O texto abaixo é de autoria de Wladimir Pomar. Foi publicado na revista Margem Esquerda n. 26 (http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Titulos/visualizar/margem-esquerda-n%C2%BA-26)
Massacre da Lapa, 40 anos
Wladimir
Pomar
Em
16 de dezembro de 1976, há quase quarenta anos, ocorreu o último grande massacre
da ditadura militar, ao mesmo tempo que realizava-se uma retirada estratégica
de cena para passar o governo a representantes civis das classes dominantes.
O
governo Geisel, que levava a cabo tal retirada, na forma de “distensão lenta e
segura”, legou uma estrada de cruzes
mortuárias que nada tem a dever para o período sanguinário do general Médici.
Em 1974, apesar das promessas de retorno ao estado de direito, foram assassinados
(ou “desaparecidos”) dezesseis dirigentes de organizações de esquerda, a
exemplo de David Capistrano, João Massena e Luiz Maranhão, do PCB, Ana Kucinski
e Issumi Nakano, da ALN, Daniel Carvalho e Onofre Pinto, da VPR, e Ruy Frazão,
do PCdoB.
Em
1975, o rol de catorze mortos e desaparecidos pelos DOI-Codi continuou
engrossando a história do governo Geisel, concentrando-se em integrantes do
PCB, como Hiran Lima, Jayme Miranda, Nestor Vera, Itair Veloso, Orlando Bonfim,
Elson Costa e Vladimir Herzog. O assassinato de Herzog e a foto macabra para
comprovar seu “suicídio” levaram à primeira manifestação pública de repúdio explícito
à ditadura. A maioria democrática da população brasileira perdia o medo.
Apesar
disso, o ano de 1976 ainda foi marcado por mais doze assassinatos políticos,
alguns deles realizados por meio de sabotagens encobertas ou conflitos, como os
de Zuzu Angel e do padre João Penido Burnier. Mas o assassinato de Manoel Fiel
Filho, novamente nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, evidenciou a
existência de uma disputa interna no regime quanto à distensão política.
O
general-comandante do II Exército foi exonerado “com desonra”, mas isso não
colocou trava à política de assassinatos seletivos, o que ficou demonstrado no
massacre da Lapa, em dezembro, com a morte de João Batista Drummond, mais uma
vez nas dependências do DOI-Codi, e o fuzilamento a frio e sem direito de
defesa de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar.
Nos
anos posteriores até o fim da ditadura militar, ainda ocorreram assassinatos
políticos e atentados mortíferos, como o do Rio Centro, em 1981. Mas nada se
comparou às ocorrências dos períodos Médici e Geisel. Em termos gerais, não é
difícil comprovar que a ditadura teve sucesso em seu plano de retirada
estratégica. O estamento militar, assim como os políticos que o apoiaram,
jamais foram cobrados, judicialmente, pelos crimes que cometeram ou acobertaram
durante os 21 anos de seu domínio sobre o país.
Foi
no contexto dessa contraditória e exitosa retirada estratégica, e sob o impacto
do desastre na tentativa de guerrilha rural no Araguaia, que o comitê central
do PCdoB realizou mais uma de suas reuniões de avaliação, em dezembro de 1976.
Embora a questão central fosse a guerrilha do Araguaia, havia uma série de
acontecimentos que interferiam no debate.
A aquela
altura, o “milagre econômico” ditatorial já se transformara em desastre diante
da subida dos preços internacionais do petróleo, do crescimento da dívida
externa, da queda no ritmo de crescimento do PIB e do aumento desmesurado da
miséria. Politicamente, a maioria parlamentar da Arena, o partido da ditadura,
naufragara em 1974, exigindo do regime a utilização de “esparadrapos”
malfeitos, como a designação de “senadores biônicos”.
Nessas
condições, o estamento militar continuava correndo o perigo de ser
responsabilizado como único culpado pelos desastres das reformas conservadoras
impostas pela ditadura que comandava, o que, no fim das contas, podia liquidar seu
papel histórico de “poder moderador”. Assim, por um lado, militares de alta
patente falavam de “volta aos quartéis”, enquanto o governo Geisel tentava
implantar sua “distensão”. Por outro lado, tanto militares de alta patente
quanto o aparato de repressão aplicavam a política de continuar matando (com a
qual Geisel chegou a se solidarizar) e de reprimir qualquer tentativa de
democratização.
Portanto,
o que obrigatoriamente tinha de estar em pauta na avaliação sobre o Araguaia,
naquela reunião do comitê central do PCdoB, era o rumo estratégico a ser
seguido. Se a derrota do Araguaia fosse considerada tática, causada por erros militares,
o PCdoB deveria continuar aplicando o tipo de preparação armada que levara a
cabo até então. Porém, se aquela derrota fosse considerada estratégica, seria
necessário se voltar para o chamado “trabalho de massa”, ou para a construção
de uma “base política de massas” que levasse em conta não apenas os níveis de
luta e de organização das grandes camadas da população brasileira como também as
mudanças políticas em curso.
Aliás,
convém ressaltar que já havia ocorrido mudança na política de voto nulo e no
lançamento de candidatos aos parlamentos. Nesse sentido, o PCdoB levava alguma
vantagem sobre as demais organizações de esquerda. O partido jamais havia
abandonado inteiramente o trabalho desarmado, com um número razoável de
militantes e de quadros realizando “trabalho de massa” nas organizações de base
da sociedade. E havia aprovado, em sua conferência de 1966, uma política que
incluía a luta pela Anistia e pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
Ou
seja, embora empenhado em realizar aquilo que chamava “guerra popular”, não
abandonara totalmente métodos e bandeiras considerados “direitistas” por grande
parte da esquerda armada. Em complemento, embora não tivesse uma visão ampla da
“retirada estratégica” realizada pelos militares, nem da disputa feroz que
havia no seio da ditadura, tinha noção clara que o regime estava empenhado em completar
a matança seletiva de todas as esquerdas.
Em
outras palavras, havia certa unidade entre os “distensionistas” e os
“repressivos” em liquidar antigas lideranças de esquerda que pudessem
influenciar o processo de distensão ou de abertura democrática. No caso do
PCdoB, o processo de liquidação de seus quadros se intensificara com a
descoberta da preparação da guerrilha do Araguaia, em 1972. Nos dois anos
seguintes, ainda durante o governo Médici, além de inúmeros militantes e de
quadros intermediários, o PCdoB testemunhou o assassinato de vários de seus principais
dirigentes, como Carlos Danielli, Lincoln Oest, Luiz Gullhardini, Armando Frutuoso
e Lincoln Bicalho Roque.
Em
vista disso, no início de 1976, adotara a política organizativa de “fingir-se
de morto”. Ou seja, evitar qualquer tipo de atividade, incluindo reuniões, que
colocassem em risco seus militantes e dirigentes. Isso deveria estender-se às
atividades do comitê central, mas fora postergado em virtude da necessidade de
avaliar a destruição da guerrilha do Araguaia e de adotar uma nova
estratégia.
A
maior parte dos membros do comitê central da reunião de dezembro de 1976 tendeu
a aprovar uma decisão que considerava estratégica a derrota do Araguaia. Apesar
disso, não a adotou porque na reunião não estavam presentes alguns dos
principais dirigentes do partido. Seria necessário realizar com eles uma
negociação política que evitasse uma divisão interna.
Os
acontecimentos políticos posteriores a dezembro de 1976 demonstraram que dar
prioridade à construção de uma base política de massas, como condição para
qualquer luta de tipo superior, teria municiado o PCdoB de uma estratégia que
lhe permitiria situar-se melhor diante da retirada estratégica efetiva dos
militares e de democratização do país. Por exemplo, teria evitado que muitos de
seus membros no exílio retornassem ao Brasil supondo que o país estava vivendo
uma “situação revolucionária”. Poderia ter encarado mais positivamente a
criação do Partido dos Trabalhadores. E, certamente, teria pranteado melhor
seus mortos no Araguaia.
No
entanto, o que ocorreu com o PCdoB após o massacre da Lapa apenas demonstrou
que, embora o acaso tenha uma lógica nem sempre bem avaliada na história,
muitos acontecimentos não ocorrem por acaso. Apesar da política de “fingir-se
de morto”, não foi por acaso que o comitê central do PCdoB decidiu manter suas
reuniões. Havia discrepâncias internas a respeito da guerrilha e da estratégia a
ser adotada que poderiam conduzir a seu fracionamento.
Por
outro lado, talvez não por acaso alguns poucos dirigentes tenham decidido
convocar, para aquela reunião, um dirigente que faltara a inúmeros encontros e
que se sabia estar correndo sério risco de cair nas garras da repressão. Mas,
talvez também não tenha sido por acaso que, na última tentativa de encontro, o
tal dirigente compareceu. E, pior ainda, que erroneamente tenham sido entregues
a ele os dados para a participação na reunião do comitê central de dezembro de
1976.
Assim,
certamente não foi por acaso que o dirigente que levou os dados para o encontro
tenha testado se estava sendo seguido e comprovado que não havia nada suspeito
durante seu retorno. Como não foi por acaso que, durante o transporte dos
dirigentes para a reunião até a casa da Lapa, também não tenha se notado nada
de suspeito. Mas talvez tenha sido por puro acaso que apenas alguns participantes
na reunião tenham achado estranho o fato de aquele dirigente ter mudado
radicalmente de posição na avaliação da guerrilha e portar uma barba esquisita.
Mas
não foi por acaso que nada de estranho foi notado durante o transporte de saída
dos participantes na noite de 15 de dezembro. Assim como não foi por acaso, conforme
se comprovou depois, que durante a saída da última turma, já na madrugada do
dia 16, o motorista tenha verificado que um fusca prata o seguia – e fazia
esforços incomuns para demonstrar essa perseguição. E que, diante disso, o
motorista tenha realizado manobras arriscadas de fuga e, pensando haver se desvencilhado
do perseguidor, soltara então os dois dirigentes que conduzia, para retornar à
casa da Lapa.
No
entanto, não foi por acaso que, logo depois, fora cercado por inúmeros carros
da polícia política. Porém, aí sim por acaso, um desses acasos que podem
explicar tudo o mais, o motorista ainda ouviu um dos policiais, com um walk-talk, avisar que podiam “continuar
a operação”. Só bem depois entendeu que o aviso significava invadir a casa da
Lapa e matar Ângelo Arroyo e Pedro Pomar.
É
evidente que, com esse golpe, promovido pela ação de poucos acasos e muitas
certezas, a ditadura militar não conseguiu destruir o PCdoB. Pela primeira vez
em alguns anos, assassinatos e prisões dessa envergadura não resultaram na queda
em cascata de outros militantes e dirigentes. O restante da estrutura do
partido foi afetado apenas por cortes de contatos e pela necessidade de
verificações cuidadosas. Assim, os dirigentes e militantes presentes no Brasil
e no exterior puderam se rearticular, apesar das dúvidas e das dificuldades.
De
qualquer modo, com esse golpe a ditadura conseguiu romper e afetar profundamente
o processo de avaliação da experiência do Araguaia e de construção de uma nova
estratégia, não só baseada em tal experiência, mas também nas mudanças
econômicas, sociais e políticas que ocorriam no Brasil. E introduziu uma
discrepância acentuada em torno das responsabilidades sobre o acontecido.
Não
por acaso, alguns dirigentes acharam mais fácil dizer que não havia discussão
alguma sobre o Araguaia, responsabilizar o “liberalismo” de outro dirigente
pela queda e, com isso, encerrar o assunto. No entanto, como notaram alguns dos
presos da Lapa, havia indícios demasiados sobre o planejamento minucioso da
operação policial militar e sobre a possível participação de algum membro do
comitê central nesse planejamento.
Falando
mais francamente: havia indícios de um traidor no comitê central. As
características da operação também indicavam que esse suposto traidor participara
da reunião. No entanto, apesar desses indícios, ou porque sua comprovação podia
estabelecer elos de responsabilidade de outros dirigentes, houve quem achasse
melhor dizer que o dirigente suspeito de traição fora morto e estava
“desaparecido”.
Em
outras palavras, às discrepâncias sobre o Araguaia e à estratégia a ser seguida
agregaram-se discrepâncias em torno das responsabilidades sobre a Lapa. Apenas
em 1979 o dirigente suspeito de traição foi descoberto. Instado a explicar-se,
escreveu uma carta à direção do PCdoB. Considerada “ideologicamente”
inaceitável, ela serviu de motivo para a sua expulsão, em 1981, não por acaso sem
qualquer relação com o massacre da Lapa.
No
entanto, nos anos seguintes, altas patentes militares e “arrependidos” do DOI-Codi
começaram a comentar o passado. Além disso, documentos dos órgãos de repressão
começaram a ser obtidos por jornalistas e acadêmicos investigadores. Assim, por
acaso ou não, o nome do responsável pela queda e pelo massacre planejado da
Lapa se tornou público, levando o PCdoB, em 1983, a decidir expulsá-lo
(novamente), por haver provas de que ele havia sido o informante que permitiu o
massacre.
A
partir daí, a vida real mostrou que a continuidade da estratégia de “preparação
militar para a guerra popular” não passava de um delírio. O PCdoB viu-se
compelido a mudar sua estratégia, na linha da maioria dos participantes da
reunião de 1976, e a revogar, mesmo que silenciosamente, uma série de medidas
adotadas no espírito daquela estratégia, a exemplo do rompimento das relações
com o PC da China.
Apesar
disso, o PCdoB jamais estabeleceu as responsabilidades correlatas do massacre
da Lapa. Não voltou atrás com relação às medidas que havia adotado contra uma
série de militantes que discordavam da continuidade daquela estratégia de
preparação militar e que pretendiam um exame mais aprofundado daquelas
responsabilidades. Quarenta anos depois, talvez seja demasiado sugerir que tais
responsabilidades e medidas sejam revistas. De qualquer modo, queiramos ou não,
elas continuarão pesando sobre sua história.
É
evidente que o peso maior daquele massacre deve recair sobre a ditadura e seu
estamento militar. Eles foram os executores macabros, seja por imporem a um
antigo dirigente sindical e político o papel de traidor, seja por haverem matado,
por tortura ou metralha, outros três combatentes do povo.
O texto acima é de autoria de Wladimir Pomar.
A eliminação física dos inimigos proeminentes do regime militar, mesmo os que não eram comunistas, era uma ação - decisão - deliberada e consciente da ditadura.
ResponderExcluirPresente. Todos!...