sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Notas sobre o “republicanismo realmente existente”

O companheiro Juarez Guimarães escreveu um belo artigo em defesa do republicanismo.
O artigo pode ser lido aqui: http://democraciasocialista.org.br/a-esquerda-brasileira-e-o-republicanismo-juarez-guimaraes/
Infelizmente, Juarez gastou 25 dos 30 parágrafos deste artigo defendendo a legitimidade do uso do termo por alguém que se pretenda de esquerda, socialista e marxista.
Esta defesa certamente será útil no debate contra algum maximalista, que seja contrário a qualquer "republicanismo".
Mas a defesa feita por Juarez simplesmente não responde àqueles que – meu caso – criticam o “republicanismo realmente existente” no PT, especialmente nos governos Lula e Dilma.
Este “republicanismo realmente existente” serviu e continua servindo para justificar a capitulação frente aos aparelhos de Estado que conduziram o golpe contra o governo Dilma.
Não esperava que Juarez concordasse com a crítica que faço ao "republicanismo". Mas esperava que seu texto levasse este tipo de  crítica realmente em consideração.
Infelizmente, os 5 últimos parágrafos do texto, embora tenham como título “o PT e o republicanismo”, em nenhum momento buscam dialogar com a opinião segundo a qual -- tanto no governo Lula quanto no governo Dilma – houve um “republicanismo realmente existente” que serviu de justificativa para a capitulação.
Os 5 últimos parágrafos adotam o estilo tudo seria tão bom, se as coisas fossem como nós desejamos. Nenhuma palavra é dita sobre a prática.
Obviamente, é mais fácil defender o republicanismo em tese, do que defender sua prática. Assim como era mais agradável ouvir os discursos de José Eduardo Cardozo quando disputou à presidência nacional do PT, do que assistir sua prática como ministro da Justiça. Seu ótimo desempenho como advogado não apagou seus imensos erros, todos eles cometidos em nome do "republicanismo".
Não acredito que o silêncio de Juarez sobre o “republicanismo realmente existente” decorra de uma postura pragmática do tipo como ganhar um debate sem ter razão.
Na minha opinião, o silêncio de Juarez decorre de algo mais profundo: preservar a “pureza originária e doutrinária" do republicanismo é essencial para os que, como ele, defendem a estratégia da “revolução democrática”.
Uma comparação ajudará a explicar melhor o que quero dizer.
Em três debates recentes, ouvi o companheiro Marco Aurélio Garcia negar que tenha sido hegemônica, no PT dos últimos dez anos, uma “estratégia de conciliação”.
Por quais motivos Marco Aurélio nega com tanta convicção, apesar de todas as provas em contrário? 
Na minha opinião, porque aceitar como verdadeira aquela crítica colocaria em questão não apenas a estratégia passada, mas também a estratégia que ele defende para o presente e para o futuro.
De forma similar, se algum dia Juarez reconhecer o caráter deletério do “republicanismo realmente existente”, decorreria daí não apenas uma autocrítica sobre o passado, mas também uma mudança na orientação estratégia presente e futura, bem como uma revisão doutrinária.
Seria querer demais.
Mas é exatamente isto que o Partido deve fazer. 
O golpe não derrotou apenas a estratégia da chamada “CNB”, grupo por enquanto ainda majoritário no Diretório Nacional do Partido. 
Derrotou também a estratégia supostamente alternativa defendida pela Democracia Socialista, estratégia estruturada em torno do “republicanismo” e da “revolução democrática”.
Isto dito, vamos ao detalhe.
O papel das aspas neste debate
Juarez abre seu texto assim: “alguns intelectuais e correntes da esquerda brasileira” consideram que “uma das razões importantes do golpe e das derrotas políticas sofridas” foi a adesão a um “republicanismo”, isto é, “uma crença cega na imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos”.
E o que ele tem a nos dizer sobre esta crença cega? Existiu? Não existiu? Foi ou não uma das causas do golpe?
Juarez não diz nada a respeito. 
Prefere registrar, com satisfação, que “o fato de, na maior parte das vezes, esta crítica se referir a um republicanismo entre aspas já é uma boa indicação que tal palavra pode ser interpretada de diferentes maneiras”.
Se interpretei direito, Juarez quer fazer crer que recusar o uso do termo “republicanismo” devido a alguma destas interpretações, implicaria em recusar também termos como “comunismo”, “socialismo”, “marxismo”, “democrático” e “popular”, pois cada um destes termos possui variados significados, vários dos quais inaceitáveis para quem é de esquerda.
De fato, ninguém é obrigado a recusar um termo devido a seus possíveis diferentes significados. 
Mas o contrário também é verdade: ninguém é obrigado a aceitar um termo, devido a alguma de suas interpretações. 
Por isto, é perfeitamente compreensível que alguém -- uma pessoa ou uma corrente política – recuse, prefira não utilizar e critique determinado termo, devido a seu significado hegemônico.
É o caso dos termos “comunista” e “social-democrata”, recusados por diferentes motivos, por diferentes setores da esquerda brasileira. 
É o caso, também, do termo “republicano”, cujo significado hegemônico deriva de um determinado tipo de prática: “uma crença cega na imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos”.
Juarez sabe ser esta a nossa crítica, não uma crítica genérica ao uso genérico do termo "republicanismo".
Nas palavras de Juarez: “intelectuais e correntes da esquerda brasileira” criticam de “republicanismo” os “atores e pensamentos políticos que, em nome do combate à corrupção, curvam-se de fato à realidade do Estado liberal brasileiro”.
Apesar disto, Juarez continua considerando adequado resgatar o termo “republicano”. 
E utiliza boa parte do seu texto tentando justificar e legitimar o emprego do termo, buscando “esclarecer em que direção” os termos “república” e “republicanismo” são usados por ele e entendo que também pela tendência petista denominada "Democracia Socialista".
A maneira como ele faz isto é muito interessante. 
Explico: para sustentar que a adoção do termo “republicanismo” não seria “um desvio de direita ou liberal”, não seria uma “negação do marxismo”, não seria “virar as costas à própria idéia de uma revolução anti-capitalista”, ele vai buscar apoios:
-na defesa que o PC cubano faz do republicano José Marti;
-na defesa que os revolucionários bolivianos ou venezuelanos fazem do republicano Simon Bolívar;
-no elogio que Gramsci faz ao republicano Nicolau Maquiavel;
-no Florestan Fernandes do livro “Qual república?”;
-no Antonio Candido que propõe para a esquerda dialogar com a herança dos republicanos Manoel Bonfim e Sérgio Buarque de Holanda;
-na importância que o MST dá para o republicano Celso Furtado.
Me causa espanto que Juarez não se dê conta de que está “arrombando porta aberta”. 
A tradição da esquerda brasileira e mundial é, na sua ampla maioria, republicana.
A defesa de uma república democrática faz parte do programa mínimo de quase todas as forças de esquerda desde... 1848!!! 
Sendo assim, não sei com quem exatamente Juarez está polemizando ao colocar o debate neste plano, nestes termos.
Preocupado em afirmar a legitimidade do “republicanismo” em tese, Juarez Guimarães não se pergunta por quais motivos o “republicanismo realmente existente” foi o que foi e o que continua sendo: uma capitulação.
O fato é que Juarez, no geral uma pessoa atenta a política e a análise concreta da situação concreta, neste texto raciocina como um doutrinário.
Ou seja, como se o debate sobre a relação entre “esquerda e república, entre marxismo e republicanismo”, pudesse ser “aclarado” no plano de uma “relação histórica e conceitual” que simplesmente desconhece -- entre outras coisas -- a experiência prática da esquerda brasileira nos últimos vinte anos (1995-2015). 
O problema – antecipando o que direi mais a frente – é que no esquema teórico de Juarez, o “democrático” é o substantivo, enquanto “socialismo” e “revolução” são adjetivos
E o "republicanismo" é visto como um processo de alargamento do espaço público, um meio através do qual a classe trabalhadora acessa o poder de Estado.  
E como isto é afirmado doutrinariamente, como uma verdade auto-evidente, as provas do fracasso prático do "republicanismo realmente existente" não abalam as convicções de Juarez e não são devidamente levadas em conta no debate.
Da minha parte, continuarei falando de “republicanismo” com aspas (exceto por esquecimento). Entre outros motivos para deixar claro que sou republicano, mas não sou adepto do “republicanismo realmente existente”, que como prática, como teoria e como estratégia contribuiu e segue contribuindo para a capitulação.
 O papel da erudição neste debate
É sempre saboroso ler um texto de Juarez, mas sua ideia fundamental é bastante simples, no bom sentido da palavra: ele contrapõe “republicanismo” a “liberalismo”.
A contraposição é real. 
Mas ele comete um erro: ao criticar o liberalismo, apontando que ele “se tornou orgânico ao capitalismo”, Juarez omite que a “tradição” republicana também se tornou orgânica ao capitalismo.
Esta omissão faz com ele apresente a relação do republicanismo democrático e do republicanismo socialista como uma “atualização” e não como uma superação do caráter de classe do republicanismo em geral e do republicanismo democrático-burguês em particular.
Para Juarez, “sem inserir a obra de Marx na cultura do republicanismo, perde-se uma teoria coerente da emancipação do capitalismo”. 
Ele diz também que “sem marxismo, sem crítica radical ao capitalismo, não se pode contemporaneamente desenvolver de modo coerente os princípios do republicanismo”.
Peço a licença para fazer uma brincadeira com o texto de Juarez, trocando as palavras republicanismo por iluminismo. 
Ficaria assim: sem inserir a obra de Marx na cultura do iluminismo, perde-se uma teoria coerente da emancipação do capitalismo. E sem marxismo, sem crítica radical ao capitalismo, não se pode contemporaneamente desenvolver de modo coerente os princípios do iluminismo.
Mentira? Não, de jeito algum. 
Mas a questão – tanto do ponto de vista histórico quanto teórico— é que para fazer e ao fazer sua “crítica radical ao capitalismo”, Marx teve que ir além do caráter genericamente humanista do iluminismo.
Analogamente, para fazer e ao fazer sua "crítica radical ao capitalismo", Marx teve que ir além do caráter genericamente burguês do "republicanismo".
O que Juarez propõe é, falando simplesmente, fazer o caminho de volta. 
Ao invés de acentuar o caráter digamos pós-republicano de Marx, Juarez tenta acentuar suas raízes republicanas.
Aliás, este é o sentido geral de suas afirmações acerca do “laboratório Marx”. 
Além de muito arrombamento de porta aberta, as supostas novidades servem de pretexto para velhos revisionismos. 
Aliás, é gozado como o uso do cachimbo deixa a boca torta: antes, a defesa de posições dogmáticas era feita citando Marx; agora, a defesa de posições digamos heterodoxas é feita citando Marx. 
Este é o papel da erudição neste debate: substituir a análise concreta da situação concreta por uma saborosa divagação.  Pobre Marx.
O que se fala do PT neste debate
Juarez considera que a “narrativa" que ele apresenta da "formação, identidade e sentido do marxismo” tem um papel evidente “para pensar os impasses do PT e da esquerda brasileira”.
De que forma? Permitindo, diz ele, "superar de forma plena o dilema reforma/revolução que o programa de transição indica”.
Confesso que me surpreendo sempre que alguém pretende não apenas “superar", mas superar "de forma plena” certos problemas práticos no âmbito da teoria
Que alguém pretendesse equacionar (mas nunca de forma plena) os problemas, eu compreenderia. Mas para dar por superados certos problemas práticos, convém antes quebrar alguns ovos e fazer alguns omeletes.
Além disto, me surpreende que alguém considere ser possível superar (ou mesmo equacionar) “de forma plena o dilema reforma/revolução”, através do debate de fatos e teorias do século XIX, desconsiderando toda a evolução das repúblicas, do republicanismo realmente existente, do socialismo e do capitalismo ao longo de todo o século XX e neste início do século XXI.
Deixando de lado isto que me causa espanto, o que é mesmo que Juarez diz? 
Que “trata-se de já na luta democrática formar os valores, o acúmulo de forças, as conquistas e a legitimidade socialista republicana , isto é, de uma república que supere o estado liberal e a ordem capitalista que organiza”.
Pergunto às pessoas de boa vontade: de que forma isto que foi dito no parágrafo anterior permitiria “superar de forma plena o dilema reforma/revolução que o programa de transição indica”???
Perguntando de outro jeito: alguém acredita que será possível transitar do estado liberal e da ordem capitalista, em direção a uma república socialista, através da “luta democrática”, onde vamos “formar os valores, o acúmulo de forças, as conquistas e a legitimidade socialista republicana”, sem que no meio do caminho sejamos brutalmente interrompidos por uma onda reacionária, que vai nos jogar bem para atrás do ponto onde começamos nossa caminhada?
Vejamos duas possíveis respostas.
Primeiro: se os ricos e poderosos vão ficar assistindo nossa caminhada triunfal sem fazer nada, sem tentar fazer nada e sem conseguir fazer nada, então neste caso estariam corretos os que acreditam “na imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos”. 
Se, ao contrário do afirmado no parágrafo anterior, os ricos e poderosos reagirem brutalmente em qualquer momento do processo, então estarão errados tanto os que acreditam na “imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos”, quanto os que acreditam que por este caminho conseguiríamos “superar de forma plena o dilema reforma/revolução que o programa de transição indica”.
A verdade é esta: o republicanismo, quando desce das alturas da erudição e tenta se converter em estratégia, converte-se em oportunismo ou ingenuidade.
Vale dizer que concordo inteiramente com Juarez, quando ele critica o fato do PT não ter desenvolvido “uma crítica e uma alternativa ao Estado liberal contemporâneo”. Também concordo quando ele afirma que, nos anos 1990, o Partido foi orientado “fundamentalmente para o caminho da disputa institucional no interior da democracia liberal brasileira herdada da transição conservadora”. Igualmente concordo que a “Carta ao Povo brasileiro” seria, “nesta visão de conjunto, uma visão de pactuação com a ordem neoliberal brasileira herdada dos governos FHC”.
Minha discordância está na (suposta) alternativa estratégica desenhada por ele.
Na minha opinião, o “republicanismo” e a “revolução democrática” estão -- para a concepção ainda majoritária na direção nacional do PT -- mais ou menos como a república democrática está para o liberalismo. 
Ou seja: como variantes de uma mesma lógica. 
No caso, tanto a DS quanto a CNB formularam estratégias que só poderiam ter êxito numa condição: a da "imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos".
Vale dizer: eu não tenho a menor dúvida acerca da sinceridade dos propósitos radicamente democráticos e socialistas do Juarez. 

Mas desta toca da revolução democrática e do republicanismo, não sairá nenhuma democracia socialista.

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