O texto abaixo foi publicado na revista Espaço Acadêmico, em 2004.
Uma nova etapa histórica?
A eleição de Lula encerrou uma etapa na história do PT e pode encerrar uma etapa na história brasileira.
Até então, as grandes crises da sociedade brasileira foram resolvidas através de disputas e acordos entre diferentes segmentos da classe dominante, cabendo às forças populares papel subalterno.
Nos anos oitenta do século vinte, este padrão começou a mudar, com o paulatino fortalecimento de um polo democrático, popular e socialista, cujo auge foi a eleição presidencial de 1989.
Os anos noventa foram de ofensiva neoliberal, no Brasil e no mundo. Ao encabeçar a oposição ao neoliberalismo, as forças populares confirmaram sua condição de polo alternativo, traduzido nas candidaturas presidenciais de Lula, em 1994 e 1998.
Em 2002, após duas décadas de crise de modelo e uma década de aplicação (e crise) do projeto neoliberal, as forças populares conquistaram a presidência da República. Com isso, pela primeira vez em nossa história, têm a possibilidade de enfrentar uma situação de crise, tendo em suas mãos uma parcela tão importante de poder: o governo federal.
Se, frente as enormes dificuldades, as forças políticas que expressam as camadas populares se limitarem a administrar a crise do neoliberalismo e a crise do modelo de desenvolvimento, estaremos diante de uma tragédia: primeiro, pelo desperdício de uma oportunidade histórica; segundo, porque desmoralizaria grandes parcelas da esquerda e das forças populares; terceiro, por colocar a perder as condições, que nossa sociedade ainda têm, de servir de polo para as forças anti-neoliberais no mundo; quarto, porque uma derrota destas proporções dará origem a uma brutal onda conservadora.
Se, por outro lado, prevalecer o impulso mudancista, faltará definir qual o seu sentido: se implicará numa mudança de política econômica, do neoliberalismo para outra orientação, mas ainda nos marcos do modelo inaugurado nos anos trinta; ou se introduzirá alterações econômico-sociais mais profundas, modificando o modelo de desenvolvimento dependente, concentrador e conservador do capitalismo brasileiro, como ponto de partida para uma mudança de sistema social, em direção ao socialismo.
Para que o governo Lula possa cumprir um papel fundamental na luta contra o imperialismo norte-americano, na luta contra a hegemonia do capital financeiro, na luta por reformas democráticas e populares, na luta por um Brasil e um mundo socialistas, é necessário que seja alterada a linha política que hegemoniza, hoje, o governo.
A herança neoliberal
O resultado das eleições presidenciais de 2002 foi produto, principalmente, da insatisfação popular com dez anos de neoliberalismo, num contexto de crise do “Consenso de Washington” e do capitalismo em escala mundial.
Não constitui tarefa fácil atuar neste contexto, nem tampouco mudar a política econômica, após duas décadas perdidas, uma das quais sob hegemonia neoliberal; num contexto de crise internacional, de ofensiva imperialista e de refluxo dos movimentos sociais.
Entre os obstáculos à mudança do modelo brasileiro, destacam-se: a “herança” recebida do governo FHC; o governo norte-americano; os chamados "mercados", apelido moderno do grande capital; a força que os partidos conservadores mantêm nos diversos poderes da República.
A herança legada pelos dois mandatos exercidos por FHC – cuja forma particular de governar foi expressão local de um fenômeno ocorrido em outros países, onde o neoliberalismo também controlou o poder executivo - é de terra arrasada: 54 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, com renda mensal de 100 reais ou menos, dos quais mais de 17 milhões de analfabetos; um desemprego que aproxima-se dos 20% da população economicamente ativa, na Grande São Paulo e em outras regiões metropolitanas; uma dívida pública, interna e externa, que atingiu o patamar dos 800 bilhões de reais.
Estes dados são a expressão de uma política que privatizou grande parte das estatais, abriu os mercados, desregulamentou a economia, destruiu a capacidade do Estado de gerir uma política de desenvolvimento minimamente soberana, assim como sua capacidade de gerir políticas públicas nas áreas essenciais à vida, subordinando a economia brasileira à quase exclusiva prioridade de gerar superávits destinados ao pagamento da dívida e manter em níveis aceitáveis, para o capital internacional, o fluxo financeiro em direção ao centro do sistema capitalista internacional.
FHC, Malan e os seus providenciaram um país excelente para o sistema financeiro e para alguns outros setores oligopólicos. O sistema financeiro é o que mais lucra com a ciranda de papéis movimentada pelo governo para rolar as dívidas do país. Mas, para permitir essa doce vida dos banqueiros nacionais e estrangeiros, os tucanos e seus sócios neoliberais do PFL, PMDB, PPB, PTB & companhia aprofundaram o fosso das desigualdades sociais.
Embora derrotado eleitoralmente na disputa presidencial, o neoliberalismo manteve uma invejável influência política - sustentada em seus apoios internacionais e em sua força econômica -, influência que se espalha tanto em segmentos da base do governo, quando na bancada de oposição. Vale lembrar que 72% da população, 70% do PIB e 66% das vagas na Câmara dos Deputados vêm de estados governados por partidos da (agora) oposição conservadora, que amealhou 38,73% dos votos válidos para a presidência da República e elegeu treze governadores (entre os quais os de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Pará), além de ter alguma participação no próprio governo Lula.
Embora derrotados na eleição presidencial, os partidos conservadores mantiveram um enorme peso nos demais níveis do poder executivo, controlando ainda grande parte do poder legislativo e do judiciário, enorme poder econômico, bem como a esmagadora maioria dos meios de comunicação de massa.
Em 2002, portanto, o neoliberalismo sofreu uma derrota eleitoral; mas continua hegemonizando a política econômica nacional, inclusive aspectos importantes da política econômica desenvolvida pelo governo federal, o que gera perplexidade em setores do empresariado que apoiaram a candidatura Lula.
No governo, a defesa de políticas de corte neoliberal é notável nos casos dos ministros Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura, cabeça do agribusiness nacional, grande fazendeiro e antagonista da reforma agrária; Luís Furlan, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, presidente do Conselho de Administração da Sadia, vice-presidente da FIESP, sondado anteriormente para ocupar o mesmo ministério no governo de FHC; e do novo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, executivo que fez carreira internacional a frente do BankBoston, deputado federal eleito pelo PSDB e defensor assumido da política desenvolvida por Armínio Fraga.
Política continuísta
A política econômica adotada pelo governo federal, até o momento, vem sendo dominada não pela transição, mas sim pelo continuísmo. Os exemplos mais evidentes são as taxas de juros e a meta de superávit primário, compromissos anunciados já em final de fevereiro de 2003, na carta de intenções ao FMI. Esta carta falava, também, da reforma da previdência, da autonomia do Banco Central e da privatização de quatro bancos estaduais.
Outros compromissos exemplares com a política econômica derrotada nas eleições de 2002 podem ser vistos no documento “Política Econômica e Reformas Estruturais”, lançado pelo ministério da Fazenda, que defende que o melhor caminho para retomar o crescimento e promover "a inclusão social" é aprofundar as linhas mestras da política econômica do período FHC.
No fundo da continuidade de aspectos da política econômica derrotada nas eleições de 2002, está a tese – dominante na área econômica do nosso governo e do governo anterior - segundo a qual o financiamento do desenvolvimento brasileiro depende, como cláusula pétrea, do fluxo externo de capitais. Portanto, que a dependência externa é um traço insuperável de nossa economia.
Ao manter objetivos e instrumentos essenciais da política econômica anterior, o governo tem causado surpresa e descontentamento nas forças que o apoiaram. Os que defendem a atual política econômica argumentam que não se podia evitar uma fase difícil de transição, dada a herança desfavorável que recebeu e as incertezas internacionais enfrentadas nos meses iniciais de sua gestão.
Ocorre que os projetos da LDO, da Lei Orçamentária para 2004 e o do Plano Plurianual de Investimentos, ao delinearem as perspectivas do governo Lula até o final de seu mandato, mostram que a política atual, se depender da atual equipe econômica, não é uma injunção transitória.
Se depender das orientações atuais, o aperto fiscal será permanente, prejudicando os gastos sociais, as despesas de investimento e as reposições salariais dos servidores. E o aperto poderá ser reforçado se as previsões otimistas quanto à evolução das taxas de câmbio, de inflação e de juros não se confirmarem.
A suposição implícita nesta política é que, realizando um ajuste fiscal mais drástico do que o do governo FHC, o governo Lula ganhará a confiança dos investidores externos. Com o afluxo redobrado de capitais externos, a taxa de câmbio e a volatilidade cambial se reduzirão, a taxa de inflação cairá, os juros poderão ser diminuídos, os investimentos produtivos aumentarão, o crescimento econômico será acelerado e os gastos sociais poderão ser incrementados. Trata-se de um discurso conhecido, adotado por um governo que perdeu as eleições de 2002.
Em decorrência da política econômica adotada pelo governo, a anunciada “prioridade” que seria dada às políticas sociais não se materializa por absoluta falta de verbas. Nem os recursos destinados às políticas sociais no orçamento deste ano têm sido liberados. O brutal contingenciamento de verbas promovido com o objetivo de alcançar os mega-superávits atingiu em cheio o orçamento de todos os ministérios da área social.
É muito difícil que se produzam políticas sociais eficientes, em meio a políticas macroeconômicas restritivas. Num cenário de arrocho, recessão, desemprego, queda da atividade produtiva, juros e cortes crescentes, qualquer política social será, se concretizada, meramente compensatória.
Em mais de oito meses de governo já é possível medir os efeitos práticos desta política econômica. Contra os anúncios de um “espetáculo do crescimento”, o que se observa é uma séria deterioração da situação.
Contra todas as evidências os defensores do caminho adotado alegam que a política econômica vem obtendo vários sucessos, baixando a cotação do dólar e o risco-país. Fingem ignorar, assim, os indicadores preocupantes de aumento do desemprego, queda da renda e do nível da atividade econômica. Mas não têm como se esquivar do fato de que o aparente “sucesso” dessa conduta oficial só durará enquanto continuar existindo um fluxo mínimo de capital especulativo para manter o pagamento das contas em dia - o que, por sua vez, só pode continuar ocorrendo (e mesmo assim sem quaisquer garantias) se o governo mantiver a oferta de vantagens ao setor financeiro.
Esta lógica pode conduzir o governo à passividade: ele torna-se incapaz de tomar a ofensiva no terreno econômico, já que precisa administrar variáveis sobre as quais não tem controle - como, por exemplo, os efeitos das crises internacionais; e sua política se limita a manejar os poucos instrumentos macroeconômicos ortodoxos ao alcance da mão, como a taxa de juros e o arrocho nas contas públicas.
Com efeito, com a queda da inflação, a trajetória dos juros reais da economia tem sido ascendente, apesar das homeopáticas reduções percentuais mensais que o Copom tem concedido a fórceps, após intenso bombardeio dos setores industriais da economia. A verdade é que os juros se encontram em patamares tão altos, que podem mesmo sofrer uma diminuição constante nos próximos meses, sem que isto implique em qualquer alteração da orientação econômica principal.
Não há sinais de que o crédito se expanda e o seu custo diminua de modo a criar condições para uma retomada significativa de investimentos privados na ampliação da produção corrente e da capacidade instalada. Por outro lado, a tímida ampliação de linhas de microcrédito não representa uma alternativa para alavancar uma onda de investimentos, cujos pequenos empreendimentos de resto dificilmente encontrarão demanda num quadro de desemprego em alta e queda generalizada do poder de compra dos salários.
A reforma da previdência
Por detrás das noções de seguridade e de previdência social, está a concepção de que cabe ao conjunto da sociedade proteger aqueles que - por sua idade ou por suas condições físicas - não tenham condições de trabalhar. Não é preciso dizer que esta concepção não é neoliberal, nem capitalista. Uma reforma da previdência que popularizasse este debate concorreria, e muito, para confrontar a lógica individualista que o neoliberalismo ajudou a espalhar na sociedade brasileira.
Em segundo lugar, porque existem cerca de 40 milhões de pessoas, no Brasil, que embora integrem a população economicamente ativa, não estão sob proteção da assistência social. Uma reforma da previdência estruturada em torno da inclusão destes milhões de trabalhadores e trabalhadoras, teria um efeito político, econômico e social incrível.
Em terceiro lugar, porque a previdência é um dos maiores sistemas de distribuição de renda existentes no mundo. A ampliação deste sistema estimularia, de maneira imediata, a economia brasileira, principalmente nas pequenas e médias cidades. Seria um passo concreto no sentido de construir um mercado interno de massas, que o programa de governo da candidatura Lula apresenta como um objetivo central.
Em quarto lugar, porque a previdência é vítima de uma fortíssima sonegação. Um mutirão de cobrança das grandes empresas geraria recursos e teria um efeito-demonstração, de que o problema principal no Brasil não é a carga tributária, mas sim o fato desta carga tributária incidir principalmente sobre os pequenos, que são ademais quem efetivamente paga.
Enfim, embora não fosse a opção mais óbvia, nada impediria que a reforma da previdência se transformasse, nas mãos de um governo democrático e popular, num instrumento de conscientização e de mobilização do povo brasileiro, na perspectiva de um outro tipo de modelo econômico e de organização social.
Não foi isso que se verificou, entretanto. A reforma da previdência gerou conflitos na base social do próprio governo, no Congresso Nacional, nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais.
Podemos sistematizar as críticas em cinco tipos básicos. Primeiro, sobre a natureza da reforma, que na verdade se limita ao setor público, nada dizendo sobre como ampliar os direitos previdenciários aos cerca de 40 milhões que hoje estão sem cobertura.
Segundo, sobre o fiscalismo da reforma, que tem o objetivo de economizar recursos do Estado. A experiência internacional demonstra, a farta, que reformas da previdência deste tipo geram, no curto e mesmo no médio prazo, mais gastos, devido por exemplo as aposentadorias precoces de quem não quer sofrer os efeitos da reforma.
A eventual economia de recursos, num contexto em que o governo patrocina um superávit primário enorme, significará tirar dinheiro das aposentadorias, para que sobre mais para os credores da dívida pública.
Terceiro, sobre o déficit da previdência, tema muito controverso, já que o sistema de seguridade social é um dever do Estado, com financiamento constitucionalmente previsto; devendo-se levar em conta, ainda, a existência de grandes devedores da previdência. Aponta-se uma dívida de inúmeras empresas para com o sistema da ordem de R$ 180 bilhões, montante que cobriria qualquer possível déficit.
Quarto, sobre as consequências da privatização da previdência, que está implícita na aposentadoria complementar via fundos de pensão. É verdade que o programa da campanha Lula já previa a existência da previdência complementar. Mas o mérito da questão é que, ao nivelar as aposentadorias em bases reduzidas, o filé-mignon das contas, aquelas mais elevadas, cuja arrecadação ajuda a reduzir possíveis déficits, poderão ser direcionadas para fundos de pensão privados. Ou seja, uma quantia muito grande de dinheiro pode ser drenada para o sistema financeiro, gerando uma privatização parcial da previdência social.
E isto não pode acontecer, sob pena de colocarmos diretamente sob as leis de mercado um sistema que, com todos os seus problemas, ainda beneficia indiretamente quase 70 milhões de brasileiros.
A lógica neoliberal é inerente ao mecanismo, pois a rentabilidade dos fundos é guiada pela lógica dominante no “mercado”, que financia a reestruturação produtiva que produz desemprego e é atraída pelos altos juros dos papéis da dívida pública. Não por acaso as privatizações da era FHC foram construídas com a participação ativa dos fundos de pensão como a Previ e a Petros.
Quinto, sobre as alterações propostas na previdência do setor público, como a taxação dos servidores inativos e o teto nas aposentadorias.
Ao jogar todo o seu peso para a aprovação do projeto da reforma da previdência, ao custo de uma desgaste brutal com o funcionalismo público e da ameaça de aplicação de sanções disciplinares aos parlamentares contrários ao projeto, o governo sinalizou um alto grau de comprometimento com uma estratégia profundamente equivocada.
O governo mina a unidade do campo democrático e popular, desqualifica um setor social componente da classe trabalhadora, o funcionalismo público, importante para a construção de políticas públicas que rompam com a lógica neoliberal e se lança em temerárias composições parlamentares com nossos inimigos históricos, para suprir as dificuldades de aprovação de um projeto contraditório com a trajetória do partido.
A reforma tributária
O debate sobre a reforma tributária deveria permitir focalizar uma das questões centrais no país, que é a má distribuição de renda e a desigual incidência do sistema tributário, que penaliza o trabalho muito mais que o capital. Mas, no geral, a “reforma tributária” apresentada pelo governo trata-se, somente, de uma redistribuição de tributos entre a União , Estados e Municípios. Tal como na Reforma da Previdência, a principal preocupação do governo foi com a estabilidade fiscal, garantindo caixa suficiente para continuar honrando os contratos internacionais. Não pode ser outra a interpretação da proposta de prorrogar a Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2007, apresentada pelo governo e mantida pelo relator. Se a preocupação fosse com os gastos sociais, certamente a DRU não seria necessária.
Noutros episódios importantes - como a votação da Lei de Falências e a edição da MP dos Transgênicos - o governo também operou a partir de parâmetros programaticamente rebaixados.
Igualmente rebaixada foi a atuação do governo frente ao FMI, optando por renovar o acordo, afirmando que pretendia conseguir alguma flexibilidade nas metas, especialmente no tocante às regras para definição do superávit primário, para assim criar as condições para retomada dos investimentos públicos, principalmente das estatais. Para justificar o acordo, a Fazenda e o Banco Central defendiam ainda que ele representaria: um “endosso” adicional à política econômica, reforçando a confiança dos mercados; aumentaria os recursos para o país em 2004, constituindo uma proteção contra eventuais choques externos; e permitiria reescalonar os vencimentos de dívidas com o Fundo em 2005 e 2006, evitando a concentração de pagamentos.
O governo não deveria assinar o acordo com o FMI, principalmente porque ele nos submete a uma meta de superávit primário (4,25% do PIB) que impede as mudanças na política econômica, mudança que deve apontar para uma ampliação dos investimentos sociais; uma ampliação dos investimentos públicos; uma ampliação da presença do Estado na economia; uma ampliação no peso da pequena e média propriedade; uma elevação nas condições de vida, emprego e remuneração das classes trabalhadoras.
Atingir estes objetivos supõe a adoção imediata, por parte do governo, de várias medidas macroeconômicas, entre as quais citamos: a redução da taxa de juros; a redução do superávit primário; a adoção do controle sobre o fluxo dos capitais; a desprivatização do Banco Central; a não renovação do acordo com o FMI; a rejeição do Acordo de Livre Comércio das Américas; o enfrentamento das dívidas externa e interna; a realização das reformas agrária e urbana.
O PT e o governo só terão sucesso no enfrentamento do imperialismo, do grande capital e da direita, se houver uma ampliação significativa da mobilização político-social das classes trabalhadoras. Estimular a luta reivindicatória, estimular as mais variadas demandas sociais, apoiar medidas de democracia direta (como a convocação, pelo governo ou pelo PT, de um plebiscito ou de um referendo sobre o acordo da Alca), disputar e vencer as eleições 2004, constituem por isso aspectos fundamentais de nossa política para o período.
A Área de Livre Comércio das Américas
Apesar da resistência, a agenda da ALCA vem seguindo seu curso. A pressão interna, impulsionada pela mídia e pelos setores dependentes das relações comerciais com os EUA, tem sido determinante neste sentido.
No curto prazo, a simples defesa dos interesses dos produtores agrícolas brasileiros - setor atrasado do ponto de vista dos interesses democráticos e populares - pode criar dificuldades para o avanço da ALCA em 2004, uma vez que isto é um ponto crucial no jogo político interno nos EUA, dada a proximidade das eleições.
Entretanto, se a resistência ficar limitada a oposição parcial de setores do empresariado e do governo brasileiro, embora possa adiar e introduzir modificações na versão da ALCA inicialmente pelos governos Bush e FHC, o resultando acabara sendo a participação do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas.
Daí o papel central do movimento anti-ALCA, para emparelhar a correlação de forças, tensionando publicamente nosso governo no sentido da não assinatura do acordo. E, sem o Brasil, não existirá ALCA.
O Acordo de Livre Comércio das Américas concentra todos os dilemas da política internacional da esquerda brasileira. A mera assinatura do Acordo já constituirá uma derrota, uma vez que através dela se reafirmará a hegemonia norte-americana, que queremos desconstituir.
Uma nova etapa histórica?
A eleição de Lula encerrou uma etapa na história do PT e pode encerrar uma etapa na história brasileira.
Até então, as grandes crises da sociedade brasileira foram resolvidas através de disputas e acordos entre diferentes segmentos da classe dominante, cabendo às forças populares papel subalterno.
Nos anos oitenta do século vinte, este padrão começou a mudar, com o paulatino fortalecimento de um polo democrático, popular e socialista, cujo auge foi a eleição presidencial de 1989.
Os anos noventa foram de ofensiva neoliberal, no Brasil e no mundo. Ao encabeçar a oposição ao neoliberalismo, as forças populares confirmaram sua condição de polo alternativo, traduzido nas candidaturas presidenciais de Lula, em 1994 e 1998.
Em 2002, após duas décadas de crise de modelo e uma década de aplicação (e crise) do projeto neoliberal, as forças populares conquistaram a presidência da República. Com isso, pela primeira vez em nossa história, têm a possibilidade de enfrentar uma situação de crise, tendo em suas mãos uma parcela tão importante de poder: o governo federal.
Se, frente as enormes dificuldades, as forças políticas que expressam as camadas populares se limitarem a administrar a crise do neoliberalismo e a crise do modelo de desenvolvimento, estaremos diante de uma tragédia: primeiro, pelo desperdício de uma oportunidade histórica; segundo, porque desmoralizaria grandes parcelas da esquerda e das forças populares; terceiro, por colocar a perder as condições, que nossa sociedade ainda têm, de servir de polo para as forças anti-neoliberais no mundo; quarto, porque uma derrota destas proporções dará origem a uma brutal onda conservadora.
Se, por outro lado, prevalecer o impulso mudancista, faltará definir qual o seu sentido: se implicará numa mudança de política econômica, do neoliberalismo para outra orientação, mas ainda nos marcos do modelo inaugurado nos anos trinta; ou se introduzirá alterações econômico-sociais mais profundas, modificando o modelo de desenvolvimento dependente, concentrador e conservador do capitalismo brasileiro, como ponto de partida para uma mudança de sistema social, em direção ao socialismo.
Para que o governo Lula possa cumprir um papel fundamental na luta contra o imperialismo norte-americano, na luta contra a hegemonia do capital financeiro, na luta por reformas democráticas e populares, na luta por um Brasil e um mundo socialistas, é necessário que seja alterada a linha política que hegemoniza, hoje, o governo.
A herança neoliberal
O resultado das eleições presidenciais de 2002 foi produto, principalmente, da insatisfação popular com dez anos de neoliberalismo, num contexto de crise do “Consenso de Washington” e do capitalismo em escala mundial.
Não constitui tarefa fácil atuar neste contexto, nem tampouco mudar a política econômica, após duas décadas perdidas, uma das quais sob hegemonia neoliberal; num contexto de crise internacional, de ofensiva imperialista e de refluxo dos movimentos sociais.
Entre os obstáculos à mudança do modelo brasileiro, destacam-se: a “herança” recebida do governo FHC; o governo norte-americano; os chamados "mercados", apelido moderno do grande capital; a força que os partidos conservadores mantêm nos diversos poderes da República.
A herança legada pelos dois mandatos exercidos por FHC – cuja forma particular de governar foi expressão local de um fenômeno ocorrido em outros países, onde o neoliberalismo também controlou o poder executivo - é de terra arrasada: 54 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, com renda mensal de 100 reais ou menos, dos quais mais de 17 milhões de analfabetos; um desemprego que aproxima-se dos 20% da população economicamente ativa, na Grande São Paulo e em outras regiões metropolitanas; uma dívida pública, interna e externa, que atingiu o patamar dos 800 bilhões de reais.
Estes dados são a expressão de uma política que privatizou grande parte das estatais, abriu os mercados, desregulamentou a economia, destruiu a capacidade do Estado de gerir uma política de desenvolvimento minimamente soberana, assim como sua capacidade de gerir políticas públicas nas áreas essenciais à vida, subordinando a economia brasileira à quase exclusiva prioridade de gerar superávits destinados ao pagamento da dívida e manter em níveis aceitáveis, para o capital internacional, o fluxo financeiro em direção ao centro do sistema capitalista internacional.
FHC, Malan e os seus providenciaram um país excelente para o sistema financeiro e para alguns outros setores oligopólicos. O sistema financeiro é o que mais lucra com a ciranda de papéis movimentada pelo governo para rolar as dívidas do país. Mas, para permitir essa doce vida dos banqueiros nacionais e estrangeiros, os tucanos e seus sócios neoliberais do PFL, PMDB, PPB, PTB & companhia aprofundaram o fosso das desigualdades sociais.
Embora derrotado eleitoralmente na disputa presidencial, o neoliberalismo manteve uma invejável influência política - sustentada em seus apoios internacionais e em sua força econômica -, influência que se espalha tanto em segmentos da base do governo, quando na bancada de oposição. Vale lembrar que 72% da população, 70% do PIB e 66% das vagas na Câmara dos Deputados vêm de estados governados por partidos da (agora) oposição conservadora, que amealhou 38,73% dos votos válidos para a presidência da República e elegeu treze governadores (entre os quais os de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Pará), além de ter alguma participação no próprio governo Lula.
Embora derrotados na eleição presidencial, os partidos conservadores mantiveram um enorme peso nos demais níveis do poder executivo, controlando ainda grande parte do poder legislativo e do judiciário, enorme poder econômico, bem como a esmagadora maioria dos meios de comunicação de massa.
Em 2002, portanto, o neoliberalismo sofreu uma derrota eleitoral; mas continua hegemonizando a política econômica nacional, inclusive aspectos importantes da política econômica desenvolvida pelo governo federal, o que gera perplexidade em setores do empresariado que apoiaram a candidatura Lula.
No governo, a defesa de políticas de corte neoliberal é notável nos casos dos ministros Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura, cabeça do agribusiness nacional, grande fazendeiro e antagonista da reforma agrária; Luís Furlan, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, presidente do Conselho de Administração da Sadia, vice-presidente da FIESP, sondado anteriormente para ocupar o mesmo ministério no governo de FHC; e do novo presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, executivo que fez carreira internacional a frente do BankBoston, deputado federal eleito pelo PSDB e defensor assumido da política desenvolvida por Armínio Fraga.
Política continuísta
A política econômica adotada pelo governo federal, até o momento, vem sendo dominada não pela transição, mas sim pelo continuísmo. Os exemplos mais evidentes são as taxas de juros e a meta de superávit primário, compromissos anunciados já em final de fevereiro de 2003, na carta de intenções ao FMI. Esta carta falava, também, da reforma da previdência, da autonomia do Banco Central e da privatização de quatro bancos estaduais.
Outros compromissos exemplares com a política econômica derrotada nas eleições de 2002 podem ser vistos no documento “Política Econômica e Reformas Estruturais”, lançado pelo ministério da Fazenda, que defende que o melhor caminho para retomar o crescimento e promover "a inclusão social" é aprofundar as linhas mestras da política econômica do período FHC.
No fundo da continuidade de aspectos da política econômica derrotada nas eleições de 2002, está a tese – dominante na área econômica do nosso governo e do governo anterior - segundo a qual o financiamento do desenvolvimento brasileiro depende, como cláusula pétrea, do fluxo externo de capitais. Portanto, que a dependência externa é um traço insuperável de nossa economia.
Ao manter objetivos e instrumentos essenciais da política econômica anterior, o governo tem causado surpresa e descontentamento nas forças que o apoiaram. Os que defendem a atual política econômica argumentam que não se podia evitar uma fase difícil de transição, dada a herança desfavorável que recebeu e as incertezas internacionais enfrentadas nos meses iniciais de sua gestão.
Ocorre que os projetos da LDO, da Lei Orçamentária para 2004 e o do Plano Plurianual de Investimentos, ao delinearem as perspectivas do governo Lula até o final de seu mandato, mostram que a política atual, se depender da atual equipe econômica, não é uma injunção transitória.
Se depender das orientações atuais, o aperto fiscal será permanente, prejudicando os gastos sociais, as despesas de investimento e as reposições salariais dos servidores. E o aperto poderá ser reforçado se as previsões otimistas quanto à evolução das taxas de câmbio, de inflação e de juros não se confirmarem.
A suposição implícita nesta política é que, realizando um ajuste fiscal mais drástico do que o do governo FHC, o governo Lula ganhará a confiança dos investidores externos. Com o afluxo redobrado de capitais externos, a taxa de câmbio e a volatilidade cambial se reduzirão, a taxa de inflação cairá, os juros poderão ser diminuídos, os investimentos produtivos aumentarão, o crescimento econômico será acelerado e os gastos sociais poderão ser incrementados. Trata-se de um discurso conhecido, adotado por um governo que perdeu as eleições de 2002.
Em decorrência da política econômica adotada pelo governo, a anunciada “prioridade” que seria dada às políticas sociais não se materializa por absoluta falta de verbas. Nem os recursos destinados às políticas sociais no orçamento deste ano têm sido liberados. O brutal contingenciamento de verbas promovido com o objetivo de alcançar os mega-superávits atingiu em cheio o orçamento de todos os ministérios da área social.
É muito difícil que se produzam políticas sociais eficientes, em meio a políticas macroeconômicas restritivas. Num cenário de arrocho, recessão, desemprego, queda da atividade produtiva, juros e cortes crescentes, qualquer política social será, se concretizada, meramente compensatória.
Em mais de oito meses de governo já é possível medir os efeitos práticos desta política econômica. Contra os anúncios de um “espetáculo do crescimento”, o que se observa é uma séria deterioração da situação.
Contra todas as evidências os defensores do caminho adotado alegam que a política econômica vem obtendo vários sucessos, baixando a cotação do dólar e o risco-país. Fingem ignorar, assim, os indicadores preocupantes de aumento do desemprego, queda da renda e do nível da atividade econômica. Mas não têm como se esquivar do fato de que o aparente “sucesso” dessa conduta oficial só durará enquanto continuar existindo um fluxo mínimo de capital especulativo para manter o pagamento das contas em dia - o que, por sua vez, só pode continuar ocorrendo (e mesmo assim sem quaisquer garantias) se o governo mantiver a oferta de vantagens ao setor financeiro.
Esta lógica pode conduzir o governo à passividade: ele torna-se incapaz de tomar a ofensiva no terreno econômico, já que precisa administrar variáveis sobre as quais não tem controle - como, por exemplo, os efeitos das crises internacionais; e sua política se limita a manejar os poucos instrumentos macroeconômicos ortodoxos ao alcance da mão, como a taxa de juros e o arrocho nas contas públicas.
Com efeito, com a queda da inflação, a trajetória dos juros reais da economia tem sido ascendente, apesar das homeopáticas reduções percentuais mensais que o Copom tem concedido a fórceps, após intenso bombardeio dos setores industriais da economia. A verdade é que os juros se encontram em patamares tão altos, que podem mesmo sofrer uma diminuição constante nos próximos meses, sem que isto implique em qualquer alteração da orientação econômica principal.
Não há sinais de que o crédito se expanda e o seu custo diminua de modo a criar condições para uma retomada significativa de investimentos privados na ampliação da produção corrente e da capacidade instalada. Por outro lado, a tímida ampliação de linhas de microcrédito não representa uma alternativa para alavancar uma onda de investimentos, cujos pequenos empreendimentos de resto dificilmente encontrarão demanda num quadro de desemprego em alta e queda generalizada do poder de compra dos salários.
A reforma da previdência
Por detrás das noções de seguridade e de previdência social, está a concepção de que cabe ao conjunto da sociedade proteger aqueles que - por sua idade ou por suas condições físicas - não tenham condições de trabalhar. Não é preciso dizer que esta concepção não é neoliberal, nem capitalista. Uma reforma da previdência que popularizasse este debate concorreria, e muito, para confrontar a lógica individualista que o neoliberalismo ajudou a espalhar na sociedade brasileira.
Em segundo lugar, porque existem cerca de 40 milhões de pessoas, no Brasil, que embora integrem a população economicamente ativa, não estão sob proteção da assistência social. Uma reforma da previdência estruturada em torno da inclusão destes milhões de trabalhadores e trabalhadoras, teria um efeito político, econômico e social incrível.
Em terceiro lugar, porque a previdência é um dos maiores sistemas de distribuição de renda existentes no mundo. A ampliação deste sistema estimularia, de maneira imediata, a economia brasileira, principalmente nas pequenas e médias cidades. Seria um passo concreto no sentido de construir um mercado interno de massas, que o programa de governo da candidatura Lula apresenta como um objetivo central.
Em quarto lugar, porque a previdência é vítima de uma fortíssima sonegação. Um mutirão de cobrança das grandes empresas geraria recursos e teria um efeito-demonstração, de que o problema principal no Brasil não é a carga tributária, mas sim o fato desta carga tributária incidir principalmente sobre os pequenos, que são ademais quem efetivamente paga.
Enfim, embora não fosse a opção mais óbvia, nada impediria que a reforma da previdência se transformasse, nas mãos de um governo democrático e popular, num instrumento de conscientização e de mobilização do povo brasileiro, na perspectiva de um outro tipo de modelo econômico e de organização social.
Não foi isso que se verificou, entretanto. A reforma da previdência gerou conflitos na base social do próprio governo, no Congresso Nacional, nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais.
Podemos sistematizar as críticas em cinco tipos básicos. Primeiro, sobre a natureza da reforma, que na verdade se limita ao setor público, nada dizendo sobre como ampliar os direitos previdenciários aos cerca de 40 milhões que hoje estão sem cobertura.
Segundo, sobre o fiscalismo da reforma, que tem o objetivo de economizar recursos do Estado. A experiência internacional demonstra, a farta, que reformas da previdência deste tipo geram, no curto e mesmo no médio prazo, mais gastos, devido por exemplo as aposentadorias precoces de quem não quer sofrer os efeitos da reforma.
A eventual economia de recursos, num contexto em que o governo patrocina um superávit primário enorme, significará tirar dinheiro das aposentadorias, para que sobre mais para os credores da dívida pública.
Terceiro, sobre o déficit da previdência, tema muito controverso, já que o sistema de seguridade social é um dever do Estado, com financiamento constitucionalmente previsto; devendo-se levar em conta, ainda, a existência de grandes devedores da previdência. Aponta-se uma dívida de inúmeras empresas para com o sistema da ordem de R$ 180 bilhões, montante que cobriria qualquer possível déficit.
Quarto, sobre as consequências da privatização da previdência, que está implícita na aposentadoria complementar via fundos de pensão. É verdade que o programa da campanha Lula já previa a existência da previdência complementar. Mas o mérito da questão é que, ao nivelar as aposentadorias em bases reduzidas, o filé-mignon das contas, aquelas mais elevadas, cuja arrecadação ajuda a reduzir possíveis déficits, poderão ser direcionadas para fundos de pensão privados. Ou seja, uma quantia muito grande de dinheiro pode ser drenada para o sistema financeiro, gerando uma privatização parcial da previdência social.
E isto não pode acontecer, sob pena de colocarmos diretamente sob as leis de mercado um sistema que, com todos os seus problemas, ainda beneficia indiretamente quase 70 milhões de brasileiros.
A lógica neoliberal é inerente ao mecanismo, pois a rentabilidade dos fundos é guiada pela lógica dominante no “mercado”, que financia a reestruturação produtiva que produz desemprego e é atraída pelos altos juros dos papéis da dívida pública. Não por acaso as privatizações da era FHC foram construídas com a participação ativa dos fundos de pensão como a Previ e a Petros.
Quinto, sobre as alterações propostas na previdência do setor público, como a taxação dos servidores inativos e o teto nas aposentadorias.
Ao jogar todo o seu peso para a aprovação do projeto da reforma da previdência, ao custo de uma desgaste brutal com o funcionalismo público e da ameaça de aplicação de sanções disciplinares aos parlamentares contrários ao projeto, o governo sinalizou um alto grau de comprometimento com uma estratégia profundamente equivocada.
O governo mina a unidade do campo democrático e popular, desqualifica um setor social componente da classe trabalhadora, o funcionalismo público, importante para a construção de políticas públicas que rompam com a lógica neoliberal e se lança em temerárias composições parlamentares com nossos inimigos históricos, para suprir as dificuldades de aprovação de um projeto contraditório com a trajetória do partido.
A reforma tributária
O debate sobre a reforma tributária deveria permitir focalizar uma das questões centrais no país, que é a má distribuição de renda e a desigual incidência do sistema tributário, que penaliza o trabalho muito mais que o capital. Mas, no geral, a “reforma tributária” apresentada pelo governo trata-se, somente, de uma redistribuição de tributos entre a União , Estados e Municípios. Tal como na Reforma da Previdência, a principal preocupação do governo foi com a estabilidade fiscal, garantindo caixa suficiente para continuar honrando os contratos internacionais. Não pode ser outra a interpretação da proposta de prorrogar a Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2007, apresentada pelo governo e mantida pelo relator. Se a preocupação fosse com os gastos sociais, certamente a DRU não seria necessária.
Noutros episódios importantes - como a votação da Lei de Falências e a edição da MP dos Transgênicos - o governo também operou a partir de parâmetros programaticamente rebaixados.
Igualmente rebaixada foi a atuação do governo frente ao FMI, optando por renovar o acordo, afirmando que pretendia conseguir alguma flexibilidade nas metas, especialmente no tocante às regras para definição do superávit primário, para assim criar as condições para retomada dos investimentos públicos, principalmente das estatais. Para justificar o acordo, a Fazenda e o Banco Central defendiam ainda que ele representaria: um “endosso” adicional à política econômica, reforçando a confiança dos mercados; aumentaria os recursos para o país em 2004, constituindo uma proteção contra eventuais choques externos; e permitiria reescalonar os vencimentos de dívidas com o Fundo em 2005 e 2006, evitando a concentração de pagamentos.
O governo não deveria assinar o acordo com o FMI, principalmente porque ele nos submete a uma meta de superávit primário (4,25% do PIB) que impede as mudanças na política econômica, mudança que deve apontar para uma ampliação dos investimentos sociais; uma ampliação dos investimentos públicos; uma ampliação da presença do Estado na economia; uma ampliação no peso da pequena e média propriedade; uma elevação nas condições de vida, emprego e remuneração das classes trabalhadoras.
Atingir estes objetivos supõe a adoção imediata, por parte do governo, de várias medidas macroeconômicas, entre as quais citamos: a redução da taxa de juros; a redução do superávit primário; a adoção do controle sobre o fluxo dos capitais; a desprivatização do Banco Central; a não renovação do acordo com o FMI; a rejeição do Acordo de Livre Comércio das Américas; o enfrentamento das dívidas externa e interna; a realização das reformas agrária e urbana.
O PT e o governo só terão sucesso no enfrentamento do imperialismo, do grande capital e da direita, se houver uma ampliação significativa da mobilização político-social das classes trabalhadoras. Estimular a luta reivindicatória, estimular as mais variadas demandas sociais, apoiar medidas de democracia direta (como a convocação, pelo governo ou pelo PT, de um plebiscito ou de um referendo sobre o acordo da Alca), disputar e vencer as eleições 2004, constituem por isso aspectos fundamentais de nossa política para o período.
A Área de Livre Comércio das Américas
Apesar da resistência, a agenda da ALCA vem seguindo seu curso. A pressão interna, impulsionada pela mídia e pelos setores dependentes das relações comerciais com os EUA, tem sido determinante neste sentido.
No curto prazo, a simples defesa dos interesses dos produtores agrícolas brasileiros - setor atrasado do ponto de vista dos interesses democráticos e populares - pode criar dificuldades para o avanço da ALCA em 2004, uma vez que isto é um ponto crucial no jogo político interno nos EUA, dada a proximidade das eleições.
Entretanto, se a resistência ficar limitada a oposição parcial de setores do empresariado e do governo brasileiro, embora possa adiar e introduzir modificações na versão da ALCA inicialmente pelos governos Bush e FHC, o resultando acabara sendo a participação do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas.
Daí o papel central do movimento anti-ALCA, para emparelhar a correlação de forças, tensionando publicamente nosso governo no sentido da não assinatura do acordo. E, sem o Brasil, não existirá ALCA.
O Acordo de Livre Comércio das Américas concentra todos os dilemas da política internacional da esquerda brasileira. A mera assinatura do Acordo já constituirá uma derrota, uma vez que através dela se reafirmará a hegemonia norte-americana, que queremos desconstituir.
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