Um companheiro sugeriu que eu comentasse um texto do Nildo Ouriques, intitulado “A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados” e divulgado no seguinte endereço: https://resistentes.org/artigos/dentro-da-baleia/
Neste texto, Nildo
Ouriques critica a tática -- defendida por parte do PSOL, adotada pela maioria
do PT e pelo PCdoB -- de apoiar um setor da direita golpista para
(supostamente) derrotar o outro setor, neste momento apoiado por Bolsonaro, na disputa pela Mesa e Presidência da Câmara dos Deputados.
Há muitas
afirmações interessantes no texto de Nildo Ouriques, embora geralmente encobertas
por um estilo literário que a mim recorda desagradavelmente o de outro
autor, que por pudor prefiro não nomear. Exemplos do estilo: “quinquilharias ideológicas”,
“digestão moral da pobreza”, “PT, partido que possui a maior bancada no covil
de ladrões”, “duas moléculas de lucidez serão suficientes” etc.
Entre as afirmações
interessantes feitas por Ouriques, cito a de que temos no governo brasileiro uma
“administração liberal da economia” que aplica um “programa de extração
keynesiana”. Sendo que, “nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do
governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória
do ultra liberalismo”, “uma vitória de Maia e da fração financeira”. Embora a exposição
tenha, na minha opinião, várias inconsistências, concordo com o núcleo da tese;
aliás, desde o governo Reagan já se sabe que as políticas hoje chamadas neoliberais
não são incompatíveis com medidas comumente chamadas de keynesianas.
Há também pontos
que a mim parecem frágeis, como denominar de “esquerda liberal” ou de “liberalismo
de esquerda” os que defendem participar do bloco de Maia, segundo Nildo para defender
o “atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia”. Aceita
esta afirmação, o que sobraria de “esquerda” no Brasil? Pouca coisa, como o
próprio Ouriques reconhece. Mas ele parece compensar isso com a temerária
afirmação de que “o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo”.
Confesso que não sei bem do que ele está falando, até porque “rechaço” é uma postura
ativa. E o notável, tanto em 2018 quanto em 2020, é o tamanho da abstenção, dos
votos em branco e nulos. Uma atitude passiva, não ativa.
Mas o que mais me
chamou a atenção no texto de Ouriques é o que ele diz acerca do 5º Encontro
nacional do PT: “O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do
esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta
pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem
burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro
do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.
“Qualquer um pode
ver”?
Vou transcrever a
seguir um trecho da resolução do 5º Encontro nacional do PT:
“A ALTERNATIVA
DEMOCRÁTICA E POPULAR E O SOCIALISMO
70. A alternativa
que apresentamos à Nova República e à dominação burguesa no País é democrática
e popular, e está articulada com nossa luta pelo socialismo.
71. Um governo e um
programa democráticos e populares – os dois componentes de nossa alternativa –
são o reconhecimento de que só uma aliança de classes, dos trabalhadores
assalariados com as camadas médias e com o campo, tem condições de se contrapor
à dominação burguesa no Brasil.
72. É por isso que
o PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática, que o PCB
defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque o
uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia
nessa aliança de classes – burguesia que é uma classe que não tem nada a oferecer
ao nosso povo.
73. As propostas
que proclamam a necessidade e a possibilidade imediata de um governo dos
trabalhadores evitam a discussão sobre qual a tática, qual a política para
alcançar esse objetivo. Na prática, separam a luta reivindicatória da luta
política, por não compreenderem a necessidade da acumulação de forças. A
retórica aparentemente esquerdista recobre a ausência de perspectivas políticas
e uma concepção limitada, atrasada, das lutas reivindicatórias.
74. Na situação
política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa
democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados
criarem as condições para as transformações socialistas.
75. Nas condições
do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de
caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio – tarefas não
efetivadas pela burguesia – tem um duplo significado: em primeiro lugar, é um
governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa,
portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá
viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das
tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista
em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista.
Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de
uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático popular, e, o que
é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova
fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”.
Pergunto: com base
no trecho citado, é mesmo possível a “qualquer um” constatar que o PT teria
aderido “sem inibição à ordem burguesa”?
Para ler o texto
integral da resolução (em cuja elaboração Dirceu e Lula não tiveram o papel que Ouriques sugere), buscar aqui:
https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/07-resolucoespoliticas_0.pdf
Certamente há algum
texto onde Ouriques explica melhor sua posição a respeito. Mas salvo melhor juízo,
sua crítica ao que de mais avançado o PT elaborou na década de 1980 indica que –
apesar de concordar que “a esquerda brasileira (...) necessita [de] um giro
radical” – Nildo aponta no sentido oposto ao que me parece adequado, ou seja, ele
aponta em um sentido oposto a uma estratégia democrático-popular
e socialista.
Aliás, este é um traço típico de certa ultra-esquerda: jogar a criança fora, junto com a água suja do banho.
Neste sentido, embora
eu tenha interpretado de maneira diferente a crítica feita a Arthur Miller em “Dentro
da baleia”, acho que para ilustrar sua "tese" Nildo Ouriques fez muito bem em escolher George Orwell.
SEGUE ABAIXO O TEXTO CITADO ACIMA
Por Nildo Ouriques
A esquerda liberal
e a eleição da presidência da câmara dos deputados
A defesa abstrata
da democracia volta a circular entre nós. Agora, a propósito de uma eleição
para a presidência da câmara dos deputados, os partidos que constituem o
liberalismo de esquerda (PT, PDT, PSB e PC do B) se unem para “derrotar
Bolsonaro” a partir de uma aliança com Rodrigo Maia, subitamente considerado um
representante da “direita democrática”. A distinção política entre a “direita
democrática” e a “direita autoritária” foi lançada por Fernando Henrique
Cardoso quando seu minúsculo PSDB – com epicentro em São Paulo – decidiu a
aliança estratégica com o antigo PFL (o DEM da época) para disputar e vencer as
eleições presidenciais de 1994. FHC fez escola…
Não causou
surpresa, portanto, quando na semana passada, José Dirceu concedeu algumas
entrevistas e escreveu artigo tocando o clarinete do pragmatismo na recuperação
do antigo argumento de FHC destinado agora a enfrentar e derrotar Bolsonaro
numa disputa no interior do covil de ladrões que também atende pelo nome
republicano de congresso nacional.
Quem seria o
candidato dessa aliança até bem pouco tempo improvável? Ora, um deputado
indicado por Rodrigo Maia que receberia o apoio de aproximadamente 130
deputados da esquerda liberal, talvez suficiente para vencer o candidato
presidencial, Arthur Lira.
O candidato da
“direita democrática” é um tal Baleia Rossi, do MDB paulista, uma escolha de
Rodrigo Maia que toda a esquerda liberal decidiu acompanhar para – por tabela!!
– derrotar o candidato de Bolsonaro. Maia é sabidamente homem da fração
financeira hegemônica na coesão burguesa que sustentou todos os governos desde
1994 e, ademais, é também o líder das reformas que aumenta a superexploração do
povo, comanda o assalto ao estado e aprofunda a dependência e o
subdesenvolvimento.
No entanto, Maia
expressa de maneira miserável o espírito republicano que o proto fascista
despreza em seu combate contra a “velha política” que lhe assegurou a vitória
nas últimas eleições presidenciais. O conflito, portanto, entre a presidência
da república e o presidente da câmara, é parte constitutiva das tensões
imanentes ao jogo político mas, de fato, são incapazes de motivar Rodrigo Maia
a votar um dos 56 pedidos de impeachment sob sua guarda. A razão é simples: a
crise atual impede a destituição pela via parlamentar do proto facista quem,
por sua vez, aproveita cada lance para avançar no programa ultra liberal em
favor da coesão burguesa (aliança entre o capital agrário, comercial,
industrial-residual e bancário) com apoio decisivo de Maia.
Há algo que precisa
ser melhor observado na crise atual. O proto fascista aplica, na prática, um
programa de extração keynesiana. Guedes exibe o maior déficit fiscal da
história republicana, possui a taxa Selic mais baixa quando comparado com
qualquer governo do liberalismo de esquerda, mantém programas sociais que
sustentavam a outrora a digestão moral da pobreza turbinada pelos governos do
PT e garante o equilíbrio do balanço de pagamentos na base da economia
exportadora e de empréstimos externos, além, é claro, de seguir com o
super-endividamento do estado via dívida pública e transferências permanentes
do Tesouro ao Banco Central. A administração liberal da economia não permite
arriscar previsão otimista sobre a superação da crise cíclica mundial que se
abate com mais força na periferia capitalista. No entanto, a crise aproximou os
ultra liberais dos keynesianos de tal maneira que, no essencial, não existem
diferenças substanciais entre os primeiros e os segundos. A divergência –
sempre presente – se resume a desacordos eventuais na dosagem, mas jamais no
rumo da política econômica.
A defesa abstrata
da democracia – na qual Rodrigo Maia figura como representante da “direita
democrática” – tem, não obstante, consequências práticas. A mais importante é a
união do liberalismo de esquerda com a direita liberal na defesa do atual
sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia. Ora, o sistema
político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo e nada indica –
absolutamente nada! – que goza de boa reputação nas classes subalternas. Ao
contrário, mesmo na análise superficial dos resultados eleitorais de novembro,
o rechaço ao sistema político segue sendo uma inclinação evidente do eleitor,
além de combustível valioso para a direita em toda disputa eleitoral. Nesse
contexto, a reivindicação abstrata da democracia aparece como o que de fato é
para amplos setores das classes subalternas: a defesa da podridão do regime
político atual, sem dúvida uma peça preciosa da campanha presidencial de 2022.
Mas o liberalismo
de esquerda confina o profundo rechaço ao sistema político dominante, afirmando
que a “anti-política” não teve vez nas eleições municipais e, em consequência,
alimenta ilusões próprias e alheias segundo as quais os ventos mudaram,
Bolsonaro saiu derrotado e o “centrão” e a “direita tradicional” venceram…
Quinquilharias ideológicas sem solidez alguma, com a finalidade de ocultar o
essencial no jogo pesado das classes sociais e suas frações.
A absoluta falta de
compromisso com a revolução brasileira no interior do liberalismo de esquerda –
portanto, ausência de um projeto estratégico – a deixa rodando no labirinto da
crise administrada pelo proto fascista. No fundo, a linha defendida por Zé
Dirceu se resume a reivindicação de uma “frente ampla” como se fosse possível
com tal artificio reverter a lenta e inexorável deterioração da economia e do
sistema político. A democracia – jamais poderemos esquecer – é uma realidade
histórica a ser conquistada pela luta dos trabalhadores contra a burguesia e
jamais o resultado da disputa de espaços no interior de um sistema eleitoral
apodrecido que não goza de prestígio algum nas classes subalternas e tampouco
guarda algum interesse à classe dominante. Aqueles que julgam a vitória do
proto fascista Bolsonaro em 2018 como mero produto de uma conjuntura eleitoral
– em vias de superação – divulgam uma ilusão que custará sangue e suor às
classes subalternas.
Ora, um cargo na mesa diretora do parlamento, a presidência de algumas
comissões e uma “vitória simbólica” sobre o proto fascista na disputa no
interior do covil de ladrões justificaria, finalmente, a aliança entre o
liberalismo de direita e o liberalismo de esquerda?
José Dirceu não
está só na empreitada, justiça seja feita. A deputada e líder da bancada do
PSOL no parlamento, Fernanda Melchiona – acompanhada de Marcelo Freixo – já
anunciou que pretende se somar a corrente e eu não duvidaria que meu partido
assumisse um lugar no bloco em “defesa da democracia”. Ora, a democracia não é
um valor universal pois, tal como ensina a história brasileira,
latino-americana e mundial, as classes dominantes não possuem qualquer
compromisso com a forma liberal do regime de dominação. O liberalismo de
esquerda banaliza as razões do golpe de 1964 e, com a mesma convicção, oculta o
conteúdo restringido do regime eleitoral (democracia restringida) que emergiu
da crise da ditadura como forma de dominação política a partir de 1985.
A questão não é, de fato, de natureza doutrinária. O senso comum funcional ao
cinismo dominante afirma que devemos deixar de lado o purismo e avançar de
maneira pragmática contra Bolsonaro impondo derrota após derrota, em todos os
terrenos, numa luta sem quartel, até abatê-lo de maneira definitiva. Ora, o
pragmatismo é também uma arte que tem lá suas exigências, nada fáceis de
eludir. Nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a
possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra
liberalismo.
Não basta –
definitivamente não basta! – aos liberais de esquerda justificar sua adesão ao
liberalismo de direita prometendo um céu keynesiano nas 10 premissas de um
manifesto redigido para inglês ver. Portanto, se a adesão ocorrer e, quem sabe,
o tal deputado Baleia derrotar o candidato de Bolsonaro, a operação é um
reforço notável à Rodrigo Maia na disputa pela hegemonia da coesão burguesa
contra o proto-fascista e, em nenhuma hipótese, um passo adiante para o
liberalismo de esquerda. Ao contrário, é mais do que claro que uma vitória de
Maia contra Bolsonaro será um reforço precioso ao liberalismo de direita na
futura disputa contra os liberais de esquerda em 2022. A polarização na próxima
disputa presidencial poderá ser – como tenho advertido antes mesmo das eleições
municipais – entre os ultra liberais encabeçados pelo proto fascista e a
direita liberal, cujas filas não param de crescer. Enfim, por vez primeira
desde 1988, se tal cenário se confirmar, podemos estar diante de uma contenda
na qual o liberalismo de esquerda finalmente revelaria os limites de sua
própria política justificando o voto na “direita democrática” contra a “direita
autoritária”. Portanto, se o pragmatismo é isso, pode ser também um sinônimo
para suicídio político!
Nas circunstâncias da crise brasileira, o pragmatismo exige uma boa dose de
radicalismo político, mas esse é um tempero que o liberalismo de esquerda
“orientado” pelo bom mocismo recusa como se sua adoção violasse um mandamento
divino, uma regra moral. Na real, a esquerda liberal só não navega sem bússola
porque esta, na prática, orientado pelo liberalismo de direita sob o bordão da…
“defesa da democracia”!
Há outras razões, nem sempre exaustivamente tratadas, que comandam a adesão da
esquerda liberal ao candidato da fração financeira que hegemoniza a coesão
burguesa, razão pela qual devemos exibi-las claramente para entender a
racionalidade do pragmatismo que se pavoneia entre nós como se fosse, de fato,
um comportamento político “responsável”.
José Dirceu escreve há tempos sobre a necessidade de uma “oposição radical a
Bolsonaro” e uma “auto-reforma e renovação da esquerda” (liberal). Para tal,
essa oposição, cuja ponto alto seria o impecheament do proto facista, teria que
levar a “suspeição de Sérgio Moro” e, mais importante, “anular as condenações a
Lula”. Ora, o drama do PT não representa os dramas do liberalismo de esquerda.
O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda
socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No
entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer
um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob
comando de Lula e José Dirceu. Portanto, os brados atuais para uma volta às
bases, a defesa dos territórios, o enraizamento nas periferias, etc, são mera
propaganda para sustentar o cretinismo parlamentar e a paralisia da antiga
máquina sindical agora em frangalhos. A reconciliação entre o PT e as demandas
populares contemporâneas são irrealizáveis nesse mundo, mesmo com Lula
candidato. A propósito, não tenho dúvida a respeito: a devolução dos direitos
políticos de Lula apenas elucidaria sua impotência moralista diante dos dramas
reais do povo brasileiro. Nesse sentido, o caráter eleitoral dos partidos da
esquerda liberal impede um ideário socialista, radical, de “renovação e auto
reforma” como retoricamente defende José Dirceu. O PDT, na mesma toada,
tampouco pode recuperar o ideário trabalhista tanto de Alberto Pasqualini
quanto de Leonel Brizola, razão pela qual adota de maneira desinibida e com
indisfarçável orgulho, as “teses” de um scholar chamado Mangabeira Unger! A
“auto-reforma” e a “renovação” da esquerda liberal somente poderia ocorrer nos
marcos de um diagnóstico da crise que o liberalismo de esquerda é incapaz e de
uma ruptura com o sistema dominante. O keynesianismo que balbuciam não possui
dentes para morder e, em consequência, não podem captar a força iracunda do
povo afundado num abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. Na
impossibilidade de romper com a coesão burguesa que sustentaram desde sempre
com o adorno da filantropia, resta o “radicalismo” dos discursos parlamentares
contra a “PEC do teto dos gastos”, manifestos contra as privatizações, ensaios
de cobrança de impostos sobre os rentistas agora autorizado pelo FMI, a defesa
dos direitos sociais no patamar do moralismo burguês, etc…
Mas se nem tudo é jogo de cena, há também ilusões necessárias na linha adotada
pelo liberalismo de esquerda, conduzida pelo PT, partido que possui a maior
bancada no covil de ladrões. Antecipo duas delas.
A primeira, de caráter mais geral, consiste no fato de que o pragmatismo
restrito a defesa abstrata da democracia é, na real, apenas mais uma jogada
para manter o liberalismo de esquerda nos estritos marcos da ordem burguesa,
sem avançar jamais na luta contra a ordem. Uma parte considerável do que Zé
Dirceu chama de correlação de forças, de um “ciclo de derrotas” que impediria
avançar mais é, na verdade, um fracasso histórico que emergiu de maneira clara
na destituição de Dilma sem o recurso da luta de massas, pois a “estratégia
anti-golpista do petismo” permaneceu apegada aos acordos no parlamento, as
ilusões republicanas e a certeza que voltariam pela força do voto nas eleições
de 2018… O PT nada mais possui de suas raízes históricas e não existe caminho
para a reconciliação entre a máquina eleitoral que de fato é, e os chamados
“movimentos sociais” que retoricamente reivindicam. Não por acaso, agora a
“tática” é uma frente ampla cujos antecedentes podem ser vistos no encontro das
Fundações dos partidos no ano passado com a criação do “observatório da
democracia” e na reunião secreta de 5 horas entre Ciro e Lula em setembro desse
ano cujo conteúdo o ilustre público nada sabe.
O liberalismo de esquerda encabeçada pelo PT mira 2022 acompanhado das mesmas
ilusões que levaram a derrota da destituição da ex-presidente Dilma e a
confirmação de seu fracasso histórico. Na real, agora pouco importa se as
premissas keynesianas que adornam o voto com Maia no manifesto dos liberais de
esquerda serão respeitados por Baleia – obviamente que não serão! – pois o
relevante é manter a atuação política nos estritos marcos parlamentares sem
convocar o povo para nenhuma batalha importante. Não fosse a pandemia, o
artificio seria mais evidente.
A segunda razão, igualmente importante, refere-se a luta do liberalismo de
esquerda para liquidar definitivamente o “lavajatismo”. José Dirceu defende há
tempos a “suspeição de Moro” e a anulação das “condenações de Lula” como
requisito de uma ordem genuinamente democrática. Ocorre que agora, há de
maneira cada vez mais desinibida, uma rara e óbvia coincidência entre
Bolsonaro, figuras destacadas da direita e do liberalismo de esquerda, todos
abrigados no covil de ladrões, que merece maior atenção. De fato, todos querem
o fim da Lava Jato que, sob ordens de Bolsonaro, está sendo gradual e
seletivamente desativada. O objetivo para o liberalismo de esquerda é restituir
os direitos políticos de Lula e deixa-lo livre para disputar as eleições em
2022. A redução da política à moral foi arma eficaz do liberalismo de direita
contra o liberalismo de esquerda, mas no contexto de uma república apodrecida
até a medula, não pode permanecer por muito tempo dando as cartas. Assim,
Bolsonaro, Lula, Aécio, José Serra, Michel Temer e algumas centenas de
deputados e senadores indiciados ou investigados querem e necessitam o fim da
“pior das ditaduras”, aquela do judiciário e da PF. Nas atuais circunstâncias,
num aparente paradoxo, Bolsonaro seguirá tanto beneficiário do reino da
impunidade quanto agitador contra a corrupção. A luta contra a corrupção, que
tanta autoridade deu ao liberalismo de esquerda encabeçado pelo PT na década de
oitenta, foi simplesmente liquidado na esteira da incorporação do partido aos
negócios de estado, tão eloquente no “caso Palocci” quanto confesso no
financiamento não declarado das campanhas eleitorais. Por sua vez, Bolsonaro
não poderia entregar a promessa do fim da corrupção, pois a origem primária do
fenômeno se encontra na relação ultra parasitária entre o capital e o Estado,
razão pela qual Moro jamais se atreveu em estender suas investigações aos
segredos do Banco Central e do Ministério da Fazenda, limitando seu moralismo
restaurador dos bons costumes aos partidos políticos e a merenda escolar, sem
jamais olhar para os swaps cambiais, a administração da dívida pública, as
medidas provisórias que concederam suculentos benefícios as multinacionais e
aos capitalistas nacionais, a “fuga” de capitais, etc…
A “virada” de Bolsonaro no meio do ano – quando saiu de cena e diminuiu a
emissão de declarações destinada a ocupar a cabeça do liberalismo de esquerda
com quinquilharias ideológicas enquanto aprovava o essencial no covil de
ladrões com as medidas de Paulo Guedes – não foi suficiente para desacredita-lo
completamente como político símbolo da “luta contra a corrupção”. O proto
fascista segue agitando aqui e acolá a bandeira da moralidade pública que não
pode – por razões óbvias – ser disputada nesse terreno pelo liberalismo de
esquerda (especialmente o PT). A queda de Sérgio Moro provou que a maioria
seguia mesmo o proto fascista na eficaz redução da política à moral cujo alvo é
o atual sistema de partidos políticos, ou seja, o sistema “democrático”. As
derrotas históricas, nós sabemos, tardam em diluir-se na memória do povo, razão
pela qual mesmo cada dia mais implicado em sucessivos “escândalos” (vide o caso
do senador Flávio Bolsonaro!) o proto fascista segue exalando ares de quem
permanece solitário na “luta contra a corrupção” mesmo com a ação da PGR, do
Ministério da Justiça e de sua própria base parlamentar na direção de um acordo
que subalternize as ações judiciais ao mundo da política. No bordão do
liberalismo de esquerda, o fim da “judicialização da política e a politização
da justiça”. O grito da classe média contra a corrupção – em larga medida
incompatibilizada com o petismo – está sustentado tanto nos pequenos
privilégios da pequena burguesia proprietária ou assalariada quanto na
deterioração de sua posição em função da voracidade da crise econômica.
Maia – e o tal Baleia Rossi – seguirão vigilantes contra os supostos arroubos
“populistas” de Bolsonaro, na mesma medida que atentos aos sinais “confusos” de
Paulo Guedes em relação as medidas ultra liberais sempre consideradas pela
fração financeira como cronicamente insuficientes. A vitória de Baleia sobre
Lira seria antes de mais nada, uma vitória de Maia e da fração financeira,
jamais uma derrota de Bolsonaro.
Nesse contexto, o liberalismo de esquerda atua apenas para reduzir danos no
interior da política oficial, incapaz de tomar a iniciativa política. Na crise
atual, a direita liberal acumula forças enquanto o liberalismo de esquerda,
contabiliza derrotas políticas e ideológicas. Uma esquerda “auto renovada” não
poderá jamais emergir entre nós da “luta” parlamentar, menos ainda quando se
limita no parlamento a ser mera consciência crítica da política oficial sem
enfrentar a coesão burguesa hegemonizada pela fração financeira.
George Orwell escreveu em 1940 um texto sobre literatura no qual denunciava a
impostura intelectual e a covardia dos escritores ingleses diante do fim da
literatura do liberalismo, desinibidos na arte de submergir nas entranhas de
uma baleia como meio supostamente eficaz de fugir das turbulências históricas
que marcaram as vésperas da guerra na Europa.
“As entranhas da baleia – escreveu Orwell – são apenas um útero o suficiente
para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos
encaminhamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade,
capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que
aconteça. Uma tempestade que naufragaria todos os navios de guerra do mundo mal
nos atingiria em forma de eco. Mesmo os movimentos da baleia provavelmente nos
seriam imperceptíveis. Ela poderia nadar entre as ondas da superfície e
mergulhar na escuridão dos oceanos médios (uma milha de profundidade, de acordo
com Herman Melville), que jamais notaríamos a diferença. Com a exceção da
morte, é o estágio sem igual, definitivo, da irresponsabilidade.”
A valorização da luta parlamentar representa hoje uma entrada na barriga da
baleia e, portanto, um simulacro de luta pela democracia. O divórcio com o mundo
real é completo e como manda a tradição, o artificio que fecha os olhos aos
milhões de trabalhadores condenados ao desemprego permanente, ao desalento, à
violência dos acidentes de trabalho, ao histórico subfinanciamento da saúde e
da educação, ao domínio avassalador da cultura metropolitana sob a cultura
nacional-popular, à superexploração da força do trabalho é o mesmo que
justifica “a defesa da democracia”. Enquanto isso, naquele covil de ladrões, a
coesão burguesa legaliza compra irregular de terras por estrangeiros, a
ampliação sem limites da fronteira agrícola, permite a fuga de capitais,
transforma o Tesouro em garantia de lucros aos banqueiros e todo tipo de
assalto ao estado com a conivência do liberalismo de esquerda.
A esquerda brasileira – ou o que sobrou dela – necessita um giro radical noutra
direção. O liberalismo de esquerda não poderá fazê-lo, não tenho dúvidas a
respeito. Creio, tal como podemos ver noutros países latino-americanos, que as
explosões sociais mais ou menos radicais ocorrem sem que os partidos da ordem –
da direita ou da esquerda liberal – possam sair as ruas e encabeçar a luta
contra a classe dominante. Não há na política situações sem saída, razão pela
qual sempre haverá algo pra fazer, mesmo em condições totalmente adversas.
Nessas situações, duas moléculas de lucidez serão suficientes para entender a
função construtiva da recusa em atuar na miséria do jogo parlamentar; antes de
isolamento social, essa recusa é, precisamente, o caminho que abrirá as portas
do futuro para a esquerda na próxima semana diante de milhões de trabalhadores
condenados ao abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. A
derrota do proto fascista não virá da luta parlamentar; até lá, se não podemos
ganhar as ruas, não devemos nos somar ao cinismo e a impostura dominante que
garante vida longa a classe dominante e condena nosso povo ao vale de lágrimas
como se não houvesse outro futuro possível.
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