Eu queria poder
ler todos os artigos publicados pelo Fernando Haddad na Folha de
S.Paulo. Infelizmente, nem sempre dá tempo. Mas o artigo publicado dia 4 de
dezembro está, como se diz por aí, “imperdível”. A começar pelo título, que não
sei se é da lavra de Haddad ou do editor da coluna: “Lula e PT são não só
indissociáveis, mas eventos únicos”. Deixemos o título para o final e, antes,
glosemos o miolo.
Segundo Haddad,
o PT reuniu “pessoas advindas do novo sindicalismo, das comunidades eclesiais
de base e da universidade”.
Não sei o
motivo, mas na lista falta a turma que veio da luta armada e das organizações
de esquerda que existiam antes do PT.
Também segundo
Haddad, “no timão do processo, um líder carismático de trajetória e
inteligência incomuns que encantou a intelectualidade progressista”.
Talvez fosse
melhor falar de uma “parte” da intelectualidade progressista, afinal grande
parte escolheu ficar no PMDB e depois foi para o PSDB, como é o caso do
Fernando Henrique; sem falar dos que preferiram ficar no PSB, no PDT e nos
partidos comunistas.
Para Haddad, o
PT seria uma “nova esquerda, antiautoritária e não-dogmática”. Ou seja, o PT
teria surgido se diferenciando da “velha esquerda” marxista-leninista.
Faltou lembrar
que o PT surgiu se diferenciando, também, do populismo trabalhista e
reivindicando o socialismo para agora, não para outra etapa depois do
horizonte.
Haddad diz
também que “não há precedente na nossa história de um partido similar
eleitoralmente viável”.
De fato, o
sucesso eleitoral do PT é superior ao de toda a esquerda precedente. Mas não
estaria exatamente aí a origem de vários dos nossos problemas??
É ótima a
afirmação feita por Haddad, segundo a qual o lugar que o PT ocupa foi “socialmente
conquistado”. Ou seja, se o PT minguar, o espaço que ele ocupa tende a minguar
junto.
Acrescentaria:
seria preciso um novo big bang de lutas políticas e
sociais, para dar origem a algo parecido com o PT.
Neste ponto
Haddad entra no tema Lula, assunto inescapável depois das declarações do “galo
tapado”, da “vaca fardada”, do "coronel parisiense" e da "versão baby do Aécio Neves".
Vou copiar o
parágrafo em que Haddad introduz o assunto: “O erro de alguns petistas, por sua
vez, é imaginar que o PT possa se fortalecer sem Lula. Não se reproduz
facilmente uma liderança da sua qualidade. Lula e PT são não apenas
indissociáveis como são eventos únicos e mutuamente dependentes”.
Confesso que
fiquei intrigado com o parágrafo acima. Não apenas por apresentar como “erro” o que é
uma linha política que, se triunfar, vai levar o PT por um caminho parecido ao
do New Labour, de Tony Blair.
Mas também porque parece ser uma exaltação, mas lança na verdade uma condenação.
É como dizer
que não existe Terra sem Sol. Acontece que o Sol não é eterno, está esfriando,
alguns dizem que pode vir a se converter futuramente numa estrela-anã. Em
recente superprodução sci-fi chinesa, o problema se resolve transportando a
Terra para outro sistema solar.
É o que algumas
pessoas pretendem fazer, enchendo a bola de lideranças de outros partidos que –
à custa de um pouco de sorte e de um planejado mimetismo teatral – parecem
(mas só parecem) ser capazes de cumprir o papel.
Ou seja: dizer
que Lula e PT são “indissociáveis”, “eventos únicos” e “mutuamente dependentes”
pode nos levar à seguinte conclusão: daqui a, digamos, 20 anos, o PT vai
desaparecer.
No fundo, no
fundo, é isso que muita gente pensa, embora por razões óbvias prefira não
pensar, nem dizer, nem escrever.
Eu não penso
isso.
Acho que o PT
pode e precisa sobreviver, mesmo depois da partida de toda a sua geração fundadora.
Mas existe uma
premissa essencial para que isto ocorra: não perder o vínculo com a classe
trabalhadora, com seus interesses imediatos e históricos.
E isto só ocorrerá
se fizermos exatamente o contrário do que a classe dominante quer que façamos.
O que a classe
dominante quer? Que o PT desapareça ou, pelo menos, se converta num partido da
ordem, aceite seu lugar no sistema, se corrompa, degenere, pare de encher o saco deles.
Por exemplo,
votando num golpista para presidente da Câmara e outro para presidente do
Senado, em troca de poucos cargos e muitas promessas.
Abrindo mão de
disputar 2022 pela esquerda, apostando fichas numa frente amplíssima que inclua
a direita não bolsonarista.
Mandando para o
arquivo morto a luta pela recuperação dos direitos políticos do Lula e
promovendo o velório em vida do “legado político” do ex-presidente.
Não é preciso
ser lulista, nem é preciso concordar com Lula, para perceber onde é que isto vai dar.
Mas se
quisermos impedir este desfecho, se quisermos salvar o PT e o petismo, é preciso uma mudança profunda no Partido, na
sua linha política e na sua conduta prática.
Só assim construiremos
a transição para uma época em que nenhum de nós estará por aqui, mas o PT
continuará existindo, não como uma legenda eleitoral, mas sim como instrumento da
classe trabalhadora na luta contra o capitalismo.
A questão de ouro, claro, é saber se Lula vai ajudar nisso. Ou se vai contribuir, por ação ou por omissão, com aqueles que estão lhe esfolando vivo.
*
Na madrugada de 5 de dezembro perdemos Kjeld Jakobsen, o mais brasileiro dos vikings. Se Valhala existisse, ele teria seu lugar garantido! Viva o Kjeld!!
O PT
Lula e PT são
não só indissociáveis mas eventos únicos
O Partido dos
Trabalhadores é um fenômeno social não replicável. Forjado a partir da luta
social, reuniu pessoas advindas do novo sindicalismo, das comunidades eclesiais
de base e da universidade. No timão do processo, um líder carismático de
trajetória e inteligência incomuns que encantou a intelectualidade
progressista. Nascia uma nova esquerda, antiautoritária e não-dogmática, que
permitiu aos desprovidos da Terra sonhar com um governo que os representasse.
Apesar de seus limites, não há precedente na nossa história de um partido
similar eleitoralmente viável.
O erro de
alguns progressistas não petistas é imaginar que o enfraquecimento do PT vai
lhes favorecer. O lugar que o PT ocupa no espectro ideológico não é ideal, mas
materialmente construído. Não é um espaço natural à espera de um hóspede, mas
um espaço socialmente conquistado.
O erro de
alguns petistas, por sua vez, é imaginar que o PT possa se fortalecer sem Lula.
Não se reproduz facilmente uma liderança da sua qualidade. Lula e PT são não
apenas indissociáveis como são eventos únicos e mutuamente dependentes.
O PT é sua
militância. A força dessa militância abriu caminho para que novas lideranças
emergissem, gente de extremo valor, que dificilmente teria um lugar ao sol na
política sem rebaixar suas pretensões. Até outro dia, sobretudo no Nordeste,
jovens talentosos beijavam a mão de velhos coronéis para ascender
politicamente.
O PT mudou a
cara do Nordeste, representou uma nova perspectiva para pobres, negros e
mulheres de todo o país e combateu a desigualdade como nenhum outro partido,
usando a educação como instrumento de transformação. Enterrou velhas
oligarquias que, agora, esboçam um movimento de retorno, o que deveria estar no
centro das nossas preocupações.
As eleições
municipais não permitiram ao PT recuperar o espaço que perdeu em 2016. O avanço
foi tímido. Com o encolhimento do centro (PDT e PSB) e da centro-direita
(PSDB), ganharam terreno os partidos da direita e extrema direita descendentes
da velha Arena, base de sustentação do regime militar e do bolsonarismo.
O antipetismo,
em alguma medida, é também fruto do desejo de que uma polarização entre direita
e extrema direita se estabeleça como garantia de que as estruturas
socioeconômicas do país não se alterem. Nessa medida, a extrema direita é
sistemicamente funcional enquanto cativa para um projeto reacionário parte do
eleitorado pobre que quer "mudança".
O PT de Lula
tem diante de si um futuro não menos desafiador neste país que, se nada for
feito, terá, na precisa expressão de Millôr, um enorme passado pela frente.
Artigo
publicado no jornal Folha se São Paulo
04/12/2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário