazer na América Latina hoje remete ao
que se tentou fazer durante o período da Unidade Popular no Chile dos anos
1970.
Mas não
dispomos de um desenho estratégico que norteie a ação concreta dos partidos,
movimentos e governos progressistas e de esquerda.
Por
exemplo, para permanecer no tema desta palestra: no atual cenário
internacional, vamos precisar de forças armadas mais fortes e mais eficientes.
Se não
combinarmos esta necessidade, com uma doutrina de Defesa de novo tipo, com um
efetivo controle social sobre o Estado, com a defesa dos direitos humanos, com
um forte controle civil sobre o aparato militar, com um implacável ajuste de
contas com os crimes cometidos durante a ditadura (1964/1985), estaremos
fortalecendo um aparato sem controle, estaremos fortalecendo um Estado que ao
fim e ao cabo estará a serviço de nossos inimigos, dos inimigos da soberania,
da democracia e da igualdade.
Síntese da palestra feita no
dia 2 de julho de 2011, no Rio de Janeiro, numa mesa que debateu “Estado, democracia e
participação popular”
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