(Texto de Valter Pomar, publicado em América Latina, história, crise e movimento. São Paulo, Xamã Editora, 1999.)
O PT nunca foi uma unanimidade na esquerda brasileira. Na
época da sua fundação, organizações como o PCdoB, o PCB e o MR-8 o acusaram de
divisionista, valhacouto de revisionistas e agente da social-democracia.
Mesmo no interior do Partido, vários grupos
consideravam que o PT era apenas uma legenda, uma frente, um expediente a
partir do qual se podia alcançar as massas. Para a revolução, contudo, seria
necessário construir um partido revolucionário, coisa que o PT não seria.
Essas críticas não impediram
que o PT se transformasse, ao longo de duas décadas, no maior partido da
esquerda brasileira. Maior do ponto de vista eleitoral, mas também e
principalmente no que diz respeito a militância: é petista a maioria dos
dirigentes da CUT, da Central de Movimentos Populares, do Movimento Sem-Terra,
dos integrantes das pastorais sociais da igreja católica, bem como grande parte
da juventude politicamente ativa.
Pelo menos desde 1990, contudo, o crescimento do
Partido vem sendo acompanhado de problemas que repõem a questão: o PT é um
partido socialista ou social-democrata? Um partido revolucionário ou
reformista? Um partido à serviço das lutas sociais ou de carreiras eleitorais?
Desta ou de outras maneiras, milhares de petistas se
questionam sobre o que está acontecendo com seu partido. Alguns abandonam a
militância, outros se acomodam, outros buscam alternativas. Para um grande
número de militantes, esta alternativa estaria no Movimento Sem-Terra e, mais
recentemente, na Consulta Popular.
Em qualquer caso, a esquerda brasileira vive uma
situação semelhante a enfrentada nos anos sessenta: um forte questionamento ao
partido hegemônico (na época, o PCB, hoje o PT) e o surgimento de alternativas
reais ou imaginárias.
A maioria destas alternativas não conseguiu
implantar-se na classe trabalhadora, que continuou sob a influência do
comunismo oficial e do PTB. Só o Partido dos Trabalhadores, vinte anos depois
do início da crise do PC, conseguiu raízes sólidas entre os assalariados,
pequenos proprietários rurais e setores médios.
Existem várias causas que explicam o fracasso das dezenas
de organizações que tentaram suplantar o PC: a repressão militar, a luta
armada, a opção pelo campo como cenário estratégico, o surgimento de uma nova
classe trabalhadora, etc.
O mais curioso, entretanto, é que a maioria daquelas
organizações rompeu com a linha pacifista do PC, mas não rompeu com a concepção
estratégica que norteava aquela organização. Algo semelhante está ocorrendo
hoje: várias tendências que integram a chamada esquerda do petista e parte dos
companheiros que animam a Consulta Popular são partidários de uma linha
estratégica muito semelhante a da maioria moderada do PT.
Estas semelhanças ficam dissimuladas pelas
divergências táticas (Fora FHC?) e por algumas opções estratégicas (ruptura?
papel da luta de massas e da disputa institucional?). Mas elas existem, como se
pode perceber por exemplo com a leitura do livro A opção brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto, 1998).
Num texto interno, a coordenação da Consulta Popular
informa que o livro A opção brasileira (Rio
de Janeiro, Contraponto, 1998) “não é o projeto, é apenas um subsídio preparado
coletivamente, para um debate com mais rigor científico sobre as causas
econômicas dos problemas brasileiros”. Este caráter preliminar é confirmado
pelas divergências que alguns co-autores do livro expressam quanto ao conteúdo
do livro.
Várias das idéias desenvolvidas no livro são
patrimônio comum da esquerda e já foram desenvolvidas antes por outros autores.
Apesar disso, a iniciativa de produzir a Opção
possui vários méritos, entre os quais o de estimular um debate mais
profundo sobre os problemas programáticos e estratégicos da revolução
socialista no Brasil.
Apesar disso — e ao contrário do que pensam alguns
autores do livro — as idéias expressas na Opção
não permitem superar a crise teórica e prática vivida pelo PT e pelo conjunto
dos movimentos sociais e da esquerda brasileira. Por isso, criticar tais idéias
é essencial, seja para os que pretendem reconquistar o Partido dos
Trabalhadores, seja para os que desejam construir uma nova organização.
Questão nacional e socialismo
Um dos efeitos da globalização foi o fortalecimento
do nacionalismo. O paradoxo é apenas aparente. A contradição que dominou o
mundo, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o desmanche da União Soviética,
foi aquela existente entre capitalismo e socialismo. Todas as demais
contradições remetiam àquela, inclusive a contradição entre imperialismo e
libertação nacional, entre democracia e ditadura, entre desenvolvimento e
subdesenvolvimento. É por isto, aliás, que a luta contra o imperialismo, contra
as ditaduras e contra o subdesenvolvimento era considerada por muitos como
parte da “conspiração comunista”.
Na década de 80, os capitalistas venceram a batalha
contra o campo socialista e agora estão atacando as conquistas democráticas,
econômicas e sociais em todo o mundo. A contradição dominante no mundo, hoje,
não é mais entre capitalismo e socialismo, mas sim inter-capitalista. Mais
precisamente, a contradição entre as grandes nações capitalistas; e entre as
grandes nações e as nações da periferia capitalista.
Um dos efeitos desta nova situação é o ressurgimento
do nacionalismo, em suas mais variadas facetas. O nacionalismo de grande
potência, típico dos Estados Unidos, que se considera o povo eleito para
dominar o mundo. O nacionalismo xenófobo, do trabalhador e do pequeno
empresário que estão sendo esmagados pelos capitalistas, mas descarregam sua
raiva contra o imigrante. O nacionalismo das potências regionais. E o
nacionalismo dos povos oprimidos.
Diante da nova situação, os socialistas de todas as
matizes foram levados a reformular suas estratégias e programas. A maioria
deslizou para a direita. Os social-democratas abandonaram o Estado de bem-estar
social e passaram a administrar o neoliberalismo. Grande parte dos partidos
comunistas e das guerrilhas, em particular latino-americanas, fez o mesmo
percurso. A maioria abandonou a luta pelo socialismo, se limitando a lutar
contra o neoliberalismo e por um capitalismo “menos cruel”, a ser obtido
através de disputas eleitorais.
Acontece que a experiência do século XX demonstra
que só teremos sucesso na luta pela soberania nacional, pelo desenvolvimento
econômico, pelo bem-estar social e pela democracia, se tivermos sucesso na luta
pelo socialismo.
O Estado de bem-estar social europeu é uma conseqüência
direta e indireta da “ameaça comunista”. Sem o apoio político, econômico e
militar do campo socialista, a luta pela libertação nacional teria tido menos
êxito do que teve. Os experimentos “desenvolvimentistas” em vários países foram
tolerados ou até incentivados pelos Estados Unidos, como uma forma de conter a
revolução no terceiro mundo. Nosso desafio, portanto, está em incorporar a
questão nacional, as reivindicações democráticas e pelo desenvolvimento
econômico, no corpo de uma estratégia socialista. Mas para conseguir isso,
nosso ponto de partida não deve ser a questão nacional, mas sim a “questão
socialista”.
Aqui reside nossa principal divergência com a Opção. Em nossa opinião, ali se faz uma
abordagem nacionalista da questão nacional. Já na “apresentação”, o autor diz
que sintetiza idéias que “vêm sendo formuladas nos últimos anos por um conjunto
de pessoas, que têm em comum a confiança no povo brasileiro e a certeza de que
pode construir um destino melhor para o país”. Logo depois fala que “nos
últimos anos, foram profundamente alterados os termos que organizam o debate
político e cultural no Brasil. Generalizou-se a idéia de que não há mais a
possibilidade de um desenvolvimento em bases nacionais”. Ou seja: o ponto de
partida da Opção é o Brasil, “a
viabilidade do Brasil”.
Mostraremos mais adiante as consequências desta
inversão. Por enquanto, vale registrar que a mesma inversão é feita por Marco
Aurélio Garcia, coordenador-geral do II Congresso do PT, para quem o
“socialismo petista” é um subitem do grande eixo de discussão sobre um projeto
nacional de desenvolvimento alternativo para o Brasil.
A Opção
não indica que a crise do socialismo é uma das principais causas e
conseqüências da alteração nos “termos que organizam o debate” no Brasil. A
dificuldade que a esquerda brasileira passou a ter, nos anos 90, para enfrentar
o debate político e cultural, advém principalmente da perda do referencial
programático, ideológico, teórico do socialismo.
O debate existente no Brasil, dos anos 30 aos anos 80,
foi entre diferentes projetos nacionais. A esquerda participou deste debate
tendo como referência estratégica a luta pelo socialismo. As insuficiências da
esquerda neste debate tinham relação direta com a concepção etapista do Partido
Comunista, segundo a qual antes do socialismo deveríamos lutar pela “libertação
nacional”, luta em que teríamos como aliada a burguesia “nacional”.
A medida em que a referência socialista perdeu
força, a capacidade da esquerda intervir no debate “nacional” também se
enfraqueceu. Isto quer dizer que, para recuperar força plena no debate
“nacional”, a esquerda brasileira tem que simultaneamente reconstruir sua
referência estratégica socialista.
Alguém pode dizer que esta crítica é um exagero.
Afinal, a Opção afirma uma clara
disposição de “pensar o impensável”, de “explicitar bases conceituais”,
apresentar “fundamentos”, “um sistema de idéias”. O autor se propõe “algumas
coisas que ultimamente se tornaram impensáveis, na medida que rompem com as
bases da organização socioeconômica atual do Brasil e reatualizam a idéia de um
futuro socialista”. No final do livro, pode-se ler que, “se nos perguntarem se
o projeto que esboçamos é de natureza socialista, responderemos que sim. O
socialismo burocrático morreu. Mas não a idéia de que a solidariedade pode ser
o princípio organizador da vida em comum”.
Além disso, a questão do socialismo merece uma
citação no início do livro, outra no final, uma referência de rodapé à China,
um breve comentário sobre o colapso do sistema soviético e uma afirmação mais
substancial na página 172: “Parte da economia deve ser socializada — sob a
forma de propriedade estatal ou pública não estatal — e parte deve manter-se
sob controle privado, de modo que a sociedade combine dois grandes mecanismos
de alocação de recursos. O setor privado não monopolista será incrementado, via
multiplicação de pequenas e médias propriedades e empresas (...) Todo esforço
será feito para criar uma base empresarial nacional ampla, descentralizada e
disseminada.”
Estas breves referências mostram, por si, como é
contraditória a relação da Opção com o socialismo. Para começo de conversa, o
princípio organizador da vida em comum no socialismo é a igualdade, não a
solidariedade. E qual socialismo queremos “reatualizar”, se renunciamos
explicitamente a um projeto internacional?
O objetivo final dos socialistas é a constituição de
uma sociedade sem exploração nem opressão em escala mundial. Noutras palavras,
trata-se de construir uma sociedade sem classes, sem Estado... e sem nações. É
claro que este é o objetivo final, não o início da caminhada. No início do
processo, os trabalhadores lutam contra sua própria burguesia e buscam tomar o
poder de Estado “nacional”. A maior parte da luta anticapitalista é travada a
partir das fronteiras nacionais. Mas travar a luta “a partir das fronteiras
nacionais” e “a partir de uma perspectiva nacionalista” são duas coisas
diferentes.
Quando a social-democracia alemã votou a favor dos
créditos de guerra e apoiou seu governo na I Guerra Mundial, atuou a partir de
uma perspectiva nacionalista. Quando os bolcheviques assumiram a postura
“derrotista”, enfrentando não apenas o czarismo mas também os sentimentos
patrióticos da maioria do povo russo, o fizeram a partir de uma perspectiva
internacionalista. Quando os bolcheviques decidiram tomar o poder em outubro de
1917, pesou muito sua visão internacionalista, de que a revolução russa seria o
ponto de partida da revolução socialista européia. Quando a União Soviética
participou das negociações de Yalta, Teerã e Potsdam, pesou mais a visão
nacionalista do PC Soviético.
Poderíamos prosseguir com os exemplos, mas é
evidente que existe uma contradição potencial entre os interesses “nacionais” e
“internacionais” da classe trabalhadora. A Opção
não faz esta distinção e, pior ainda, renuncia assumida e conscientemente a ter
um “projeto”, uma perspectiva estratégica internacional. Segundo o livro, é
“no espaço nacional que se podem definir metas
claras, utilizar elementos de planejamento para alcançá-las e tratar seriamente
a questão social; nele podem operar instituições democráticas abrangentes,
aptas a formar uma vontade coletiva, forte o bastante para contrariar a marcha
da insensatez. Nem o espaço local nem o global permitem que isso se dê. O
primeiro é pequeno demais, fragmentado demais, e vive imerso no tempo curto de
demandas imediatas sempre renovadas. O segundo é grande demais, complexo
demais, pontuado pelo tempo longo das transformações muito lentas; como não tem
instâncias que expressem a cidadania, reduz todas as relações humanas a
relações de mercado. Embora sejam legítimas, as visões local e global, se
predominarem, condenam a ação política a diferentes formas de impotência.
Faltam, às duas, instituições decisivas.”
Não deixa de ser curioso encontrar quem diga, num século
marcado por enormes e rápidas transformações de escopo internacional, que o
espaço global é pontuado pelo “tempo longo” das transformações “muito lentas”.
Mas sigamos adiante:
“É, antes de tudo, no âmbito da nação — pelo menos,
de algumas nações — que as comunidades humanas atuais encontram a possibilidade
de fazer história, ou seja, de viver em um tempo orientado, operando em um
espaço suficientemente amplo para ensejar transformações profundas, e
suficientemente manejável para torná-las viáveis. É nesse âmbito que nosso povo
pode viver de acordo com suas tradições, suas regras e seus objetivos, fazendo
aflorar suas potencialidades, que devem somar-se ao patrimônio geral da
humanidade. É compartilhando essa identidade que pessoas distantes e
desconhecidas, espalhadas por um vasto território, podem sentir-se solidárias
umas com as outras e responsáveis por um destino comum, condição para que a
barbárie não prospere”.
A Opção
considera que as visões “local” e “global” condenam a ação política à
impotência. O que seu autor não percebe é que, no mundo atual, as vezes o
“nacional” equivale ao “local”.
O internacionalismo sem base nacional é impotente
(basta ver o que ocorreu com o trotskismo, com raríssimas exceções). Mas o
nacionalismo sem projeto internacional também pode ser impotente, isto quando
ele não se torna perigoso, como já vimos em algumas revoluções socialistas que
sofreram desvios chauvinistas e tentaram impor ao movimento socialista o seu
interesse particular, como sendo o interesse geral da classe trabalhadora do
mundo.
Mas será possível construir um projeto e uma ação
internacionais? A resposta começa a aparecer quando colocamos de ponta-cabeça o
raciocínio da Opção:
Se o “espaço nacional” é uma construção social e,
“como toda idéia simultaneamente real e imaginária, a nação precisa ser
permanentemente reinterpretada e recriada”, o que impede que construamos
socialmente um “espaço internacional”?
Não é preciso “inventar” uma sociedade
internacional. Essa sociedade existe, e não se manifesta apenas nas guerras e
crises econômicas. Ela é um dos produtos da expansão capitalista dos séculos IX
e XX. É a base real que devemos tomar como ponto de apoio para um projeto
internacional.
Se só “algumas nações” podem “fazer história”, então
existiriam outras nações que não podem fazer história, são inviáveis.... O que
os socialistas brasileiros têm a oferecer a estes países? Nada? Ou devemos
oferecer um projeto internacional? Ou será que, no final do século XX, nosso
“projeto” será mais tímido do que o de Bolívar? Por que aceitar como eterna a
“inexistência de instâncias que expressem a cidadania, em escala
internacional”? Por que achar que a ação internacional é impotente? Foram
impotentes as “marchas contra a Europa do capital”?? São impotentes os
encontros intercontinentais pela humanidade e contra o neoliberalismo??? É
impotente a Via Campesina?? Foram impotentes as campanhas internacionais pela
redução da jornada de trabalho? Por quais motivos é só no âmbito da nação, “que
pessoas distantes e desconhecidas, espalhadas por um vasto território, podem
sentir-se solidárias umas com as outras e responsáveis por um destino comum,
condição para que a barbárie não prospere”? Por quais motivos estas palavras e
estes objetivos não podem realizar-se em âmbito mundial?
Afinidades eletivas
Em defesa da Opção,
vale dizer que nos tempos atuais até mesmo os trotskistas estão sofrendo uma
forte influência nacionalista. A esse respeito, sugerimos a leitura de Daniel
Gluckstein, um dos principais dirigentes internacionais do grupo O Trabalho:
“No passado havíamos qualificado (a política do
imperialismo americano) de “recolonização”. Com o passar do tempo, o termo
parece impróprio (...) Pois no processo de colonização inscrevia-se a extensão
das relações capitalistas em todo o mundo. Nesse sentido, por mais reacionária
que tenha sido, por mais destrutiva que tenha sido (...) ela incluia também,
com a extensão das relações capitalistas, a possibilidade de um desenvolvimento
das forças produtivas, alimentando através da própria luta contra a potência colonial
o movimento em direção à constituição de nações. Tal não é o caso do processo
atual, exclusivamente orientado para a destruição das forças produtivas e cuja
forma concentrada é a desagregação das nações”.
Repetiremos, segundo nosso critério, o raciocínio de
Glukstein: (1) a colonização tinha um aspecto positivo, que era a introdução
das relações capitalistas, que (2) trazia no seu bojo a possibilidade do
desenvolvimento das forças produtivas, alimentando (3) através da própria luta
contra a potência colonial o (4) movimento em direção às nações! Hoje (5)
teríamos o contrário: destruição das forças produtivas e desagregação das
nações.
Na verdade, o processo é de outra natureza. A
introdução de relações capitalistas nas sociedades periféricas não dissolveu as
relações pré-existentes, mas sim as transformou, as subordinou as novas
relações capitalistas. Ou seja, combinou a exploração feudal, escravista,
asiática, com uma exploração de novo tipo, capitalista. Na maioria dos países
periféricos, esta combinação manteve as forças produtivas num estágio de
desenvolvimento muito baixo.
É também por isso que existiu o chamado
subdesenvolvimento. Poucos foram os países que conseguiram concluir o processo
de industrialização. Países como Brasil, México, Argentina, África do Sul,
Coréia do Sul são as exceções, não a regra. Ou seja, a ênfase nos aspectos
negativos do processo atual não pode nos levar a mistificar o processo
anterior. Senão vamos começar a achar que nossa tragédia advém da “regressão”
das relações capitalistas!!! Ou lançar a palavra de ordem: “big stick e rainha Vitória: eu era feliz
e não sabia”.
Que tipo de reação o velho colonialismo gerou nas
colônias? Todo tipo, desde a adaptação de setores da antiga elite ao novo modus vivendi; passando por movimentos
em defesa de um “capitalismo nacional”, incluindo revoltas populares
(especialmente camponesas) em defesa do status
quo anterior e, finalmente, as lutas por libertação nacional dirigidas
pelos comunistas.
Pelo menos nos dois últimos casos, a luta contra a
potência colonial foi também uma luta contra a expansão das relações
capitalistas de produção. É essa a dialética característica da revolução nos
países da periferia: uma direção comunista (portanto, que visava expandir as
forças produtivas e ir além das relações capitalistas) com uma base camponesa
(portanto, que queria manter as relações de produção e as forças produtivas num
estágio pré-capitalista).
Nos países onde a elite “nacionalista” (ou seja,
pró-desenvolvimento capitalista nacional) era muito forte, a construção da
“Nação” envolveu também o esmagamento ou cooptação das forças de esquerda. Por
isso, é uma pataquada ficar tratando da “construção da Nação”, como se isso
fosse um processo abstrato, desconsiderando os diferentes conteúdos de classe
de cada caso.
Noutra passagem de seu texto, Daniel Glukstein diz:
“Tendo um camarada levantado a questão de se 'não
haveria um perigo de passar da defesa da soberania da nação a uma posição
nacionalista?', eu responderia que não há qualquer assimilação entre defesa da
Nação, da soberania nacional, e o nacionalismo. Gostaria de dar um exemplo
histórico: o momento em que verdadeiramente se constituiu a nação francesa foi
na revolução “burguesa” de 1789. (e a partir daí o Glukstein lembra que a Constituição de 1793 definia
como cidadão francês praticamente qualquer um que lutasse contra o despotismo,
em qualquer canto do mundo) Como se vê, a constituição da nação não se
baseia necessariamente em definições nacionalistas ou chauvinistas.”
Glukstein está errado: a história do movimento
socialista no século XX está cheia de exemplos em que a defesa da soberania
nacional transformou-se em nacionalismo. Fugir dessa questão levantando um
exemplo da França revolucionária em 1793 é... fugir da questão, a francesa,
literalmente. E mesmo nesse caso, há o exemplo do convencional Thomas Paine,
inglês-americano e cidadão francês, que foi em cana durante a revolução...
O problema está em que, partindo de uma mesma e
justa afirmação — “o combate pela emancipação da classe operária não pode
desenvolver-se no quadro de uma nação submetida” — pode-se concluir duas coisas
diferentes: a de que primeiro luta-se pela emancipação nacional, para depois se
lutar pela emancipação social; ou a de que se faz as duas coisas juntas.
É exatamente na primeira alternativa que reside o
maior risco da “luta pela soberania nacional” transformar-se em “nacionalismo”.
A globalização
Se entendemos que a globalização é o nome que vem se
dando a um processo real, cujo equivalente histórico é o imperialismo do final
do século XIX, então devemos opor a este processo uma alternativa não apenas
nacional, mas também internacional.
A reflexão internacional da Opção — contida principalmente nos itens “A nova (des)ordem
internacional”, “A viabilidade da América do Sul” e “O colapso das estratégias
de emparelhamento” — é marcada por uma visão unilateral da globalização.
O livro diz, acertadamente, que o conceito de
globalização “não descreve o processo como um todo (...) junto com a
globalização do grande capital, ocorre a fragmentação do mundo do trabalho, a
exclusão de grupos humanos, o abandono de continentes e regiões, a concentração
da riqueza em certas empresas e países, a fragilização da maioria dos Estados,
e assim por diante.”
Mas esta definição também é unilateral! Enxerga
apenas a “loja de horrores”, não vê que a globalização também é a expressão
moderna do potencial libertador da internacionalização do capital, ao qual Marx
faz tantas referências no Manifesto
Comunista.
A base teórica da visão unilateral está na seguinte
afirmação: “o capital sempre buscou lidar com povos e espaços os mais
homogêneos possíveis”. Esta afirmação não é exata. Se é verdade que os
capitais, individualmente falando, buscam a homogeneidade, é verdade também que
todos os capitais fazem isso ao mesmo tempo, criando assim enorme
heterogeneidade. Portanto, a tendência que o mundo globalizado leva adiante é,
simultaneamente, à homogeneidade e à heterogeneidade.
Se o capitalismo não possuísse esse caráter
contraditório, estariam certos os que (como Kautsky) falavam em
“ultraimperialismo” e cartel mundial. Se o capitalismo não possuísse esse
caráter contraditório, então não teríamos nenhum ponto de apoio real para
construir uma alternativa internacional. Teríamos um “globaritarismo”
internacional, e nosso único refúgio seria o espaço nacional. Mas a realidade é
mais complexa e dialética.
Talvez porque não enxergue a “outra face” da
globalização, a Opção é pobre no que toca a oferecer um projeto internacional.
Toda a audácia em “pensar o impensável” transmuta-se, nesse terreno numa
modéstia envergonhada: “Cedo ou tarde, crescerá em todo o mundo a demanda por
uma nova ordem, capaz de moderar a arrogância de alguns poucos Estados e
minimizar os desmandos de um capitalismo sem controle”.
Convenhamos: nosso objetivo não é “moderar” a
arrogância ou “minimizar” desmandos de um “capitalismo sem controle”.
De maneira geral, quando explica qual deve ser o
lugar do Brasil no mundo, o livro não consegue ir além da reflexão produzida
pela ala moderada do PT:
“buscaremos uma posição independente, com parceiros
globais e uma pauta de comércio extensa e geograficamente diversificada, como é
a nossa vocação, ou aceitaremos nos tornar de vez um país ‘primário
importador’, inserido de forma subordinada em um sistema regional? Tudo o que
vimos converge para a necessidade de mudar o eixo da nossa política externa, em
direção à unidade do bloco de países em desenvolvimento, do qual somos parte
importante. A base principal para essa nova política são os Estados
intermediários. O novo eixo de política externa tem mais uma base de
sustentação: o potencial de integração da América do Sul tornou-se muito maior
(...) Nosso papel na integração sul-americana é insubstituível. Como tempo, um
projeto nacional exitoso no Brasil se desdobrará naturalmente em um projeto de
natureza continental, de grande vocação integradora.”
Trocando em miúdos, a estratégia internacional que a
Opção propõe para o Brasil é a nossa transformação numa “potência regional”. Há
passagens do livro em que se chega a lamentar que as ações do nosso governo nos
afastem do perfil prevalecente nos grandes estados capitalistas atuais, onde o
Estado e as corporações estratégicas multinacionais se articulam para “decolar
para o mundo”.
Noutra passagem, se diz que para ocupar posições de
vanguarda, um país deve “conseguir estruturar sua economia em torno de
atividades geradoras de um ganho diferenciado, situado acima da média (....) a
liderança do processo de inovação, a capacidade permanente de criar novas
combinações produtivas, novos processos, novos produtos (...) o núcleo do
sistema internacional são os espaços nacionais que concentram em si a dinâmica
da inovação”.
Ocorre que não há como transformar o Brasil numa
potência regional, sem entrarmos em conflito com os países menores ou
concorrentes, o que daria um caráter subimperialista à “integração” que o texto
defende. Caráter coerente com o lamentável e impressionante elogio que a Opção
faz à “estratégia do Barão do Rio Branco”, bem como o apoio que dá ao Mercosul,
que seria, com suas limitações, “a primeira associação abrangente de Estados
latino-americanos sem a presença da superpotência”.
Mistificação histórica
Já manifestamos nossa insatisfação com o que a Opção diz
ou deixa de dizer sobre a luta pelo socialismo e a dimensão internacional de
nossa estratégia. Agora vamos falar do que, supostamente, deveria ser a
peça-forte do livro: sua visão sobre o Brasil e sobre nossa alternativa.
A Opção
diz que
“generalizou-se a idéia de que não há mais a
possibilidade de um desenvolvimento em bases nacionais (...) Tudo converge para
sentirmos às avessas o sentimento, tão forte na geração dos nossos pais, de que
o Brasil era viável e se encaminhava para um futuro melhor (...) Restou pouco
do fecundo debate intelectual que tivemos até os anos 60, voltado para
compreender o sentido da nossa história e as condições de modernização do
país”.
A Opção
revela, em diversas passagens semelhantes a esta, uma avaliação muito positiva
sobre o passado do país. Antes havia um debate fecundo, hoje não mais; antes
havia um sentimento otimista, hoje não mais...
De forma geral, falta uma visão mais equilibrada
sobre o passado brasileiro. Por exemplo: a geração “dos nossos pais”, que
achava que o Brasil era viável, nasceu durante a ditadura varguista. Quando
adulta, experimentou outra ditadura, que dizia exatamente que o Brasil “era o
país do futuro”, uma “potência” que “vai para a frente”.
Noutra passagem, o livro diz que no início do século, sob
influência do positivismo, “o Brasil dizia buscar, antes de tudo, ‘civilização’
e ‘progresso’, conceitos que hoje podem soar equivocados ou ingênuos, mas que
estavam explicitamente ligados a um futuro humano (...) Na década de 1920, e
principalmente, depois de 1930, o Brasil passou a falar em
‘modernização’(...)as pessoas e os grupos sociais permaneciam como referência
fundamental de um debate que nunca se dissociava de fins e destinos.”
Assim, o positivismo conteano e a modernização
fascitóide de Vargas viram humanismo avant
la letre. A visão idílica do passado ganha contornos ainda mais
preocupantes quando se faz referência aos militares. Segundo a Opção, não
devemos temer um enfrentamento militar, com a possibilidade futura de novo
golpe de Estado, “porque as forças armadas recusarão o papel de gendarme que as
elites lhes reservam. Cedo ou tarde, serão levadas a se posicionar ao lado do
povo e da nação, como já o fizeram em outros momentos. Não lhes cabe alterar o
sistema político e comandar o país, seja em que direção for. Mas serão
convocadas por nós a participar ativamente do novo projeto, no limite de suas
atribuições, definidas em lei.”
Seria patético, se não fosse trágico, que militantes
experimentados da esquerda, vários dos quais com passagens pelos cárceres da
ditadura militar, repitam essa pataquada sobre o papel das forças armadas.
Prestes o fez, Allende o fez, tantos o fizeram, mas parece que a ilusão não tem
fim.
Em que momentos da história do Brasil as “forças
armadas” (portanto, estamos falando da instituição, não de militares isolados)
se posicionaram ao lado do povo? O ato de fundação do Exército nacional, a
Guerra do Paraguai, foi em defesa dos interesses nacionais? A proclamação da
República foi um golpe de Estado ou uma revolução democrática? De que lado estavam
os militares em Canudos e Contestado? Que posição tomou a instituição armada na
repressão ao movimento tenentista?
A revolução de 30, de 32, a ditadura varguista, a
derrubada de Vargas quando este já não interessava, o governo de Dutra, a
pressão que levou Vargas ao suicídio, o golpe militar de 64, a tortura... Mais
recentemente, a tutela militar sobre a Nova República, o Sivam, o apoio à
privatização da Telebrás... Aonde, em que céu embuçado se escondem estas forças
armadas que defendem o povo? Onde estão os sinais que demonstram que as forças
armadas estariam dispostas a enfrentar as elites nacionais e internacionais?
Segundo o livro, as circunstâncias que até aqui
garantiram o aval militar ao status quo
estão se enfraquecendo, por, pelo menos, seis motivos principais:
“(a) o desmonte sistemático do Estado e seu
desaparelhamento crescente para cumprir funções permanentes (entre as quais se
incluía capacidade de defesa do território); (b) o fim de um ciclo longo de
crescimento, que alimentava esperanças no fortalecimento gradativo do Poder
Nacional; (c) o aprofundamento de uma crise social que mina a coesão mínima
necessária para que o país persiga coerentemente suas metas fundamentais; (d) a
substituição da Guerra Fria pelo hegemonismo do Norte como fato central nas
relações internacionais; (e) o enfraquecimento de instrumentos decisivos, em
várias frentes, para a preservação da soberania; (f) a possibilidade de que a
trajetória atual reatualize, no futuro, riscos para a unidade nacional.”
Isto tudo é parcial ou completamente verdadeiro. Mas
“enfraquecer” é diferente de alterar qualitativamente o papel das forças
armadas, “braço armado do Estado burguês”.
Esse é um dos riscos embutidos na adesão ao nacionalismo:
começa-se a acreditar que forças supostamente dedicadas a defender a Nação
ficarão de nosso lado. Mas basta que nosso nacionalismo adquira uma cor social,
para que aquelas forças revelem-se defensoras da nação... burguesa.
Construção da nação
A Opção
considera que talvez, “uma chave de leitura para o longo curso da nossa
história [seja]: nosso sentido de futuro tem sido dado pela capacidade de
transformarmos aquela não-nação original em uma nação, dotada de uma
organização institucional e um sistema econômico voltados para satisfazer as
necessidades de uma população cidadã”.
Apesar do “talvez”, a Opção adota com plenitude esta idéia de que a chave de leitura da
história do Brasil é o da “construção da nação”. Há aqui terreno fértil para
uma discussão sobre teleologia, discussão muito conhecida pelos historiadores.
Há, também, matéria-prima para muita discussão conceitual sobre a idéia de
“nação”.
O que é uma “nação”? “Nação é algo dotado de uma
organização institucional e um sistema econômico voltados para satisfazer as
necessidades de uma população cidadã.”
Portanto, a “nação” é um conceito que depende da
definição prévia do que sejam as “necessidades de uma população cidadã”.
Evidentemente, tais necessidades — o conteúdo concreto da cidadania — são
definidas históricamente, pela luta de classes. Portanto, começamos com um
conceito abstrato (nação) e terminamos descobrindo que este conceito só pode
ser explicado concretamente (as necessidades do povo). Trocando em miúdos,
“nação” é aquilo que a nação é concretamente...
Nesses termos, dizer que caminhamos da não-nação em
direção a nação, equivale a dizer que caminhamos em direção ao que seremos
futuramente. O que, convenhamos, não esclarece muita coisa.
Em geral, a Opção tem uma enorme dificuldade em
manipular determinados conceitos e categorias. A razão desta dificuldade é a
recusa em analisar a história do Brasil de um ponto de vista marxista, que tome
como eixo a luta de classes.
Vejamos o que se diz da história do Brasil: “passado
e futuro estabelecem entre si uma convivência complexa, que se desdobra no
tempo e confere ao trânsito entre ‘não-nação’ e nação um caráter prolongado e
tortuoso”.
Pedimos ao leitor que analise esta frase, a esprema
bem espremida e veja se sai daí uma limonada:
(a) A “convivência” entre passado e futuro é
“complexa” — o que vale para rigorosamente qualquer coisa, não apenas para a
história do Brasil;
(b) Esta convivência se “desdobra no tempo” — o
mínimo que se pode esperar de algo que envolva o trânsito entre o passado e o
futuro, é que se “desdobre no tempo”;
(c) O trânsito entre “não-nação e nação tem um
caráter prolongado” — seria estranho que não fosse prolongado algo que já
possui 500 anos e que, segundo o autor da definição, até agora não se concluiu;
(d) O trânsito entre “não-nação e nação tem um
caráter tortuoso” — como a “nação” brasileira real não coincide com a “Nação”
ideal, o que resta é referir-se à tortuosidade.
Mais adiante o texto diz que “o conceito de país —
aparentado com nação, cidadania, república— expressa um imaginário ligado à
integração (no plano interno) e à soberania (no plano externo), ideais que
deviam ser valorizados e buscados, mesmo que ainda estivessem mais ou menos
distantes”.
É impressionante a vagueza dos conceitos, aliada a falta
de percepção de que nação, cidadania, república são “aparentados” porque são
originários das revoluções... burguesas!
Noutra passagem a Opção explicita o que considera os
“quatro grandes pilares de uma nação moderna: um
território reconhecido, um povo de cidadãos, um grau suficiente de autonomia
decisória e um Estado que expresse uma ordenação jurídico-política legítima e
eficaz. No que diz respeito ao primeiro deles, obtivemos os maiores êxitos
(...) Talvez o maior legado que recebemos da colonização portuguesa e da ação
do Império tenha sido esse imenso território, cuja integridade era de
manutenção mais do que duvidosa no período que se seguiu à Independência”.
Sugerimos aos leitores que atentem para a descrição
mistificadora que se faz do processo de consolidação do território nacional. É
fantástico que não mereça destaque o extermínio de milhões de indígenas,
condição para o “legado” português. Fala-se numa “população crescentemente
miscigenada [que] veio a substituir as populações de origem”, maneira elegante
de tratar o que de fato ocorreu. Elogia-se o processo de ocupação do território
—“ato gerador de direito” — ocorrido nos Estados Unidos, esquecendo que foi a
maneira mais barata de estimular o aniquilamento das civilizações indígenas.
Realiza-se um elogio da “base silenciosa, profunda,
estendida no tempo e que foi, em última análise, a condição de sua viabilidade:
a construção lingüística, étnica e cultural de um povo novo. Povo que seria um
dos mais ricos de humanidade, vocacionado para abrir-se ao mundo e ao novo
(...) matriz social vocacionada para o belo destino de construir uma cultura de
síntese, aberta a influências e propensa ao pluralismo”.
Em suma, um povo eleito!
“Mas o conjunto uno brasileiro não se estruturou
como um povo que exista para si mesmo, governado pela pulsão de desenvolver
suas potencialidades — eis o nosso grande malogro (...) Ao longo da nossa
história, essa massa popular tem sido reiteradamente remetida à mera luta pela
sobrevivência, sendo encarada pelas elites — ontem como hoje —, se tanto, como
uma imensa reserva de força de trabalho à disposição de projetos totalmente
estranhos a ela. Essa incapacidade de elevarmos o nosso povo à condição de
sujeito da história e de construirmos uma economia soberana, bem como as
dificuldades que enfrentamos para edificar um Estado nacional moderno, resultou
em um projeto de “nação fraca”, cuja construção se prolonga no tempo e
permanece inconclusa. A principal face dessa fraqueza tem sido, até hoje, a
dissociação entre povo e nação.”
Ou seja: as elites não estão à altura do potencial
de nosso povo... O que torna difícil entender porque, tantos séculos passados,
esse povo “vocacionado” não tenha posto a elite para correr.
Chave de leitura
A adoção daquela “chave de leitura” (da não-nação à
nação) possui um efeito teórico e político muito sério. Ao chamarmos o
desenvolvimento da sociedade brasileira e, mais recentemente, o desenvolvimento
do capitalismo no Brasil, de processo de “construção da Nação”, nós estamos
dando a este processo um título cheio de implicações.
Por exemplo: a Opção
se regozija com o fato de nossa produção industrial ter sido multiplicada 27
vezes, entre 1938 e 1980. Com a opção desenvolvimentista, “o Brasil chegou a
sentir-se portador de um projeto”. “Construímos o maior sistema produtivo do
Terceiro Mundo, com o maior parque industrial e com renda per capita relativamente elevada”. As bases materiais da nossa
economia se tornaram mais fortes. As da nossa sociedade também: apesar (sic!!)
das desigualdades, a expansão do emprego nos setores modernos e da fronteira de
ocupação territorial permitia que milhões de famílias se integrassem de alguma
forma às mutações estruturais em curso, tendo diante de si um horizonte de
mobilidade social ascendente”.
O ufanismo é indisfarçável. A construção do capitalismo
brasileiro vira motivo de orgulho. As desigualdades tornam-se objeto de um
“apesar”, quando na verdade foi graças a elas que se fez tudo isto: sem a
superexploração, sem o latifúndio, sem as ditaduras, não teríamos nos
desenvolvido como o fizemos.
Noutra passagem, a Opção insiste em que, durante muito tempo, a “lógica de integração
do mercado nacional comandou o processo” de industrialização, sem atentar para
o fato de a “lógica” em tela, supostamente integradora, é a mesma que já então
excluía dezenas de milhões de brasileiros.
Ao apresentar o capitalismo com a roupagem da nação,
a Opção adota uma linha de raciocínio
muito funcional para as elites. Afinal, é mais fácil arrancar a pele dos
trabalhadores em nome dos interesses nacionais, da “construção nacional”, do
que em nome do sórdido lucro capitalista.
Mesmo quando parece assumir um tom mais crítico, a Opção o faz de um ponto de vista
incorreto. Vejamos: “Desenvolvimentista na economia, nosso Estado foi
profundamente conservador nas relações sociais, especialmente no que diz
respeito às populações rurais”. Ora: o Estado só pode ser desenvolvimentista na
economia porque foi conservador nas relações sociais.
“Muitas vezes autoritário, sempre foi servil aos
interesses privados, internos e externos”. Muitas vezes é um elogio: tivemos
388 anos de escravidão, 389 anos de monarquia, 41 anos de ditadura civil
oligárquica, 36 anos de ditadura, 17 anos de democracia sem liberdade
partidária nem voto universal, 5 anos de transição tutelada pelos militares,
dois anos de Collor...
O desenvolvimentismo também foi expressão desse
caráter servil aos interesses privados, e não uma oposição a eles. Ou foram os
trabalhadores os principais beneficiários do desenvolvimentismo?
“Não realizou reformas estruturais necessárias para
dar solidez ao processo de desenvolvimento”. Este “desenvolvimento” tem que ser
adjetivado: trata-se de um desenvolvimento capitalista. Sua “solidez” não tem
nada a ver com as reformas estruturais que nós ambicionamos. Se tivesse, os
capitalistas as fariam. Como não têm, elas só ocorreriam sob pressão popular,
como ocorreu em outros estados desenvolvimentistas e até mesmo no Brasil.
“O capital privado nacional não estabeleceu um
padrão autônomo de acumulação e sequer ganhou escala suficiente para alçar
grandes vôos. Com o tempo, nossa dependência ao exterior tendeu a agravar-se.”
Ora, o capital privado nacional fez o óbvio: preferiu ser sócio minoritário do
capitalismo internacional, a ser protagonista de um capitalismo autárquico. E
este traço de dependência esteve presente inclusive nos momentos de
desenvolvimento e até mesmo quando o Estado agiu mais ativamente no “social”.
“O front interno
também mostrava graves problemas: a terra continuou concentrada, [os salários
continuavam comprimidos], regiões inteiras eram mantidas à margem de qualquer
modernização, nossa base produtiva estava a serviço, principalmente dos
mercados de rendas mais altas, a educação e a cultura não haviam sido
massificadas”. Graves problemas? Para quem? Sem estes “problemas”, o desenvolvimentismo
não teria dado certo, não teria produzido aquela taxa de crescimento da qual a
Opção se ufana!
“O antigo modelo de crescimento mais ocultou do que
superou nossas fragilidades internas e externas”. Mas o que são as
“fragilidades”? O mercado interno reduzido? Mas sem ele não teria havido
crescimento tão rápido e vigoroso! A dependência? Mas sem ela não teria havido
industrialização tão completa.
A Opção parece não perceber que os aspectos
“anti-social” e “dependente” do desenvolvimento são bem mais do que um
acidente, um erro de execução, uma “contraface”: são a condição de existência
do capitalismo brasileiro.
Aqui é preciso fazer uma opção pela dialética: a nação e
a não-nação são pólos contraditórios da mesma totalidade. Uma não existe sem a
outra. E não há como superar um pólo da contradição, sem superar
simultaneamente o outro pólo. Ou seja: para superar a “não-nação”, a sociedade
brasileira terá que se transformar tanto, que a “nação” resultante não será
mais uma nação, no sentido burguês da palavra.
Ao querer superar a “não-nação”, sem superar ao mesmo
tempo a “nação”, a Opção revela aquele vício intelectual típico da classe
média: quer comprar importados, mas não quer desemprego; quer ter acesso as
delícias da saúde privada, mas crítica o mal-estado da saúde pública, etc.
Subestimação
A Opção
afirma que: “enganam-se os que acreditam em uma hegemonia duradoura das forças
do status quo. O projeto econômico
que a fundamenta não tem consistência, e muito menos apresenta potencial
estruturante para a sociedade brasileira em prazos mais longos.”
Esta idéia é repetida diversas vezes ao longo do
texto, e nela reside, a nosso ver, o equívoco cujas consequências políticas
podem ser as mais desastrosas. E não se trata de um equívoco original.
A Opção registra que, “contrariando as esperanças de
muitos dos melhores intelectuais dos anos 30, 40 e 50, a industrialização não
nos levou, por si só, a superar o subdesenvolvimento”. Mas ao fazer o balanço
crítico do “fecundo debate intelectual que tivemos até os anos 60”, a Opção
incorre em dois dos equívocos cometidos, de formas diversas, por Celso Furtado
e Caio Prado Jr.: uma visão estagnacionista e a opção nacionalista.
Aqueles dois pensadores, embora o primeiro não fosse
marxista e o segundo não fosse revolucionário, influenciaram muito a esquerda
revolucionária nos anos 50 e 60, a maioria da qual também acreditava que não
haveria desenvolvimento(capitalista ou socialista) caso o Brasil não
conseguisse ampliar o mercado interno, superar o imperialismo e o latifúndio.
Quando veio o golpe militar de 64, esta parte da esquerda
achou que o capitalismo não tinha mais como hegemonizar as amplas massas, uma
vez que ele nada teria para lhes oferecer. Afinal, não haveria desenvolvimento
sem ampliar o mercado interno, enfrentar o latifúndio e o imperialismo. A
esquerda revolucionária passou a ver o futuro na forma de disjuntivas como:
socialismo ou fascismo, colônia ou libertação nacional, estagnação ou
revolução. Como o capitalismo estaria “bloqueado”, sem condições de continuar
hegemonizando as massas, aquela mesma esquerda lançou-se à luta armada. O fim
da história nós conhecemos: não se enfrentou as questões do latifúndio e do
imperialismo, o mercado continuou restrito e, exatamente por isto, houve
desenvolvimento. E a burguesia conseguiu manter sua hegemonia sobre as amplas
massas, isolando e massacrando a esquerda revolucionária.
Para que a hegemonia das forças do status quo não seja duradoura, é preciso
antes de mais nada que não subestimemos sua capacidade. Apresentar a atual
situação brasileira como a disjuntiva “colônia versus nação independente” e/ou como um “bloqueio da construção
nacional” é não perceber que a destruição em massa de forças produtivas também
pode servir como preparação para um novo salto no desenvolvimento capitalista,
para um novo ciclo de crescimento do capitalismo brasileiro.
O desafio da esquerda está exatamente em
aproveitar-se das condições deste momento de transição, para viabilizar uma
alternativa socialista. É nestes termos que consideramos correto e necessário
falar em projeto nacional.
Mutatis
mutandis,
apresentarmos a situação como estagnação versus
desenvolvimento, e achar que os trabalhadores são os únicos capazes de permitir
a retomada do crescimento, é repetir o equívoco de parte do movimento
comunista, que tornou-se de fato ala esquerda do projeto nacional-burguês.
O bloqueio da construção nacional
A Opção
diz que “pela sua formação histórica e a forma de articulação de seus
interesses, as elites brasileiras estão condenadas a oscilar de um ponto de
vista subnacional, típico das oligarquias regionais, para um ponto de vista
supranacional, típico dos setores articulados para fora, representados hoje,
principalmente, pelo capital financeiro.”
Noutra passagem, o livro diz que:
“as disfuncionalidades decisivas do nosso modelo
anterior estão sendo ampliadas, sob nova roupagem (...) assim como, há cem
anos, os defensores dos interesses agrários optaram por manter suas vantagens e
não permitiram que o país se desenvolvesse, hoje os círculos financeiros
desempenham o mesmo papel: priorizam a boa relação com o sistema internacional,
mesmo ao preço de manter em suspenso o nosso desenvolvimento. Essa distorção
terrível, que é uma imposição de fora, pode nos levar a uma situação semelhante
à que vivemos no fim da década de 1920, quando uma crise externa desarticulou
nossa economia primário-exportadora. Se não fosse por uma revolução, o Brasil
não teria saído do impasse. Mesmo depois, nas décadas de1930 e 1940, houve os
que novamente se posicionaram contra a industrialização (...) A analogia com a
situação de 30 não é meramente formal (...) a crise atual, assim como aquela,
marca o fim de uma fase evolutiva da vida brasileira (...) parece ter chegado
ao fim — inconcluso — o longo e tortuoso processo de construção nacional
comandado pelas velhas elites.”
Ainda que concordemos com o paralelo e com o caráter
crucial do atual momento histórico, pensamos que a Opção não tira todas as conseqüências da analogia com a situação de
1930.
Naquele momento, um setor da oligarquia
agroexportadora, chefiada por Vargas, pôs-se a frente do projeto
industrializante. Curiosamente, Vargas mereceu a oposição exatamente da
burguesia industrial paulista.
Se o paralelo com 1930 é válido, deveríamos levar em conta
a possibilidade de haver uma reação “nacional”, contra o neoliberalismo,
comandada por um setor das velhas elites. A Opção desconsidera esta
possibilidade, porque acha que a única alternativa “nacional” é aquela
representada pelos setores populares: “pela primeira vez na história
contemporânea, governo e elites se descomprometem explicitamente com a
continuidade do processo industrializador — e com a própria idéia de
desenvolvimento —, que cimentou o acordo político e social básico do Brasil
neste século e conferiu relativa estabilidade a uma sociedade tão desigual”.
A não ser que a “história contemporânea” seja apenas
aquela que vem de 1930 para cá, este raciocínio está incorreto. Como a própria Opção lembra, antes de1930 governo e
elites se opunham ao projeto industrializante. Os portadores do “projeto
nacional” eram principalmente os comunistas (vide Agrarismo e Industrialismo) e
os tenentistas.
Quando um setor da oligarquia agroexportadora assume
a condução da industrialização, ela de fato hegemoniza tanto o tenentismo
quanto o comunismo. Este risco existe hoje. Se nosso projeto for definido em
termos “nacionais”, com baixa dose de socialismo; e se nossas metas nacionais
forem definidas em termos produtivistas, como o faz em diversos momentos a Opção, então nosso projeto será
plenamente hegemonizável pela elite (para ser preciso: por aquele setor da
elite que assumir a vanguarda de um novo ciclo de crescimento).
Quem ler os artigos publicados na grande imprensa por
Delfim Neto, Rubens Ricúpero e, oh ironia, Benjamin Steinbruch e Antonio
Ermírio, verá que há um grande setor da elite que trabalha nessa perspectiva ou
que, pelo menos, se prepara para essa eventualidade. Motivo pelo qual talvez
seja mais adequado comparar FHC com Artur Bernardes ou Washington Luís, e não
com Campos Salles.
O enredamento de tantos esquerdistas por Itamar reflete, não apenas o vácuo deixado pelo PT, mas também o
rebaixamento do nosso programa — tomando como “programa máximo” a soberania
nacional e assemelhados —, terreno no qual a oposição burguesa se movimenta com
muito mais desenvoltura e radicalidade.
(Aqui vale um registro: a defesa da soberania
nacional pelo setor moderado do PT é uma defesa frouxa, porque ele busca
conciliar soberania nacional com “globalização”, o que só os Estados Unidos
conseguem fazer 100%.)
Voltando à Opção:
a idéia de que as elites “romperam os vínculos que possam ter tido com o
conjunto do país, cooptadas por um horizonte cosmopolita de negócios, padrões
de consumo e valores, no contexto de uma dependência de novo tipo, que apenas
aprofunda o atrelamento de nossa grande economia àquela bolha especulativa do
capitalismo financeiro”, é equívoca em dois sentidos.
Primeiro, por exagerar as diferenças (que existem) entre
o que a elite já foi, no Brasil e no mundo, e o que ela é hoje. Segundo, por
não perceber que ela pode ser “cosmopolita” (no “mal” sentido da palavra) e ao
mesmo tempo manter vínculos com o “conjunto do país”, obviamente nos termos de
seu interesse.
Segundo a Opção,
o que as elites
“estão nos dizendo, todo o tempo, é que o Brasil não
tem mais sentido (...) sua opção alimenta forças centrífugas que apontam para o
rompimento dos vínculos históricos e socioculturais que até aqui mantiveram, em
algum nível, juntos os cidadãos. Os grupos mais bem posicionados para
participar do mercado mundial ficam cada vez mais tentados a desfazer (sic!!!)
quaisquer laços de solidariedade nacional, desligando completamente seu padrão
de vida, seus valores e seu próprio destino, dos padrões, valores e destino do
país como um todo”.
As declarações dos porta-vozes da burguesia
brasileira não autoriza esta análise (vide, por exemplo, o discurso de Paulo
Cunha na Escola Superior de Guerra). Ao contrário: cresce entre estes setores a
percepção de que, se mantiverem o status
quo atual, podem perder anéis e dedos.
O projeto neoliberal não é o único à disposição das
elites. Na verdade, não há dois, mas vários “projetos nacionais” em disputa:
Itamar e Ciro Gomes são expressão disso.
A burguesia brasileira não é suicida: diante de um
agravamento da crise internacional e/ou nacional, ela pode assumir a liderança
de um “projeto nacional”. E quem tiver estabelecido o “nacional” como seu deus
dostoevskiano, será mais facilmente cooptado ou jogado à margem (como o foram,
respectivamente, os tenentistas e Prestes, em 1930).
Análise de classe
A Opção acusa
“os integrantes da coalizão dominante” de “cegos para as conseqüências do
sistema que representam”.
Nesta e em dezenas de outras passagens, revela-se
uma das principais falhas teóricas do livro: a ausência de uma análise de
classe. Na ausência dela, a Opção cai
— em diversos momentos — numa crítica lamurienta, que parece exigir das elites
que se comportem de outra forma. Que sejam mais responsáveis, que levem em
conta o povo, que enxerguem o que estão fazendo com o país (como as elites de
antigamente supostamente faziam).
Acontece que os integrantes da coalizão dominante
não são “cegos”; eles apenas executam o seu projeto de classe, que é
absolutamente “racional” do ponto de vista dos interesses daquela classe.
Para os que achem exagerada nossa crítica, sugerimos
a leitura desta passagem da Opção:
“se debilitam, entre nós, as bases de uma
sociabilidade civilizada: um regime comum de valores, caminhos de mobilidade
social ascendente, a idéia de um futuro em construção. Cada vez mais gente é
expulsa da sociedade civil e retorna ao ‘estado de natureza’ (...) legiões de
adultos perdem, de forma irreversível, direitos já conquistados — inclusive o
mais básico deles, o direito ao trabalho (...) grande número de pessoas passa a
viver sem identidade social definida. A noção de direitos e deveres se
enfraquece.”
A descrição é brilhante. A sensação é de que, antes,
vivíamos numa época onde imperava o direito ao trabalho, onde prevalecia a
noção de direitos e deveres, onde havia um regime comum de valores...
Mas alto lá: estamos falando do quê? Da Nova
República? Da ditadura militar? Dos anos JK?
Noutra passagem, o livro afirma que “a soma dos
comportamentos que são racionais em escala microeconômica, resultam em elevada
“irracionalidade social e macroeconômica, desemprego em massa e desequilíbrio
no balanço de pagamentos”. Logo em baixo, numa nota de rodapé, pode-se ler:
“alguém duvida de que o mais racional seria que todos trabalhassem menos, para
que todos tivessem trabalho?”
Aqui, como em várias outras passagens, a Opção abusa da idéia da “racionalidade”.
Esse tipo de conceito é típico de quem olha o mundo como engenheiro (os
economistas no poder teriam abandonado “o projeto”).
Um olhar mais acostumado a lógica das classes
perceberia que é totalmente racional, para o capitalista, o desemprego em
massa. E totalmente irracional, do ponto de vista dos trabalhadores. Como é
racional para um e irracional para outro, o termo revela-se equívoco e meio
positivista.
A mesma postura “sem classe” aparece noutras
passagens, como quando se diz que a corrida armamentista foi uma “estupidez”;
quando se acusa o câmbio atual de ser “irrealista”; ou quando se julga
“a-histórico” que a sociedade brasileira continue a se submeter a grupos que
assentam seu poder e sua autoridade no controle monopolista do território.
A-histórico, estupidez, irrealista e irracional para quem, cara-pálida?
Na verdade, estes raciocínios só fazem sentido se o autor
estiver lamentando o fim de uma etapa do capitalismo brasileiro. Nesse caso,
ganha sentido também o elogio das “gerações que empurraram para a frente um
processo de desenvolvimento sujeito a restrições externas”.
Essa noção de “gerações” é bem funcional, porque
oculta a existência de diferentes projetos de classe e inclusive de diferentes
projetos desenvolvimentistas.
O cenário estrutural
Segundo a Opção,
os economistas da corrente dominante questionam de forma explícita
“o fato de países como o Brasil manterem em seu
território sistemas produtivos relativamente completos. No lugar deles, propõem
algum tipo de especialização, definida a partir das vantagens comparativas
locais, tal como ditadas pelo mercado internacional. No mundo contemporâneo,
entretanto, as vantagens comparativas mais relevantes —porque mais sólidas no
longo prazo — são aquelas construídas através de um esforço sistemático e
planejado, decorrentes de decisões de caráter estratégico, freqüentemente
tomadas contra os sinais de mercado no presente e sustentadas ativamente no
tempo.”
Nesta afirmação há alhos e bugalhos misturados. É
inegável que a sociedade mundial tem excesso de capacidade produtiva instalada
e sofre crises periódicas de superprodução. Isto é da natureza do capitalismo.
Por isto mesmo, os estados capitalistas centrais buscam destruir os
competidores, e difundem por isso discursos “racionalizantes”, além de operarem
com dumping.
É também por isso que, durante o século XX, só o
planejamento estatal pode construir sistemas produtivos relativamente completos
em países atrasados. Mas, se pensarmos numa sociedade socialista internacional,
não faz sentido a existência de “sistemas produtivos relativamente completos”
em todos os países.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que critica a “especialização”,
a Opção faz um elogio à nossa
“vocação agrária”: “Solos propícios à agricultura já são um fator escasso no
mundo, e as projeções indicam que, nas próximas décadas, a demanda de alimentos
deve superar a capacidade de oferta em nível mundial.”
Ou seja, estaria aí uma vantagem comparativa para o
Brasil. Não sabemos de onde se tirou esta informação neomalthusiana. Para
começo de conversa, a tecnologia pode tornar propícios os solos, ou pode até
dispensá-los parcialmente. Em segundo lugar, a agricultura européia e
norte-americana tem uma enorme capacidade ociosa.
Mais adiante, o raciocínio neomalthusiano volta: “No
mundo desenvolvido e na Ásia, a norma geral é a escassez ou esgotamento
previsto desses recursos (biológicos) em prazo relativamente curto (...) Seja
qual for o critério adotado, a pobreza e a desigualdade existentes no Brasil
são incompatíveis com a capacidade produtiva que nossa sociedade já adquiriu.”
Isso pode ser certo apenas enquanto protesto moral:
economicamente falando não há nenhuma incompatibilidade entre
pobreza/desigualdade e capacidade produtiva.
A Opção não
pensa assim. Segundo ela, a economia brasileira “passou a dispor de um núcleo
industrial qualitativamente novo, muito mais flexível, que não precisa mais
orientar-se para produzir bens consumidos pela parcela mais rica da população.
Dissociaram-se, potencialmente, a lógica do crescimento industrial e a lógica
de concentração da renda nacional.”
Se essa tese for verdadeira, tudo será mais fácil.
Afinal, o país teria diante de si um novo campo de possibilidades,
“no qual há condições de se estabelecer uma nova
sinergia, diferente da do período anterior, entre crescimento industrial e
distribuição de renda. Para tal, é condição necessária, embora não suficiente,
que a base industrial seja preservada e mantenha-se como pólo dinâmico da
economia. Dentro dela, especialmente, o setor de bens de capital, justamente o
mais fragilizado pelo modelo atual. É ele que dissemina o progresso técnico.
Constitui, por isso, o ponto focal da capacidade de modernização das
economias”.
É paradoxal: a Opção
começou prometendo o impensável, mas terminou apresentando um receituário
bastante conhecido — indústria de bens de capital, ampliação do mercado interno
e potencial agrícola. Receituário semelhante foi aplicado tanto nas economias
capitalistas avançadas, quanto no socialismo de tipo soviético, durante os anos
50 e 60 deste século. E foi adotado no Brasil. Logo, para evitar a quadratura
do círculo, a Opção decreta,
unilateralmente, que dissociaram-se “potencialmente” a lógica do crescimento
industrial e a lógica da concentração de renda.
Portanto, a raiz de nossos problemas não estaria na
natureza da economia, mas apenas na pusilanimidade dos seus gestores, que
insistem em concentrar renda, quando isto não é mais “necessário”.
Mas... e se não for assim? E se a conexão entre as
duas lógicas (crescimento/concentração) for inerente à dinâmica de acumulação
do capital, sendo maximizada nos países da periferia?
Neste caso, será preciso que a nova economia
brasileira não tenha como dinamizador a busca do lucro privado, nem tampouco a
acumulação de capital. Isto é possível? A resposta teórica exige discutir a
experiência soviética, tema que passa ao largo da Opção.
Na ausência deste debate, as propostas apresentadas
pela Opção tem muito pouco de inovadoras. O livro defende que
“o eixo [da construção nacional] deve deslocar-se
para a população em si mesma. Com um território consolidado e uma população
emancipada de relações patriarcais, o imaginário nacional poderá gravitar pela
primeira vez em torno de uma idéia de sociedade que incorpore a de uma
igualdade essencial. Sobre essa nova base, o processo de construção nacional
poderá completar-se (...) É de uma mudança antes de tudo cultural que falamos (...)
Cinco compromissos: com a soberania, com a solidariedade, com o
desenvolvimento, com a sustentabilidade, com a democracia ampliada. Valorizar
nossa população e o patrimônio natural e social do país, eis os fundamentos
últimos desse novo imaginário, que precisa basear-se em uma arraigada crença na
nossa viabilidade. (...) Os trabalhadores é que são portadores de interesses
gerais, na medida em que não têm outra opção, senão garantir a continuidade da
construção nacional. Temos um continente a integrar. O mundo contemporâneo tem
sido marcado pela formação de blocos (...) Para superar sua marginalização no
cenário internacional, a América do Sul deve caminhar na mesma direção. O papel
do Brasil é insubstituível na criação do núcleo histórico desse novo arranjo
regional de cooperação e desenvolvimento — latino e americano — que poderá vir
a configurar um novo bloco, ou novo megaestado, no futuro. Nosso problema
econômico mais importante, portanto, é o de conciliar a dinâmica da
distribuição com a dinâmica do crescimento. (...) A consolidação desse mercado
(interno) como um elemento dinâmico é a nova face fundamental da questão
nacional, marcada em décadas anteriores pela defesa dos recursos naturais e a
opção industrializadora. Deslocando trabalhadores dos setores mais atrasados,
há grande elevação da produtividade média —e, com ela, da produção —, com
difusão automática desse ganho para a sociedade como um todo (ao contrário dos
ganhos atuais, que incidem apenas sobre a produtividade marginal do trabalho) (...)
Isso quer dizer que só retomaremos um crescimento acelerado se adotarmos uma
estratégia que seja homogeneizadora dos níveis de produtividade e de renda
presentes em nossa sociedade. São imensos os ganhos de eficiência disponíveis
para ser capturados pela economia brasileira através da modernização de setores
e atividades retardatários, melhor organização social da produção, etc., com
forte impacto positivo sobre o nível de emprego. Quanto à renda, quanto mais
igualitária a sua distribuição, maior e mais variada será a demanda, e mais
rapidamente o mercado interno alcançará dimensões que permitam ganhos de escala
na produção local de bens e serviços, o que, evidentemente, aumenta também
nossa capacidade de competir nos mercados externos.”
“Mais do que investir na fabricação de novos produtos, ou
de produtos levemente diferenciados, concebidos para mercados de altas rendas,
precisamos aumentar as escalas de produção dos bens “tradicionais”, tornando-os
assim mais baratos(...) Não existe no longo prazo um dilema entre expansão da
demanda interna e ampliação das relações comerciais com o resto do mundo (...)
A indústria manterá seu papel indutor do desenvolvimento do conjunto do sistema
(...) Quanto maior for o alcance transformador de um projeto, mais severos
serão os obstáculos institucionais interpostos a ele.”
No fundamental, a Opção defende o mesmo que o programa de Lula, em 1994 e 1998: a
consolidação do mercado interno como elemento dinâmico é a nova face
fundamental da questão nacional. Como sabem os leitores dos manuais de
economia, “produzir barato e vender para muita gente” é o modelo idealizado do
próprio capitalismo. Ford, por exemplo, é conhecido por querer fabricar carros
que seus operários pudessem comprar. Mas o capitalismo real só chegou perto
desse modelo por um breve período, em um pequeno número de países.
Por outro lado, a idéia de que a indústria “manterá seu
papel indutor do desenvolvimento do conjunto do sistema” exige uma discussão
sobre produtivismo, limites do crescimento econômico e outros temas que também
passam à margem da reflexão.
O autor da Opção
parece ter consciência destes problemas, alertando inclusive para o caráter
inconcluso de suas formulações neste terreno. Mas é impressionante a facilidade
com que ele resolve o problema com afirmações taxativas, para as quais não se
apresenta prova nenhuma, como:
(a) “dissociaram-se” a lógica do crescimento e a
lógica da concentração de renda, sendo possível conciliar a “dinâmica da
distribuição com a dinâmica do crescimento”;
(b) “deslocando trabalhadores dos setores mais
atrasados, há grande elevação da produtividade média — e, com ela, da produção
—, com difusão automática desse ganho para a sociedade como um todo”;
(c) “só retomaremos um crescimento acelerado se
adotarmos uma estratégia que seja homogeneizadora dos níveis de produtividade e
de renda presentes em nossa sociedade”;
(d) ”são imensos os ganhos de eficiência disponíveis
para ser capturados pela economia brasileira através da modernização de setores
e atividades retardatários, melhor organização social da produção, etc., com
forte impacto positivo sobre o nível de emprego”;
(e) “quanto à renda, quanto mais igualitária a sua
distribuição, maior e mais variada será a demanda, e mais rapidamente o mercado
interno alcançará dimensões que permitam ganhos de escala na produção local de
bens e serviços, o que, evidentemente, aumenta também nossa capacidade de
competir nos mercados externos”;
(d) “mais do que investir na fabricação de novos
produtos, ou de produtos levemente diferenciados, concebidos para mercados de
altas rendas, precisamos aumentar as escalas de produção dos bens
‘tradicionais”, tornando-os assim mais baratos;
(e) “não existe no longo prazo um dilema entre
expansão da demanda interna e ampliação das relações comerciais com o resto do
mundo”.
Em resumo, todos os problemas, todas as contradições, são
“resolvidas” de maneira harmônica. Convenhamos, se fosse assim tudo seria muito
fácil. Mas como sabem os que estudaram a dinâmica das sociedades que tentaram
construir o socialismo, organizar uma sociedade em torno da igualdade, da
ampliação do nível de vida das maiorias, etc. é uma tarefa política e
economicamente difícil.
Conclusão
A crítica da Opção
exige o tratamento de outras questões: o silêncio sobre as questões estratégicas
e partidárias, por exemplo. Mas parece claro que o ideário explicitado por A opção brasileira não constitui uma
alternativa ao ideário hegemônico no PT e na esquerda brasileira.
Constitui uma tentativa, e nesse sentido merece
todos os elogios. Mas uma tentativa que recauchuta conceitos que já eram
equívocos nos anos 50 e 60. Revelando que algumas tentativas de superar o PT
padecem do mesmo problema das organizações que buscavam superar o velho PC:
capazes de uma profunda crítica tática e sobre as formas de luta e acúmulo de
forças, não conseguiram superar os marcos teóricos da alternativa democrática e
nacional.
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