O companheiro Juarez Guimarães escreveu um belo artigo em
defesa do republicanismo.
O artigo pode ser lido aqui: http://democraciasocialista.org.br/a-esquerda-brasileira-e-o-republicanismo-juarez-guimaraes/
Infelizmente, Juarez gastou 25 dos 30 parágrafos deste
artigo defendendo a legitimidade do uso do termo por alguém que se pretenda de esquerda, socialista e marxista.
Esta defesa certamente será útil no debate contra algum
maximalista, que seja contrário a qualquer "republicanismo".
Mas a defesa feita por Juarez simplesmente não responde àqueles
que – meu caso – criticam o “republicanismo realmente existente” no PT, especialmente nos
governos Lula e Dilma.
Este “republicanismo realmente existente” serviu e
continua servindo para justificar a capitulação frente aos aparelhos de Estado
que conduziram o golpe contra o governo Dilma.
Não esperava que Juarez concordasse com a crítica que faço ao "republicanismo". Mas
esperava que seu texto levasse este tipo de crítica realmente em consideração.
Infelizmente, os 5 últimos parágrafos do texto, embora
tenham como título “o PT e o republicanismo”, em nenhum momento buscam dialogar
com a opinião segundo a qual -- tanto no governo Lula quanto no governo Dilma –
houve um “republicanismo realmente existente” que serviu de justificativa para a
capitulação.
Os 5 últimos parágrafos adotam o estilo tudo seria tão bom, se as coisas fossem como nós desejamos. Nenhuma palavra é dita sobre a prática.
Obviamente, é mais fácil defender o republicanismo em
tese, do que defender sua prática. Assim como era mais agradável ouvir os
discursos de José Eduardo Cardozo quando disputou à presidência nacional do PT,
do que assistir sua prática como ministro da Justiça. Seu ótimo desempenho como advogado não apagou seus imensos erros, todos eles cometidos em nome do "republicanismo".
Não acredito que o silêncio de Juarez sobre o “republicanismo
realmente existente” decorra de uma postura pragmática do tipo como ganhar um
debate sem ter razão.
Na minha opinião, o silêncio de Juarez decorre de algo
mais profundo: preservar a “pureza originária e doutrinária" do republicanismo é essencial
para os que, como ele, defendem a estratégia da “revolução democrática”.
Uma comparação ajudará a explicar melhor o que quero
dizer.
Em três debates recentes, ouvi o companheiro Marco Aurélio
Garcia negar que tenha sido hegemônica, no PT dos últimos dez anos, uma “estratégia
de conciliação”.
Por quais motivos Marco Aurélio nega com tanta convicção,
apesar de todas as provas em contrário?
Na minha opinião, porque aceitar como
verdadeira aquela crítica colocaria em questão não apenas a estratégia passada,
mas também a estratégia que ele defende para o presente e para o futuro.
De forma similar, se algum dia Juarez reconhecer o caráter
deletério do “republicanismo realmente existente”, decorreria daí não apenas uma autocrítica sobre o passado, mas também uma mudança na orientação estratégia presente e futura, bem como uma revisão doutrinária.
Seria querer demais.
Mas é exatamente isto que o Partido deve fazer.
O golpe não
derrotou apenas a estratégia da chamada “CNB”, grupo por enquanto ainda majoritário
no Diretório Nacional do Partido.
Derrotou também a estratégia supostamente
alternativa defendida pela Democracia Socialista, estratégia estruturada em
torno do “republicanismo” e da “revolução democrática”.
Isto dito, vamos ao detalhe.
O papel das aspas neste debate
Juarez abre seu texto assim: “alguns intelectuais e
correntes da esquerda brasileira” consideram que “uma das razões importantes do
golpe e das derrotas políticas sofridas” foi a adesão a um “republicanismo”,
isto é, “uma crença cega na imparcialidade e ausência de caráter de classe das
instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos”.
E o que ele tem a nos dizer sobre esta crença cega?
Existiu? Não existiu? Foi ou não uma das causas do golpe?
Juarez não diz nada a respeito.
Prefere registrar, com
satisfação, que “o fato de, na maior parte das vezes, esta crítica se referir a
um republicanismo entre aspas já é uma boa indicação que tal palavra pode ser
interpretada de diferentes maneiras”.
Se interpretei direito, Juarez quer fazer crer que recusar o uso
do termo “republicanismo” devido a alguma destas interpretações, implicaria em
recusar também termos como “comunismo”, “socialismo”, “marxismo”, “democrático”
e “popular”, pois cada um destes termos possui variados significados, vários
dos quais inaceitáveis para quem é de esquerda.
De fato, ninguém é obrigado a recusar um termo devido a
seus possíveis diferentes significados.
Mas o contrário também é verdade: ninguém
é obrigado a aceitar um termo, devido a alguma de suas interpretações.
Por isto, é perfeitamente compreensível que
alguém -- uma pessoa ou uma corrente política – recuse, prefira não utilizar e critique
determinado termo, devido a seu significado hegemônico.
É o caso dos termos “comunista” e “social-democrata”,
recusados por diferentes motivos, por diferentes setores da esquerda brasileira.
É o caso,
também, do termo “republicano”, cujo significado hegemônico deriva de um determinado
tipo de prática: “uma crença cega na imparcialidade e ausência de caráter de
classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e
procedimentos”.
Juarez sabe ser esta a nossa crítica, não uma crítica genérica
ao uso genérico do termo "republicanismo".
Nas palavras de Juarez: “intelectuais e correntes da
esquerda brasileira” criticam de “republicanismo” os “atores e pensamentos
políticos que, em nome do combate à corrupção, curvam-se de fato à realidade do
Estado liberal brasileiro”.
Apesar disto, Juarez continua considerando adequado
resgatar o termo “republicano”.
E utiliza boa parte do seu texto tentando
justificar e legitimar o emprego do termo, buscando “esclarecer em que direção” os termos
“república” e “republicanismo” são usados por ele e entendo que também pela tendência petista denominada "Democracia Socialista".
A maneira como ele faz isto é muito interessante.
Explico:
para sustentar que a adoção do termo “republicanismo” não seria “um desvio de
direita ou liberal”, não seria uma “negação do marxismo”, não seria “virar as
costas à própria idéia de uma revolução anti-capitalista”, ele vai buscar
apoios:
-na defesa que o PC cubano faz do republicano José Marti;
-na defesa que os revolucionários bolivianos ou
venezuelanos fazem do republicano Simon Bolívar;
-no elogio que Gramsci faz ao republicano Nicolau Maquiavel;
-no Florestan Fernandes do livro “Qual república?”;
-no Antonio Candido que propõe para a esquerda dialogar
com a herança dos republicanos Manoel Bonfim e Sérgio Buarque de Holanda;
-na importância que o MST dá para o republicano Celso
Furtado.
Me causa espanto que Juarez não se dê conta de que está “arrombando
porta aberta”.
A tradição da esquerda brasileira e mundial é, na sua ampla
maioria, republicana.
A defesa de uma república democrática faz parte do
programa mínimo de quase todas as forças de esquerda desde... 1848!!!
Sendo
assim, não sei com quem exatamente Juarez está polemizando ao colocar o debate
neste plano, nestes termos.
Preocupado em afirmar a legitimidade do “republicanismo” em
tese, Juarez Guimarães não se pergunta por quais motivos o “republicanismo
realmente existente” foi o que foi e o que continua sendo: uma capitulação.
O fato é que Juarez, no geral uma pessoa atenta a
política e a análise concreta da situação concreta, neste texto raciocina como um doutrinário.
Ou seja, como se o debate sobre a
relação entre “esquerda e república, entre marxismo e republicanismo”, pudesse
ser “aclarado” no plano de uma “relação histórica e conceitual” que
simplesmente desconhece -- entre outras coisas -- a experiência prática da esquerda brasileira nos últimos vinte anos
(1995-2015).
O problema – antecipando o que direi mais a frente – é que
no esquema teórico de Juarez, o “democrático” é o substantivo, enquanto “socialismo”
e “revolução” são adjetivos.
E o "republicanismo" é visto como um processo
de alargamento do espaço público, um meio através do qual a classe
trabalhadora acessa o poder de Estado.
E como isto é afirmado doutrinariamente, como
uma verdade auto-evidente, as provas do fracasso prático do "republicanismo
realmente existente" não abalam as convicções de Juarez e não são devidamente levadas em
conta no debate.
Da minha parte, continuarei falando de “republicanismo”
com aspas (exceto por esquecimento). Entre outros motivos para deixar claro que sou republicano, mas não
sou adepto do “republicanismo realmente existente”, que como prática, como
teoria e como estratégia contribuiu e segue contribuindo para a capitulação.
O papel da erudição neste debate
É sempre saboroso ler um texto de Juarez, mas sua ideia
fundamental é bastante simples, no bom sentido da palavra: ele contrapõe “republicanismo” a “liberalismo”.
A contraposição é real.
Mas ele comete um erro: ao criticar
o liberalismo, apontando que ele “se tornou orgânico ao capitalismo”, Juarez
omite que a “tradição” republicana também se tornou orgânica ao
capitalismo.
Esta omissão faz com ele apresente a relação do republicanismo
democrático e do republicanismo socialista como uma “atualização”
e não como uma superação do caráter de classe do republicanismo em geral e do
republicanismo democrático-burguês em particular.
Para Juarez, “sem inserir a obra de Marx na cultura do
republicanismo, perde-se uma teoria coerente da emancipação do capitalismo”.
Ele diz também que “sem marxismo, sem crítica radical ao
capitalismo, não se pode contemporaneamente desenvolver de modo coerente os
princípios do republicanismo”.
Peço a licença para fazer uma brincadeira com o texto de Juarez, trocando as palavras republicanismo por iluminismo.
Ficaria assim: sem
inserir a obra de Marx na cultura do iluminismo, perde-se uma teoria coerente
da emancipação do capitalismo. E sem marxismo, sem crítica radical ao
capitalismo, não se pode contemporaneamente desenvolver de modo coerente os
princípios do iluminismo.
Mentira? Não, de jeito algum.
Mas a questão – tanto do ponto
de vista histórico quanto teórico— é que para fazer e ao fazer sua “crítica
radical ao capitalismo”, Marx teve que ir além do caráter genericamente humanista do iluminismo.
Analogamente, para fazer e ao fazer sua "crítica radical ao capitalismo", Marx teve que ir além do caráter genericamente burguês do "republicanismo".
O que Juarez propõe é, falando simplesmente, fazer o
caminho de volta.
Ao invés de acentuar o caráter digamos pós-republicano de Marx, Juarez tenta acentuar suas raízes republicanas.
Aliás, este é o sentido geral de suas afirmações acerca do
“laboratório Marx”.
Além de muito arrombamento de porta aberta, as supostas
novidades servem de pretexto para velhos revisionismos.
Aliás, é gozado como o
uso do cachimbo deixa a boca torta: antes, a defesa de posições dogmáticas era
feita citando Marx; agora, a defesa de posições digamos heterodoxas é feita
citando Marx.
Este é o papel da erudição neste
debate: substituir a análise concreta da situação concreta por uma saborosa divagação. Pobre Marx.
O que se fala do PT neste debate
Juarez considera que a “narrativa" que ele apresenta da "formação,
identidade e sentido do marxismo” tem um papel evidente “para pensar os
impasses do PT e da esquerda brasileira”.
De que forma? Permitindo, diz ele, "superar de forma plena o dilema
reforma/revolução que o programa de transição indica”.
Confesso que me surpreendo sempre que alguém pretende não apenas “superar", mas superar "de forma plena”
certos problemas práticos no âmbito da teoria.
Que alguém pretendesse equacionar (mas nunca de forma plena) os
problemas, eu compreenderia. Mas para dar por superados certos problemas práticos, convém antes quebrar
alguns ovos e fazer alguns omeletes.
Além disto, me surpreende que alguém considere ser
possível superar (ou mesmo equacionar) “de forma plena o dilema reforma/revolução”, através do debate de fatos e teorias do século XIX, desconsiderando toda a evolução das
repúblicas, do republicanismo realmente existente, do socialismo e do
capitalismo ao longo de todo o século XX e neste início do século XXI.
Deixando de lado isto que me causa espanto, o que é mesmo que Juarez diz?
Que “trata-se
de já na luta democrática formar os valores, o acúmulo de forças, as conquistas
e a legitimidade socialista republicana , isto é, de uma república que supere o
estado liberal e a ordem capitalista que organiza”.
Pergunto às pessoas de boa vontade: de que forma isto que
foi dito no parágrafo anterior permitiria “superar de forma plena o dilema
reforma/revolução que o programa de transição indica”???
Perguntando de outro jeito: alguém acredita que será possível
transitar do estado liberal e da ordem capitalista, em direção a uma república
socialista, através da “luta democrática”, onde vamos “formar os valores, o
acúmulo de forças, as conquistas e a legitimidade socialista republicana”, sem
que no meio do caminho sejamos brutalmente interrompidos por uma onda
reacionária, que vai nos jogar bem para atrás do ponto onde começamos nossa
caminhada?
Vejamos duas possíveis respostas.
Primeiro: se os ricos e poderosos vão ficar assistindo nossa caminhada
triunfal sem fazer nada, sem tentar fazer nada e sem conseguir fazer nada,
então neste caso estariam corretos os que acreditam “na imparcialidade e
ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas
instituições, leis e procedimentos”.
Se, ao contrário do afirmado no parágrafo anterior, os ricos e poderosos reagirem brutalmente em
qualquer momento do processo, então estarão errados tanto os que acreditam na “imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado
brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos”, quanto os que
acreditam que por este caminho conseguiríamos “superar de forma plena o dilema
reforma/revolução que o programa de transição indica”.
A verdade é esta: o republicanismo, quando desce das
alturas da erudição e tenta se converter em estratégia, converte-se em
oportunismo ou ingenuidade.
Vale dizer que concordo inteiramente com Juarez, quando
ele critica o fato do PT não ter desenvolvido “uma crítica e uma alternativa ao
Estado liberal contemporâneo”. Também concordo quando ele afirma que, nos anos 1990,
o Partido foi orientado “fundamentalmente para o caminho da disputa institucional
no interior da democracia liberal brasileira herdada da transição conservadora”.
Igualmente concordo que a “Carta ao Povo brasileiro” seria, “nesta visão de
conjunto, uma visão de pactuação com a ordem neoliberal brasileira herdada dos
governos FHC”.
Minha discordância está na (suposta) alternativa estratégica desenhada por ele.
Na minha
opinião, o “republicanismo” e a “revolução democrática” estão -- para a
concepção ainda majoritária na direção nacional do PT -- mais ou menos como a república
democrática está para o liberalismo.
Ou seja: como variantes de uma mesma
lógica.
No caso, tanto a DS quanto a CNB formularam estratégias que só poderiam ter êxito numa condição: a da "imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos".
Vale dizer: eu não tenho a menor dúvida acerca da sinceridade dos propósitos radicamente democráticos e socialistas do Juarez.
Mas desta toca da revolução democrática e do republicanismo, não sairá nenhuma democracia socialista.
Mas desta toca da revolução democrática e do republicanismo, não sairá nenhuma democracia socialista.
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