sábado, 22 de abril de 2017

Esgotamento e alienação

A revista Espaço Acadêmico pediu aos autores que recadastrassem seus textos antigos, para evitar que se tornassem inacessíveis. Eis aqui um dos textos achados, de 2006.

http://www.espacoacademico.com.br/064/64esp_pomar.htm

O jornal Brasil de Fato publicou, há várias semanas, uma entrevista com o advogado Ricardo Gebrim, integrante da coordenação nacional da chamada Consulta Popular.

A entrevista, feita por Nilton Viana e publicada sob o título "O esgotamento da luta eleitoral", teve o claro propósito de apresentar de maneira didática o ponto de vista da Consulta Popular sobre o processo eleitoral de 2006, que é distinta da posição adotada por César Benjamin, um dos fundadores e maiores propagandistas da Consulta, hoje candidato a vice-presidente da República na chapa de Heloísa Helena.

Neste sentido, a entrevista inteira vale por uma confissão: a luta eleitoral não se esgotou, tanto é que segue motivando debates acalorados, inclusive entre aqueles que aparentemente compartilham de propósitos estratégicos ou programáticos ou teóricos comuns.

Vejamos no detalhe as opiniões desenvolvidas por Ricardo Gebrim, apresentado por Brasil de Fato como integrante da coordenação nacional do Movimento Consulta Popular, presidente do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE Livre da PUC) em 1980, militante da Solidariedade com a Revolução Nicaragüense e, entre 1988 e 1991, assessor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Perguntado sobre o que é o Movimento Consulta Popular, Gebrim responde que a Consulta "construiu um campo político unificado por um método de ação, pela compreensão da estrutura de poder, por princípios e valores. Isso representa um acúmulo fundamental para a construção de um novo ciclo da esquerda brasileira. Atualmente investimos energia na formulação de um Projeto Popular para o Brasil".

Ou seja: perguntado sobre "o que é", Gebrim responde "o que faz". Escapa, desta forma, de responder se estamos diante de um partido político (no sentido clássico da palavra, ou seja, uma organização voltada para a conquista do poder). E o que faz a Consulta? Segundo Gebrim, “construiu um campo político, unificado por um método de ação, pela compreensão da estrutura de poder, por princípios e valores. Atualmente investimentos energia na formulação de um Projeto Popular para o Brasil”.

Como, desde as Teses sobre Feuerbach, o negócio da esquerda vai além de "interpretar o mundo", nada mais normal que a segunda pergunta feita a Gebrim pelo Brasil de Fato: "Como a Consulta vai se posicionar nas eleições deste ano?"

A resposta de Gebrim lança luz não só sobre o "método de ação", mas também sobre a teoria que orienta a Consulta. Diz ele: "Nossa posição política, neste momento, não está centrada em torno das eleições, na opção de voto, nem na indicação de candidatos. Mas em um conjunto de propostas estratégicas que queremos debater com a sociedade".

Segundo Gebrim, esta posição foi aprovada numa Plenária Nacional da Consulta Popular, onde foram avaliadas as seguintes alternativas: "não apoiar nenhuma candidatura, uma campanha pelo voto nulo, apoio à candidatura Lula e apoio à frente eleitoral encabeçada por Heloísa Helena (PSol). Realizamos uma votação interna, numa plenária nacional. Lançamos Cadernos de Debates e todos os delegados representavam posições amplamente debatidas em suas regiões. A deliberação aprovada, amplamente majoritária, define o nosso posicionamento. Não gera nenhuma obrigação para os movimentos sociais".

Poderíamos concluir que a opção por debater propostas estratégicas com a sociedade venceu esta plenária, porque qualquer outra decisão cindiria a Consulta. Mas é provável que a causa seja mais profunda: em certo sentido, a Consulta Popular age frente às eleições como determinadas Igrejas, que orientam como os crentes devem se posicionar frente ao processo, oferece princípios e questionamentos, mas não indicam partidos nem candidatos.

Que as Igrejas façam isso, é compreensível. Mas que uma organização política faça isto, é difícil de entender, salvo se compreendermos e concordarmos com o conceito de política adotado pelos companheiros da Consulta. Sem nenhum tipo de ironia, eles atuam (ou pensam atuar) num plano mais elevado.

Vejamos, para exemplificar, as propostas estratégicas que a Consulta quer debater com a sociedade, durante o processo eleitoral. Segundo Gebrim, tais propostas são "principalmente uma transformação profunda na organização do Estado brasileiro, alterando o sistema representativo e constituindo diversos mecanismos de democracia direta e participação popular. Também aproveitaremos o momento eleitoral para defender um Projeto Popular para o Brasil e nossa soberania nacional".

Duas perguntas se impõem:

a) primeiro, quem vai apresentar estas propostas para a sociedade, durante o processo eleitoral, se a Consulta não é um Partido e não tem candidatos?

b) segundo, por qual motivo é particularmente importante apresentar tais propostas estratégicas durante o processo eleitoral?

Em relação a primeira pergunta, é melhor deixar que a vida ou a própria Consulta responda. Em relação à segunda pergunta, Gebrim dá uma resposta que considero no mínimo confusa.

Perguntado por Brasil de Fato se a posição da Consulta pode ser considerada "em cima do muro", em que cada um vota em quem quiser, Gebrim diz o seguinte: "Estamos vivendo o esgotamento de um ciclo da esquerda brasileira, o ciclo centrado na luta eleitoral. Evidente que a luta eleitoral seguirá existindo e ainda representa um espaço de propaganda de idéias e acúmulo político, mas esse não é o nosso caminho. Do ponto de vista da Consulta, este deve ser um momento privilegiado para lançar as bases de outro caminho, outra lógica política. Estamos entrando numa eleição em que não se apresentam propostas que representem disputas de projetos de sociedade, de política econômica e nem capacidade real de alterar as correlações de forças sociais. Tampouco haverá um espaço real para a propaganda de uma alternativa popular. Essa percepção, de que as eleições serão apenas o momento de escolher quem vai fazer mais do mesmo, vem se generalizando e aos poucos vai se incorporando ao senso comum. Nossa definição sobre essas eleições – mais do que a aparente alteração conjuntural na correlação de forças - tem como objetivo e bússola a perspectiva de elevar a consciência de ir além da lógica de funcionamento do sistema de capital".

Vamos destrinchar esta resposta, ponto a ponto.

Segundo Gebrim, estamos vivendo o esgotamento de um ciclo da esquerda brasileira, o "ciclo centrado na luta eleitoral". Mas quem define isto? A nossa vontade? As nossas ilusões? Ou a luta de classes?

Penso que o critério deva ser o da luta de classes. E, nesse caso, para ser mais exato, não deveríamos falar de um "ciclo da esquerda", mas sim de um ciclo da sociedade brasileira. Se olharmos a história do Brasil, veremos que estamos vivendo um dos períodos mais longos de continuidade institucional. Este ano teremos a quinta eleição presidencial direta consecutiva, superando a marca do período 1945-1964 (quando tivemos quatro eleições presidenciais consecutivas, em que foram eleitos Dutra, Vargas, Juscelino e Jânio).

Tanto naquele período, quanto hoje, a predominância da disputa eleitoral não foi uma opção unilateral ou fundamentalmente da esquerda. E o "esgotamento" deste período, se e quando ocorrer, tampouco se deverá a uma opção unilateral da esquerda. A não ser, é claro, que estejamos nos movimentando no terreno das abstrações esquerdistas.

Há sinais de que esgotamento possa vir a ocorrer? Eu diria que há sinais de que setores da burguesia não estão dispostos a conviver pacificamente com uma seqüência de governos de esquerda ou centro-esquerda. E há sinais de que setores da classe trabalhadora organizada estão profundamente inconformados com o sentido, o ritmo e a profundidade daquilo que foi feito pelo governo Lula. E há sinais de que o tecido social brasileiro está rompendo em vários locais, mostrando que a gravidade da crise é maior do que a institucionalidade atual está sendo capaz de tratar ou pelo menos de conter.

O problema – e aí reside o foco de uma grande divergência com as posições da Consulta – é saber se devemos enfrentar estes sinais, ampliando a força eleitoral e institucional da esquerda brasileira, especialmente da esquerda socialista; ou sendo no fundamental indiferentes ao que acontece neste terreno.

A maior parte da vanguarda dos setores populares, gostando ou não do primeiro governo Lula, tendo ou não ilusões acerca do que pode vir a ser um segundo governo Lula, está claramente decidida a votar em Lula em outubro de 2006, exatamente porque sabe que é preciso ampliar a força da esquerda e impedir que o PSDB/PFL retomem o controle do governo federal.

Não se trata apenas de reconhecer, como faz Gebrim, que a luta eleitoral "seguirá existindo e ainda representa um espaço de propaganda de idéias e acúmulo político". Se trata de perceber que, nas atuais condições históricas, se perdermos força nesse terreno, não estaremos abrindo caminho para a revolução, mas sim para a reação política.

Deste ponto de vista, a opção feita pela Consulta só faz sentido se compreendermos que ela adota "outra lógica política". Segundo esta "outra lógica política", "nossa definição sobre essas eleições – mais do que a aparente alteração conjuntural na correlação de forças - tem como objetivo e bússola a perspectiva de elevar a consciência de ir além da lógica de funcionamento do sistema de capital".

Isso não é marxismo, é maximalismo. Ou seja: se não é possível dar um salto qualitativo que faça as coisas ficarem como achamos que elas devem ser, todo e qualquer passo intermediário é considerado por definição inútil. E o objetivo de elevar a consciência política das massas é substituído pelo propósito de elevar a consciência política de um número reduzido de pessoas, que serão atingidos pela propaganda política da Consulta, fora do processo eleitoral.

O pior é que se trata de um maximalismo oportunista, porque a posição da Consulta não centraliza seus integrantes, que na maioria parecem estar envolvidos na campanha de Lula ou de Heloísa Helena. Ou seja: a organização política Consulta Popular tem uma orientação que a mantém "acima" da luta eleitoral, mas os integrantes da organização tomam partido e se envolvem.

Novamente, a semelhança de procedimentos entre a Consulta e certas Igrejas é flagrante. É como se a Consulta se imaginasse como uma espécie de "super-estrutura", que paira acima das estruturas políticas convencionais.

Vejamos as palavras exatas de Gebrim: "Somos um movimento político que se constrói a partir de movimentos sociais, mas respeitamos a autonomia dos movimentos. O Movimento Consulta Popular não manipula nem substitui os movimentos populares. Nossa posição foi definida numa Plenária Nacional. Avaliamos as propostas de não apoiar nenhuma candidatura, de uma campanha pelo voto nulo, de apoio à candidatura Lula e de apoio à frente eleitoral encabeçada por Heloísa Helena (PSol). Realizamos uma votação interna, numa plenária nacional. Lançamos Cadernos de Debates e todos os delegados representavam posições amplamente debatidas em suas regiões. A deliberação aprovada, amplamente majoritária, define o nosso posicionamento. Não gera nenhuma obrigação para os movimentos sociais".

Um movimento político que se constrói a partir de movimentos sociais? Ou um movimento político que se constrói a partir de militantes que atuam nos movimentos sociais? A distância entre uma coisa e outra é, por exemplo, o que diferencia a CUT das tendências sindicais que atuam no interior da CUT. Mas talvez a Consulta não possa responder de maneira taxativa esta questão, pois isso colocaria em questão um de seus "mitos fundadores", que é a suposta superioridade política, ética, moral, dos movimentos sociais frente aos partidos políticos de esquerda.

Lembro, a esse respeito, de um questionamento que fiz em 2002 sobre por quais motivos alguns companheiros eram tão ácidos em relação aos problemas organizativos do PT, ao mesmo tempo em que eram tão compreensivos em relação aos problemas institucionais da Igreja em que atuavam. O fundo da questão é o mesmo: a existência de um "mito fundador" (os movimentos sociais) cujo questionamento, sem trocadilho, poderia derrubar os alicerces de certa fé.

Voltemos ao tema eleitoral. Gebrim afirma que "do ponto de vista da Consulta", as eleições devem "ser um momento privilegiado para lançar as bases de outro caminho, outra lógica política". Mas como fazer isso se, no momento das eleições, em que milhões de pessoas em todo o país estão discutindo política, a Consulta decide não ter posição sobre... as alternativas eleitorais realmente existentes?

A justificativa de Gebrim é que "estamos entrando numa eleição em que não se apresentam propostas que representem disputas de projetos de sociedade, de política econômica e nem capacidade real de alterar as correlações de forças sociais". Bem, isto seria motivo para ter candidaturas que apresentassem tais propostas. Mas segundo Gebrim, "tampouco haverá um espaço real para a propaganda de uma alternativa popular".

Aqui Gebrim passeia perigosamente próximo ao terreno já trilhado pelo professor Francisco de Oliveira, segundo o qual nos tempos atuais a política seria irrelevante. Mas está claro que esta não é a posição de Gebrim. Sendo assim, fica faltando explicar o seguinte: se no momento eleitoral, em que o debate político ganha as pessoas menos politizadas, não há "espaço real para a propaganda de uma alternativa popular", quando e como irão se criar as condições para esta "propaganda"? E, ademais, como será possível passar da "propaganda" para o acúmulo de forças, agitação e ação tática imediata?

Gebrim não responde a estas questões. Mas dá uma pista curiosa. Ele diz que "essa percepção, de que as eleições serão apenas o momento de escolher quem vai fazer mais do mesmo, vem se generalizando e aos poucos vai se incorporando ao senso comum".

Esta percepção faz parte do "senso comum" há muito tempo. E o "senso comum", no caso a indiferença com relação à política, é estimulada pelas classes dominantes. Confundir este senso comum com politização de classe é um equívoco comum, mas é um equívoco.

A esse respeito, a pergunta que Nilton Viana faz é exemplar: "Se a luta eleitoral ainda não está esgotada, por que não participar dela?"

Gebrim responde que "pesou, em nossa decisão, a compreensão de que o desafio principal, neste momento, é preservar o processo de construção estratégica de uma organização não eleitoral. O grande problema é o processo histórico dos últimos 30 anos, que converteu a luta eleitoral na única estratégia da esquerda. De dois em dois anos há eleições e cria-se a ilusão de que se pode mudar a vida mudando o partido que está no governo. Em maior ou menor medida, a agenda da esquerda se limitou à preparação das eleições. Para desentortar uma vara, não basta esticá-la até a posição correta. Neste momento, em que ainda predomina a cultura de que não é possível atuar politicamente sem uma candidatura, se resolvêssemos participar "só um pouquinho", em breve seríamos absorvidos e cairíamos na mesma lógica absorvedora. Não adianta apenas declarar que as eleições não serão a prioridade. Por mais que cada organização política que se lance à luta eleitoral reafirme que não irá se centrar nesse objetivo, como fazia o PT em seu surgimento, a dinâmica é arrasadora. A estratégia política acaba se resumindo à estratégia de conquistar postos eleitorais".

Vejamos de novo, ponto a ponto.

O desafio principal da Consulta, neste ano da graça de 2006, não é impedir que o PSDB/PFL recuperem o governo federal. Seu desafio principal é "preservar o processo de construção estratégica de uma organização não eleitoral".

Esta estratégia centrada na auto-organização é justificada da seguinte forma: "o grande problema é o processo histórico dos últimos 30 anos, que converteu a luta eleitoral na única estratégia da esquerda".

Ou seja: o grande problema é o "processo histórico". Mas se é assim, não ensina a boa teoria que deveríamos buscar as contradições internas deste processo histórico e ver como, apoiados nestas contradições, podemos superar e fazer avançar o tal processo? Pelo contrário, a solução proposta por Gebrim é caudatária de um modo de pensar tipicamente esquerdista: superar o "processo histórico" mantendo-se à margem dele.

A justificativa para não atuar "a partir de dentro" está na ponta da língua: "De dois em dois anos há eleições e cria-se a ilusão de que se pode mudar a vida mudando o partido que está no governo. Em maior ou menor medida, a agenda da esquerda se limitou à preparação das eleições".

Isto é parcialmente verdadeiro. Mas não é toda a verdade. Em primeiro lugar, não é correto dizer que "a agenda da esquerda se limitou à preparação das eleições". De toda a esquerda? Então não existe MST, pastorais sociais, UNE, sindicalismo combativo, movimento de mulheres, combate ao racismo, agitação cultural, luta parlamentar, ação de governo, luta contra homofobia? Nada existe nem existiu, só "preparação das eleições"?

Em segundo lugar, não é correto minimizar os efeitos práticos das vitórias eleitorais. Ou os governos democráticos e populares e os mandatos parlamentares da esquerda não tiveram nenhuma utilidade? Não serviram para nada? Não geraram nenhum avanço?

Será, por exemplo, que alguns movimentos sociais de que todos nos orgulhamos teriam a força que têm se, durante todos estes anos, não tivessem recebido um forte apoio institucional? Será que manteriam sua força atual, se este apoio institucional desaparecesse?

Neste sentido, a frase "de dois em dois anos há eleições e cria-se a ilusão de que se pode mudar a vida mudando o partido que está no governo" pode ser confundida com a frase "são todos iguais, não há diferença entre PSDB e PT".

A verdade é outra: dependendo do que façam os partidos, dependendo da correlação de forças, dependendo do nível de organização e mobilização social, a mudança do partido que está no governo pode sim mudar a vida das pessoas, em maior ou menor medida.

O problema é que, segundo Gebrim, qualquer contato com as eleições contamina: "para desentortar uma vara, não basta esticá-la até a posição correta. Neste momento, em que ainda predomina a cultura de que não é possível atuar politicamente sem uma candidatura, se resolvêssemos participar 'só um pouquinho', em breve seríamos absorvidos e cairíamos na mesma lógica absorvedora. Não adianta apenas declarar que as eleições não serão a prioridade. Por mais que cada organização política que se lance à luta eleitoral reafirme que não irá se centrar nesse objetivo, como fazia o PT em seu surgimento, a dinâmica é arrasadora. A estratégia política acaba se resumindo à estratégia de conquistar postos eleitorais".

Pelo visto, Gebrim acha que é possível escolher não participar. Acontece que esta escolha não existe. Até mesmo a posição da Consulta é uma forma de participação. Eles escolheram participar, dizendo para as pessoas algo mais ou menos assim: façam o que acham que devem fazer. De nada adiantará. O caminho é outro.

Confrontado com as experiências de Hugo Chávez e Evo Morales, Gebrim diz que ambos os casos a "viabilidade eleitoral, nesses dois casos, teve sua legitimidade perante as massas construída no exemplo pedagógico de ações insurrecionais. Em nenhum dos casos a liderança política se construiu por uma bem-sucedida carreira parlamentar".

Será que Gebrim acha que a liderança política de Lula, sua viabilidade eleitoral ou sua legitimidade perante as massas foi resultado de uma "bem-sucedida carreira parlamentar"?

A experiência da Bolívia e da Venezuela são muito interessantes, porque mostram que mesmo onde havia um movimento insurrecional de massas (Bolívia) e mesmo onde havia um forte apoio militar (Venezuela), foi necessário disputar as eleições, para constituir um outro tipo de legitimidade, adequado ao nível de consciência majoritário nas massas populares.

Ou seja: em ambos os casos, a disputa eleitoral não foi um capricho desnecessário, uma cereja no bolo, mas sim o coroamento necessário, no atual momento histórico, na correlação de forças existente naqueles países, do caminho da esquerda em direção ao poder. Isso criou ilusões em setores das massas, acerca dos limites e possibilidades dos processos eleitorais? Com certeza. Havia alternativa? Não havia, porque as ilusões das massas só são superadas no próprio terreno das ilusões e através da própria experiência das massas, não a partir de fora e de terceiros.

Nós também queremos "acumular forças exatamente na compreensão da superação dos limites políticos do sistema democrático representativo e formal que conquistamos após a ditadura militar", mas é preciso fazer isso também a partir de dentro e não apenas a partir de fora. Senão, corremos o risco de --por exemplo-- ver a base de movimentos sociais, composta por gente combativa e testada nas lutas, votar em candidatos da direita.

Claro que devemos desmascarar o caráter de classe do Estado e do conjunto da institucionalidade que ajuda na reprodução do capitalismo. Claro que devemos ter consciência e tomar medidas contra o processo permanente de cooptação e domesticação ideológica, em nome de "valores universais". Aliás, para quem não lembra, o conceito da democracia "como valor universal" foi introduzido entre nós por Carlos Nelson Coutinho, ex-PCB, ex-PT e hoje no PSOL!!!

Claro que durante o processo eleitoral, devemos continuar impulsionando outras ações: greves, mobilizações, ocupações etc. Mas não é possível aceitar a idéia de que as eleições não fazem parte da luta de classes. Gebrin chega a dizer que "aproveitaremos este momento para investir nas lutas e demonstrar que a luta de classes não precisa ser interrompida a cada dois anos", como se a eleição em si não fosse um momento importante desta luta de classes.

Na verdade, Gebrim parece compartilhar uma variante daquilo que o velho Lênin apelidava de economicismo. Veja a frase: "a unidade se construirá na luta e não em campanhas eleitorais".

Esta consigna da "unidade na luta", que soa tão estranha para nós que militamos na esquerda do PT, esquece que as eleições e as lutas sociais são manifestações da luta de classes. Diferentes entre si, mas igualmente manifestações da luta de classe.

A unidade da esquerda e das massas populares se dará (ou não) em torno dos propósitos perseguidos, dos programas, das táticas, das estratégias e das organizações, não apenas ou principalmente em torno das formas de luta.

A fetichização das formas de luta é uma praga. Atinge gente moderada (que só valoriza as eleições) e gente combativa (que só valoriza as lutas sociais). Mas constitui um erro, em qualquer dos casos.

O fetiche do programa é outra praga. Segundo Gebrim, nas eleições de 2006 "não estará em jogo uma alternativa de poder popular ou apenas uma única forma de acumular forças. Durante os últimos 20 anos, a esquerda estava basicamente organizada num mesmo instrumento político, o PT, mas com projetos e programas diferentes. Agora, ainda que ingressemos numa fase de pulverização organizativa, com o surgimento de diversos instrumentos, podemos avançar na unidade programática, o que implicaria um importante aporte para a construção do Projeto Popular".

O raciocínio acima me recorda um questionamento feito por um companheiro, nos anos 80, durante um curso de formação política: se todas as organizações da luta armada contra a ditadura militar tinham propósitos no fundamental comuns, porque havia tantas organizações? Uma das respostas possíveis para esta questão é: a aparente "unidade programática" expressa na crítica ao "pacifismo" do PCB tinha como conseqüência prática a pulverização organizativa. Falando de outra maneira e trazendo o assunto para os dias de hoje: uma crítica errada aos problemas reais do PT, terá como conseqüência organizativa a dispersão da esquerda brasileira.

Gebrim parece compartilhar a ilusão de que uma eventual "implosão", "explosão" ou "esgotamento" do PT pode gerar um cenário positivo, de "pulverização organizativa" com "unidade programática". Esta ilusão é só isto, ilusão.

Se ocorrer um processo de implosão do PT --seja como decorrência dos erros cometidos pelo antigo ex-campo majoritário, seja em função de erros novos cometidos pelos grupos e setores mais influentes hoje no Partido--, o resultado imediato não será um novo ciclo na história da esquerda brasileira. Será um período de reação política. E os que imaginam colher os frutos disso, deveriam refletir sobre por qual motivo foi o PT e não as organizações da luta armada, quem recolheu vinte anos depois os frutos do colapso da esquerda organizada em torno do PCB e do trabalhismo.

Encerro com isto. A resposta final da entrevista de Gebrim diz o seguinte: "estamos vivendo um momento de aprofundamento de uma crise das instituições representativas burguesas que poderá transformar-se numa crise de todo o sistema político representativo. A dominação por meio das democracias representativas formais somente permite a alternância ‘democrática’ entre líderes e partidos que se submetem às regras do projeto neoliberal. As margens de decisão política são estreitas e podem ser exercidas somente se não afetarem as bases determinantes da política e da economia. Nenhum contrato firmado nos marcos do neoliberalismo pode ser alterado. As grandes decisões estratégicas que envolvam investimentos não podem se efetuar, tornando a disputa ‘democrática’ apenas um espaço para resolução de contradições interburguesas. Lutar pela superação dessa ‘democracia’ representativa formal é um componente de nossa estratégia. A bandeira da democracia pertence aos povos e não à burguesia".

Se é verdade que estamos vivendo um momento de aprofundamento da crise das instituições burguesas, aproxima-se o momento em que poderemos colocar na ordem do dia não apenas uma democracia superior, mas uma ordem social superior. E aí, surprise, lemos e relemos o texto do Gebrim e me espanto (sempre me espanto com isso): cadê o socialismo?

A verdade é que, salvo engano, la maledeta palavra não é citada uma única vez. Verdade seja dita, a Nação (temo adorado pelo Benjamin) também é citada modestamente. No lugar das duas, abunda a problemática da democracia. Não é curioso? Afinal, foi exatamente no tratamento prático e teórico da chamada questão democrática que tanto o Partidão, nos anos 1960, 70 e 80, quanto o setor majoritário do PT, nos anos 1990, caminharam da esquerda para a direita.

De toda maneira, por qual motivo o tema da "democracia" tem tanto destaque nas preocupações de Gebrim? Palpite: pelo mesmo motivo pelo qual a esquerda brasileira é obrigada a disputar as eleições. Como diriam os amigos do PSTU, estamos num período de “reação democrática”. Nele, vivemos um paradoxo: de um lado, a burguesia é obrigada a conviver com níveis mais elevados de liberdades democráticas; de outro lado, crescem os riscos de cooptação política e moderação ideológica. A Consulta quer enfrentar estes riscos, praticando uma espécie de abstencionismo virtual (pois na prática, a maioria de seus integrantes está engajada em alguma campanha). Nós buscamos enfrentar estes riscos, participando assumidamente da disputa eleitoral.

Há dez anos, vivemos um debate parecido com nossos amigos da Consulta. Quando ela surgiu, grande parte dos fundadores da Consulta era aliada nossa na luta interna do PT. O caminho que eles escolheram não foi apenas diferente do nosso, mas também, em certa medida, competiu com o nosso, pois um militante convencido dos pressupostos da Consulta não dava valor para a disputa sobre os rumos do PT.

Não sei dizer qual balanço a Consulta faz sobre sua trajetória desde 1997. Já o nosso balanço pode ser ilustrado pelo resultado que a esquerda petista obteve no PED de 2005. A oposição foi majoritária no primeiro turno da eleição interna do PT e perdeu a presidência nacional no segundo turno por menos de 10 mil votos.

Não tenho dúvida de que o resultado poderia ter sido ainda melhor, se tivéssemos contado para mais gente uma piadinha do Mauro Iasi, que era mais ou menos assim: ele levou um trabalho sobre alienação para análise em uma Universidade. Um luminar da academia disse para Mauro que a "alienação" era uma questão superada naquela Universidade. Mauro respondeu mais ou menos assim: que bom que aqui superaram a alienação, resta agora superar a alienação no resto do mundo.

Provavelmente o Mauro Iasi, atualmente militante do PCB e candidato a vice-governador na chapa encabeçada por Plínio de Arruda Sampaio, não aprovaria o uso que faço desta piada. Mas é mais ou menos assim que vejo a coisa: que bom que para a Consulta a luta eleitoral está se esgotando. Agora, enquanto não se esgota para o restante dos brasileiros e brasileiras, vamos ter que participar dela. No nosso caso, votando no Lula e no PT.

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