Janeiro
Cem anos depois da tomada do poder pelos Sovietes, os
acontecimentos daquele ano, seus antecedentes e seus desdobramentos continuam
gerando intensos debates e fortes emoções: “1917” é uma referência para os
socialistas, assim como “1789” foi durante muito tempo uma referência para os democratas.
Autocracia e democracia, Império e nações oprimidas,
barbárie e civilização, Ocidente e Oriente, reforma e revolução, populistas e
socialdemocratas, mencheviques e bolcheviques, brancos e vermelhos, trotskistas
e stalinistas, burocratas e renovadores, capitalistas e comunistas: centenas de
milhões de palavras foram pensadas, ditas e escritas para tomar posição frente
a estas e outras polarizações que marcaram a história da vida russa e que
influenciaram o destino da humanidade durante o século XX.
No final de 1991, televisões de todo o mundo transmitiram
a cena: pela última vez desde então, a bandeira da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas desceu o mastro onde estava hasteada, no Kremlin.
Desmoralizando as previsões dos teóricos do “totalitarismo”, a URSS caiu devido
à suas próprias contradições internas.
Décadas depois da dissolução da URSS, qual a herança da
Revolução Russa de 1917? Muito já se disse a respeito e muito continuará sendo
dito, já que cada geração constrói sua própria opinião acerca do passado. Mas
uma coisa é certa: enquanto existir capitalismo sob a face da Terra, a
Revolução Russa continuará provocando paixões antagônicas. De um lado, os que a consideram a
materialização do mal. De outro lado, os que a consideram um momento
fundamental da luta para libertar a humanidade de todas as formas de opressão e
exploração.
Os editores desta agenda reconhecem: somos defensores
apaixonados da Revolução Russa de 1917. Como tantas outras obras humanas, foi carregada
de tragédias e crimes, lama e sangue, dor e violência. Mas, diferente de outras
obras humanas, a Revolução foi um esforço titânico para materializar os ideais
de igualdade, liberdade e fraternidade. Metas algum dia compartilhadas pela burguesia,
mas que desde há muito constituem parte do legado e patrimônio da classe trabalhadora.
Cabe aos trabalhadores e trabalhadoras do século 21
decidir qual será a herança da Revolução Russa de 1917. Esperamos que sigam o exemplo do proletariado
russo, ao comemorar o aniversário da Comuna de Paris de 1871: inspirar-se no
heroísmo, aprender com os erros, preparar os próximos triunfos.
Fevereiro
A Revolução Russa de 1917 não foi uma, mas duas: a de “Fevereiro”,
que derrubou o czarismo e instalou um governo provisório; e a de “Outubro”, que
derrubou o governo provisório e instalou o governo dos Sovietes.
Nas duas revoluções, entraram em choque quatro grandes
forças sociais: a aristocracia proprietária de terras, a burguesia capitalista,
o campesinato e o proletariado. Cada uma destas classes tinha seus partidos,
sua imprensa e seus intelectuais. E depois de 1917, tinha também seus
exércitos, que disputaram o controle do território ao longo de uma guerra cujas
principais batalhas foram travadas entre 1918 e 1921.
Além de burguesa, camponesa e proletária, a revolução
russa teve um importante componente nacional. Mais da metade da população que
vivia no Império Russo pertencia a outras nacionalidades, que a partir de 1917
puderam exercer sua autodeterminação. Em muitos casos, se converterão em integrantes
da futura União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
As contradições entre as nações oprimidas e o Império, bem
como as contradições entre os latifundiários e as demais classes sociais, marcaram
a história da Rússia durante os séculos 18 e 19. Noutras regiões do mundo,
contradições semelhantes desdobraram-se em grandes transformações, de que são
exemplo a Revolução Gloriosa, na Inglaterra; a Guerra de Independência das 13
Colônias, na América do Norte; a Grande Revolução Francesa; a Revolução Mexicana.
Já na Rússia, o czarismo conseguiu sobreviver, em alguns
casos convertendo-se ele próprio em agente de mudanças parciais, feitas de cima
para baixo. Dois exemplos disto: as reformas introduzidas por Pedro o Grande e
a Emancipação dos Servos em 1863. Mas nenhuma destas mudanças vindas de cima
alterou o caráter autocrático, absolutista e feudal do czarismo russo.
Também por isto, o Império Russo continuava poderoso e
atrasado, o que ficou claro em 1904, quando a Rússia sofre uma humilhante derrota
militar para o Japão. Como parte das ondas de choque causadas pela derrota, a
Rússia experimenta sua primeira revolução. Embora limitada e derrotada, a
Revolução de 1905 funciona como uma espécie de “ensaio geral” para o que
ocorreria em 1917, inclusive quanto a relação entre guerra e revolução.
A Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914, desmoralizou
o governo imperial russo, desesperou o povo e armou os camponeses. Estavam reunidos os ingredientes para a
revolução, que teria início nas comemorações do dia internacional da mulher.
Março
Revoluções colocam o mundo de ponta-cabeça. E mudam os
calendários. Quando ocorreu a revolução, o Império Russo adotava o calendário
juliano. John Reed – jornalista estadunidense e autor do livro “Os dez dias que
abalaram o mundo”— pode ter enviado um telegrama dizendo algo assim: as tropas
comandadas pelo Soviete de Petrogrado tomaram o poder na passagem do 24 para o
25 de outubro segundo o calendário russo, ou seja, na passagem de 6 para 7 de
novembro segundo o calendário gregoriano, utilizado nos EUA, Inglaterra e
França. Depois da revolução, a Rússia adotou o calendário gregoriano. Mas o
nome “de Outubro” já tinha entrado para a história.
Pelos motivos explicados, a “Revolução de Fevereiro” teve
início no dia 8 de março, quando as operárias de Petrogrado realizaram uma
manifestação, para comemorar o dia internacional da mulher e para apresentar
suas reivindicações econômicas, sociais e políticas.
As principais organizações partidárias desaconselharam a
realização da manifestação, já que haveria repressão. Efetivamente, a repressão
ocorreu. Mas também ocorreram duas novidades importantes: tropas do Exército,
mais exatamente a cavalaria cossaca, protegeram a manifestação da repressão
policial. E a repressão teve como resposta uma onda de greves de solidariedade,
não apenas em Petrogrado, mas nas principais cidades russas.
Vale lembrar: televisão e internet não existiam, rádio e
telefone não eram populares como hoje. As comunicações dependiam em grande
medida do telégrafo, da imprensa e do deslocamento das pessoas. Portanto, a
rapidez com que estalaram as greves de solidariedade só pode ser explicada graças
ao clima favorável, um ambiente inflamável à espera de um gatilho, de um
disparador, de um catalizador, de uma chama que acendesse o pavio.
Em poucos dias, o czar renunciou em favor de um parente,
que não aceitou o encargo. Tinha fim o poder da dinastia Romanov, que havia
assumido o trono imperial em 1613. Vinham abaixo trezentos anos de autocracia.
O parlamento (conhecido como Duma) assumiu o poder, nomeando um governo provisório.
Acabara a monarquia. A Rússia convertera-se numa república.
O povo tinha expectativas limitadas: queria pão, queria
paz, queria terra, queria a convocação de uma Assembleia Constituinte. Mas o
governo provisório tinha uma disposição ainda mais limitada. Nenhuma medida
reclamada pelo povo foi atendida de imediato; e algumas medidas nunca foram
atendidas. É o caso da paz: o governo provisório decidiu continuar
participando, junto com Inglaterra e França, da guerra contra a Alemanha.
Estava criada a situação que produziria, meses depois, uma nova revolução.
Abril
Durante décadas, a Rússia produziria, reprimiria, prenderia
e executaria revolucionários. E também os “exportaria” para outros países. Alguns
são pouco conhecidos. Outros tornaram-se famosos, como Bakunin e Lenin.
Lenin não estava na Rússia quando explodiu a Revolução de Fevereiro.
Então ele morava em Genebra, na Suíça. Seu cotidiano, compartilhado com a revolucionária
Nadežda Krupskaja, era muito difícil. Eles viviam exilados desde 1900. Lenin
regressara à Rússia durante a revolução de 1905, mas tivera que exilar-se
novamente. Dependiam de recursos oferecidos por familiares, contribuições de
simpatizantes, pagamento de palestras, traduções e artigos.
Lenin era um importante dirigente do Partido Operário
Social Democrata Russo, fundado em 1898, dissolvido pela polícia do czar e
reorganizado no II Congresso de 1903, realizado parte em Bruxelas, parte em
Londres. O POSDR atuava na clandestinidade, pois a autocracia czarista não
autorizava a existência de partidos, nem de sindicatos. Dentro do POSDR havia
diferentes posições, que lutavam entre si de maneira geralmente muito dura. O
II Congresso do POSDR havia terminado com o partido rachado em duas grandes
“frações” (hoje diríamos tendências): os mencheviques e os bolcheviques.
Mencheviques, palavra russa para “minoritários”, eram os que
haviam perdido (por 2 votos) a eleição do Comitê Central do POSDR. Do outro lado
estavam os bolcheviques, palavra russa para “majoritários”. Ao longo da
história do POSDR, os mencheviques algumas vezes foram maioria e os
bolcheviques algumas vezes minoria, mas nunca trocaram seus apelidos.
Lenin era um dos principais dirigentes do grupo
bolchevique. Mencheviques e bolcheviques defendiam que a Rússia necessitava de
uma revolução democrático-burguesa. Mas os bolcheviques defendiam que o
campesinato deveria ter um papel fundamental nesta revolução; aceitavam até o
apoio e participação do PSODR num governo burguês, desde que este governo fosse
uma “ditadura democrático-revolucionária do campesinato e do operariado”.
Também por isto, os bolcheviques adotam uma postura de
apoio cauteloso ao governo provisório resultante da Revolução de Fevereiro. Daí,
também, o susto que tomam quando vão receber Lenin na Estação Finlândia. Discursando
para quem o estava recepcionando na estação ferroviária, depois de tão longo
exílio, Lenin defende a derrubada do governo provisório, todo poder aos
sovietes e uma revolução socialista.
Estas posições, reunidas posteriormente nas chamadas
“Teses de Abril”, fazem muitos dos velhos bolcheviques acreditarem que Lenin
estava louco.
Maio
Muita tinta se gastou para explicar a posição adotada por
Lenin em abril de 1917. Há os que consideram que ele manteve total coerência
com a elaboração tradicional dos bolcheviques, que sempre assumiram a postura
de “empurrar ao máximo o limite do possível”. Há os que consideram que ele
mudou totalmente de posição, aproximando-se das ideias dos populistas ou então
das formulações de Leon Trotsky, que em 1903 ficara do lado dos mencheviques e
posteriormente rompera com eles, atuando como líder de um grupo intermediário
entre as duas principais tendências do partido.
Há, também, os que acreditam que Lenin, baseando-se nas
posições que sempre defendeu, percebeu que o surgimento do imperialismo e a
eclosão da Primeira Guerra Mundial colocaram a disjuntiva entre capitalismo e
socialismo na ordem do dia; e que a Rússia, por conta do seu atraso, era o “elo
mais fraco” onde a revolução poderia ocorrer em primeiro lugar.
Mas qual revolução? Até então Lenin sempre dissera que a
Rússia deveria experimentar uma revolução burguesa. Mas Lenin dizia que havia
diferentes tipos de revolução burguesa; se o campesinato estivesse à frente da
revolução burguesa na Rússia, isto produziria uma radicalização que tornaria
mais rápida a passagem para uma etapa seguinte, a revolução socialista.
Enquanto apontava estas possibilidades objetivas, Lenin
estava pessimista quanto ao curto prazo, em parte devido à traição cometida
pela maioria dos socialdemocratas europeus, que decidiram apoiar a Guerra
Mundial, defender a posição de suas respectivas burguesias e de seus Estados
nacionais. Pouco antes da Revolução de Fevereiro, num discurso feito para a
juventude da esquerda suíça, Lenin disse que o socialismo triunfaria, mas
talvez fosse algo que seria vivido apenas pelos netos de quem estava ali.
Quando eclode a Revolução de Fevereiro, Lenin percebe ali
uma possibilidade: frente a um governo provisório que não quer atender as
demandas do povo, propor aos sovietes que tomassem o poder. E uma revolução
dirigida pelos sovietes já não seria uma revolução apenas burguesa; seria
também uma revolução proletária, que ajudaria e seria apoiada pelas revoluções
que – Lenin estava seguro disto – ocorreriam noutros países europeus. Estas
outras revoluções seriam totalmente socialistas e viriam em ajuda dos revolucionários
russos, tornando possível a construção exitosa do socialismo na Rússia.
Este era o plano contido nas Teses de Abril. Mas para isso era preciso conquistar maioria nos
Sovietes.
Junho
Soviete é uma palavra russa que pode ser traduzida como
“conselho”. Há quem diga que o primeiro soviete surgiu em decorrência de uma
iniciativa do próprio czarismo, que ao decidir vistoriar as condições de
trabalho nas fábricas russas, estimulou os operários a reunirem-se e eleger
representantes para apresentar suas opiniões aos inspetores oficiais.
Os sovietes tornaram-se uma força política durante a Revolução
de 1905. O ponto de partida daquela Revolução foi um massacre cometido pela
guarda do palácio real, contra trabalhadores que tinham ido até lá entregar ao
Czar uma petição. A reação ao massacre foi uma onda de manifestações e greves políticas,
que foram acompanhadas da eleição de delegados nas fábricas, que reuniram-se
posteriormente em sovietes de âmbito municipal, provincial e nacional. Inicialmente
os sovietes foram compostos apenas por operários. Em 1917, os soldados e os
camponeses também constituíram sovietes.
Em 1905, os sovietes existiram antes que houvesse uma
teoria acerca dos seus propósitos. Em 1917, as coisas já estavam mais claras:
os sovietes eram organismos políticos e revolucionários. Mas qual era a posição
dos sovietes na revolução de 1917? No início foi a de apoiar o governo
provisório. Dito de outra forma: os sovietes que representavam os operários
apoiavam o governo provisório que representava a burguesia. Logo, os operários apoiavam a revolução...
burguesa. E não qualquer revolução burguesa, mas uma revolução burguesa moderada,
que adiava ou negava solução os problemas da paz, da terra, do pão e da
Assembleia Constituinte.
A posição de Lenin, que em pouco tempo vira a posição oficial
dos bolcheviques, quer mudar esta situação. Eles defendem que os sovietes passem
para a oposição e que tomem o poder. Mas para isto seria necessário convencer
os sovietes, ou seja, convencer os operários de que seria necessário – para ter
pão, paz, terra e Assembleia Constituinte—derrubar o governo provisório e tomar
o poder.
Os bolcheviques dedicam-se a isto de abril até setembro de
1917. Cooperam em alguma medida com outros grupos: revolucionários sem partido,
sindicalistas de variados matizes, anarquistas, socialistas revolucionários de
esquerda, alguns mencheviques. Contra os que defendem todo poder aos sovietes, estão
todos os demais. Pouco a pouco os bolcheviques tornam-se o principal inimigo
tanto do governo provisório, quanto dos saudosos do czarismo.
Julho
O Partido Socialista Revolucionário (SR) foi criado na
mesma época que o Partido Operário Social Democrata Russo. Os primeiros
socialistas revolucionários descendiam do populismo. Os populistas defendiam
construir o socialismo sem passar pelo capitalismo. Acreditavam que isto seria
possível graças a sobrevivência, entre os camponeses russos, da propriedade
coletiva da terra e de vários hábitos coletivos de produção e vida.
Os populistas foram muito fortes na segunda metade do
século 19, sofreram várias cisões e metamorfoses ao longo de sua existência,
uma delas desembocando na criação do Partido Socialista Revolucionário.
Assim como os socialdemocratas, os SR estavam divididos em
frações (ou tendências). Os SR de direita participam do governo provisório; um deles,
o advogado Alexandre Kerensky, chegará a ser primeiro-ministro.
O governo provisório mantém uma relação difícil, mas de
cooperação, com os dois partidos que controlam o Soviete de Toda a Rússia: os
esseristas de direita (o setor mais moderado do Partido Socialista Revolucionário)
e os mencheviques (a ala direita do Partido Operário Social Democrata Russo).
Quem detém o poder na Rússia revolucionária? Na opinião de
Lenin, existe uma situação estranha, que ele intitula de “duplo poder”,
compartilhado entre o governo provisório burguês e o soviete proletário. Esta
situação de duplo poder é instável e existe apenas porque os sovietes aceitam
submeter-se ao governo provisório.
Tanto o Governo Provisório quanto seus aliados no Soviete
sofrem intensa pressão dos setores populares. Culpam os bolcheviques por isto,
mas a realidade é que os bolcheviques constituem apenas uma das expressões
organizadas da imensa insatisfação social.
Uma prova disso são as jornadas de julho de 1917, grandes
manifestações de massa realizadas em Petrogrado. Os bolcheviques haviam opinado
contra a realização das manifestações, mas acabam participando delas, sendo
fortemente reprimidos por isto. Vários dirigentes são presos e Lenin é forçado
a esconder-se clandestinamente na Finlândia, onde redige um livro que seria
publicado depois de outubro: “O Estado e a Revolução”.
Os latifundiários e os generais monarquistas também se
opõem ao Governo Provisório, considerando por eles fraco tanto para conduzir a
guerra quanto para reprimir a “anarquia revolucionária”.
Agosto
Em agosto de 1917, o general Lavr Kornilov tenta dar um
golpe de Estado contra o governo provisório. Seu verdadeiro alvo é a revolução
como um todo: os sovietes, os operários e soldados revolucionários, os
camponeses que estão tomando terras na marra, os partidos de esquerda,
especialmente os bolcheviques.
Kornilov usa as tropas sob seu comando para atacar
Petrogrado, a capital russa. Quem organiza a exitosa defesa são os sovietes,
com destaque para os bolcheviques, que já haviam se convertido a esta altura em
maioria absoluta ou relativa em grande parte dos sovietes locais e regionais.
Incapaz de organizar sua própria defesa, o governo
provisório está condenado a ser derrubado, mais cedo ou mais tarde. Ao mesmo tempo, os principais partidos russos
se dão conta, pouco a pouco, de que não haverá solução pacífica para o impasse.
Parte dos bolcheviques entende que a situação está ficando
madura para a tomada do poder. Outros setores resistem a isto e alertam para a
catástrofe econômica, para a piora das condições sociais, para a crescente
anarquia política, para os riscos de uma guerra civil, para as dificuldades que
o movimento socialista enfrentava no restante da Europa. Os argumentos de parte
a parte são fortes, mas muito mais forte era a percepção de que se os bolcheviques
não tomassem o poder, a direita o faria e massacraria não apenas os bolcheviques,
mas toda a esquerda.
A essa altura, as ondas de choque da revolução já haviam
chegado às mais distantes aldeias russas. Embora a Rússia tivesse enormes
cidades, a maior parte da população ainda trabalhava e vivia no campo.
Depois de três anos de guerra, o camponês-soldado quer
voltar para casa. E o camponês que conseguiu escapar da convocação militar quer
que a guerra termine, mas também quer tomar para si as terras onde trabalhavam.
Por isto, para os latifundiários não bastava que o governo provisório
retardasse a Assembleia Constituinte e a reforma agrária. Era preciso
desencadear uma brutal repressão, nos campos e nas cidades, para colocar as coisas
de volta no lugar de sempre.
De maneira semelhante, o ambiente de agitação nos quartéis
e nas fábricas confirma que a derrubada do czar não foi o fim, mas o início de
uma imensa revolução que ameaçava o poder e a propriedade dos ricos. Por isto,
os principais partidos chegaram a conclusão de que não era possível um desfecho
pacífico para a situação: a direita quer um ditador militar, a esquerda quer
uma revolução socialista.
Setembro
Em algum momento do século 19 e início do século 20, quem
fosse democrata ou socialista aspirava por uma revolução na Rússia, pais
considerado “atrasado”, “bárbaro” e “asiático”. Aliás, termos que revelam como
a esquerda ocidental estava carregada de preconceitos imperialistas e racistas.
Entretanto, quando a revolução russa realmente ocorre, ela
gera sentimentos contraditórios. Para os governos da França e da Inglaterra, a
revolução era um desastre militar, na medida em que enfraquecia a disciplina e
a eficácia dos exércitos russos no combate com os alemães. Para os governos da
Alemanha e da Áustria, passava exatamente o contrário: a revolução era um
presente caído dos céus, que permitia concentrar todas as atenções na frente
Ocidental.
Entre os socialdemocratas, o entusiasmo com a Revolução Russa
dependia da posição de cada um frente à Guerra Mundial. Por isto, os mais
entusiasmados foram os setores que, dentro de cada partido socialista europeu,
opunham-se à guerra. É o caso da Liga Spartacus, grupo formado no interior do
Partido Social Democrata Alemão e que atuava clandestinamente, para se proteger
tanto dos tribunais militares quanto da direção do PSDA.
A medida que os bolcheviques ampliavam sua influência na classe trabalhadora
e nos Sovietes, crescia a preocupação dos setores majoritários da Social Democracia
europeia. Afinal, os bolcheviques eram conhecidos e criticados por suas
posições ao mesmo tempo ortodoxas e heterodoxas.
Eram ortodoxos na hora de defender o marxismo
revolucionário contra aqueles setores que consideravam ultrapassadas as ideias
fundamentais de Karl Marx e Friedrich Engels, especialmente aquelas acerca do
capitalismo, da mais-valia, da queda tendencial da taxa de lucro, das crises e
da revolução.
Mas os bolcheviques eram heterodoxos no momento de propor
soluções políticas para as situações que enfrentavam num país cujo
desenvolvimento havia seguido um caminho diferente daquele experimentado na
Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.
Esta mistura original de ortodoxia e heterodoxia tinha
levado os bolcheviques a defender o derrotismo revolucionário. Diziam não saber
quem era pior, dentre os dois “bandos imperialistas” que se enfrentavam na
Primeira Guerra Mundial. Mas tinham certeza de que, para o proletariado russo,
o melhor era a derrota do Império Russo. Posição que lhes custaria perseguições
e prisões, mas que lhes permitiria defender a paz com uma coerência sem igual
entre as demais forças políticas russas.
Outubro
A Revolução de Fevereiro de 1917 não resultou de uma
decisão adotada por nenhum partido. Já a
Revolução de Outubro foi uma decisão consciente do Partido Operário Social
Democrata Russo (bolchevique).
Por este motivo, há quem afirme que Outubro foi um golpe
de Estado. Tecnicamente falando, pode ser. Mas quando se olha em perspectiva,
fica claro que o governo soviético só sobreviveu porque tinha amplo apoio entre
os camponeses e os operários russos. E este apoio tinha uma motivação muito
simples: contra o governo soviético, estava uma coalizão encabeçada por
monarquistas, latifundiários, comandantes militares, burgueses e antigos revolucionários
que quando tiveram o poder, não fizeram o que podiam e deviam ter feito em
benefício do povo russo. Por isto, Outubro foi uma revolução.
A decisão de tomar o poder foi tomada numa reunião do
Comitê Central do Partido Bolchevique. O planejamento militar foi feito por
dirigentes do Partido e dos Sovietes. A data coincide com a reunião do
Congresso de Sovietes de Toda a Rússia. O plano era tomar o poder e entregar
para os Sovietes.
Talvez o momento mais dramático da revolução de Outubro
tenha sido a votação para destituir a antiga direção do Soviete de Toda a
Rússia. Ali ficou claro que a classe trabalhadora, através de seus representantes,
apoiava a condução dada pelos bolcheviques, pelos socialistas revolucionários
de esquerda, por anarquistas e revolucionários sem-partido.
Destituída a antiga direção, o Soviete escolheu o
Comissariado do Povo, encabeçado por Wladimir Ilich Lenin, tendo Trotski como
Comissário para assuntos exteriores e Stalin como Comissário das
Nacionalidades. O primeiro discurso de Lenin falou do socialismo. Os primeiros
decretos do Soviete tratavam de paz e terra.
Mas o governo alemão não queria qualquer paz. Queria que a
Rússia entregasse aos alemães uma parte de seu território. Durante semanas, o
Soviete e o Partido Bolchevique se dividem entre aceitar ou não esta paz. Ao
final, por pequena maioria, prevalece a decisão de assinar o que ficaria
conhecido como Tratado de Brest-Litovski.
O Tratado em si dura pouco, pois logo eclode a revolução
na Alemanha, que derruba a monarquia e instaura a República. Mesmo assim, as
divergências entre os revolucionários russos, sobre assinar ou não aquela paz,
geram consequências terríveis. Os esseristas de esquerda rompem com o governo
soviético e lançam uma onda de atentados, num dos quais Lenin é baleado.
Para agravar a situação, finda a Primeira Guerra Mundial,
teve inicio a Guerra Civil.
Novembro
Os revolucionários russos tinham grandes planos. Para
eles, Outubro de 1917 abriria caminho não apenas para paz, pão e terra, mas
também para o socialismo. Que dependeria da ajuda de revoluções socialistas nos
países mais avançados, dentre os quais destacavam a Alemanha.
A história seguiu outro caminho. Ocorreram revoluções em
alguns países da Europa (Alemanha, Hungria, Romenia), mas foram todas
derrotadas. Os governos capitalistas, preocupados com o risco de contaminação,
decidiram construir um “cordão sanitário” ao redor da Rússia revolucionária. E
aproveitaram a presença de tropas dentro do território russo para estimular a
guerra civil e apoiar as tropas contra-revolucionárias.
Contra o Exército Branco, a revolução teve que construir o
Exército Vermelho, tarefa na qual teve destaque Leon Trotsky. Inicialmente
composto por voluntários, foi depois profissionalizado, contando com a
participação de antigos oficiais do exército czarista, parte dos quais se
dispunha a servir ao governo revolucionário por acreditar que este seria o
único capaz de defender a integridade do território nacional e garantir a
sobrevivência da nação.
Depois dos desastres causados pela Guerra Mundial, a
Guerra Civil terminou de destruir a economia e a sociedade russa. As
instituições democráticas recém-criadas pela revolução foram colocadas sob
enorme tensão. Como combinar livre debate com disciplina militar? Como ser
tolerante com uma oposição que deseja e atua pela morte da revolução e dos
revolucionários?
O que sobrou da economia russa foi colocado à serviço do
objetivo de vencer a guerra. Na prática, isto significava que a produção dos camponeses
passou a ser requisitada, para alimentar as tropas e as cidades. A isto se deu
o nome de “Comunismo de Guerra”.
Comunismo era o objetivo final, naquela época, de todos os
socialdemocratas. Para deixar isto claro, mas também para se diferenciar dos outros
setores da socialdemocracia, o POSDR faz um congresso em 1918 e mudou seu nome
para Partido Comunista Russo (bolchevique). Em 1919, num congresso com delegações vindas de
outros países, foi criada a Internacional Comunista (também conhecida como
“terceira internacional”, já que foi precedida pela internacional
socialdemocrata e pela Associação Internacional dos Trabalhadores).
Os comunistas russos vencem a guerra civil em 1921. Mal a
guerra havia acabado, explodem revoltas populares contra o governo soviético.
Como resposta, o governo edita a Nova Política Econômica.
Dezembro
Havia alternativa a tomar o poder em Outubro de 1917? Certamente havia, porque sempre há
alternativas. Mas havia alternativas melhores?
Para os que decidiram tomar o poder, não parecia haver. Em
alguns casos porque talvez subestimassem as dificuldades, muitas delas
vinculadas a tentativa de construir o socialismo num país onde o capitalismo
ainda não havia se consolidado. Noutros
casos porque uma alternativa realmente existente era a contrarrevolução dirigida
por monarquistas e latifundiários e apoiada pelos governos imperialistas.
Havia alternativa às opções adotadas depois da tomada do
poder? Como já dissemos, certamente havia. Quais? Este é um debate fundamental,
entre outros motivos porque a desaparição da URSS está relacionada, em alguma
medida, a determinadas escolhas.
Sobre elas há um debate imenso, que começou em 1917 e
continua até hoje, envolvendo tanto as concepções que orientaram a construção
da URSS e do movimento comunista, quanto o curso do capitalismo e da luta pelo
socialismo no século 20 em todo o mundo.
Dar uma opinião a respeito extrapolaria os limites físicos
e os propósitos de uma agenda. Mas cabe expressar uma “convicção”: globalmente
falando, aí incluídos os seus erros, a contribuição da Revolução de Outubro
para a humanidade foi positiva.
Acompanhamos esta convicção de inúmeras “provas”: os
direitos iguais para as mulheres; as políticas públicas de saúde, educação,
cultura, esportes, habitação e transporte; o planejamento econômico; a
contribuição, direta e indireta, para a luta contra o imperialismo, o colonialismo,
o racismo e o nazismo; a luta a favor da paz.
Em 1917 e 1918 o governo soviético publicou todos os
tratados secretos entre o Império Russo e as demais potências. Ficou mais do
que provado que enquanto houver imperialismo e capitalismo, haverá guerra.
Cem anos depois da revolução, os Estados Unidos empurram o
mundo para novos conflitos militares. Em
diversos aspectos, o mundo é hoje mais perigoso do que na época da Guerra Fria.
Muito pode e deve ser feito para impedir a guerra e defender a paz. Mas uma paz
duradoura exige derrotar e superar o capitalismo.
Esta é a agenda que propomos, para 2017 e para os próximos
anos, décadas e séculos: construir uma sociedade sem opressão nem exploração,
uma sociedade socialista e comunista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário