O texto abaixo é de autoria da Iole Iliada, atualmente integrante do conselho curador da Fundação Perseu Abramo.
A autora esclarece que o texto foi publicado há cerca de 10 anos, no site do PT e no Página 13, em resposta a um texto de Juarez Guimarães intitulado “Socialismo democrático e republicanismo”.
De substantivos e adjetivos: o debate sobre socialismo e republicanismo
A autora esclarece que o texto foi publicado há cerca de 10 anos, no site do PT e no Página 13, em resposta a um texto de Juarez Guimarães intitulado “Socialismo democrático e republicanismo”.
De substantivos e adjetivos: o debate sobre socialismo e republicanismo
Em artigo publicado no Portal do PT, sob o título “Socialismo democrático e republicanismo”, Juarez Guimarães buscou expor seus argumentos em prol da necessidade da incorporação do que ele chama “valores do republicanismo” ao socialismo democrático petista.
Basicamente, o autor parte da premissa de que a questão da relação do PT com a chamada “esfera pública” não estaria suficientemente equacionada, e esta seria uma das causas da crise “ética” que se abateu sobre o Partido no ano passado. Para resolver esse problema, no entanto, as concepções, princípios e valores do socialismo seriam insuficientes. Daí o recurso a uma outra tradição: a do “republicanismo”.
Tal idéia parece, a primeira vista, simpática. Afinal, por que não incorporar à nossa noção de socialismo o maior número possível de contribuições, adjetivando-a se necessário, se o objetivo é aperfeiçoarmos nosso projeto?
É preciso, no entanto, olhar a questão de um outro ângulo. Já se disse que mais importante que darmos as respostas corretas é fazermos as perguntas certas. E a pergunta posta acima, na verdade, nos coloca em uma armadilha, perigosa para aqueles que defendem sinceramente o projeto socialista.
Senão, vejamos: iniciamos reforçando a idéia de que o socialismo que defendemos é democrático. Em seguida, achamos que isso não é suficiente, e julgamos ser necessário associá-lo às idéias “republicanas”. Em breve, talvez consideremos que é preciso reforçar seu caráter igualitário. Ou sua identificação com as formas solidárias de convivência. A continuar nesse passo – se me permitem o recurso à ironia –, logo estaremos inaugurando, nos documentos do PT, os debates acerca do “socialismo-democrático- republicano-igualitário- solidário-etc”.
Ora, mas o que é o socialismo afinal? Se considerarmos as origens históricas do termo e as várias contribuições dadas no sentido da construção de uma sociedade socialista – de “utópicos” a “científicos”-, uma coisa é certa: em todos os casos, trata-se da busca por uma sociedade mais igualitária, solidária, libertária, justa. Uma sociedade onde seja possível caminhar no sentido da emancipação humana.
A necessidade de tantos adjetivos revela, contudo, uma perda de confiança no substantivo. É como se o compromisso socialista fosse reafirmado, mas esvaziado de toda substância. É como se não acreditássemos mais que a expressão “socialismo” carregue, inerentemente, uma série de significados relacionados à igualdade, à solidariedade, à liberdade, levadas a uma radicalidade impossível de se obter no capitalismo. Ou pior ainda: é como se alguns de nós aceitassem a vinculação do termo, que comumente é feita pelos inimigos do projeto socialista, a valores negativos. Daí decorre, como conseqüência, a necessidade de associá-lo a adjetivos que o valorem positivamente.
Por qual motivo existe esta necessidade de “adjetivar” o substantivo socialismo? A resposta deve ser buscada, evidentemente, na relação que parcela da esquerda estabeleceu com os projetos de transição ao socialismo efetivamente intentados no século XX, com seus erros, limites e problemas e, finalmente, com sua derrota, fenômeno que gerou diferentes leituras e interpretações sobre as possibilidades e características do projeto de construção do socialismo.
Sem entrar aqui na discussão, fundamental para a esquerda, sobre as causas dos problemas observados em tais tentativas de transição ao socialismo, é evidente que as sociedades ali organizadas enfrentaram sérios problemas no que se refere às questões da democracia e dos chamados “direitos públicos”. Aliás, o PT nascerá fazendo a crítica a tais experiências. Daí decorrerá a afirmação do caráter democrático do socialismo petista.
A incorporação do adjetivo “democrático” ao substantivo socialismo, naquela ocasião, possuía portanto razões históricas e políticas. Causou problemas, é certo, como o de facilitar a vida daqueles que confundiam socialismo democrático com social-democracia. No entanto, o termo “democracia” era dotado de grande força e respaldo social, sobretudo se considerarmos que a principal luta do período no qual o PT se forjou era pelo restabelecimento da democracia no país.
Desse modo, ainda que um projeto socialista genuíno seja intrinsecamente democrático (tomando aqui a democracia no sentido de uma sociedade onde o poder está efetivamente distribuído de forma igualitária), o acréscimo do referido adjetivo, apesar dos seus efeitos colaterais negativos como o citado acima, representava no fundamental uma importante contribuição para a disputa ideológica que se travava na sociedade naquele momento – até como reafirmação de que, não obstante os problemas e a derrota das experiências vividas no leste europeu, o socialismo continuava na ordem do dia.
O mesmo não pode ser dito sobre o termo “republicanismo”, sobre sua força social e poder de penetração nas massas. Aqui, os efeitos colaterais negativos da adjetivação são superiores aos pretensos efeitos positivos. Não podemos nos esquecer de que o debate travado entre os princípios liberais e republicanos da democracia, a que faz referência Juarez Guimarães em seu artigo, é algo circunscrito ao âmbito acadêmico. Como ele mesmo lembra, “na linguagem corrente e não da filosofia política, se relaciona república simplesmente a um forma de governo oposta à monarquia”. Nesse sentido, como mostram algumas pesquisas, a expressão “socialismo” tem muito maior penetração e aceitação popular.
Aliás, o caráter abstrato de que é cercada essa discussão permite que se faça, inadvertidamente, um truque ilusionista no debate sobre a introdução de valores republicanos no socialismo. Ora, o que chamamos de “valores republicanos” são uma construção ideal, conceitual. Mas os que partilham desta formulação parecem aceitar, como premissa, que a questão da esfera pública, dos direitos coletivos prevalecendo sobre os direitos individuais, ou das “formas associativas, comunitaristas, solidaristas, cooperativas da sociedade civil no plano econômico, político e cultural” são patrimônio da tradição “republicana”. Tais valores e idéias, no entanto, são uma herança do pensamento humanista que se forja na modernidade e das lutas sociais travadas ao longo da história pelos setores oprimidos contra os detentores do poder – processos dos quais o socialismo também é caudatário.
Interessante observar que, nessa construção – ao contrário do que se faz com o termo socialismo, que associamos freqüentemente às experiências históricas concretas – não se leva em conta a “democracia republicana realmente existente”. Aliás, basta usar o exemplo dado por Guimarães, sobre a influência dos valores republicanos nas “revoluções inglesa, americana e francesa”, para percebermos que a realidade concreta é bem mais complexa e contraditória do que sonha nossa vã filosofia.
Ou seja: quando se trata de avaliar as experiências históricas de construção do socialismo, a esquerda é em geral bastante crítica, às vezes fazendo mesmo tábula rasa das contradições, vicissitudes e dificuldades da vida real – e inclusive do fato de que o projeto em questão possuía inimigos poderosos. Alguns de nós acabam mesmo por aceitar e incorporar a idéia, difundida por aqueles que nos combatem ideologicamente, de que os problemas ali verificados são intrínsecos à própria concepção e “valores” do socialismo.
Sobre essa questão, é interessante lembrarmos o que dizia a resolução do 7º Encontro do PT, acerca do uso do termo socialismo real: “A mídia conservadora o utiliza para facilitar o combate ideológico a qualquer projeto histórico que se insurja contra a dominação capitalista. Segundo seus detratores, o socialismo seria, quando materializado, fatalmente avesso aos ideais de progresso e liberdade, reacionarismo que repudiamos com veemência. Além disso, a expressão socialismo real, em sua generalidade abstrata, desconsidera particularidades nacionais, diferentes processos revolucionários, variados contextos econômicos e políticos etc. Nivela experiências de transformação social heterogêneas em sua natureza e em seus resultados, desqualificando conquistas históricas que, seguramente, não são irrelevantes para os povos que as obtiveram”.
Em contrapartida, alguns entre nós parecem aceitar sem questionamentos a existência de “valores” e “ideais” republicanos puros, não conspurcados pela realidade histórica, e imaginam mesmo que eles são suficientes para mudar a “cultura política” do mundo –- e a do PT em particular.
Sobre isso, basta refletirmos a respeito da experiência da França, um dos países em que a chamada cultura republicana mais se difundiu. As recentes revoltas da juventude excluída dos banlieus mostram que a questão é muito mais complexa (a República Francesa pode até conceder-lhes o acesso à educação, por exemplo, mas é incapaz de oferecer-lhes emprego). E o número de seguidores do ultradireitista Le Pen também é um indicador de que tal cultura não é, por si só, suficiente para forjar uma outra sociabilidade, mais solidária e equânime.
É preciso que não nos esqueçamos de que o projeto “republicano” possui um limite concreto, já que ele é pensado nos marcos do capitalismo, como forma de administrá-lo e melhorá-lo. Ele se funda na crença de que é possível ampliar o controle social sobre o Estado e a economia, alargar os direitos públicos em detrimento dos direitos privados, ou, nas palavras de Guimarães, conseguir “a regulação do privado sob critérios universalistas”. Mas, na prática, tais conquistas contraditam a essência do capitalismo, cujo “metabolismo” impõe sérios limites à realização dos chamados ideais republicanos.
A história, aliás, mostra que o capitalismo tolera conviver com o alargamento da “esfera pública” até um certo limite, variável a depender dos interesses postos em jogo e das próprias características do processo de acumulação capitalista. Mas as classes dominantes não têm qualquer pejo em romper com o pacto democrático e com os direitos públicos, quando estes começam a incomodar seus interesses.
Com efeito, um socialista não deveria ter dúvidas de que a sua formulação é superior àquela do republicanismo, até porque radicaliza a idéia de “público”, estendendo-a para a questão – crucial – da propriedade dos meios de produção.
Nos posicionamos, pois, a favor do socialismo, porque sabemos que somente a superação do capitalismo poderá levar à construção de uma sociedade justa, igualitária, solidária, em que prevaleça o bem comum sobre os interesses individuais. Nesse sentido, não podemos deixar de ver a proclamação de objetivos republicanos como um “rebaixamento programático” para aqueles que já abraçaram o projeto socialista.
Assim, aos que insistem na necessidade de incorporar valores republicanos ao socialismo, perguntamos se não é o caso de, simplesmente, reafirmarmos a substância do socialismo, mostrando porque a verdadeira democracia e aquele ideário que alguns identificam com o “republicanismo” só podem ser efetivamente alcançados através da construção de uma sociedade livre de explorados e exploradores.
As atrocidades do capitalismo, sua incapacidade de conduzir a humanidade a uma vida boa e justa, a ameaça que esse sistema representa à própria sobrevivência da vida no Planeta, possivelmente nunca estiveram tão evidentes quanto agora.
Por tal razão, talvez o que o PT e a esquerda em geral precisem, na atual quadra histórica, não seja debater a oportunidade ou a necessidade de introduzir valores republicanos ou de qualquer outra tradição no ideário socialista. Talvez seja a hora, mais do que nunca, de assumir a defesa, sem constrangimentos e sem meias palavras – diríamos, uma defesa mais substantiva – da atualidade do socialismo.
Por Iole Iliada, que é da Comissão de Ética Nacional do PT.
ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.pt.org.br.
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