Quase 6
milhões de pessoas votaram no "Plebiscito Nacional da Dívida
Externa", uma iniciativa de igrejas, movimentos sociais e partidos
políticos. Dos votantes, cerca de 95% disse não ao FMI, não à dívida externa e não
à especulação.
Indiscutível
sucesso de público, o plebiscito não passou incólume pela crítica. Na esquerda,
houve quem não gostasse da data e/ou das perguntas, tímidas para uns, mal
redigidas para outros.
Mas a maior
parte das críticas veio da direita: FHC, Pedro Malan, ACM e um sem-número de
penas de aluguel atacaram publicamente o Plebiscito, apresentando seis críticas
básicas: "a dívida era um problema há 15 anos, hoje não é mais";
"a dívida externa pública vem diminuindo"; "a dívida externa é
principalmente privada"; "falar em suspensão de pagamentos
prejudicaria os investimentos no país"; "toda
a população é credora da dívida pública interna";
"todos os partidos deveriam fazer um acordo em torno dos princípios
básicos da atual política econômica".
Falta de memória
Na época em
que a ditadura endividou-nos fortemente, Delfim Neto também dizia que os
empréstimos não constituiam problema.
Ocorre que
todo capital estrangeiro que vem para o país (sob a forma de empréstimo,
investimento estrangeiro direto ou capital especulativo), gera uma remessa
futura de divisas (a pretexto de lucros, dividendos, pagamento de royalties,
importações etc.).
Para
conseguir estas divisas, o país precisa gerar gigantescos superávits comerciais
(exportar bem mais do que importa). Se isto não for possível, as alternativas
são: privatizar as empresas públicas; oferecer vantagens para os investidores
estrangeiros, como por exemplo os juros altos; conseguir novos empréstimos ou
desvalorizar a moeda.
Ocorre que as
privatizações um dia acabam, a desvalorização é uma faca de dois gumes, os
empréstimos geram dívida futura e os juros altos aumentam a dívida pública
interna. Noutras palavras, o endividamento externo coloca o país diante de uma
"bomba-relógio".
Mas antes
mesmo da explosão, a dívida já nos causa prejuízo. O "serviço da
dívida" –o quanto pagamos de juros e amortização— já constitui uma sangria
enorme de recursos, da ordem de 500 bilhões de dólares desde 1979.
Uma privada pública
O governo
afirma que a dívida externa é na sua maior parte privada. Mesmo que isso fosse
verdade, 90, 100 ou 136 bilhões de dólares (estoque da dívida externa pública
em junho de 2000) constituem muito dinheiro em qualquer lugar do mundo.
Trata-se em
boa parte de uma "herança" da dívida externa contraída na época da
ditadura. Dívida que foi contestada durante os anos 70 e 80, inclusive por
Malan e FHC.
O fato desta
dívida ter sido "legitimada" pelos governos Collor, Itamar e FHC não
impede a população brasileira de contestar sua legalidade, sua legitimidade,
bem como o fato dela "já ter sido paga várias vezes".
Por outro
lado, é inegável que a dívida externa privada deu um salto enorme, de 55
bilhões de dólares, em 1993, para 141 bilhões de dólares, em 1999. Salto que
foi, não por coincidência, acompanhado pelo crescimento da dívida interna
pública, que pulou de 60 para 380 bilhões de reais, nesse mesmo período.
A dívida
externa privada cresceu porque os grandes empresários pegam empréstimos no
exterior, a taxas de juros baixas, e investem no país a taxas de juros várias
vezes maiores.
Mas quem
determina os juros? O governo! E os juros são mantidos altos sob o pretexto de
que o Brasil precisa atrair capitais estrangeiros, que vêm para cá financiar
nosso déficit em conta corrente, que não para de crescer entre outros motivos
porque mantemos os juros altos.
Por trás
deste círculo vicioso, existem fortes interesses financeiros. Os grandes
capitalistas se financiam com dinheiro barato, o governo paga a conta. E como
faz o governo, para pagar a conta? Aumenta impostos, corta gastos sociais e faz
novos empréstimos (turbinados pelos juros altos). Portanto, perdem os
"contribuintes" e a maior parte da população.
Vale lembrar,
ainda, que quando um grande capitalista pega um empréstimo externo, ele gera
uma dívida em dólares. Ele aplica os recursos deste empréstimo aqui no Brasil,
onde obtém um enorme lucro em reais, lucro que é pago com o seu, o meu, o nosso
esforço.
Na hora de
pagar sua dívida externa, supostamente privada, o grande capitalista precisa de
maior quantidade de dólares, que são atraídos pela economia brasileira graças a
política de juros altos, privatizações, facilidades ao grande capital
estrangeiro, salários
arrochados para que o país possa exportar produtos mais
"competitivos" etc.
Além de
vantajoso para os credores privados, o processo de endividamento externo também
é útil para os grandes países capitalistas centrais, abarrotados de dinheiro e
de mercadorias.
Com uma mão
eles nos emprestam o dinheiro, com o qual compramos as mercadorias que eles nos
oferecem com a outra mão.
Os
marines vem aí?
Se o governo
brasileiro adotar uma postura firme no tocante à dívida externa (tomando
medidas como auditoria, renegociação soberana, suspensão do pagamento ou não
pagamento), poderemos sofrer retaliações.
Mas hoje o
Brasil é bem comportado e nem por isso está imune as consequências de medidas
unilaterais adotadas pelos Estados Unidos, bem como as retaliações do Império
às nossas exportações.
Prejudicaremos
a nossa imagem internacional? Mas que imagem é esta, hoje, em que as
"agências internacionais de classificação de risco" chegaram a nos
colocar abaixo da Colômbia?
Acontece que
estas "agências" –além de terem interesse em depreciar nossos
ativos-- sabem que o Brasil tem um enorme déficit em conta corrente. No dia que
cessar ou se reduzir substancialmente o fluxo de capitais para o Brasil,
quebraremos. Portanto, nossa dependência é enorme.
Diante dela,
há duas opções: mudar de modelo ou fazer todas as concessões possíveis para
continuar atraindo capitais, que aumentam ainda mais nossa dependência de
recursos externos.
Eliminaremos
uma "fonte de investimento"? Mas qual a vantagem deste investimento
internacional, que tem gerado uma saída de dólares (por conta do serviço da
dívida, remessa de lucros, pagamento de royalties, ampliação das importações
etc.) superior às entradas?
Eliminaremos uma "fonte de financiamento do consumo"? Mas a que custo temos "financiado o consumo"? Qual consumo e feito por quem?
Eliminaremos uma "fonte de financiamento do consumo"? Mas a que custo temos "financiado o consumo"? Qual consumo e feito por quem?
O crescimento
das importações, nos últimos anos, é prejudicial à nossa economia. Importamos
coisas que poderiam e deveriam continuar sendo produzidas aqui. Precisamos
reduzir as importações, ampliar a produção e o mercado interno.
Financiar as
importações com endividamento externo só "faz sentido" --como
política estrutural-- se as importações gerarem alterações na economia
nacional, que ampliem o potencial exportador de nossa economia.
É isso que
vem acontecendo? Ou as importações estão substituindo a produção nacional, sem
alterar nossa pauta exportadora e nosso potencial comercial?
O Brasil
ampliou muito suas exportações, nos últimos anos. Mesmo assim, experimentamos
déficits enormes e, mais recentemente, superávits comerciais ridicularmente
pequenos. "Abrimos a economia", nos últimos dez anos. Mas nossa
participação no comércio internacional continua inferior a 1% do total e
caindo.
Importamos
desnecessariamente. E fazemos um esforço cavalar para exportar, cada vez mais
produtos a um preço cada vez menor. Quem ganha com isso?
Outro modelo
O Plebiscito tão somente perguntava a opinião da população
sobre as dívidas externa, interna e o acordo com o FMI. Mas fomos acusados de
defender o "calote" das dívidas. Ocorre que o governo considera um
"despropósito" ouvir a população a respeito. "Paguem, sem tugir
nem mugir", é o que nos dizem.
Na verdade,
um "não" à dívida pode ter vários desdobramentos: a auditoria, a
renegociação soberana, a suspensão do pagamento, o cancelamento.
O que fazer
com a dívida externa? Dar calote? Não achamos que a palavra se aplique ao caso.
No caso das dívidas externa e interna, a verdadeira questão é: voce está de
acordo em pagar quatro vezes para que outros comam? Ou então: quem leva o cano,
para que as dívidas externa e interna continuem sendo pagas?
Não queremos
seguir pagando o que já foi pago. Daí a importância de uma auditoria. Também
não queremos seguir pagando além de nossa capacidade, daí a importância de
outra política econômica, com outra prioridade que não o pagamento das dívidas.
Tampouco queremos manter a atual política de endividamento.
Se o atual
modelo econômico fosse o único possível, então não poderíamos mudar nada, pois
toda mudança provocaria prejuízos enormes e nenhuma vantagem.
Mas e se for
possível organizar a economia de outra forma? Se for possível utilizar os
recursos da economia brasileira de forma mais "produtiva",
socialmente falando? Se isso for possível, então a questão passa a ser: como
transitar de um modelo para outro.
A transição
do modelo atual, que tem na especulação um de seus pilares, para outro modelo,
exigirá quebrar o círculo de ferro do endividamento.
Isso
provocará reações dos credores da dívida? Com certeza! Ninguém aceitará perder
mais de cem bilhões de reais ao ano, sem fazer nada.
Podemos
raciocinar com otimismo e concluir que, após alguns rosnados, os grandes
capitalistas se acomodarão a nova situação, para não perder as vantagens de
negociar com um país do tamanho do Brasil.
Mas vamos
imaginar que eles levem a cabo suas ameaças: cessará
o financiamento externo do consumo local; bloqueio de parte das importações e
exportações; interrupção dos "programas sociais" alimentados por
recursos de organismos internacionais; ataques à "imagem" do país; ferrenha
oposição, interna e externa, que pode até desembocar em tentativas golpistas.
Achamos que o
país tem como suportar a retaliação dos credores. Grande parte do que nós
importamos, pode ser produzido aqui. Existem outros consumidores e fornecedores
no mercado internacional, com quem podemos negociar em caso de bloqueio. O
"financiamento externo" da nossa economia, ao menos nos termos
atuais, causa mais prejuízos do que vantagens.
Se houver
vontade política e apoio popular, a resistência é possível. E se o apoio
popular e internacional for significativo, a chance de golpismos internos e
agressões externas serem vitoriosos, diminui bastante.
Afinal, não
se pode desconsiderar o peso geopolítico do Brasil para a América Latina e
mesmo para o sistema financeiro. Isto é um trunfo a nosso favor para influir e
liderar processos de desmonte dos mecanismos e organismos de agiotagem
internacional.
Vale a pena
enfrentar a fúria dos credores. Pois a pergunta não deve ser só "o que nos
acontecerá, se tomarmos uma atitude firme" (renegociar soberanamente,
suspender o pagamento ou não pagar), mas também "o que acontecerá se as
coisas continuarem como hoje":
mais desigualdade social, mais violência, mais desesperança.
Assustando
os setores médios
O governo diz
que os credores da dívida "financiam" o governo. E o que faz o
governo com este "financiamento"? Paga os credores...
Este círculo
vicioso --alimentado continuamente pela taxa de juros-- é um dos principais
problemas do envididamento público.
Os números
são claros: os credores são, em sua maior parte, grandes empresas. Aliás,
grandes empresas "produtivas".
Toda grande
empresa brasileira tem na sua carteira títulos do governo. Todo grande
capitalista participa da chamada "especulação financeira". Sem dívida
pública, o capitalismo moderno seria inimaginável.
A importância
que a dívida pública possui, na economia brasileira, produz gravíssimas
implicações para a maioria da população. Citemos dois casos.
A atividade
econômica é inferior à possível, devido entre outras coisas à alta taxa de
juros. Os serviços públicos vão mal, devido principalmente aos cortes
promovidos pelo governo, exatamente para pagar a dívida.
O
assalariado, o pequeno empresário, o aposentado, a viúva, que aplicam suas
pequenas economias, são parte da engrenagem do endividamento público. Mas são
parte perdedora, pois --ao contrário dos grandes capitalistas-- os pequenos
investidores não têm como se proteger dos efeitos econômicos e sociais do alto
endividamento.
Naturalmente,
não são os principais perdedores. Os maiores prejudicados são as dezenas de milhões
de brasileiros que vivem na miséria, que sobrevivem com um salário mínimo, que
estão sem teto e sem terra, os desempregados, os sem escola, os sem saúde.
Só há uma
maneira de mudar esta situação: transferir, rápida e radicalmente, renda e
patrimônio, dos ricos para os pobres, dos capitalistas para os trabalhadores. E
para que isso aconteça, será preciso quebrar a atual estrutura de
endividamento. E fazer isso sem penalizar os setores médios.
Quebra de
contrato? Com certeza. Sem "quebra de contrato", não haveria
independência das colônias, abolição dos escravos, voto universal e secreto,
reforma agrária.
A
"quebra de contrato", aliás, é algo bastante usual na era neoliberal,
inaugurada exatamente por um ato unilateral dos Estados Unidos, declarando a
inconversibilidade do dólar em ouro, no início dos anos 70.
No governo
FHC, por exemplo, quantos direitos trabalhistas e sociais vem sendo expressa e
assumidamente rasgados, em nome da "globalização", da
"modernidade", do "livre mercado" etc?
Mais da metade
da população brasileira vive na pobreza. Existem menos de 60 milhões de contas
bancárias no Brasil. Menos de 20 milhões de cartões de crédito. Está claro que
é uma parcela minoritária da população que é credora da dívida pública interna.
Claro que nessa
parcela minoritária existem diferenças. O assalariado que ganha 4 mil reais e
aplica mil reais, é totalmente diferente dos grandes capitalistas que lucram
bilhões e aplicam centenas de milhões.
Justificar a
especulação financeira em nome da poupança da classe média, é mais ou menos
como justificar o latifúndio em nome da média propriedade produtiva.
Politicamente,
trata-se de um expediente eficaz: como sabemos, são os "médios" que
formam a massa-de-manobra dos grandes contra os "pequenos".
Mas esse
expediente eficaz precisa de uma mentira para
funcionar: no caso da reforma agrária, dizem que todas as propriedades serão atingidas, inclusive as pequenas e médias. No caso da dívida pública interna, fala-se em calote e confisco das poupanças.
funcionar: no caso da reforma agrária, dizem que todas as propriedades serão atingidas, inclusive as pequenas e médias. No caso da dívida pública interna, fala-se em calote e confisco das poupanças.
Expediente
manjado, mas que exigirá da esquerda elaborar de maneira mais precisa qual a
política que pretende adotar frente à dívida pública interna, para penalizar
apenas os "especuladores".
A busca de um pacto
Malan propôs
que todos os partidos, principalmente os de oposição, façam um acordo em torno
dos fundamentos da atual política econômica.
Eles querem
uma oposição de mentira: oposição às pessoas, não aos modelos.
Que os
movimentos sociais e as igrejas defendam um plebiscito para as dívidas e o
acordo com o Fundo, isto é ruim mas ainda passa. Se exagerarem, repressão
neles. Mas que partidos de esquerda, que podem chegar ao governo, defendam o
plebiscito, aí já se torna perigoso.
Pois, como
bem sabe Malan, o que está em jogo não é só a dívida. O que está em jogo é o
modelo econômico, o que está em jogo é a ordem social que beneficia os grandes
capitalistas, nacionais e estrangeiros. Por isso o Plebiscito foi sucesso de
público, mas não de crítica. Ainda bem!
Valter Pomar
3º vice-presidente nacional do PT
3º vice-presidente nacional do PT
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