quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A agenda da revolução



Janeiro
Cem anos depois da tomada do poder pelos Sovietes, os acontecimentos daquele ano, seus antecedentes e seus desdobramentos continuam gerando intensos debates e fortes emoções: “1917” é uma referência para os socialistas, assim como “1789” foi durante muito tempo uma referência para os democratas.
Autocracia e democracia, Império e nações oprimidas, barbárie e civilização, Ocidente e Oriente, reforma e revolução, populistas e socialdemocratas, mencheviques e bolcheviques, brancos e vermelhos, trotskistas e stalinistas, burocratas e renovadores, capitalistas e comunistas: centenas de milhões de palavras foram pensadas, ditas e escritas para tomar posição frente a estas e outras polarizações que marcaram a história da vida russa e que influenciaram o destino da humanidade durante o século XX.
No final de 1991, televisões de todo o mundo transmitiram a cena: pela última vez desde então, a bandeira da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desceu o mastro onde estava hasteada, no Kremlin. Desmoralizando as previsões dos teóricos do “totalitarismo”, a URSS caiu devido à suas próprias contradições internas.
Décadas depois da dissolução da URSS, qual a herança da Revolução Russa de 1917? Muito já se disse a respeito e muito continuará sendo dito, já que cada geração constrói sua própria opinião acerca do passado. Mas uma coisa é certa: enquanto existir capitalismo sob a face da Terra, a Revolução Russa continuará provocando paixões antagônicas.  De um lado, os que a consideram a materialização do mal. De outro lado, os que a consideram um momento fundamental da luta para libertar a humanidade de todas as formas de opressão e exploração.
Os editores desta agenda reconhecem: somos defensores apaixonados da Revolução Russa de 1917. Como tantas outras obras humanas, foi carregada de tragédias e crimes, lama e sangue, dor e violência. Mas, diferente de outras obras humanas, a Revolução foi um esforço titânico para materializar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Metas algum dia compartilhadas pela burguesia, mas que desde há muito constituem parte do legado e patrimônio da classe trabalhadora.
Cabe aos trabalhadores e trabalhadoras do século 21 decidir qual será a herança da Revolução Russa de 1917.  Esperamos que sigam o exemplo do proletariado russo, ao comemorar o aniversário da Comuna de Paris de 1871: inspirar-se no heroísmo, aprender com os erros, preparar os próximos triunfos.


Fevereiro
A Revolução Russa de 1917 não foi uma, mas duas: a de “Fevereiro”, que derrubou o czarismo e instalou um governo provisório; e a de “Outubro”, que derrubou o governo provisório e instalou o governo dos Sovietes.
Nas duas revoluções, entraram em choque quatro grandes forças sociais: a aristocracia proprietária de terras, a burguesia capitalista, o campesinato e o proletariado. Cada uma destas classes tinha seus partidos, sua imprensa e seus intelectuais. E depois de 1917, tinha também seus exércitos, que disputaram o controle do território ao longo de uma guerra cujas principais batalhas foram travadas entre 1918 e 1921.
Além de burguesa, camponesa e proletária, a revolução russa teve um importante componente nacional. Mais da metade da população que vivia no Império Russo pertencia a outras nacionalidades, que a partir de 1917 puderam exercer sua autodeterminação. Em muitos casos, se converterão em integrantes da futura União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
As contradições entre as nações oprimidas e o Império, bem como as contradições entre os latifundiários e as demais classes sociais, marcaram a história da Rússia durante os séculos 18 e 19. Noutras regiões do mundo, contradições semelhantes desdobraram-se em grandes transformações, de que são exemplo a Revolução Gloriosa, na Inglaterra; a Guerra de Independência das 13 Colônias, na América do Norte; a Grande Revolução Francesa; a Revolução Mexicana.
Já na Rússia, o czarismo conseguiu sobreviver, em alguns casos convertendo-se ele próprio em agente de mudanças parciais, feitas de cima para baixo. Dois exemplos disto: as reformas introduzidas por Pedro o Grande e a Emancipação dos Servos em 1863. Mas nenhuma destas mudanças vindas de cima alterou o caráter autocrático, absolutista e feudal do czarismo russo.
Também por isto, o Império Russo continuava poderoso e atrasado, o que ficou claro em 1904, quando a Rússia sofre uma humilhante derrota militar para o Japão. Como parte das ondas de choque causadas pela derrota, a Rússia experimenta sua primeira revolução. Embora limitada e derrotada, a Revolução de 1905 funciona como uma espécie de “ensaio geral” para o que ocorreria em 1917, inclusive quanto a relação entre guerra e revolução.
A Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914, desmoralizou o governo imperial russo, desesperou o povo e armou os camponeses.  Estavam reunidos os ingredientes para a revolução, que teria início nas comemorações do dia internacional da mulher.


Março
Revoluções colocam o mundo de ponta-cabeça. E mudam os calendários. Quando ocorreu a revolução, o Império Russo adotava o calendário juliano. John Reed – jornalista estadunidense e autor do livro “Os dez dias que abalaram o mundo”— pode ter enviado um telegrama dizendo algo assim: as tropas comandadas pelo Soviete de Petrogrado tomaram o poder na passagem do 24 para o 25 de outubro segundo o calendário russo, ou seja, na passagem de 6 para 7 de novembro segundo o calendário gregoriano, utilizado nos EUA, Inglaterra e França. Depois da revolução, a Rússia adotou o calendário gregoriano. Mas o nome “de Outubro” já tinha entrado para a história.
Pelos motivos explicados, a “Revolução de Fevereiro” teve início no dia 8 de março, quando as operárias de Petrogrado realizaram uma manifestação, para comemorar o dia internacional da mulher e para apresentar suas reivindicações econômicas, sociais e políticas.
As principais organizações partidárias desaconselharam a realização da manifestação, já que haveria repressão. Efetivamente, a repressão ocorreu. Mas também ocorreram duas novidades importantes: tropas do Exército, mais exatamente a cavalaria cossaca, protegeram a manifestação da repressão policial. E a repressão teve como resposta uma onda de greves de solidariedade, não apenas em Petrogrado, mas nas principais cidades russas.
Vale lembrar: televisão e internet não existiam, rádio e telefone não eram populares como hoje. As comunicações dependiam em grande medida do telégrafo, da imprensa e do deslocamento das pessoas. Portanto, a rapidez com que estalaram as greves de solidariedade só pode ser explicada graças ao clima favorável, um ambiente inflamável à espera de um gatilho, de um disparador, de um catalizador, de uma chama que acendesse o pavio.
Em poucos dias, o czar renunciou em favor de um parente, que não aceitou o encargo. Tinha fim o poder da dinastia Romanov, que havia assumido o trono imperial em 1613. Vinham abaixo trezentos anos de autocracia. O parlamento (conhecido como Duma) assumiu o poder, nomeando um governo provisório. Acabara a monarquia. A Rússia convertera-se numa república.
O povo tinha expectativas limitadas: queria pão, queria paz, queria terra, queria a convocação de uma Assembleia Constituinte. Mas o governo provisório tinha uma disposição ainda mais limitada. Nenhuma medida reclamada pelo povo foi atendida de imediato; e algumas medidas nunca foram atendidas. É o caso da paz: o governo provisório decidiu continuar participando, junto com Inglaterra e França, da guerra contra a Alemanha. Estava criada a situação que produziria, meses depois, uma nova revolução.


Abril
Durante décadas, a Rússia produziria, reprimiria, prenderia e executaria revolucionários. E também os “exportaria” para outros países. Alguns são pouco conhecidos. Outros tornaram-se famosos, como Bakunin e Lenin.
Lenin não estava na Rússia quando explodiu a Revolução de Fevereiro. Então ele morava em Genebra, na Suíça. Seu cotidiano, compartilhado com a revolucionária Nadežda Krupskaja, era muito difícil. Eles viviam exilados desde 1900. Lenin regressara à Rússia durante a revolução de 1905, mas tivera que exilar-se novamente. Dependiam de recursos oferecidos por familiares, contribuições de simpatizantes, pagamento de palestras, traduções e artigos.
Lenin era um importante dirigente do Partido Operário Social Democrata Russo, fundado em 1898, dissolvido pela polícia do czar e reorganizado no II Congresso de 1903, realizado parte em Bruxelas, parte em Londres. O POSDR atuava na clandestinidade, pois a autocracia czarista não autorizava a existência de partidos, nem de sindicatos. Dentro do POSDR havia diferentes posições, que lutavam entre si de maneira geralmente muito dura. O II Congresso do POSDR havia terminado com o partido rachado em duas grandes “frações” (hoje diríamos tendências): os mencheviques e os bolcheviques.
Mencheviques, palavra russa para “minoritários”, eram os que haviam perdido (por 2 votos) a eleição do Comitê Central do POSDR. Do outro lado estavam os bolcheviques, palavra russa para “majoritários”. Ao longo da história do POSDR, os mencheviques algumas vezes foram maioria e os bolcheviques algumas vezes minoria, mas nunca trocaram seus apelidos.
Lenin era um dos principais dirigentes do grupo bolchevique. Mencheviques e bolcheviques defendiam que a Rússia necessitava de uma revolução democrático-burguesa. Mas os bolcheviques defendiam que o campesinato deveria ter um papel fundamental nesta revolução; aceitavam até o apoio e participação do PSODR num governo burguês, desde que este governo fosse uma “ditadura democrático-revolucionária do campesinato e do operariado”.
Também por isto, os bolcheviques adotam uma postura de apoio cauteloso ao governo provisório resultante da Revolução de Fevereiro. Daí, também, o susto que tomam quando vão receber Lenin na Estação Finlândia. Discursando para quem o estava recepcionando na estação ferroviária, depois de tão longo exílio, Lenin defende a derrubada do governo provisório, todo poder aos sovietes e uma revolução socialista.
Estas posições, reunidas posteriormente nas chamadas “Teses de Abril”, fazem muitos dos velhos bolcheviques acreditarem que Lenin estava louco.


Maio
Muita tinta se gastou para explicar a posição adotada por Lenin em abril de 1917. Há os que consideram que ele manteve total coerência com a elaboração tradicional dos bolcheviques, que sempre assumiram a postura de “empurrar ao máximo o limite do possível”. Há os que consideram que ele mudou totalmente de posição, aproximando-se das ideias dos populistas ou então das formulações de Leon Trotsky, que em 1903 ficara do lado dos mencheviques e posteriormente rompera com eles, atuando como líder de um grupo intermediário entre as duas principais tendências do partido.
Há, também, os que acreditam que Lenin, baseando-se nas posições que sempre defendeu, percebeu que o surgimento do imperialismo e a eclosão da Primeira Guerra Mundial colocaram a disjuntiva entre capitalismo e socialismo na ordem do dia; e que a Rússia, por conta do seu atraso, era o “elo mais fraco” onde a revolução poderia ocorrer em primeiro lugar.
Mas qual revolução? Até então Lenin sempre dissera que a Rússia deveria experimentar uma revolução burguesa. Mas Lenin dizia que havia diferentes tipos de revolução burguesa; se o campesinato estivesse à frente da revolução burguesa na Rússia, isto produziria uma radicalização que tornaria mais rápida a passagem para uma etapa seguinte, a revolução socialista.
Enquanto apontava estas possibilidades objetivas, Lenin estava pessimista quanto ao curto prazo, em parte devido à traição cometida pela maioria dos socialdemocratas europeus, que decidiram apoiar a Guerra Mundial, defender a posição de suas respectivas burguesias e de seus Estados nacionais. Pouco antes da Revolução de Fevereiro, num discurso feito para a juventude da esquerda suíça, Lenin disse que o socialismo triunfaria, mas talvez fosse algo que seria vivido apenas pelos netos de quem estava ali.
Quando eclode a Revolução de Fevereiro, Lenin percebe ali uma possibilidade: frente a um governo provisório que não quer atender as demandas do povo, propor aos sovietes que tomassem o poder. E uma revolução dirigida pelos sovietes já não seria uma revolução apenas burguesa; seria também uma revolução proletária, que ajudaria e seria apoiada pelas revoluções que – Lenin estava seguro disto – ocorreriam noutros países europeus. Estas outras revoluções seriam totalmente socialistas e viriam em ajuda dos revolucionários russos, tornando possível a construção exitosa do socialismo na Rússia.
Este era o plano contido nas Teses de Abril. Mas para isso era preciso conquistar maioria nos Sovietes.


Junho
Soviete é uma palavra russa que pode ser traduzida como “conselho”. Há quem diga que o primeiro soviete surgiu em decorrência de uma iniciativa do próprio czarismo, que ao decidir vistoriar as condições de trabalho nas fábricas russas, estimulou os operários a reunirem-se e eleger representantes para apresentar suas opiniões aos inspetores oficiais.
Os sovietes tornaram-se uma força política durante a Revolução de 1905. O ponto de partida daquela Revolução foi um massacre cometido pela guarda do palácio real, contra trabalhadores que tinham ido até lá entregar ao Czar uma petição. A reação ao massacre foi uma onda de manifestações e greves políticas, que foram acompanhadas da eleição de delegados nas fábricas, que reuniram-se posteriormente em sovietes de âmbito municipal, provincial e nacional. Inicialmente os sovietes foram compostos apenas por operários. Em 1917, os soldados e os camponeses também constituíram sovietes.
Em 1905, os sovietes existiram antes que houvesse uma teoria acerca dos seus propósitos. Em 1917, as coisas já estavam mais claras: os sovietes eram organismos políticos e revolucionários. Mas qual era a posição dos sovietes na revolução de 1917? No início foi a de apoiar o governo provisório. Dito de outra forma: os sovietes que representavam os operários apoiavam o governo provisório que representava a burguesia.  Logo, os operários apoiavam a revolução... burguesa. E não qualquer revolução burguesa, mas uma revolução burguesa moderada, que adiava ou negava solução os problemas da paz, da terra, do pão e da Assembleia Constituinte.
A posição de Lenin, que em pouco tempo vira a posição oficial dos bolcheviques, quer mudar esta situação. Eles defendem que os sovietes passem para a oposição e que tomem o poder. Mas para isto seria necessário convencer os sovietes, ou seja, convencer os operários de que seria necessário – para ter pão, paz, terra e Assembleia Constituinte—derrubar o governo provisório e tomar o poder.
Os bolcheviques dedicam-se a isto de abril até setembro de 1917. Cooperam em alguma medida com outros grupos: revolucionários sem partido, sindicalistas de variados matizes, anarquistas, socialistas revolucionários de esquerda, alguns mencheviques. Contra os que defendem todo poder aos sovietes, estão todos os demais. Pouco a pouco os bolcheviques tornam-se o principal inimigo tanto do governo provisório, quanto dos saudosos do czarismo.


Julho
O Partido Socialista Revolucionário (SR) foi criado na mesma época que o Partido Operário Social Democrata Russo. Os primeiros socialistas revolucionários descendiam do populismo. Os populistas defendiam construir o socialismo sem passar pelo capitalismo. Acreditavam que isto seria possível graças a sobrevivência, entre os camponeses russos, da propriedade coletiva da terra e de vários hábitos coletivos de produção e vida.
Os populistas foram muito fortes na segunda metade do século 19, sofreram várias cisões e metamorfoses ao longo de sua existência, uma delas desembocando na criação do Partido Socialista Revolucionário.
Assim como os socialdemocratas, os SR estavam divididos em frações (ou tendências). Os SR de direita participam do governo provisório; um deles, o advogado Alexandre Kerensky, chegará a ser primeiro-ministro.
O governo provisório mantém uma relação difícil, mas de cooperação, com os dois partidos que controlam o Soviete de Toda a Rússia: os esseristas de direita (o setor mais moderado do Partido Socialista Revolucionário) e os mencheviques (a ala direita do Partido Operário Social Democrata Russo).
Quem detém o poder na Rússia revolucionária? Na opinião de Lenin, existe uma situação estranha, que ele intitula de “duplo poder”, compartilhado entre o governo provisório burguês e o soviete proletário. Esta situação de duplo poder é instável e existe apenas porque os sovietes aceitam submeter-se ao governo provisório.
Tanto o Governo Provisório quanto seus aliados no Soviete sofrem intensa pressão dos setores populares. Culpam os bolcheviques por isto, mas a realidade é que os bolcheviques constituem apenas uma das expressões organizadas da imensa insatisfação social.
Uma prova disso são as jornadas de julho de 1917, grandes manifestações de massa realizadas em Petrogrado. Os bolcheviques haviam opinado contra a realização das manifestações, mas acabam participando delas, sendo fortemente reprimidos por isto. Vários dirigentes são presos e Lenin é forçado a esconder-se clandestinamente na Finlândia, onde redige um livro que seria publicado depois de outubro: “O Estado e a Revolução”.
Os latifundiários e os generais monarquistas também se opõem ao Governo Provisório, considerando por eles fraco tanto para conduzir a guerra quanto para reprimir a “anarquia revolucionária”.


Agosto
Em agosto de 1917, o general Lavr Kornilov tenta dar um golpe de Estado contra o governo provisório. Seu verdadeiro alvo é a revolução como um todo: os sovietes, os operários e soldados revolucionários, os camponeses que estão tomando terras na marra, os partidos de esquerda, especialmente os bolcheviques.
Kornilov usa as tropas sob seu comando para atacar Petrogrado, a capital russa. Quem organiza a exitosa defesa são os sovietes, com destaque para os bolcheviques, que já haviam se convertido a esta altura em maioria absoluta ou relativa em grande parte dos sovietes locais e regionais.
Incapaz de organizar sua própria defesa, o governo provisório está condenado a ser derrubado, mais cedo ou mais tarde.  Ao mesmo tempo, os principais partidos russos se dão conta, pouco a pouco, de que não haverá solução pacífica para o impasse.
Parte dos bolcheviques entende que a situação está ficando madura para a tomada do poder. Outros setores resistem a isto e alertam para a catástrofe econômica, para a piora das condições sociais, para a crescente anarquia política, para os riscos de uma guerra civil, para as dificuldades que o movimento socialista enfrentava no restante da Europa. Os argumentos de parte a parte são fortes, mas muito mais forte era a percepção de que se os bolcheviques não tomassem o poder, a direita o faria e massacraria não apenas os bolcheviques, mas toda a esquerda.
A essa altura, as ondas de choque da revolução já haviam chegado às mais distantes aldeias russas. Embora a Rússia tivesse enormes cidades, a maior parte da população ainda trabalhava e vivia no campo.
Depois de três anos de guerra, o camponês-soldado quer voltar para casa. E o camponês que conseguiu escapar da convocação militar quer que a guerra termine, mas também quer tomar para si as terras onde trabalhavam. Por isto, para os latifundiários não bastava que o governo provisório retardasse a Assembleia Constituinte e a reforma agrária. Era preciso desencadear uma brutal repressão, nos campos e nas cidades, para colocar as coisas de volta no lugar de sempre.
De maneira semelhante, o ambiente de agitação nos quartéis e nas fábricas confirma que a derrubada do czar não foi o fim, mas o início de uma imensa revolução que ameaçava o poder e a propriedade dos ricos. Por isto, os principais partidos chegaram a conclusão de que não era possível um desfecho pacífico para a situação: a direita quer um ditador militar, a esquerda quer uma revolução socialista.


Setembro
Em algum momento do século 19 e início do século 20, quem fosse democrata ou socialista aspirava por uma revolução na Rússia, pais considerado “atrasado”, “bárbaro” e “asiático”. Aliás, termos que revelam como a esquerda ocidental estava carregada de preconceitos imperialistas e racistas.
Entretanto, quando a revolução russa realmente ocorre, ela gera sentimentos contraditórios. Para os governos da França e da Inglaterra, a revolução era um desastre militar, na medida em que enfraquecia a disciplina e a eficácia dos exércitos russos no combate com os alemães. Para os governos da Alemanha e da Áustria, passava exatamente o contrário: a revolução era um presente caído dos céus, que permitia concentrar todas as atenções na frente Ocidental.
Entre os socialdemocratas, o entusiasmo com a Revolução Russa dependia da posição de cada um frente à Guerra Mundial. Por isto, os mais entusiasmados foram os setores que, dentro de cada partido socialista europeu, opunham-se à guerra. É o caso da Liga Spartacus, grupo formado no interior do Partido Social Democrata Alemão e que atuava clandestinamente, para se proteger tanto dos tribunais militares quanto da direção do PSDA.
A medida que os bolcheviques  ampliavam sua influência na classe trabalhadora e nos Sovietes, crescia a preocupação dos setores majoritários da Social Democracia europeia. Afinal, os bolcheviques eram conhecidos e criticados por suas posições ao mesmo tempo ortodoxas e heterodoxas.
Eram ortodoxos na hora de defender o marxismo revolucionário contra aqueles setores que consideravam ultrapassadas as ideias fundamentais de Karl Marx e Friedrich Engels, especialmente aquelas acerca do capitalismo, da mais-valia, da queda tendencial da taxa de lucro, das crises e da revolução.
Mas os bolcheviques eram heterodoxos no momento de propor soluções políticas para as situações que enfrentavam num país cujo desenvolvimento havia seguido um caminho diferente daquele experimentado na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.
Esta mistura original de ortodoxia e heterodoxia tinha levado os bolcheviques a defender o derrotismo revolucionário. Diziam não saber quem era pior, dentre os dois “bandos imperialistas” que se enfrentavam na Primeira Guerra Mundial. Mas tinham certeza de que, para o proletariado russo, o melhor era a derrota do Império Russo. Posição que lhes custaria perseguições e prisões, mas que lhes permitiria defender a paz com uma coerência sem igual entre as demais forças políticas russas.


Outubro
A Revolução de Fevereiro de 1917 não resultou de uma decisão adotada por nenhum partido.  Já a Revolução de Outubro foi uma decisão consciente do Partido Operário Social Democrata Russo (bolchevique). 
Por este motivo, há quem afirme que Outubro foi um golpe de Estado. Tecnicamente falando, pode ser. Mas quando se olha em perspectiva, fica claro que o governo soviético só sobreviveu porque tinha amplo apoio entre os camponeses e os operários russos. E este apoio tinha uma motivação muito simples: contra o governo soviético, estava uma coalizão encabeçada por monarquistas, latifundiários, comandantes militares, burgueses e antigos revolucionários que quando tiveram o poder, não fizeram o que podiam e deviam ter feito em benefício do povo russo. Por isto, Outubro foi uma revolução.
A decisão de tomar o poder foi tomada numa reunião do Comitê Central do Partido Bolchevique. O planejamento militar foi feito por dirigentes do Partido e dos Sovietes. A data coincide com a reunião do Congresso de Sovietes de Toda a Rússia. O plano era tomar o poder e entregar para os Sovietes.
Talvez o momento mais dramático da revolução de Outubro tenha sido a votação para destituir a antiga direção do Soviete de Toda a Rússia. Ali ficou claro que a classe trabalhadora, através de seus representantes, apoiava a condução dada pelos bolcheviques, pelos socialistas revolucionários de esquerda, por anarquistas e revolucionários sem-partido.
Destituída a antiga direção, o Soviete escolheu o Comissariado do Povo, encabeçado por Wladimir Ilich Lenin, tendo Trotski como Comissário para assuntos exteriores e Stalin como Comissário das Nacionalidades. O primeiro discurso de Lenin falou do socialismo. Os primeiros decretos do Soviete tratavam de paz e terra.
Mas o governo alemão não queria qualquer paz. Queria que a Rússia entregasse aos alemães uma parte de seu território. Durante semanas, o Soviete e o Partido Bolchevique se dividem entre aceitar ou não esta paz. Ao final, por pequena maioria, prevalece a decisão de assinar o que ficaria conhecido como Tratado de Brest-Litovski.
O Tratado em si dura pouco, pois logo eclode a revolução na Alemanha, que derruba a monarquia e instaura a República. Mesmo assim, as divergências entre os revolucionários russos, sobre assinar ou não aquela paz, geram consequências terríveis. Os esseristas de esquerda rompem com o governo soviético e lançam uma onda de atentados, num dos quais Lenin é baleado.
Para agravar a situação, finda a Primeira Guerra Mundial, teve inicio a Guerra Civil.


Novembro
Os revolucionários russos tinham grandes planos. Para eles, Outubro de 1917 abriria caminho não apenas para paz, pão e terra, mas também para o socialismo. Que dependeria da ajuda de revoluções socialistas nos países mais avançados, dentre os quais destacavam a Alemanha.
A história seguiu outro caminho. Ocorreram revoluções em alguns países da Europa (Alemanha, Hungria, Romenia), mas foram todas derrotadas. Os governos capitalistas, preocupados com o risco de contaminação, decidiram construir um “cordão sanitário” ao redor da Rússia revolucionária. E aproveitaram a presença de tropas dentro do território russo para estimular a guerra civil e apoiar as tropas contra-revolucionárias.
Contra o Exército Branco, a revolução teve que construir o Exército Vermelho, tarefa na qual teve destaque Leon Trotsky. Inicialmente composto por voluntários, foi depois profissionalizado, contando com a participação de antigos oficiais do exército czarista, parte dos quais se dispunha a servir ao governo revolucionário por acreditar que este seria o único capaz de defender a integridade do território nacional e garantir a sobrevivência da nação.
Depois dos desastres causados pela Guerra Mundial, a Guerra Civil terminou de destruir a economia e a sociedade russa. As instituições democráticas recém-criadas pela revolução foram colocadas sob enorme tensão. Como combinar livre debate com disciplina militar? Como ser tolerante com uma oposição que deseja e atua pela morte da revolução e dos revolucionários?
O que sobrou da economia russa foi colocado à serviço do objetivo de vencer a guerra. Na prática, isto significava que a produção dos camponeses passou a ser requisitada, para alimentar as tropas e as cidades. A isto se deu o nome de “Comunismo de Guerra”.
Comunismo era o objetivo final, naquela época, de todos os socialdemocratas. Para deixar isto claro, mas também para se diferenciar dos outros setores da socialdemocracia, o POSDR faz um congresso em 1918 e mudou seu nome para Partido Comunista Russo (bolchevique).  Em 1919, num congresso com delegações vindas de outros países, foi criada a Internacional Comunista (também conhecida como “terceira internacional”, já que foi precedida pela internacional socialdemocrata e pela Associação Internacional dos Trabalhadores).
Os comunistas russos vencem a guerra civil em 1921. Mal a guerra havia acabado, explodem revoltas populares contra o governo soviético. Como resposta, o governo edita a Nova Política Econômica.


Dezembro
Havia alternativa a tomar o poder em Outubro de 1917?  Certamente havia, porque sempre há alternativas. Mas havia alternativas melhores?
Para os que decidiram tomar o poder, não parecia haver. Em alguns casos porque talvez subestimassem as dificuldades, muitas delas vinculadas a tentativa de construir o socialismo num país onde o capitalismo ainda não havia se consolidado.  Noutros casos porque uma alternativa realmente existente era a contrarrevolução dirigida por monarquistas e latifundiários e apoiada pelos governos imperialistas.
Havia alternativa às opções adotadas depois da tomada do poder? Como já dissemos, certamente havia. Quais? Este é um debate fundamental, entre outros motivos porque a desaparição da URSS está relacionada, em alguma medida, a determinadas escolhas.
Sobre elas há um debate imenso, que começou em 1917 e continua até hoje, envolvendo tanto as concepções que orientaram a construção da URSS e do movimento comunista, quanto o curso do capitalismo e da luta pelo socialismo no século 20 em todo o mundo.
Dar uma opinião a respeito extrapolaria os limites físicos e os propósitos de uma agenda. Mas cabe expressar uma “convicção”: globalmente falando, aí incluídos os seus erros, a contribuição da Revolução de Outubro para a humanidade foi positiva.
Acompanhamos esta convicção de inúmeras “provas”: os direitos iguais para as mulheres; as políticas públicas de saúde, educação, cultura, esportes, habitação e transporte; o planejamento econômico; a contribuição, direta e indireta, para a luta contra o imperialismo, o colonialismo, o racismo e o nazismo; a luta a favor da paz.
Em 1917 e 1918 o governo soviético publicou todos os tratados secretos entre o Império Russo e as demais potências. Ficou mais do que provado que enquanto houver imperialismo e capitalismo, haverá guerra.
Cem anos depois da revolução, os Estados Unidos empurram o mundo para novos conflitos militares.  Em diversos aspectos, o mundo é hoje mais perigoso do que na época da Guerra Fria. Muito pode e deve ser feito para impedir a guerra e defender a paz. Mas uma paz duradoura exige derrotar e superar o capitalismo.
Esta é a agenda que propomos, para 2017 e para os próximos anos, décadas e séculos: construir uma sociedade sem opressão nem exploração, uma sociedade socialista e comunista.

http://www.pagina13.org.br/noticias/agenda-2017-100-anos-de-revolucao-russa/#.WFqGelUrK1s


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