Campinas,
8 de julho de 1999
Companheiros
da Concrab
Camarada
secretário-geral, Adalberto
Com um imperdoável, mas espero que compreensível atraso,
estou enviando o texto sobre “a correlação de forças políticas e sociais na
sociedade brasileira, no período de 1989/99”. Como voces verão, não falei quase
nada sobre como esta correlação de forças se expressou na luta social no campo.
O que eu pudesse falar não acrescentaria nada ao que voces, o Horácio,
Wladimir, Plínio e Claus já sabem. Finalmente, fiz o texto a partir de vários
outros, meus ou de minha co-autoria. Assim, se alguém descobrir alguma idéia,
frase ou parágrafo que já viu noutro lugar, não estranhe...
Um panorama geral
1.Na maior parte da
história brasileira, as classes populares ou subordinaram-se aos interesses de
um setor da burguesia, ou não reuniram forças suficientes para consolidar-se
como alternativa independente. Esse padrão começou a mudar nos anos 80, quando
se afirma um pólo democrático-popular e
socialista, cuja principal expressão foi (e ainda é, apesar de tudo) o PT.
2.Mesmo disposto a realizar as tarefas históricas que a
burguesia brasileira não foi capaz ou não necessitou realizar --superação da
dependência ao imperialismo, liquidação do latifúndio, democratização da
propriedade (principalmente da terra), democratização política e outras
reformas populares realizadas onde o capitalismo seguiu uma via distinta da
nossa-- aquele pólo explicitava que
tais tarefas deveriam ser realizadas sob a direção dos trabalhadores, contra o
capitalismo e na perspectiva da construção do socialismo.
3.A afirmação daquele pólo alterou
substancialmente o padrão da luta de classes no país. Por outro lado, foi o
próprio desenvolvimento capitalista no Brasil --negando a possibilidade de
realizar tarefas democrático-burguesas sob a hegemonia da burguesia
“brasileira” e seus sócios maiores do capital internacional-- que colocou na
ordem-do-dia o socialismo como objetivo estratégico dos trabalhadores e das
forças populares.
4.A conjuntura excepcional do final dos anos 80 quase
materializou, também, uma possibilidade fantástica, que nunca havia sido posta
para a esquerda pré-surgimento do PT: a eleição de um presidente socialista.
Neste caso, o governo das forças democrático-populares e socialistas viveria uma
situação estratégica muito peculiar: exercer o governo federal sem ter a
hegemonia ideológica da sociedade, nem o domínio do Estado.
5.A derrota em 1989 abriu um período de contra-ofensiva
burguesa. Esta contra-ofensiva destruiu várias das conquistas sociais obtidas
pelas classes trabalhadoras ao longo das últimas décadas, ao mesmo tempo em que
encurralou no beco eleitoral as organizações populares surgidas nos anos 80.
6.A partir de meados dos 90, entretanto, a contra-ofensiva
burguesa vem perdendo fôlego. Perdeu o charme ideológico, na medida que o
neoliberalismo aprofundou os problemas econômicos, sociais, políticos e
militares da maior parte da humanidade. Quebrou-se a unidade burguesa, na
medida em que a fuga de capitais eliminou as vantagens relativas da “sociedade
total” com as finanças mundiais.
7.Isso abriu um novo período de disputa, em que basicamente
três alternativas estão colocadas. Ou o aprofundamento da integração à “nova
ordem mundial” –nos termos atuais ou nos termos defendidos pela centro-esquerda.
Ou um ciclo capitalista-nacionalista, que só vingará se a “ordem mundial”
entrar em colapso, “desengatando” a economia brasileira, mas sem que haja uma
alternativa popular suficientemente forte. Ou uma ruptura democrática, popular
e socialista.
8.Qual destas alternativas prevalecerá? Isso dependerá dos
rumos da economia mundial, da intensidade da disputa interburguesa e do
comportamento dos setores populares.
9.Em qualquer caso, vivemos um momento de “equilíbrio
instável”, que não deve durar muito. Se as forças populares não agirem com
rapidez e decisão, o país viverá novamente um ciclo repressivo, de fato ou de
direito.
A brecha dos anos
oitenta
10.Para entender o porque da “novidade” trazida pelos anos
oitenta, é preciso fazer referência ao ciclo aberto com a “revolução de 30”,
durante o qual o capitalismo brasileiro experimentou um desenvolvimento rápido,
industrializador e urbanizante. Altas taxas de crescimento transformaram o
Brasil na “oitava potência industrial do mundo capitalista” e urbanizaram 70%
de sua população (contra 30%, no final da década de 20).
11.Ao longo destes cinquenta anos,
afirmou-se um tipo específico de capitalismo: conservador e anti-democrático;
associado de maneira subordinada ao capital internacional; dotado de uma base
produtiva voltada para a exportação e para mercados de maior poder aquisitivo;
uma sociedade com a maior taxa de concentração de renda do mundo e, matriz de todo o resto, um altíssimo nível
de concentração de propriedade.
12..Esse “modelo” sofreu diversas
crises desde que começou a ser implantado. A crise ocorrida em meados dos anos
50 foi superada com uma maior abertura ao capital estrangeiro, a intensificação
da substituição de importações, a ampliação da base produtiva, a aceleração da
expropriação do campesinato e a “modernização capitalista” do latifúndio.
13.O processo gerou enfrentamentos que
desaguaram na crise de 1961-64 e na instalação de uma ditadura militar, que
criou as condições institucionais necessárias para um novo período de
crescimento (1968/1972).
14.Nova crise, deflagrada pelo choque
internacional, é momentaneamente superada com o aprofundamento da subordinação
--principalmente via endividamento externo-- mas sob o aparente manto
nacionalista do governo Geisel.
15.A partir de 1976-77, o modelo entrou
em processo agônico de esgotamento. Combinaram-se suas próprias contradições,
com as alterações na economia capitalista internacional --que concluira, já no
final dos anos 60, sua “época de ouro”. Os reajustes da economia mundial,
principalmente com a consolidação do capital transnacional e do novo estágio
atingido pelo capital financeiro, passam a exigir novos parâmetros de
associação subordinada. No Brasil, a “crise do modelo” prolongou-se por toda a
década de 80.
16.A burguesia não reagiu unificadamente à crise do modelo.
Vários motivos explicam isso: a crise da ditadura militar, que enfraqueceu as
forças armadas, um dos pilares da ordem capitalista no Brasil; o ascenso do
movimento operário e popular, a partir do final dos anos 70; as pressões do
capital monopolista internacional, no sentido de implantar o modelo sintetizado
pelo “Consenso de Washington”; as pressões econômicas derivadas da crise do
modelo e as disputas interburguesas pela distribuição dos prejuízos etc.
17.Essa situação --uma crise e uma classe dominante dividida sobre como enfrentá-la--
abriu uma “brecha” no esquema de dominação burguesa. Através daquela brecha,
penetraram as forças populares, no final dos anos 70 e durante toda a década de
80: o movimento estudantil; as greves do novo sindicalismo; a Anistia; o
surgimento do PT, da CUT e do MST; a campanha das Diretas; as conquistas na
Constituinte; a legalização dos partidos comunistas; e um surpreendente avanço
eleitoral da esquerda. O auge desta ofensiva das forças populares foi a eleição
presidencial de 1989, quando o candidato da Frente Brasil Popular disputou o
segundo turno; o país polarizou-se entre o bloco conservador e o bloco
democrático-popular.
18.Para este resultado, confluíram uma
série de fatores. A burguesia dispersou-se entre diversas opções eleitorais; o
presidente José Sarney encontrava-se extremamente desgastado, enfrentando-se
com um grau de descontentamento elevado; a radicalização popular fluiu não para
os movimentos sociais, que já viviam um certo descenso, mas sim para as urnas.
De certa forma, a burguesia foi tomada de surpresa pelo resultado do primeiro
turno, ou pelo menos não dispunha dos meios de evitá-lo.
19.A ameaça de uma derrota, em 1989,
impos a unidade burguesa, primeiro em torno do candidato Fernando Collor de
Mello e, depois, em torno do chamado neoliberalismo. Não foi uma unidade por
opção: foi uma unidade no susto. Mas tinha raízes profundas.
A burguesia e o neoliberalismo
20.A burguesia brasileira alterna momentos de unidade,
quando apesar das divergências ela se encontra unida em torno de um rumo
hegemônico; com outros momentos, de divergência aberta. A história do Brasil
está cheia de exemplos de como esta disputa pode atingir temperaturas extremas,
indo até a luta armada, como ocorreu em 1930 e 1932. Noutros momentos, a
disputa interburguesa “transbordou”, ajudando a estimular a luta dos setores
populares, como aconteceu em 1992, durante o movimento pelo Fora Collor.
21.Durante os anos 80, diante da falência do modelo
econômico então vigente, cada setor da burguesia passou a defender sua própria
alternativa, expressando isto no Congresso Constituinte e nas eleições
presidenciais de 1989. A proliferação de candidatos burgueses à presidência
tornou possível que, pela primeira vez na história do Brasil, um candidato da
esquerda ameaçasse vencer as eleições presidenciais.
22.Para evitar a vitória de Lula, as elites unificaram-se em
torno de Collor. Mas a aliança “no susto” consagrou, também, a adesão da maior
parte da burguesia ao projeto neoliberal ou, vale dizer, ao projeto defendido
pelos setores monopolistas da burguesia, aqueles com maiores vínculos com o
capital estrangeiro e financeiro.
23.O apoio a Collor foi minguando mas a adesão ao
neoliberalismo não. Apesar de derrotas pontuais (como o impeachment e o fracasso do parlamentarismo), seguiram-se quatro
anos de consolidação do ideário neoliberal e, finalmente, a eleição de Fernando
Henrique Cardoso.
24.Ao contrário da unidade em torno de Collor, feita no
susto, a unidade em torno de FHC-94 foi planejada, desejada, consciente, uma
unidade por opção. A opção custou caro aos trabalhadores brasileiros, que a
pagaram com seu emprego, com a redução dos seus salários e dos seus direitos
sociais. Custou caro, também, para amplos setores do pequeno empresariado
urbano e dos pequenos proprietários rurais, que sucumbiram diante dos altos
juros e da concorrência dos importados.
25.Os efeitos do programa neoliberal sobre a burguesia foram
variados, a depender de cada setor. Mas durante um certo período, o abundante
fluxo de capitais estrangeiros permitiu que sobrasse um pouco para todos. De
uma forma geral, a grande burguesia brasileira –todos os seus setores—conseguiu
“ganhar algum” durante os anos de fluxo abundante de capitais. Alguns ganharam
mais do que os outros, mas todos ganharam um pouco, mesmo aqueles que tiveram
que vender seu patrimônio. Valeu, então, a máxima que caracteriza a burguesia
brasileira: melhor ser sócia minoritária
do grande empreendimento capitalista internacional, do que ser sócia
majoritária num projeto de capitalismo nacional autônomo.
26.A medida que a fonte secou, ou seja, a medida que o fluxo
de capitais estrangeiros tornou-se mais escasso, começou a grita. Importantes
setores do empresariado começaram a criticar a política econômica do governo, a
abertura comercial sem critérios, os juros altos, o privilégio à estabilidade
em detrimento do desenvolvimento, os benefícios conferidos ao capital
estrangeiro...
27.A insatisfação de crescentes setores do empresariado
manifestou-se nas eleições, seja através da fracassada tentativa de lançar um
candidato a presidente pelo PMDB, seja através da candidatura de Ciro Gomes.
Mas a dissidência empresarial estava numa sinuca: cada dólar para Ciro era uma
ajuda indireta para que Lula fosse ao segundo turno. E, como bem disse Delfim
Neto, entre FHC e Lula, ele votaria “em legitima defesa” no
presidente-candidato.
28.Impossibilitada de manifestar-se plenamente na disputa
presidencial, a dissidência empresarial deu o ar de sua graça no segundo turno
dos estados (onde comemorou a vitória de alguns candidatos tidos como
“centro-esquerda”) e numa intensa onda de críticas à equipe econômica.
29.O empresariado não faz oposição ao regime, mas no máximo ao governo FHC. Como diz José
Mindlin, que vendeu sua Metaleve para a alemã Mahle, os empresários estão
fazendo “críticas que fazem parte do regime democrático”. E não estão em
oposição porque sua discordância em relação ao governo é de ritmo, não de rumo.
30.Ricúpero, por exemplo, deixa claro que seu objetivo é
“tornar o Brasil uma verdadeira economia de mercado”. O presidente da Fiesp,
Horácio Lafer Piva, fala em “pulverizar” o capitalismo. Antonio Ermírio explica
que não é “contra a entrada de capitais estrangeiros, especialmente quando
estes se dirigem à produção. Mas tenho a obrigação de ser contra a política que
oprime a competência nacional. Que os ineficientes sejam atropelados, tudo bem.
Mas que os empresários operosos sejam castigados pela maldade dos juros
escorchantes, tributos exorbitantes e câmbio irrealista, é demais”.
31.A pauta do empresariado “crítico” é a mesma do governo:
câmbio, juros, abertura comercial, exportações, ajuste fiscal, reforma
tributária. E sua saída para a crise está em ressuscitar o lema ditatorial do
“exportar é o que importa”. Temas como defesa das estatais, suspensão do
pagamento da dívida externa, moratória da dívida pública, controle da remessa
de capitais, reforma agrária, imposto sobre as grandes fortunas, aumentos
salariais, redução da jornada de trabalho, ampliação das políticas sociais...
não fazem parte da pauta.
32.O dilema do
empresariado brasileiro é o seguinte: o capitalismo brasileiro chegou tarde ao
mundo. Para compensar o atraso, as elites lançaram mão de todos os expedientes,
entre eles o latifúndio, a superexploração da força de trabalho, a concentração
de renda, a intervenção estatal e a sociedade com o grande capital
internacional. Mesmo assim, o tamanho de nossa burguesia é minúsculo perto das
grandes corporações transnacionais. Por isso, ela sempre buscou a condição de
sócia do capital internacional. Ultimamente, os sócios têm aumentado muito seu
espaço. Os empresários brasileiros querem que o governo os defenda mais, mas
não querem que esta defesa vá além de um certo ponto. Por um lado, por que isso
pode por os sócios para correr. Por outro lado, porque eles mesmos têm dinheiro
aplicado na jogatina financeira e seriam prejudicados por retaliações do
capital internacional. Nessas condições, o empresariado brasileiro acaba recorrendo
sempre a seguinte alternativa: despejar sobre o andar de baixo a conta da
crise.
33.Não se deve descartar que a disputa
interburguesa esquente ainda mais, nos próximos meses e anos. Caso a crise
internacional reduza em demasia as vantagens relativas, para a burguesia
brasileira, de manter-se acoplada ao grande capital internacional, nada impede
que –como nos anos 30— ela acabe construindo um curso próprio. O que não
implicará, óbvio, em mudar a natureza do modelo econômico-político-social
existente no Brasil.
34.Em
qualquer caso, é pouco provável que a hegemonia neoliberal prossiga
indefinidamente. Não porque falte apetite ao grande capital internacional, mas
por dois outros motivos: a)em primeiro lugar, o tecido social brasileiro é
resistente o suficiente e gerará, mais cedo ou mais tarde, uma alternativa;
b)em segundo lugar, o capitalismo está entrando numa fase internacional de
“fechamento de fronteiras”, o que amplia as vantagens de outra política
econômica (vale lembrar que o ciclo iniciado nos anos 30 recebeu um empurrão
decisivo da “desconexão” resultante da grande depressão e da Primeira Guerra
Mundial).
35.Setores da burguesia brasileira,
mesmo fazendo juras de amor à modernização neoliberal, procuram alternativas
para sobreviver ao processo de “globalização” O ressurgimento de correntes
nacionalistas e keynesianas resulta dessa busca de segmentos burgueses, que
encontra eco nos setores médios e mesmo entre os partidos e movimentos sociais
de esquerda. Dependendo da resistência social e política à destruição
neoliberal, esses segmentos podem ganhar importância, conquistar a hegemonia e
impor uma política de desenvolvimento econômico não-neoliberal, aproveitando-se
inclusive das condições deixadas pela própria destruição neoliberal: enormes necessidades
de infraestrutura, mercado interno reprimido, força de trabalho barata e
extensa.
Os
governos de Fernando I, Itamar e Fernando II
36.O primeiro governo brasileiro
abertamente neoliberal, o de Collor de Melo, não conseguiu chegar até o final --as
disputas inter-burguesas, agravadas pela aplicação do Consenso de Washington,
combinadas à mobilização popular--, abriram caminho para o impeachment do presidente da República.
37.Mas o temor e o risco de que o PT
vencesse as eleições presidenciais de 1994, permitiram que a unidade burguesa
em torno do neoliberalismo sobrevivesse ao tropeço inicial de Collor, assim
como ao plebiscito sobre sistema de governo (1993) e ao fracasso da revisão
constitucional (1993-94).
38.Unificada e aproveitando-se dos erros
cometidos pela esquerda (entre os quais destaca-se a pequena oposição ao
governo Itamar Franco --vice de Collor e empossado na presidência após o impeachment--, sob cuja cobertura foi
elaborado o Plano Real e forjada a aliança que elegeu Fernando Henrique), a
burguesia impôs uma dura derrota eleitoral e política à candidatura da Frente
Popular, elegendo ainda no primeiro turno seu candidato. A principal arma
utilizada para esta vitória foi o Plano Real; mais que um expediente eleitoral,
o “Real” introduziu no país o choque neoliberal.
39.Com a vitória de FHC, em 1994, a burguesia passou a
dispor de uma direção orgânica e comprometida com o projeto neoliberal. Seus
objetivos: destruir o “modelo” econômico anterior, construir outro modelo e,
principalmente, fechar a “brecha” aberta no final dos anos 70.
40.A espinha dorsal do projeto
tucano-pefelista, segundo seus próprios defensores, é a atração de capitais
estrangeiros. O Brasil seria um país com enormes riquezas e potencial de
crescimento, mas não disporia dos capitais necessários para sua exploração.
Como estes capitais existem, em enorme quantidade, no mercado financeiro
internacional, a questão estaria em adotar políticas que atraiam estes capitais
para o Brasil.
41.Esta política prosperou no terreno
fértil do início dos anos 90, quando o centro do debate ideológico e da luta
política em todo o mundo e no Brasil era a crise do socialismo. Importantes
setores da esquerda brasileira consideraram encerrada a “crise do modelo”;
chegavam a prognosticar que a hegemonia neoliberal teria longo fôlego, cabendo
à esquerda, durante décadas, um papel secundário, coadjuvante.
42.Desde a crise do México, em 1995, a
situação internacional começou a mudar. O impacto sobre o Brasil foi direto,
colocando em questão a idéia de que o governo neoliberal tucano-pefelista
conseguira superar a crise de “modelo”, gerando um novo ciclo de
desenvolvimento para o Brasil.
43.Em 1998, ao contrário, o espectro
que ameaçava o mundo era o do “crash global”: a crise do capitalismo. E o
imaginário brasileiro estava dominado pela idéia de que poderiamos ser “a bola
da vez”, a próxima vítima de um ataque especulativo. Foi nesse quadro que
ocorreram as eleições presidenciais de 1998, para a qual registraram-se mais de
15 candidatos, a maioria dos quais sem expressão política e eleitoral. Os mais
fortes foram Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes.
44.Fernando Henrique foi o candidato
oficial das elites. Ciro Gomes buscou ser porta-voz dos setores dissidentes do
governo. Cabe lembrar que um dos efeitos da aplicação do programa neoliberal
foi o de empurrar para uma postura “oposicionista”, setores que em 1994
apoiaram FHC. Trata-se de empresários, que tiveram que vender o seu patrimônio,
mesmo que em condições relativamente vantajosas, para grandes capitalistas
internacionais. Ou ainda daqueles que não estão recebendo o que pretendiam, no
botim das concessões e privatizações. E uma miríade de pequenos e médios
proprietários que não estão resistindo aos altos juros e à abertura comercial.
Isto para não falar de amplos setores da classe trabalhadora, que se
desiludiram com Fernando Henrique mas não desejavam votar em Lula.
45.Esses setores não almejam confrontar
a “globalização”, o neoliberalismo, o imperialismo norte-americano, muito menos
subverter a estrutura social brasileira. Mas eles reclamam do ritmo imprimido
por Fernando Henrique e lamentam os resultados práticos da macroeconomia do
Real.
46.O programa de Ciro Gomes (que pode
ser lido no livro O próximo passo: uma
alternativa para o Brasil, de Ciro Gomes e Roberto Mangabeira Unger) visa
reduzir as dores do parto neoliberal para
esses setores. Desonerar a produção, cobrar imposto sobre consumo, abater a
dívida pública com o dinheiro das privatizações, atacar o corporativismo
sindical, acelerar as reformas através de medidas assumidamente impopulares...
Estas e outras são medidas que visam depositar ainda mais sobre os
trabalhadores o custo do ajuste neoliberal.
47.Entretanto, dois fatos jogaram uma
cortina de fumaça sobre o caráter de classe da candidatura Ciro Gomes: em
primeiro lugar, importantes lideranças da esquerda brasileira, inclusive do PT,
assessoradas pelo intelectual Jorge Castaneda e financiadas pelo PNUD-ONU,
negociaram, meses seguidos, um programa comum com Ciro Gomes. Ao mesmo tempo,
sua candidatura foi lançada pelo Partido Popular Socialista (ex-comunista).
48.Caso a candidatura de Ciro Gomes
tivesse tido sucesso, teriámos um enorme retrocesso em relação a 1989 e 1994,
voltando a uma situação de polarização entre projetos conservadores, com as
forças socialistas tornando-se caudatárias de forças burguesas, como acontecia
frequentemente com a esquerda brasileira, antes do surgimento do PT. Isto não
ocorreu por dois motivos básicos: a)para ter viabilidade eleitoral, a
candidatura de Ciro Gomes dependia dele obter o apoio de um amplo setor do
eleitorado de esquerda. O que só aconteceria se a candidatura Lula não tivesse
se firmado como alternativa eleitoral principal dos que repudiavam o modelo econômico
vigente no país; b)dependia, também, da ocorrência de uma crise mais grave, que
desgastasse de forma irreversível o candidato FHC. Só nesse caso, a grande
burguesia poderia migrar, de uma candidatura FHC não mais atrativa
eleitoralmente, para uma candidatura da oposição burguesa.
49.Apesar do quadro econômico de
dificuldades crescentes, da disputa nas hostes que apoiaram Fernando Henrique
em 1994 e da insatisfação social, Fernando Henrique ganhou no primeiro turno.
Entre outros motivos, porque as debilidades da oposição de esquerda concederam
uma grande margem de manobra para o governo (“trégua” durante a crise asiática
de 1997, atraso em lançar a candidatura de Lula, comportamento frente às
demissões da Volks, recuo na polêmica sobre a privatização da Telebrás etc.).
50.A vitória de FHC não resolveu, ao
contrário acentou, a crise da hegemonia neoliberal. Mas esta crise não é,
necessariamente, a crise final. Basta lembrar que na Europa, governos de
direita ou centro-direita foram derrotados nas urnas, por coligações de
centro-esquerda que deram prosseguimento à mesma política neoliberal.
51.Para evitar que isso ocorra, não
basta uma estratégia adequada (que combine mobilização com disputa eleitoral,
acumulando para uma ruptura revolucionária); não basta, também, um programa e
uma política de alianças de esquerda (que fale claramente de suspensão do
pagamento das dívidas externa e interna, reforma agrária, reestatização das
empresas que foram privatizadas etc.). Isto tudo será inútil se permanecer no terreno
das idéias ou na prática apenas das vanguardas. Do que se trata é reconstituir
o bloco de classes que sustenta o projeto democrático-popular e socialista.
52.Este bloco reúne, potencialmente, os
trabalhadores assalariados, os pequenos produtores rurais, os pequenos
produtores urbanos e uma massa mais ou menos fluida –composta por milhões— de
desempregados permanentes, marginalizados, trabalhadores temporários e
desqualificados etc.
53.A grande dificuldade reside em que,
o setor social mais numeroso e de maior impacto na vida política do país –os
trabalhadores assalariados— não está se colocando em movimento. E isso
acontece, em boa medida, porque a política neoliberal instalou uma fratura no
interior das classes trabalhadoras, entre os setores melhor remunerados (que
eles tentam e muitas vezes conseguem cooptar) e o restante dos trabalhadores.
Uma política para o próximo período que dê conta de todo o resto, e não dê
conta disto, não terá resolvido nosso problema.
54.Dizendo de outra forma, o grande
problema estratégico das organizações populares que atuam no campo está em achar com quem fazer a “aliança
operário-camponesa”. A tarefa principal, é claro, terá que ser realizada pelos
militantes partidários e sindicais. Mas certamente se pode realizar muito em
termos de solidariedade mútua e, inclusive, de entrosamento econômico e social.
Porque do que se trata é reestabelecer a solidariedade material, prática,
concreta, cotidiana, entre as classes trabalhadoras.
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