Para compreender melhor a conjuntura, é preciso levar em conta o período em que esta conjuntura se insere.
O período começou na
crise de 2008, que entre outras alterações, mudou a relação entre EUA e China e
levou os Estados Unidos a desencadearem uma batalha para reconquistar o
território perdido para governos progressistas e de esquerda na América Latina
e Caribe.
Esta batalha tinha e
tem dois objetivos: 1/garantir o alinhamento geopolítico, ou seja, ter na região
mais governos aliados aos EUA na luta contra a China; 2/ garantir o alinhamento
geoeconômico, o que significa retomar e aprofundar as políticas neoliberais que
vinham dos anos 1980. Os governos Obama, Trump e Biden têm diferenças de
estilo, mas estão unidos na batalha por reconquistar a América Latina e Caribe.
Para atingir estes
objetivos no caso do Brasil, era preciso afastar o PT e recolocar a “aliança
democrática” (PSDB, MDB e DEM) no governo. Esta “aliança democrática”, a famosa
“direita gourmet”, é a expressão tradicional da classe capitalista brasileira.
Classe que está de acordo em fazer do Brasil uma sociedade baseada no
agronegócio exportador, na mineração e na especulação financeira. Foram estes os
objetivos do golpe de 2016 e foram estes os objetivos da prisão, condenação e
interdição eleitoral de Lula em 2018.
Acontece que os de
cima podem e planejam muito, mas não podem e não planejam tudo. Vide o Afeganistão.
O fato é que, mesmo
com Dilma golpeada e Lula preso, a chapa Haddad e Manu caminhava para vencer as
eleições de 2018. Foi nesse contexto que a aliança Estados Unidos/classe
dominante brasileira teve que fazer um gambito parecido com o que fizeram em
1989.
Em 1989 apelaram para
um filhote da ditadura, Collor, que se apresentou como “o cara” dos
descamisados e do combate aos marajás. Em 2018 apelaram para outro filhote da
ditadura, Bolsonaro, que também se apresentou como “o cara” do povão e contra a
política tradicional.
Bolsonaro “venceu”
aquelas eleições fraudadas e desde então vem entregando o produto, ou seja,
mais submissão; mal estar social; desigualdade; autoritarismo; subdesenvolvimento.
Como é óbvio, isto
tudo tem um custo, que vem sendo pago pelos pequenos e médios capitalistas, pelos
trabalhadores pequenos proprietários rurais e urbanos, pelos trabalhadores
assalariados e, dentre estes, principalmente pelos mais pobres, pelos negros e
negras, pela juventude, pelas mulheres e pelos moradores de periferia.
A ação do governo bolsonarista
e neoliberal gerou uma reação que começou ainda em 2019 e teve no tsunami da
educação um de seus marcos. É provável que em 2020 tivéssemos ainda mais lutas
e fosse o ponto da virada, mas o vírus veio em socorro de Bolsonaro.
Pois a pandemia permitiu
fazer a boiada passar com mais facilidade; além de terreno fértil para o
discurso e a prática de Bolsonaro, a pandemia empurrou parte da esquerda para
uma “semiclandestinidade” sanitária e contribuiu para a vitória da direita nas
eleições municipais de 2020.
Mas em 2021 começou
uma nova onda de lutas: por conta de um conjunto de motivos (entre os quais a
catástrofe de Manaus, a libertação de Lula, o avanço ainda que lento da
vacinação etc._ parte da esquerda começou a sair da semiclandestinidade e retomar o ânimo.
Desde 8 de março de
2021, vivemos uma situação contraditória, que possui pelo menos quatro
dimensões:
1/a boiada segue passando
com tudo;
2/as mobilizações
sociais recomeçaram, mas numa escala insuficiente para deter a boiada e conseguir
o Fora Bolsonaro/impeachment;
3/todas as pesquisas
dizem que se a eleição fosse hoje, Lula venceria, mas a eleição é daqui há um
ano;
4/no plano político-eleitoral,
os diferentes setores da classe dominante estão divididos sobre o que fazer.
Não há, na classe
dominante, nenhum setor relevante disposto a embarcar de verdade na candidatura
Lula. Aliás, cá entre nós, este tipo de engajamento – não apenas de indivíduos,
mas de frações do empresariado – só ocorreu de fato em 2010 e mesmo assim com
um pé em cada canoa.
Na classe dominante há
várias posições, mas duas são principais.
Uma parte (liderada pela
direita gourmet) está convencida de que é preciso cavar espaço para uma “terceira
via”, pois acham que Bolsonaro tende a perder para Lula.
Outra parte (liderada
pela extrema direita bolsonarista) está decidida a ganhar as eleições custe o que
custar, mesmo que o custo for não ter eleições.
Com este objetivo, Bolsonaro
está fazendo dois movimentos.
Por um lado, segue
operando na política institucional tradicional, mobilizando as instituições que
lhe são favoráveis (parlamentares, governadores, prefeitos, militares, algumas
igrejas, setores do empresariado, o próprio governo federal e seus aliados).
Por outro lado, Bolsonaro
mobiliza sua base social.
Este segundo movimento
não tem como objetivo, neste momento, “dar um golpe”. Aliás, como o próprio
Bolsonaro já disse, quem está no governo não dá propriamente um “golpe”. Sem
falar que “vivemos em estado de golpe”: o que ocorreu em 2016 é parte de um
processo, um golpe permanente, continuado, em prestações.
Óbvio, entretanto, que
a movimentação das tropas bolsonaristas no dia 7 de setembro é um “exercício” golpista.
Mas o objetivo principal deste tipo de movimentação é mais político do que
militar. No dia 7 Bolsonaro quer:
1/demonstrar que tem
força, que não está isolado (e neste caso está fazendo isto numa data simbólica
e literalmente movimentando tropas) e sinalizar para seu pessoal o que ele pode
vir a fazer se necessário for;
2/atemorizar a direita
gourmet (para que a direita que faz oposição a Bolsonaro maneire no STF, na CPI
da Covid, nas investigações contra Bolsonaro etc.);
3/tirar a esquerda das
ruas e reocupar as ruas.
Para quem acha que a
próxima eleição presidencial será uma campanha normal, nos tirar das ruas no
dia 7 de setembro pode parecer pouco. Mas para quem acha que vamos colher nas
urnas o que plantarmos nas ruas, ficar ou sair das ruas é decisivo, seja no dia
7, seja depois.
Para usar uma imagem
militar, é como se as ruas fossem uma colina onde posicionamos a artilharia
para disparar contra o adversário. Se eles nos tirarem das ruas no dia 7, eles
obtêm três objetivos ao mesmo tempo: 1/se livram dos nossos “tiros”; 2/usarão a
colina para atirar contra nós; 3/terão a certeza de que basta uma ameaça para
nos tirar das ruas durante a campanha eleitoral.
Ou seja: descobrirão que
não precisa de golpe, basta fazer “buuu” e as ruas serão deles. Mas atenção: se
não sairmos da ruas dia 7, pode ser que eles passem da teoria à prática. Não
devemos subestimar a violência de Bolsonaro e dos seus apoiadores. Mas tampouco
podemos nos deixar dominar pelo medo.
A alternativa é mais organização
e mais presença de massa. É preciso participar de forma muito organizada e isto
servirá inclusive como treino para os próximos meses, inclusive para a campanha
eleitoral, que não vai ser “normal”.
Teremos que ganhar, tomar
posse e criar as condições para governar. Para isso é preciso ter clareza sobre
o que está em jogo (crise mundial, crise nacional, extrema direita raivosa,
parcelas do povo da esquerda confundidos); é preciso ter clareza sobre nossos
inimigos (o governo dos EUA, o conjunto da classe capitalista, a direita gourmet,
a extrema direita e... o medo); é preciso definir nossa estratégia e programa,
tendo claro que nosso objetivo é chegar ao governo para desmontar tudo o que
eles fizeram desde 2016 (reverter contrarreformas, reestatizar o que foi
privatizado, anular leis golpistas etc.); é preciso definir nossas alianças (uma
frente popular de esquerda, uma aliança com o povo e com quem se dispuser a
defender nosso programa antibolsonarista e antineoliberal; é preciso
implementar uma tática eleitoral que permita não apenas ganhar a presidência,
mas também espaços importantes no Congresso nacional e nos governos estaduais
(e para isso é preciso ter campanhas de esquerda muito fortes em estados decisivos,
ao invés de fazer acordos prematuros com supostos aliados e/ou inimigos supostamente
arrependidos); é preciso uma campanha de massas e uma campanha segura (que
proteja em especial o Lula).
Por fim, mas não por
último: um traço fundamental do período e da conjuntura é a instabilidade. Por
isso, erra quem acha que o impeachment é impossível. É preciso manter a pressão
pelo Fora Bolsonaro e não deixar o medo vencer a esperança. A começar pelo dia 7
de setembro.
Muito boa análise. Acho que é preciso atacar todos os flancos, mas sobretudo interiorizar a militância, onde há menos vícios que as áreas urbanas. Cada militante deve agir nas associações, nas igrejas, nos sindicatos, onde quer que tenha gente. Importante, também o ensino de defesa pessoal para uma eventual necessidade.
ResponderExcluirSempre lúcido!
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