Texto escrito para o caderno de debates do II Congresso do PT, realizado em novembro de 1999.
As elites dominam este país há quase 500 anos. Há quase 500
anos, os de baixo (escravos, camponeses, trabalhadores) lutam contra a opressão
e a dominação. Perdemos a maior parte das batalhas. Mas conquistamos este pouco
de democracia e de políticas sociais que o neoliberalismo de FHC quer nos
arrancar.
Nos anos 80, a luta dos de baixo adquiriu maior intensidade.
Derrotamos a ditadura, criamos a CUT e o MST, refundamos a UNE, reconquistamos
a liberdade de organização partidária, obtivemos importantes vitórias
eleitorais.
Como resultado disto tudo, em 1989, pela primeira vez na
história do Brasil, as esquerdas disputaram para valer e quase ganharam a
presidência da República. Não mais votar num candidato das elites: os
trabalhadores puderam votar num trabalhador, num socialista. Em 1994 e 1998,
ainda que de maneira diferente, a polarização prosseguiu: de um lado, os
conservadores; de outro, o campo democrático-popular e socialista.
O Partido dos Trabalhadores é criatura e criador desta polarização.
Criatura, na medida em que ele foi o desaguadouro deste acúmulo de forças
multifacetado, que ocorreu nos anos 80 e 90. Criador, porque foi sua estratégia
de independência de classe, de recusa à conciliação das elites, de repúdio a
qualquer aliança estratégica com setores da burguesia, que permitiu que aquele
acúmulo de forças resultasse na polarização entre blocos históricos.
Hoje, quando realizamos o II Congresso do PT, aquela
polarização corre risco. Setores importantes da burguesia disputam conosco o
apoio popular. E setores importantes do PT querem fazer uma aliança estratégica
com uma fração da burguesia brasileira, repetindo assim, nos anos 90, a
fracassada política “nacional-democrática” do velho Partido Comunista.
Não temos dúvida: se o PT abandonar sua estratégia
socialista, ele não sobreviverá. O Partido dos Trabalhadores é um instrumento
daqueles que lutam pelo socialismo. Não é o único instrumento dos
trabalhadores, que dispõem de uma rede de organizações culturais, estudantis,
populares e sindicais. Nem é o único a lutar pelo socialismo: outras
organizações, inclusive outros partidos, afirmam o socialismo como seu objetivo
estratégico.
O Partido é um instrumento cuja tarefa específica é a luta
pelo poder, a conquista do poder. Existem, ou deveriam existir, três diferenças
básicas entre o PT e os demais partidos: 1)as táticas e a estratégia que
desenvolvemos para conquistar o poder; 2)a maneira como iremos proceder uma vez
no poder; 3)os objetivos que pretendemos alcançar através do poder.
Hoje
existem enormes divergências no PT sobre sua estrutura, seu funcionamento.
Estas divergências derivam principalmente das concepções diferentes que existem
entre nós, sobre o que é o poder e qual a estratégia para conquistá-lo.
Um
setor do PT confunde poder e governo, e acha que o poder pode ser conquistado
através de eleições. A partir deste pressuposto, este setor decidiu transformar
o PT num partido eleitoral: um partido cujo objetivo central é disputar e
vencer eleições.
Devido
à natureza do sistema eleitoral brasileiro, um partido eleitoral exige
financiamento de campanha, presença permanente na mídia, figuras públicas
capazes de dialogar com a “opinião pública”, lideranças autonomizadas em
relação aos partidos. Exige, finalmente, cabos eleitorais.
Num
partido eleitoral, o centro de poder está nos mandatos, nos governos. O
programa se reduz às políticas públicas. Num partido eleitoral, não existe
democracia interna: manda quem tem voto fora dele. Suas decisões são tomadas
por conselhos de notáveis, de portadores de mandato.
Outro
setor do PT não confunde poder e governo, e acha que a conquista do poder
inclui mas não se limita a disputa eleitoral. E acredita que, para construir o
socialismo, é preciso outro tipo de Estado, diferente deste que aí está. A
partir destes pressupostos estratégicos, este setor trabalha para que o PT seja
um partido militante.
Partido
militante é aquele capaz de atuar e acumular força em todas as dimensões da
luta de classes (sindical, popular, estudantil, cultural, econômica, política).
Partido militante é aquele capaz de controlar seus dirigentes. Capaz de
disputar eleições e controlar seus eleitos. Capaz de conquistar o poder por
outros meios que não apenas o eleitoral.
Na
história do movimento socialista, existiram partidos militantes de massa e
partidos militantes só de lideranças. Nos anos 80, o PT foi um partido
militante de massas. Fazia política para milhões; e fazia esta política de
massas através de milhares de militantes e simpatizantes. O 5º Encontro
Nacional do PT (1987) decidiu que o PT devia ser um partido de massas e de
quadros (ou seja, um partido militante de massas).
Desde
o início dos anos 90, a ala moderada do PT vem tentando alterar nossa concepção
de partido. Começaram atacando o caráter dirigente do Partido, propondo o
partido de “interlocução”. Simultaneamente, vem tentando transformar o PT num
partido eleitoral de massas.
Isso
se traduz na perda de importância dos militantes, no enfraquecimento das
instâncias e na autonomização dos dirigentes. É fundamentalmente por isso que a
formação política perde importância; que o presidente do PT é eleito “em
separado”; que a presidência tenta se transformar numa instância acima da
direção; que não conseguimos construir uma imprensa partidária etc.
Surge,
também, a idéia de que os “com voto” devem mandar no partido. Essa teoria tem
uma aparência simpática e democrática. Mas cabe perguntar, em primeiro lugar,
quem conquista os votos dos que têm votos...
Em
1998, por exemplo, os deputados federais mais votados em São Paulo foram
beneficiados por uma decisão do Partido, que os transformou em “puxadores de
voto”, com muito tempo na programa eleitoral gratuito. Utilizar a votação
recebida, por esforço de todos, em benefício de uma parte do PT, é enterrar
qualquer chance de construirmos campanhas coletivas.
Em
segundo lugar, cabe lembrar que os eleitores mandataram nossos parlamentares ou
executivos para exercer funções públicas, não para ganhar espaço no interior do
PT.
Vale
lembrar, ainda, que parte dos nossos eleitores não são petistas. Qualquer
privilégio aos “com voto” do PT, é equivalente a dizer que não-petistas passam
a ter influência sobre as decisões do nosso partido, igual a dos petistas.
O
Partido pode e deve ser permeável a influência política do conjunto da
sociedade, em particular das classes trabalhadoras. Mas esta influência não
pode nem deve ser igual a de nossos militantes, pelo simples motivo de que o
Partido é uma parte da sociedade.
Um
executivo ou parlamentar ganha, automaticamente, certa proeminência na vida
partidária, certa autoridade política. O erro está em transformar essa
autoridade política num atributo estatutário, num poder a mais, como acontece
nos partidos em que os parlamentares têm voto qualificado. O fato dos líderes
de bancada terem direito a voto em nossas executivas partidárias, por exemplo,
é um exemplo desta lógica eleitoral no funcionamento interno do partido.
Um
partido socialista sempre terá dificuldades em ser totalmente eleitoral. A
“mística” da militância é um elemento importante na ideologia do movimento
socialista. Mesmo que seja por hipocrisia, as lideranças são obrigadas a fazer
juras de amor à militância.
Como
manter algum laço com a tradição militante, ao mesmo tempo em que se impede a
militância de mandar no Partido? A solução tem sido a filiação em massa de
pessoas com pouca ou nenhuma tradição partidária, cujos vínculos são com um
mandato, não com o PT.
Daí
vermos, em alguns encontros partidários, o espetáculo vexaminoso de filiados
serem transportados para votar, terem suas contribuições pagas em massa por
“caciques” políticos, depositarem seu voto na urna e irem se embora, sem
participar de nenhum debate político.
Os que
sufocam a militância com o peso deste tipo de filiados argumentam que isso é
coerente com o objetivo de construirmos um partido de massas. O que eles não
dizem é que estas massas são de manobra. O partido de massas que eles querem
construir é eleitoral, o nosso é militante.
Esperamos
que o II Congresso derrote o partido eleitoral de massas e afirme o PT
militante de massas. Um partido dirigente na sociedade, que orienta a ação de
seus militantes. Um partido que faz política todo dia, presente no cotidiano do
povo. Um partido de instâncias orgânicas, espaço de encontro, discussão e
decisão.
Um
partido com uma imprensa que forneça informação e orientação para os seus
militantes, simpatizantes e para o conjunto do povo. Um partido que forma seus
integrantes, para que todo trabalhador possa um dia dirigir o Estado
brasileiro. Um partido democrático, não um partido de notáveis.
Na
versão final da tese que apresentaremos ao II Congresso, defenderemos que o PT
adote um conjunto de medidas organizativas compatíveis com esta concepção, tais
como:
1.Jornal
de massas, dirigido aos filiados e simpatizantes do PT, aos militantes dos
movimentos sociais e aos companheiros dos partidos aliados.
2.Plano
nacional de formação política, com atividades dirigidas aos filiados, aos
dirigentes intermediários e aos dirigentes nacionais.
3.Campanhas
anuais de filiação, para incorporar ao PT o que acumulamos em nossa atividade,
sempre acompanhadas de processos formativos que impeçam as filiações
“patrocinadas”.
4.Campanha
de nucleação, para que os militantes e filiados de base tenham espaços
permanentes de debate e deliberação, de encontro e de organização de sua
atuação na sociedade.
5.Congressos
bi-anuais, com eleição de delegados sempre após o debate.
6.Realização
permanente de plebiscitos, prévias e referendos, para que o conjunto de
filiados possa orientar permanentemente a direção partidária.
7.Controle
do partido sobre os mandatos executivos e legislativos.
8.Elaboração
e aplicação do código de ética partidário.
9.Política
de finanças baseada na arrecadação militante. Não aceitar enhum centavo das
grandes empresas.
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