quinta-feira, 29 de maio de 2014

Da natureza do escorpião (texto de abril de 1999)

Da natureza do escorpião

Abril de 1999

Não se espere do empresariado que ele defenda
 uma alternativa programática de interesse do povo.
É da sua natureza buscar um acerto pelo alto.
E que se cuide quem estiver por baixo.

Durante a maior parte da história brasileira, os setores populares foram coadjuvantes. Nos últimos dez anos, entretanto, conseguimos nos transformar em alternativa de governo: não mais apoiar este ou aquele candidato da burguesia, mas sim votar no candidato dos trabalhadores.
A novidade foi tamanha que desde 1990, setores da esquerda passaram a alimentar um sonho: ganhar para nós o apoio de uma fração da burguesia, realizando com sinais (supostamente) trocados a estratégia nacional-democrática do velho Partido Comunista. Vários esforços foram feitos nesse sentido: diálogo, flexibilidade, “realismo” programático, moderação, abertura até mesmo para o apoio popular a candidatos de partidos burgueses.
Resultado: a esquerda não se tornou alternativa de poder e corre mesmo o risco de deixar de ser alternativa de governo. Hoje, a “oposição” burguesa trabalha com afinco para tornar-se a principal protagonista da luta contra FHC, fazendo da esquerda uma força secundária e/ou subalterna. E, o que é mais grave, mantendo a maioria de nosso povo onde sempre esteve: sob intensa opressão e exploração.
A burguesia brasileira sempre alternou momentos de ampla unidade, com momentos de divergência aberta. Nossa história está cheia de exemplos de como a disputa interburguesa pode atingir temperaturas extremas, indo até a luta armada, como ocorreu em 1930 e 1932. Mas nunca, até hoje, a burguesia deixou sua disputa colocar em risco sua dominação de classe. E os farelos que cairam da mesa nunca foram suficientes para matar a fome do povo.
Claro que a briga no andar de cima é motivo de festa para os de baixo. Até porque a disputa interburguesa pode “transbordar”, estimulando ou potencializando a luta dos setores populares, como aconteceu em 1984 (Diretas) e 1992 (Fora Collor). E como pode ocorrer agora, na CPI dos bancos.
Nos anos 80, por exemplo, a divisão e consequente proliferação de candidatos burgueses foi essencial para que, pela primeira vez em nossa história, um candidato da esquerda ameaçasse vencer as eleições presidenciais.
Foi para evitar a vitória de Lula que as elites unificaram-se em torno de Collor. Mas a aliança “no susto” consagrou, também, a adesão da maior parte da burguesia ao projeto neoliberal ou, vale dizer, ao projeto defendido pelos setores monopolistas da burguesia, aqueles com maiores vínculos com o capital estrangeiro e financeiro.
O apoio a Collor foi minguando, mas a adesão ao neoliberalismo não. Apesar de derrotas pontuais (impeachment, plebiscisto sobre sistema de governo e revisão constitucional), seguiram-se quatro anos de consolidação do ideário neoliberal e, finalmente, a eleição de Fernando Henrique Cardoso.
Ao contrário da unidade em torno de Collor, feita no susto, a unidade em torno de FHC-94 foi planejada, desejada, consciente, uma unidade por opção.
Os efeitos do programa neoliberal sobre a burguesia foram variados. Mas durante um certo período, o abundante fluxo de capitais estrangeiros permitiu que sobrasse um pouco para todos. As privatizações, a possibilidade de importar componentes e matérias primas mais baratas, a farra dos títulos públicos, os empréstimos a juros baixos lá fora e os lucros com a diferença frente aos juros internos, a entrada de sócios estrangeiros... de uma forma geral, a burguesia brasileira –todos os seus setores— conseguiu “ganhar algum” durante os anos de fluxo abundante de capitais.
Alguns ganharam mais do que os outros, mas todos ganharam um pouco, mesmo aqueles que tiveram que vender seu patrimônio. Valeu, então, a máxima que caracteriza a burguesia brasileira: melhor ser sócia minoritária do grande empreendimento capitalista internacional, do que ser sócia majoritária num projeto de capitalismo nacional autônomo.
A medida que a fonte secou, ou seja, a medida que o fluxo de capitais estrangeiros tornou-se mais escasso, importantes setores do empresariado começaram a criticar a política econômica do governo, a abertura comercial “sem critérios”, os juros altos, o privilégio à estabilidade em detrimento do desenvolvimento, os benefícios conferidos ao capital estrangeiro.
A insatisfação desses setores manifestou-se nas eleições de 1998, seja através da fracassada tentativa de lançar um candidato a presidente pelo PMDB, seja através da candidatura de Ciro Gomes. Mas a dissidência empresarial estava numa sinuca: cada dólar para Ciro era uma ajuda indireta para que Lula fosse ao segundo turno. E, entre FHC e Lula, a maior parte da burguesia preferiu votar “em legitima defesa” e dar a vitória, ainda no primeiro turno, ao presidente-candidato.
Impossibilitada de manifestar-se plenamente na disputa presidencial, a dissidência empresarial deu o ar de sua graça no segundo turno dos estados (onde comemorou a vitória de alguns candidatos tidos como “centro-esquerda”) e numa intensa onda de críticas à equipe econômica. Difundiu-se então a idéia de que o governo FHC estaria dividido entre os “monetaristas” e os “desenvolvimentistas”, entre os defensores do ajuste fiscal e os adeptos de uma “política social” mais intensa.
O grande empresariado paulista chegou a patrocinar um “Pacto pela produção e pelo emprego”, que de prático resultou num ato público, realizado em dezembro de 1998, na Fiesp, com a participação de dirigentes sindicais da CUT e da Força Sindical, além de parlamentares, na maioria petistas. Diante disto, houve até quem disesse que o governo FHC “não representa nenhum setor organizado da sociedade” –a base social do governo FHC estaria “em Washington”.
Na verdade, a pauta do empresariado “crítico” é igual a do governo: câmbio, juros, abertura comercial, exportações, ajuste fiscal, reforma tributária. Se a crise agravar-se, nossos “críticos” podem chegar até mesmo a defender a ruptura com o FMI, controle de câmbio, moratória e estatização (não esqueçamos de Vargas, Juscelino e dos milicos de 64).
Mas não nos iludamos. Junto não virá a reforma agrária radical, a tributação maciça sobre o capital e as grandes fortunas, os aumentos salariais, a redução da jornada de trabalho e a ampliação das políticas sociais. Estas e outras medidas, ou virão pelo povo, contra os capitalistas (inclusive os “críticos”), ou não virão.
O empresariado brasileiro é geneticamente incapaz de combinar capitalismo com bem-estar social. O neoliberalismo só veio agravar esta característica. Acontece que nosso capitalismo chegou tarde ao mundo. Para compensar, nossos burgueses lançaram mão de todos os expedientes, entre eles o latifúndio, a superexploração da força de trabalho, a concentração de renda, a intervenção estatal e a sociedade com o grande capital internacional.
Ultimamente, é verdade, os gringos têm aumentado demasiadamente seu espaço no “negócio Brasil”. Parece, as vezes, que seu objetivo é transformar a economia brasileira num anexo da americana. Como reação, o discurso nacionalista voltou à moda, inclusive entre setores do grande empresariado. Mas o que eles querem?
Que o governo os defenda, mas não que esta defesa ponha para correr os sócios transnacionais. Tampouco querem ruptura total com a especulação, até porque os “críticos” também têm dinheiro aplicado na jogatina financeira e seriam prejudicados por retaliações do capital internacional. Numa das recentes fugas de capital, por exemplo, a maioria dos que remeteram dinheiro para fora do país era de legítimos “empresários nacionais”.
No final das contas, as alternativas do empresariado sempre terminam despejando sobre o andar de baixo a conta da crise. A desvalorização cambial, por exemplo, criou sérios problemas para os empresários brasileiros que contraíram dívidas em dólar. Para solucionar o problema, o governo já prepara a estatização da dívida externa das empresas privadas, repassando a conta para o povão.
Outro exemplo é a proposta de renovação da frota automobilística, encampada pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC e apresentada como uma alternativa para o desemprego. Sem esquecer que os empregos continuam sendo eliminados, vale perguntar: quem paga a conta dos subsídios? E a quem interessa perpetuar este padrão de consumo privado, concentrador de renda, poluente, esgotado como alternativa de transporte e veículo (sem trocadilho) da hegemonia de um grupo de empresas monopolistas por sobre a economia brasileira?
É provável que a disputa interburguesa esquente ainda mais, nos próximos meses e anos. E caso a crise internacional reduza as vantagens relativas, para a burguesia brasileira, de manter-se acoplada ao grande capital internacional, nada impede que ela aja como nos anos 30 e esboce uma carreira solo, para depois –como é de sua natureza—cair de novo nos braços do grande capital internacional.
Como outras vezes na história do Brasil, a guerra entre as elites é a antesala do pacto, da transição pelo alto. O lugar do povo nessa peça é massa de manobra no primeiro ato e bucha de canhão no segundo ato –como descobriram os tenentes de 35 e os estudantes de 68. Se desta vez quisermos ter outro destino, é bom não oferecer o lombo para o escorpião atravessar o rio.

Box

Nos próximos meses, três variáveis decidirão o rumo e o ritmo da crise brasileira: a situação internacional, a disputa interburguesa e o comportamento dos setores populares. Especial importância terá o comportamento do Partido dos Trabalhadores, principal partido da esquerda brasileira, que realiza em novembro seu II Congresso Nacional. Já em agosto e setembro começarão a ser eleitos os delegados para este Congresso, que deve debater o programa e a tática do petismo. A esperança dos setores radicais do petismo é que –como na prévia que escolheu Olívio Dutra candidato a governador-- a militância dos movimentos populares compareça aos encontros de base, compensando a presença também maciça dos filiados não-militantes.

Abril de 1999.

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