#ROTEIRO DA EXPOSIÇÃO # TEXTO SEM REVISÃO #
Boa
tarde a todos.
Boa
tarde a todas.
Boa
tarde à Ana Penido.
Inicialmente,
agradeço a CUT pelo convite para falar neste seminário sobre “Forças Armadas e
lutas políticas no Brasil (1964-2020)”.
Pediram
que eu falasse sobre o papel das Forças Armadas nas lutas políticas do Brasil,
especialmente do golpe de 2016 até o governo Bolsonaro.
Quero
começar perguntando: imaginem que nosso debate fosse sobre o papel dos
educadores na defesa das fronteiras nacionais. Ou sobre o papel dos médicos no
fornecimento de energia elétrica no Amapá. Imagino que nesse caso haveria um
certo estranhamento, pois seria perceptível o, digamos, “desvio de função”.
Mas
quando se trata do papel dos militares na política, há uma certa naturalização.
Para
não dar exemplos antigos, relato apenas que, nas últimas semanas, ouvi um
cidadão bem de esquerda dizer que não seria marxista negar o papel das forças
armadas na política, pois afinal Karl Marx afirmava que o Estado é um
instrumento da classe dominante, assim como Max Weber apontava que a essência
do Estado é o monopólio da violência, Clausewitz que a guerra é a política
conduzida por outros meios e por aí vai, sem falar que Chavez defendia a
aliança cívico-militar na Venezuela, logo deveríamos aceitá-la aqui também. E,
na sequência, ouvi um ex-governador dizer que é preciso chegar a um acordo com
os militares, acordo que deve partir do fato de que eles “nunca” farão uma
autocrítica em relação ao golpe de 1964.
Enfim,
há digamos uma certa confusão quando se debate o assunto na esquerda. Não
apenas há diferentes posições teóricas, mas também diferentes interpretações
históricas, políticas e programáticas.
Um
exemplo disso foi a reação de setores da esquerda às recentes declarações do
comandante do Exército, general Edson Pujol, de que as Forças Armadas são
“instituições de Estado” e não “de governo”; de que as Forças Armadas não têm
partido; de que as Forças Armadas não pretendem “fazer parte da política
governamental ou do Congresso Nacional”, e ainda, de que “a política” não deve
entrar nos quartéis. Uma parte da esquerda simpatizou com essas declarações a
ponto de querer cumprimentar o general.
Começo
pelo começo: a ideia de que uma determinada política pública, uma determinada
instituição pública, é ou deveria ser “de Estado”, esta ideia tem livre
trânsito em amplos setores da esquerda. O pressuposto é que o Estado seria
neutro e, portanto, uma política de Estado seria neutra. Assim, o SUS e a
Educação Pública seriam políticas públicas, permanentes, com um conjunto de
tarefas que devem ter continuidade independente de quem é o governo eleito. E o
bom senso nos diz que deveria ser assim mesmo. Mas quando descemos das nuvens
da teoria-de-como-as-coisas-deveriam-ser-para-que-elas-fossem-ótimas, para as
profundezas do inferno, onde as coisas-são-como-elas-são, o que é que
percebemos? Percebemos que os governos interferem brutalmente em algumas
políticas de Estado, com o intuito de atacá-las, enquanto fazem de tudo
para preservar o status quo de outras políticas de Estado.
E
por que
é assim? Por que a classe dominante tem dois pesos e duas medidas? Será que é
porque a classe dominante é incoerente? Penso que o motivo é outro e é
bem óbvio: o Estado é da classe dominante, foi criado por ela e para ela, ao
longo de séculos
de conflitos e lutas. E a classe dominante sabe, muito melhor do que nós,
distinguir quais das instituições e políticas de Estado tem que ver com os
interesses de manutenção desta dominação e que, portanto, devem ser protegidos
tanto dos conflitos entre os diferentes setores da classe dominante, assim como
devem ser protegidas das interferências indevidas, indevidas bem entre aspas, da
classe trabalhadora.
É
o caso do Itamaraty, do sistema judiciário, das forças de segurança pública e
das forças armadas.
Argumentar
que não deve existir interferência popular nestas instituições é algo fácil de
fazer, numa monarquia absolutista, ou numa ditadura militar. Mas argumentar
isso numa democracia, onde supostamente prevalece a soberania popular, exige
alguns cuidados. E é neste ponto que a categoria “política de Estado” tem seu
papel. As forças armadas seriam uma política de Estado e POR ISSO não deveriam
sofrer interferência de nenhum governo. Ou, como disse o ministro Tarso Genro,
na época do golpe: a Polícia Federal é uma instituição de Estado e, portanto,
não deve sofrer a interferência do governo. E aí vem a pergunta: se o governo
não pode controlar, quem pode? A própria corporação? Deus?
E
aí cabe também outra pergunta: e o que acontece se o pressuposto estiver
errado? O que acontece se o Estado não for neutro? Nesse caso, quando a
esquerda assume como sua a ideia de que determinadas políticas são “de Estado”,
ela na prática está assumindo que uma parte do Estado tem o direito de
controlar a outra parte, tem o direito de controlar a sociedade. E é isso que
conduz a aceitar o artigo 142 da Constituição, a aceitar que crimes
militares sejam julgados por uma Justiça Militar, a aceitar uma “razão de
Estado” que justifica e protege os crimes cometidos por agentes do Estado e
assim por diante. A tolerância da esquerda frente às atrocidades e frente à própria
existência da Polícia Militar – que é a força policial mais letal do mundo
inteiro – é prova cabal dessa visão distorcida do que é o Estado.
Voces
devem conhecer a frase famosa segundo a qual, se a essência fosse igual a
aparência, não haveria ciência. Pois então: frente ao governo Bolsonaro, as já
citadas declarações do comandante do Exército soam para algumas pessoas como se
fossem progressistas e democráticas. Afinal, elas estariam querendo dizer que
as forças armadas não vão se colocar a serviço do governo Bolsonaro. E como o
governo Bolsonaro é o que é, alguns bateram palmas para Pujol.
Proponho
um exercício: se o governo Bolsonaro fosse uma ditadura militar, Pujol diria
isto? Óbvio que não. Ou bem ele daria um golpe dentro do golpe, ou bem seria
demitido, como aconteceu com o general Frota, demitido por Geisel.
Ademais,
pergunto: haveria governo Bolsonaro, sem que as forças armadas tivessem
conspirado e operado abertamente pelo impeachment, pela condenação e prisão de
Lula, pela interdição da candidatura presidencial de Lula, pela eleição do
Mito?
Óbvio
que também não. O apoio dos militares não foi causa suficiente, mas foi uma
razão necessária do governo Bolsonaro. Sem falar nos milhares de militares que
estão espalhados por toda a máquina de governo.
Portanto,
quando Pujol diz que as forças armadas são “instituições de Estado” e não “de
governo”; que as Forças Armadas não têm partido; que as Forças Armadas não
pretendem “fazer parte da política governamental ou do Congresso Nacional”; que
“a política” não deve entrar nos quartéis.... quando fala tudo isso, Pujol está
dizendo que o governo Bolsonaro não manda nos militares, mas sim que os
militares é que tutelam o governo Bolsonaro.
Por
isso é doloroso
saber, como eu sei, que importantes dirigentes da esquerda pretendiam sair em
defesa de Pujol contra Bolsonaro, sem perceber que na prática isto seria
defender o princípio da tutela militar sobre a soberania popular.
Na
briga entre Pujol e Bolsonaro, devemos ser a favor da briga. Não só no terreno
da prática, mas também no terreno da teoria, digamos assim.
A
noção de que o Estado é neutro, a noção de que determinadas políticas são
políticas de Estado e, PORTANTO, não podem sofrer interferência popular, tem
que ser substituída por outra noção: a de que o Estado não é neutro, a de que
precisamos de outro Estado, a de que todas as políticas (permanentes ou não)
devem ser controladas pelo povo.
Aceita
esta outra noção, fica claro qual o papel que as forças armadas exerceram na
política brasileira, ao longo do Brasil República: desde a proclamação da
República por Deodoro, até as declarações de Pujol, as forças armadas não
serviram para defender a Nação contra os inimigos externos; serviram para
defender os interesses da classe dominante, seja de si mesma, seja de seus
inimigos internos.
Claro
que houve contradições no interior das forças armadas. Para que uma Igreja
funcione, é preciso que a maior parte dos seus líderes acredite em Deus. Para que
as forças armadas cumpram seu papel, é preciso que a maior parte de seus generais e
coronéis acredite na sua missão constitucional. E isto, mais as
diferenças na composição social entre alto oficialato e praças, mais os
conflitos no interior da classe dominante, mais os conflitos entre teoria e
prática, tudo isto produz contradições. No caso brasileiro, isto foi
particularmente intenso nos anos 1920 e 1930. As contradições no interior da
classe dominante, e entre esta e os setores populares, se refletiram intensamente
nas forças armadas, dando origem ao tenentismo e levando uma parte dos tenentes
em direção ao comunismo. Assim como criando uma tensão entre uma tendência
“intervencionista na política” e outra tendência “profissional” existente nas
forças armadas. Notem que, no Brasil, geralmente os profissionais e a direita
política se unem contra a esquerda; enquanto que raramente os profissionais se
unem com a esquerda, contra a direita política. Talvez isto tenha ocorrido no
contragolpe do marechal Henrique Lott contra Café Filho, no 11 de novembro de
1955.
Mas
à
medida que a classe dominante cerra fileiras, diminuem as dissidências na
cúpula das forças armadas. Foi o que ocorreu em 1964. Os militares golpistas tornaram-se
hegemônicos internamente, e liquidaram a esquerda militar ou à bala, como
aconteceu com o tenente-coronel Alfeu Monteiro, ou com perseguições e punições.
A
Ditadura Militar representou o ápice da participação das Forças Armadas na
política. As atrocidades que cometeu, o sangue que derramou e as medidas
institucionais que adotou deixaram sequelas e cicatrizes profundas na sociedade
brasileira.
Entre
as medidas, eu cito duas, muito importantes para o debate atual: 1/o expurgo em
massa da esquerda militar; 2/a militarização da segurança pública, através das
PMs.
A
Ditadura
Militar chegou ao fim por diversos motivos. Ela foi derrotada. Mas não
foi derrubada. Os militares se retiraram “em ordem”, garantindo a proteção para
os seus, por exemplo com a chamada Lei da Anistia.
Que
não foi um pacto. Prevaleceu uma posição, que não apenas livrou de punição os
agentes do Estado que cometeram crimes, como os livrou de julgamento e da
necessidade de reconhecer os crimes que cometeram. Portanto, puderam continuar
cometendo, de maneira secreta, reservada, indireta (através das PMs) e
criminosa (através dos esquadrões da morte, avôs das milícias).
Por
óbvio, o fim da Ditadura Militar, em 1985, não representou o fim da atividade
política dos militares.
Eles
influenciaram o governo Sarney, reprimiram brutalmente a greve da Companhia
Siderúrgica Nacional de 1988 — o que resultou no assassinato de três operários
pelo Exército — e fizeram forte pressão sobre a Assembleia Nacional
Constituinte para que as Polícias Militares não fossem extintas e para que
fosse incluído o artigo 142, segundo o qual as Forças Armadas “destinam-se à
defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem”.
As
forças armadas atravessaram os governos Collor, Itamar e Fernando Henrique, sem
que a ex-esquerda tucana e sem que o petismo enfrentasse para valer a chamada
questão militar.
Todo
mundo sabia que o problema existia, mas todo mundo agia como se não houve um
ogro na sala de jantar. Duas provas de que havia um ogro: Bolsonaro, que
iniciou sua trajetória política em 1990; e o massacre do Carandiru, em 2 de
outubro de 1992, baseado na política dos “direitos humanos para humanos direitos”.
Qual
era a aposta? Penso que havia uma dupla aposta.
Primeiro,
a de que a mudança na situação mundial, com o fim da URSS, levaria os Estados
Unidos a recuar da posição de respaldar a interferência militar na política; e
sem esse respaldo, o golpismo minguaria.
Segundo,
que a mudança geracional, acompanhada de uma política de valorização financeira e
técnica das forças armadas, levaria a instituição a se profissionalizar e se
afastar da interferência política.
As
duas apostas foram plenamente testadas durante os governos Lula e Dilma. Quem apostou deu
com os burros n’água.
Primeiro,
porque a situação mundial se alterou e os EUA voltaram ao modo golpista e
intervencionista que o caracteriza. Aliás, depois da crise de 2008 houve mais
do que isso: se ressuscitou a lógica da guerra fria.
Segundo,
porque não se compram consciências. Do mesmo jeito que as políticas sociais não
são suficientes para conscientizar amplas camadas do povo, investimentos nas
forças armadas não são suficientes para converter o oficialato — e especialmente os
generais — à
democracia popular.
Existe
uma lenda segundo a qual a guinada dos militares em direção ao golpe foi
causada pela Comissão
Nacional da Verdade, a CNV, criada por lei em 2012, no governo Dilma Rousseff.
Ou seja, teria sido culpa da esquerda, que teria esticado a corda. Essa lenda
tem a mesma dose de verdade daquela segundo a qual o golpe de 1964 foi
necessário para impedir a instalação de uma república sindicalista no Brasil.
A
melhor prova de que se trata de uma lenda é recordar do episódio da demissão do
ministro da Defesa de Lula, em 2004.
Passo
a ler a carta deste ministro:
"Brasília,
22 de outubro de 2004,
Estimado
senhor Presidente,
Após
uma reflexão mais prolongada a respeito das ocorrências desta semana, julgo
necessária uma atribuição mais efetiva de responsabilidades com relação à nota
emitida pelo Exército no último domingo.
Embora
a nota não tenha sido objeto de consulta ao Ministério da Defesa, e até mesmo
por isso, uma vez que o Exército Brasileiro não deve emitir qualquer nota com
conteúdo político sem consultar o Ministério, assumo a responsabilidade que me
cabe, como dirigente superior das Forças Armadas, e apresento a minha renúncia
ao cargo de Ministro da Defesa, que tive a honra de exercer sob a liderança de
Vossa Excelência.
Tenho
sido seu Ministro da Defesa com os propósitos básicos de contribuir para a
reinserção plena e definitiva das Forças Armadas do Brasil no seio da sociedade
política brasileira, de ser o enlace entre elas e o Governo, representando-as
junto a Vossa Excelência e à sua equipe, e de melhorar a sua eficiência e a sua
capacidade de ação.
Muito
avançamos neste período. A título de exemplo, no que diz respeito aos
interesses das Forças Armadas, logramos reverter a dramática situação
orçamentária em que se encontravam as nossas Forças e reiniciamos os programas
para o seu reaparelhamento. O reajuste parcial da remuneração dos militares
também deu início à necessária correção dos seus vencimentos desatualizados.
O
Governo cumpriu plenamente com os seus propósitos acima delineados e tratou
permanentemente as Forças Armadas com respeito que elas merecem e obteve delas
pronta resposta sempre que necessário, com o ardor, o desprendimento e o
profissionalismo que caracterizam os seus integrantes.
Foi,
portanto, com surpresa e consternação, que vi publicada no domingo, dia 17, a
nota escrita em nome do Exército Brasileiro que, usando linguagem totalmente
inadequada, buscava justificar os lamentáveis episódios do passado e dava a
impressão de que o Exército, ou, mais apropriadamente, os que redigiram a nota
e autorizaram a sua publicação, vivem ainda o clima dos anos setenta, que todos
queremos superar. A nota divulgada no domingo 17 representa a persistência de
um pensamento autoritário, ligado aos remanescentes da velha e anacrônica
doutrina da segurança nacional, incompatível com a vigência plena da democracia
e com o desenvolvimento do Brasil no Século XXI. Já é hora de que os
representantes desse pensamento ultrapassado saiam de cena.
É
incrível que a nota original se refira, no Século XXI, a "movimento
subversivo" e a "movimento comunista internacional". É
inaceitável que a nota use incorretamente o nome do Ministério da Defesa em uma
tentativa de negar ou justificar mortes como a de Vladimir Herzog. É também
inaceitável, a meu ver, que se apresente o Exército como uma instituição que
não precise efetuar "qualquer mudança de posicionamento e de convicções em
relação ao que aconteceu naquele período histórico".
Não
posso ignorar que aquela nota foi publicada sem consulta à autoridade política
do Governo. Assumo a minha responsabilidade. Agi neste episódio desde o
primeiro momento. Informei Vossa Excelência, sugeri ações, convoquei, no
próprio domingo 17, o Comandante do Exército, entreguei-lhe um ofício que pedia
a apuração das responsabilidades e a correção da nota publicada. Segui a
orientação de Vossa Excelência e não divulguei posições e pontos de vista
individuais. Vossa Excelência sabe que em momento algum fui omisso ou deixei de
cumprir com as minhas responsabilidades no exercício das minhas funções.
Reitero,
senhor Presidente, que foi uma honra trabalhar sob a sua direção direta nestes
quase dois anos. Reafirmo também a minha total lealdade a Vossa Excelência e a
minha admiração pelo notável trabalho que vem realizando em prol do progresso
do nosso país e da união de todos os brasileiros.
Respeitosamente,
José
Viegas Filho."
Neste
episódio, o governo Lula capitulou. E capitulou sem luta. Em vez de exonerar
o comandante do Exército, um defensor da Ditadura Militar e detrator de
Vladimir Herzog, Lula preferiu demitir o ministro da Defesa, um civil
comprometido com a democracia. O que veio depois foi consequência disso.
Por
exemplo, a rebelião das Forças Armadas — e do então ministro da Defesa,
Nelson Jobim, que outra lenda continua considerando um democrata, um cidadão
que conseguiu a proeza de alterar o texto constitucional depois de ele
ter sido aprovado —, rebelião contra o Programa
Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH 3), em 2009.
Outro
exemplo: a
sabotagem cometida pelos comandantes militares contra as investigações da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), negando-se a fornecer a documentação
requisitada, e os ataques públicos de generais aos trabalhos que ela
desenvolveu e ao seu relatório final.
Tudo
isso abriu caminho para o que veio a ocorrer em 2018, sob o governo golpista de
Michel Temer, quando o então comandante do Exército, general Villas Boas,
tornou-se o principal fiador da candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da
República. De modo totalmente ilegal, e contando com a anuência do Alto Comando
do Exército, Villas Boas pressionou abertamente o Supremo Tribunal Federal para
que não concedesse habeas corpus a Lula, ilegalmente preso por obra da Operação
Lava Jato.
O
general Hamilton Mourão, por sua vez, defendeu uma eventual intervenção militar
e revelou que o Alto Comando havia se preparado para tal. Nenhum chefe militar
foi punido e Mourão tornou-se candidato a vice-presidente na chapa de
Bolsonaro.
Posteriormente,
o general Sérgio Etchegoyen, ministro do Gabinete de Segurança Institucional de
Temer, e outros militares pressionaram e tutelaram a ministra Rosa Weber e o
Tribunal Superior Eleitoral para que não houvesse investigação do disparo em
massa de notícias falsas no Twitter financiado por empresários apoiadores de
Bolsonaro, crime eleitoral gravíssimo.
Uma
vez instalado o governo atual, vários oficiais-generais das três Armas foram
nomeados ministros por Bolsonaro, e com o passar do tempo, milhares — vale
repetir: milhares — de militares da ativa e da reserva foram chamados a exercer
cargos na administração federal, em proporção semelhante à registrada na
Ditadura Militar.
A
declaração do general Pujol de que tais nomeações são “decisão exclusiva da
administração do Executivo” resulta não apenas inócua, como é cínica e
hipócrita.
As
Forças Armadas fizeram política, igualmente, ao pressionar o próprio governo
Bolsonaro e o Congresso Nacional a aprovar uma reforma que aumentou
expressivamente a remuneração dos oficiais e lhes concedeu um regime especial
de Previdência, que lhes garante benefícios e regalias negados ao funcionalismo
público civil e aos trabalhadores da iniciativa privada.
Assim,
a profissão de fé do general Pujol no tocante a manter as Forças Armadas, como
instituições, distantes do governo e da atividade política, choca-se com a
realidade factual e deve ser interpretada, como já dissemos antes, como a
afirmação de que o Exército tutela Bolsonaro e não o contrário.
Claro
que Pujol também busca preservar sua força do desgaste enfrentado pelo governo
Bolsonaro.
Mas
o relevante é que Pujol não se opõe às reformas ultraliberais em curso, que
sacrificam a população trabalhadora, ou à obra de destruição do Estado
brasileiro e das riquezas nacionais promovida pelo governo Bolsonaro.
Nem
se opõe a submissão do Brasil aos Estados Unidos, que nas condições atuais do mundo
é mais ou menos como se o governo Vargas tivesse ficado do lado da Alemanha
durante a Segunda Guerra.
Sendo
assim, é deveras impressionante que alguns setores da esquerda tenham discutido
a sério declarar apoio ao general Pujol, em virtude de suas declarações.
Cabe sempre lembrar
que alguns anos atrás algumas lideranças de esquerda — bem impressionadas por
comentários do general Villas Boas em entrevista concedida à revista Veja,
supostamente favoráveis às liberdades democráticas — pretendiam escrever ao
então comandante do Exército, para saudá-lo por suas afirmações. Acabaram sendo
demovidas da ideia, o que lhes salvou de um vexame frente ao papel que Villas
Boas desempenhou no tríplice golpe, sem esquecer de pressões anteriores que
exerceu sobre o governo do Distrito Federal para que não fosse erguido o
Memorial em homenagem ao presidente Jango.
A
verdade é que a doutrina vigente, na prática, entre os militares, continua
sendo a da “Segurança Nacional” da Ditadura Militar, caracterizada, entre outras
coisas, por identificar e eliminar “inimigos internos”; que são na maior parte
das vezes movimentos e organizações populares, partidos de esquerda,
intelectuais e lideranças ligadas às classes trabalhadoras.
Basta
lembrarmos que ainda se comemora o golpe de 1964 nos quartéis, ou mesmo da
infiltração recente de agentes do Exército em mobilizações populares com fins
de vigilância, provocação e prisão de militantes.
Portanto,
é a lógica doutrinária presente entre os militares que vê o povo organizado e
em luta por direitos sociais, trabalhistas, por ampliação das liberdades e por
reformas estruturais como uma ameaça — como um inimigo.
Os
governos Lula e Dilma implementaram importantes programas de reaparelhamento e
fortalecimento das Forças Armadas, de recomposição de soldos e dos orçamentos
ligados à área, na ilusão de que isso seria o suficiente para que tais
instituições cumprissem um papel “profissional” e interessado na soberania
nacional.
Mas
isso é insuficiente: não basta impulsionar ganhos materiais, precisamos ter uma
linha política capaz de incidir e disputar seus rumos.
Uma
linha política que parta do pressuposto de que as Forças Armadas realmente
existentes são autoritárias, antinacionais, sintonizadas com os interesses das
classes dominantes e hegemonizadas pelos EUA.
Portanto,
a nossa linha deve ser a de alterar e modificar profundamente o caráter dessas
instituições.
Foi
com esse espírito que, no recente debate travado pelo Diretório Nacional do PT
acerca de um Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil, propusemos:
-revogar
o artigo 142 da Constituição Federal, frequentemente utilizado para alegações
de teor intervencionista e antidemocrático;
-extinguir
as chamadas operações de ‘Garantia da Lei e da Ordem’ (GLO);
-revotar
as normas inconstitucionais que garantem julgamento pela Justiça Militar de
militares que cometerem crimes contra civis em operações como as de GLO e
similares, como a Lei 13.491/2017, sancionada pelo golpista Michel Temer
-cumprimento
integral das recomendações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade
(CNV), de 2014, em especial:
I)
reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional
pelos crimes cometidos durante a Ditadura Militar;
II)
revisão da Lei da Anistia de modo a garantir a punição dos agentes da Ditadura
Militar que cometeram crimes de tortura, assassinato e outros;
III)
abertura dos arquivos militares;
IV)
revogação da Lei de Segurança Nacional;
V)
desmilitarização das Polícias Militares;
VI)
“Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua
nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o
conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos”;
VII)
“Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para
promoção da democracia e dos direitos humanos” (Capítulo 18, p. 964-967 e
971).”
Se queremos que as Forças Armadas realmente cumpram um papel positivo no desenvolvimento nacional, soberano, democrático e popular, elas precisam ser completamente reformadas.
As
de hoje, como estão, continuam a respaldar golpes, tutelam um governo
neofascista, sustentam um programa neoliberal e entreguista, colocam em risco a
integração regional com a projeção de conflitos militares com países vizinhos,
ameaçam liberdades democráticas e terminantemente negam-se a reconhecer o seu
passado ditatorial e a modificarem seu papel “moderador”, tutelar do sistema
político.
Aos
que tem medo de falar destes assuntos, recomendo que tenham mesmo medo. Ter
medo não é covardia. Covardia é deixar de fazer o que precisa ser feito.
*parte importante deste roteiro baseia-se numa nota emitida pela direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda sobre as declarações do general Pujol
**agradeço a leitura e emendas do Pedro Estevam da Rocha Pomar
Nenhum comentário:
Postar um comentário