Texto publicado na coletânea A esperança é vermelha.
1) Vivemos numa
sociedade dividida em classes sociais em luta umas contra as outras.
2) A luta de classes assume diferentes conteúdos (ou
seja, a luta se dá por objetivos os mais diversos).
3) Os conteúdos básicos são três: econômico, político
e ideológico.
4) Ou, se quisermos detalhar um pouco mais: econômico,
econômico-político, político, militar, ideológico.
5) Não existem barreiras intransponíveis, estanques,
entre um conteúdo e outro; não há sequências obrigatórias (do econômico para o
político para o militar).
6) Exemplo: os camponeses podem fazer luta militar
para defender seus interesses econômicos, sem se propor a tomada do poder e
mesmo estando sob hegemonia ideológica conservadora. Piquetes e greves por
aumento salarial podem adotar mecanismos paramilitares,
7) Na luta, as classes criam organizações
correspondentes a estes conteúdos.
8) No caso da classe trabalhadora, as organizações
básicas são a sindical, a partidária, o exército popular, a imprensa
revolucionária.
9) Em tese, há uma especialização, ou seja, um vínculo
entre tipo de organização e conteúdo da luta desenvolvida. Exemplo:
sindicato/luta econômica, partido/luta política.
10) Mas tampouco há barreiras instransponíveis,
estanques, entre uma forma e outra: na Espanha de 1936/1939, sindicatos
participaram da luta armada.
11) Não há barreiras intransponíveis, nem entre os
conteúdos, nem entre as tarefas das organizações, porque uma coisa é falarmos
de “tipos ideais “ (o partido e o sindicato “em tese”, “abstratos”) e outra
coisa é analisarmos a realidade: a luta de classes, a classe trabalhadora, suas
ações e suas organizações, num país e numa época histórica específica.
12) Quando observamos o tema deste ponto de vista,
histórico, concreto, percebemos que a chave da questão está na luta entre as
classes. Mais precisamente: no grau de influência que a burguesia e a pequena
burguesia têm sobre os trabalhadores; no grau de independência que a classe
trabalhadora tem frente a burguesia e frente à pequena burguesia.
13)
Este par (influência/independência) nunca é absoluto. Enquanto a burguesia for
classe dominante, ela influenciará setores da classe trabalhadora. E, mesmo
depois que a burguesia não for mais classe dominante, mas enquanto existirem
relações capitalistas de produção, setores da classe trabalhadora estarão sob
influência da burguesia. Noutras palavras: dentro da classe trabalhadora,
haverá desde aqueles que pensam 99% como a burguesia quer que pensem, até
aqueles que pensam 99% de acordo com os interesses históricos da classe
trabalhadora.
14) A
influência da burguesia não é absoluta, a independência da classe trabalhadora
não é absoluta. Enquanto houver luta de classes, haverá relação e influência
mútuas.
15)
Além da influência da burguesia, temos também a influência da pequena
burguesia. Esta influência vem através de três caminhos: a) através da
influência direta da burguesia, que apresenta a perspectiva de ascensão social
(pequeno-aburguesamento) como uma válvula de escape para os trabalhadores mais
conscientes e combativos; b) através da influência direta da pequena burguesia,
que é vista por setores da classe trabalhadora como o horizonte possível de
ascensão social; c) através da influência daqueles setores da
“intelectualidade”, cujas raízes sociais, modo de vida e posicionamentos são
pequeno-burguesas.
16)
Como resultado desta influência de outras classes, existem na classe
trabalhadora diferentes níveis de independência de classe, resultando em
diferentes níveis de consciência e de militância. Temos desde o trabalhador “em
si”, com um nível de consciência individual (que vai daquele que é explorado,
mas aceita isto como um dado inamovível da realidade, até aquele que sabe que é
explorado, mas não se sente parte de um grupo e busca caminhos individuais para
enfrentar a situação); passando pelo trabalhador que tem consciência
econômico-sindical (que vai daquele que é explorado, considera que é possível
por limites na exploração e busca amparo na categoria, até o que busca amparo
na classe como um todo; ou seja, do “militante de uma categoria” até o
“militante classista” – que noutros tempos chamávamos de “militante cutista”);
passando ainda pelo trabalhador que tem consciência político-sindical (que vota
ou faz campanha para partidos e candidatos que defendem seus interesses);
chegando enfim ao trabalhador que têm consciência político-revolucionária
(ou seja, que tem consciência dos interesses históricos da classe trabalhadora,
que busca se organizar com outros iguais a ele, para assim ganhar o conjunto da
classe para os mesmos interesses históricos). Este tipo de militante já
compreendeu a diferença entre “melhorar a vida dos integrantes da classe
trabalhadora” e “emancipar a classe trabalhadora”.
17) Os termos “vanguarda”, “massas”, “quadros”,
“militantes” derivam do raciocínio acima.
18) Antes de prosseguir, um alerta: esta diferenciação
(individual-passivo, individual-ativo, econômico-sindical, político-sindical,
político-revolucionário) também não é estanque, não existe uma sequência e nada
é irreversível. Nos períodos revolucionários, por exemplo, milhares de pessoas
antes inertes politicamente aderem aos processos revolucionários. Aliás, os
processos são revolucionários exatamente por isto. Se a adesão fosse gradual,
lenta, os processos seriam reformistas. Segundo a mesma lógica, nos momentos de
acirramento da luta de classes, as organizações básicas da classe são
empurradas a adotar posturas mais avançadas do que o tradicional. Por exemplo:
sindicatos que participam de tomadas de fábricas, partidos eleitorais que
debatem a tomada do poder etc.
19) Regressando: quando falamos de “quadros”,
“militantes”, “massas”, estamos dando nome aos diferentes níveis de consciência
e engajamento das pessoas. E como este engajamento se dá num contexto concreto,
histórico, determinado, não existem “quadros” em geral, não existem
“militantes” em geral, não existem “massas” em geral. É sempre necessário dizer
do que, exatamente, estamos falando.
20) Por exemplo: uma pessoa pode ser quadro, militante
e massa ao mesmo tempo. Pensemos num diretor de um sindicato no interior de um
estado do Brasil. Frente aos trabalhadores da categoria dele, na cidade onde
ele atua, este diretor sindical é muito provavelmente “o quadro” (ou seja,
aquele que assume tarefas dirigentes, que dá a orientação geral). Mas do ponto
de vista da luta sindical nacional ou do ponto de vista da luta
político-eleitoral, ele muito provavelmente é um “militante” de base, ou seja,
é visto como aquele que pede e recebe orientações.
21) Cabe lembrar, também, que as pessoas mudam de
“papel” ao longo da vida. Algumas de massa se tornam quadros dirigentes
partidários de âmbito nacional. Outras já foram direção nacional e vão se
tornando militantes e assim por diante.
22)
Feitas estas considerações todas, o que podemos dizer sobre o debate acerca do
PT e da AE?
23)
Primeiro: nós queremos que o PT seja a vanguarda da classe trabalhadora na luta
pelo socialismo. Ou seja, queremos que o PT organize e lidere aquela parcela da
classe que tem consciência e atua para alcançar o objetivo histórico da classe
trabalhadora. Sabemos que esta parcela da classe se divide em vários partidos
(PT, PSTU, PSOL, PCdoB, PCB, PCO, Consulta etc.), portanto o mais preciso é
dizer que queremos que o PT lidere a vanguarda da classe trabalhadora na luta
pelo socialismo.
24)
Segundo: para liderar a vanguarda da classe, é preciso liderar a classe. Ou
seja: o PT só hegemonizou uma parte da vanguarda (PCdoB etc.) e se tornou a
referência (ainda que negativa) dos demais setores da vanguarda (esquerdistas),
porque ganhou maior influência sobre o conjunto da classe. Aliás, nosso
objetivo de fato é liderar a classe. Liderar a vanguarda da classe é, ao mesmo
tempo, um meio (a unidade da esquerda ajuda a dirigir a classe) e uma
decorrência (liderar a classe consolida a liderança dentre os vários grupos que
compõem a vanguarda da classe).
25)
Para liderar a classe, a vanguarda da classe precisa ter uma estrutura de
quadros, uma rede de militantes e uma influência de massas. Existem partidos
que têm tudo isto; existem outros que não têm quase nada disto; e existem
partidos que têm um pouco de cada coisa, mas não exatamente na proporção
adequada.
26) Por
exemplo, o PT: hoje nós temos muita influência de massas, mas não temos uma
rede de militantes e uma estrutura de quadros correspondente a esta influência
de massas. O PCdoB, num certo sentido, tem uma estrutura de quadros e uma rede
de militantes proporcionalmente mais eficaz que a nossa (e é mais eficaz,
porque eles adotam métodos organizativos mais eficientes, pragmaticamente
falando).
27)
Portanto, vanguarda, quadros, militantes, massa, são parte de uma equação
única. A questão não está em escolher uma coisa ou outra. O tema está em
combinar adequadamente estes distintos componentes.
28)
Qual o problema surgido no PT, nos anos 1990 e que prosseguiu agora? Há uma
desproporção crescente entre nossa influência de massas versus nossa
estrutura de militantes e de quadros. Esta desproporção resulta de várias
opções feitas pelo Partido: especialização crescente na esfera
eleitoral-institucional, secundarização crescente da tarefa de organizar
diretamente os movimentos sociais, abandono do trabalho de formação política
etc.
29) E
há um agravante: os mecanismos de filiação adotados pelo Partido estão
incluindo, no PT, pessoas que são “massa”, pessoas que não são militantes. O
normal e adequado seria que o Partido buscasse selecionar, na “massa” de
eleitores, de apoiadores, de simpatizantes, aqueles que têm consciência e
disposição de engajamento para converter-se em militantes. Mas não é isto que
ocorre. A imensa maioria dos filiados é apenas isto: filiados. Não são
militantes. Poderiam ser, muitos têm o potencial para ser transformados em militantes.
Mas o Partido não lhes dá os meios de informar-se, de educar-se, de
preparar-se. O que têm relação, também, com a disputa de poder dentro do
próprio Partido: o crescente “cretinismo parlamentar” exige bases eleitorais e
não militância consciente.
30)
Tragamos agora a discussão para a AE. Nós somos uma tendência de um Partido.
Detalhe: de um partido que aceita que suas tendências atuem, enquanto
tendências, nos movimentos sociais.
31)
Para liderar o PT, nós precisamos hegemonizar outras tendências. E também
precisamos ter uma estrutura de quadros, uma rede de militantes e uma
influência de massas. Mas cuidado: se não formos muito cuidadosos, poderemos
pensar e agir como se fôssemos um partido dentro do Partido. E nós não somos
isto. Nós somos uma tendência dentro de um Partido.
32) A
principal diferença prática entre uma coisa e outra está no seguinte: nós
recrutamos e organizamos petistas. E como o PT hoje está filiando “massa”
(eleitores), nós tomamos o cuidado de recrutar e organizar não os “petistas em
geral”, mas sim recrutar os “militantes petistas”.
33)
Fazemos diretamente trabalho de massa? Sim. Disputamos eleições, fazemos
trabalho sindical, na juventude, nas mulheres, entre os negros, LGBTs, PD,
movimentos camponeses, setores populares em geral. Mas fazemos isto na condição
de uma tendência petista, cujas diretrizes são decididas por militantes da
tendência, que são recrutados entre os militantes do PT.
34)
Portanto, deste ponto de vista, a AE é diferente do PT. A AE é uma tendência de
militantes, que desenvolve uma política de massas, enquanto tendência petista,
para dirigir o PT. Ou seja: quando desenvolvemos trabalho de massas, nosso
principal objetivo é criar a musculatura necessária para disputar o PT. O
trabalho de massas nosso não é um fim em si, não é o objetivo final de
nossa atuação. Pois não queremos dirigir a classe trabalhadora enquanto AE; nós
queremos ganhar o PT para que o PT dirija a classe trabalhadora para a política
que defendemos.
35) Já
o PT é “um partido de massas”, no bom e no mau sentido da palavra. No bom,
porque tem influência de massas e organiza o movimento de massas. No mau,
porque ele inclui entre os seus filiados pessoas que não são militantes, sem
adotar medidas que os transformem em militantes.
36) Por
fim: nada disto tem relação direta com números. A AE tem potencial para ter
dezenas de milhares de militantes. Mas hoje, em alguns locais do país, um
trabalho com centenas de pessoas poderia ser considerado “de massas”. Hoje, o
PT influencia milhões. Para que algum dia a AE possa influenciar milhões, é
preciso que ganhemos a direção do PT, e nossa influência se fará sentir através
da direção que dermos ao PT. Em todo caso, não se trata de números, mas sim dos
diferentes níveis de consciência e engajamento das pessoas.
Texto elaborado no início de
agosto de 2011,
para debate entre militantes
da Articulação de Esquerda
Nenhum comentário:
Postar um comentário