sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Quem guarda, tem

Há muitos anos, acho que em 1998, eu e Antonio Martins fizemos uma longa entrevista com César Benjamin. A íntegra da entrevista nunca foi publicada. A versão que segue abaixo não foi revista pelo entrevistado, nem pelos entrevistadores. Considerando estas ressalvas, merece ser lida. Com a vantagem do tempo transcorrido...






Antonio: O que chama atenção em Opção brasileira é que ele tem um projeto de todo para o Brasil. Que conjuntura levou vocês a acharem que isso era possível?

César: Nos últimos anos, a luta política no Brasil tem sido travada contra um pano de fundo que afirma a existência de um projeto conservador e de um vazio, de um não-projeto. E com o passar do tempo, este se tornou não só o discurso da elite brasileira, mas penetrou também na própria esquerda brasileira e se tornou funcional para setores da esquerda brasileira.
            O Dostoievsky, nos Irmãos Karamazov, diz, através de um personagem: “Se Deus não existe, tudo é possível.” Ou seja, se você não tem um ponto fixo de referência, transcendente, tudo é relativo, tudo é mutante, tudo é possível. Eu acho que nós podíamos parafrasear o Dostoievsky e dizer que se não há projeto de esquerda, tudo é possível.
            Em cima do discurso do não-projeto se desenvolve o pragmatismo, o oportunismo, o carreirismo, o individualismo, o adesismo. Essa é uma marca que interessa à elite reproduzir, porque sempre que um projeto disputa com um não-projeto, o projeto ganha, porque por pior que ele seja, por mais dificuldade que ele tenha, é uma coisa afirmativa, tem um sentido estratégico.
            A esquerda começou a assimilar este discurso, porque ele legitima um conjunto de práticas que estão crescentemente enraizadas na esquerda. E para se contrapor a isso, não basta somar reinvidicações, dizer que queremos emprego, terra, casa, porque a elite está disposta a admitir que nós somos os chatos que pensam nos pobres. Mas o que ela quer para si? Ela quer ter a visão de conjunto do país, o sentido de racionalidade, uma proposta de natureza histórica. É isso que lhe dá hegemonia. Nós não podemos disputar hegemonia com a direita apenas apresentando reivindicações, sejam elas desarticuladas ou na forma de uma lista organizada.
            A meu ver, a prática e a reflexão da esquerda nos últimos anos tem sido marcada por um divórcio grande entre uma reflexão de tipo acadêmico, cada vez mais teórica, cada vez menos ligada a um sentido de tranformação, e nesse sentido com cada vez menos potencial vital, e de outro lado uma reflexão de tipo pragmático, de quem está na militância. “É preciso um programa de governo”, aí reúne para pensar as medidas de governo. Tem faltado à esquerda um espaço de reflexão estratégica, que não é o espaço da teoria acadêmica nem o espaço do pragmatismo. É o espaço em que você tenta compreender as características do período em que você está, tenta interpretar este período, portanto tem que olhar um pouco para trás; você usa a teoria, embora não vá para dentro dela para fazer a discussão teórica; você usa a história, embora o objetivo não seja discutir o passado exaustivamente, para você compreender o presente e o desdobramento possível.
            A idéia dessa formulação que nós tentamos fazer foi entrar nesse espaço de reflexão estratégica, que tem elementos de teoria, de história, de demografia, de geografia etc., mas está vinculado diretamente à ação política, procura organizar o pensamento dos que estão intervindo politicamente. E para isso resultar, ao fim e ao cabo, numa disputa de dois projetos: existe um projeto conservador e existe um projeto transformador. Isso é uma mudança de qualidade, é um aspecto de mudança de qualidade na luta política do Brasil.
            Mesmo do ponto de vista eleitoral, eu acho fictícia a idéia de que quanto mais realista você é, quanto mais perto você está do projeto dominante, maior sua chance. Isso é uma mentira, quanto mais confusas as coisas estão, maior a probabilidade do povo votar no que está aí.
            E do ponto de vista político, uma coisa é você perder afirmando uma alternativa, que vai ser recuperada permanentemente daí para frente. Outra coisa é você perder jogando no campo do adversário, não deixando nada plantado. Então o esforço tem esse pano de fundo, e o PT e os partidos em geral não têm conseguido responder a isso...

Antonio: Como foi a elaboração do projeto?

César: Começou de maneira muito informal, pessoas e movimentos sociais, pessoas mais ou menos ligadas a movimentos sociais se debruçando diante do desafio de ter um projeto de conjunto. Isso foi há mais ou menos um ano e meio. Na época, o MST vivia uma situação de auge, mas ao mesmo tempo a direção do MST percebia que ele sozinho não conseguiria ter os desdobramentos estratégicos necessários sequer para garantir a reforma agrária, mesmo pensando como movimento de reforma agrária.
            O Brasil é um país urbano e a reforma agrária é uma decisão política, que vai ser tomada pela sociedade ou não vai ser tomada. Não é uma soma de assentamentos que vai gerar a reforma agrária. O MST via isso com clareza.
            Então a partir daí a gente começou a conversar sobre a necessidade de um projeto de conjunto, dentro do qual a reforma agrária fosse um aspecto desse projeto. Isso veio caminhando, de maneira informal, durante muito tempo, sucessivas reuniões, encontros, debates com a militância, até que ganhou a forma da Consulta Popular, que foi feita ao longo do segundo semestre do ano passado.
            É muito difícil definir a Consulta, porque ela foge dos padrões. Eu diria que ela é muito mais um espaço de reflexão e de prática do que alguma coisa formalizada. E esse espaço tem como características exatamente a descentralização, uma ênfase nas tarefas. Quando eu falo em tarefas, incluo também tarefas téoricas. A ênfase não é na hierarquia, na estrutura em si, e sim nas tarefas multiplicadoras, em assumir algumas frentes de trabalho como sendo frentes multiplicadoras, trabalho de massas evidentemente, formação de quadros e dirigentes, na produção de material de propaganda e produção de uma visão de conjunto do Brasil que possa vir a ser uma visão unificadora desses milhares de militantes que estão...

Antonio: Mas houve debate com esses militantes, reuniões, um trabalho coletivo...?

César: Não só houve como tem havido. Eu, pessoalmente, tenho passado quatro dias da semana fora do Rio, direto, em debates. E tem havido um trabalho de formação sistemático que envolve, eu diria, alguns milhares de pessoas, patrocinado por entidades como o MST e outras...
            Se você perguntar qual é o futuro da Consulta, eu não sei. A Consulta por enquanto é este espaço que procura distância de certos comportamentos que se tornaram muito marcantes na esquerda nos últimos anos: o comportamento da ênfase excessiva na disputa interna, o pragmatismo, o oportunismo, o carreirismo – para criar este espaço alternativo de militância, jogá-lo na luta política.
            A Consulta vai estar muito voltada para a campanha do Lula nesse segundo semestre, embora não vá participar do miolo burocrático da campanha. Nossa idéia é fazer uma campanha-movimento, uma campanha por baixo, a ênfase no trabalho de base e a multiplicação dessa visão de conjunto do Brasil e estudar, com muita maturidade, um possível desdobramento futuro que ninguém sabe qual vai ser, só coletivamente isto.
            Um espaço que busca retomar princípios, valores e práticas que os partidos de esquerda de maneira geral não têm conseguido valorizar.

Antonio: Qual é a relação do MST com esta proposta, com o texto final dela?

César: O MST é uma das entidades que têm sustentado esta proposta, e têm aberto a sua estrutura , a sua militância, para a discussão, participação, têm incentivado, têm participado muito ativamente de todas as iniciativas. Debates inclusive em assentamentos, debates em todos os níveis. Quando eu viajo, não sei, muitas vezes, para quem eu vou falar. Tenho que chegar, ver, olhar o rosto das pessoas para calibrar. Tem desde reuniões de assentamento, em que você fala para a peãozada, até cursos que duram quatro ou cinco dias, em que você fala para dirigentes, reúne 100, 150 dirigentes, em geral jovens, em processo de formação, não só eu mas outras pessoas também, tem leitura básica, tem um processo de formação de quadros que talvez seja uma das coisas mais importantes que está acontecendo hoje na esquerda brasileira. Uma nova geração de militantes jovens se formando, num ambiente que os estimula a recuperar valores importnates, do estudo, da solidariedade, do trabalho coletivo. Este circuito, a meu ver, já está formado. Ele não tem uma expressão institucional, não tem uma..., mas tá formado hoje no Brasil. Uma coisa curiosa é que de maneira geral não são pessoas de classe média, por isso é que é um circuito menos visível, menos espetacular. Mas eu diria que nós temos hoje, não sei se centenas ou alguns milhares, de militantes jovens que estão se formando, estudando seriamente, pensando o Brasil, pensando a revolução, acho que é uma coisa nova que nos próximos anos vai mostrar o seu potencial.

Valter: Tem aparecido, nessas atividades, algum tipo de polêmica em relação ao que é proposto no livro A Opção Brasileira?

César: Como o livro é muito recente, as pessoas têm estudado o livro, têm se formado grupos de estudo, seminários de estudo, discussões sobre ele... Mas eu acho que o livro expressa uma visão que, neste momento, está em vias de se consolidar como uma visão desse campo. Não há uma polêmica teórica em torno das questões centrais.

Valter: Que tipo de avaliação você faz do rumo que a campanha Lula está seguindo, do ponto de vista do debate acerca do projeto de país?

César: Não só minha avaliação, mas nossa avaliação, que eu acho que é coletiva, é que o que vai definir a campanha do Lula e um eventual governo Lula é muito mais a capacidade de mobilização de base, de massa, e o grau de intervenção popular nesse processo, do que propriamente o debate interno da campanha e a frase que vai estar ou não vai estar no programa. Então nós tomamos a decisão de não pleitear uma participação, digamos assim, interna na campanha, até porque isso geraria crises sucessivas na campanha, porque o que nós queremos dizer não é aquilo que a maioria do PT – ou melhor, aquilo que a maioria da cúpula do PT – quer dizer neste momento. Então nossa presença atrapalharia a campanha e não temos o menor interesse nisso, em ficar criando crise dentro da campanha.
            Então nós decidimos que vamos fazer intensamente a campanha, fazendo com o nosso discurso e fazendo nosso circuito de base e tentar dar a essa campanha o caráter de campanha-movimento, para que numa eventual derrota você tenha um saldo político expressivo e no caso de uma vitória você tenha uma base de sustentação crescente para um movimento transformador.
            Não tenho acompanhado de dentro a discussão da campanha do Lula, mas pelo que vejo pelos jornais, a assessoria do Lula ainda acredita muito em medidas macroeconômicas, como se ajustando variáveis macroeconômicas, você pudesse conseguir por um lado governabilidade, e por outro a capacidade de transformação para o país. E eu sinto também, frequentemente, que se essas duas variáveis entrarem em contradição, a maioria da campanha do Lula afirma a governabilidade como valor principal.
            Eu acho tudo isso um grande equívoco. Você não governa o país manuseando variáveis macroeconômicas: é preciso, ao contrário, que a política comande a economia. Em segundo lugar, não existe hipótese de governabilidade de um governo Lula, se não for um govenro transformador. Não há governabilidade fora de um processo de transformação, ainda mais no grau de vulnerabilidade que a economia brasileira tem hoje. Eu acho uma grande ilusão ficar discutindo se a gente vai encontrar o juro certo, o câmbio certo, para ter aquele equilíbrio macroeconômico em que tudo se ajusta em torno disso, como se os agentes sociais não tivessem lógicas estratégicas em jogo.
            O que eu sinto, o que aparece nos jornais da assessoria do Lula, é uma confiança na macroeconomia que me parece despropositada. Ou a política comanda, ou a política está na frente, ou o processo de transformação avança – e aí sim, a gente recompõe as condições de fazer macroeconomia, dentro de um processo de transformação –ou então não vai ter governabilidade nem transformação.
            O que me preocupa é que o PT não consegue ser nem um partido completamente inserido na ordem, nem um partido que tenha estatura para contestar a ordem. Ele está numa situação de ambiguidade, e a maneira de tratar a ambiguidade é elidir as questões espinhosas. Todo o processo de formulação interno no PT é uma processo de que quando vai chegando perto de uma questão espinhosa, vai driblando, e isso não leva muito longe.
            Eu diria até que a gente precisa ter a ousadia que os neoliberais tiveram quando ficaram em minoria num certo momento da história: perderam o debate teórico, perderam o debate prático. Houve um momento na história em que a economia soviética crescia muito mais rapidamente que o mundo capitalista. Foi quando o mundo capitalista adotou elementos de planejamento econômico, o estado de bem-estar... Os caras viraram uma seita, e no entanto, em torno de um núcleo teórico sólido, eles criaram condições, na medida em que a conjuntura futura voltou a ser favorável, criaram condições para uma retomada e essa retomada foi ousada, eles entraram dizendo que tinha que se mudar a constituição, as leis, a cultura, a prática e obtiveram a hegemonia nesse movimento.
            A esquerda perdeu, a meu ver, essa dimensão que você tem em certos momentos da história, quando você está em minoria, mas se você não souber crescer sendo minoria, não se engrandecer, você é esmagado. Então, hoje em dia eu diria o seguinte: a elite brasileira veio definindo ao longo dos últimos anos que assuntos são pensáveis e que assuntos são impensáveis.
            E há segmentos importantes do PT que aceitam pensar dentro do campo do que a elite admite ser pensável. Abandonam um conjunto de outras questões que foram retiradas da agenda e tentam então trabalhar a franja deste campo do pensável, o que significa que estão sob a hegemonia da elite. Se eu te obrigar a fazer uma coisa, não tenho hegemonia sobre você. Só tenho se te faço pensar nos termos em que eu quero que você pense.
            O espaço da Consulta tem esse mérito pelo fato de que a Consulta não tem compromissos institucionais dentro do Estado brasileiro, não tem ambição de penetrar cada vez mais neste Estado, não tem uma estrutura que tenha uma lógica de auto-perpetuação, não tem hierarquias que já definam relações de poder.
            A Consulta tem sido um espaço onde o impensável está voltando a ser pensado. No PT isto é mais difícil, o PT está dentro de governos, do parlamento, está dentro de uma moldura institucional que define muito claramente os horizontes do que ele vai pensar. O esforço que a gente está fazendo aponta numa direção, que é na verdade um sentido estratégico do que a gente trabalha, dá idéia de uma refundação da esquerda brasileira, o que não quer dizer necessariamente a fundação de um novo partido.
            A forma como essa refundação se dará, nós não sabemos e não queremos pré-definir, agora o sentido é o de uma refundação porque não é a mudança de um aspecto do discurso, como você faz quando ganha uma convenção do PT. É a retomada de valores, de princípios, de práticas, de uma visão de conjunto de país, que é muito diferente daquilo que ocorre dentro dos espaços institucionais que já existem. Nesse sentido é que a gente fala de uma refundação, mas a forma dessa refundação está em aberto.

Valter: Mas pelo que você está falando, a possibilidade de partidos como o PT assumirem os fundamentos desta “opção brasileira” são pequenos.

César: Eu me mantenho como observando isto, influindo na medida do possível neste sentido. Claro que o caminho de menor custo, de menor resistência, seria uma reforma profunda do próprio PT, na medida que é um patrimônio que está aí, que já existe, que tem um potencial...
            Se esse caminho for possível, ótimo, agora nós não podemos é depositar todas as nossas fichas nesse caminho. Se ele estiver bloqueado, nós vamos caminhar em outra direção, isso é uma questão que está sinceramente em aberto, não há nenhuma estratégia maquiavélica. até porque seria ridículo, esse é um processo que se conta em anos, imaginar que a gente vai saber como estarão as coisas daqui há alguns anos é infantil, o importante é que a gente esteja...
            A gente já iniciou o processo de refundação, pode ser que as pessoas não estejam percebendo mas a gente já está nele, formando quadros, se ligando às massas, recriando a idéia de revolução, recolocando o impensável no campo do pensável, formulando teoricamente...
            Pode ser um processo muito limitado ainda, mas é um início, e nós sabemos que é o início de uma refundação e vamos jogar para isso, mas a forma que isso vai tomar ao longo do tempo, nós vamos estar abertos a ...

Antonio: Quais as bases desse impensável que tem sido pensado nessas reuniões?

César: Por exemplo, eu ouço muito o pessoal do PT dizendo o seguinte: olha pessoal, não tem o menor sentido reestatizar a siderurgia, porque ela era relevante nos anos 40 e não é no século 21.
            Eu acho uma discussão relevante, eu admito essa discussão, mas não vejo ninguém no PT dizendo o seguinte: o sistema financeiro não era estratégico na década de 40 e na virada do século 21 é estratégico sim senhor, num mundo globalizado e desregulamentado.
            Ou seja, é só para recuar que vale pensar, para avançar não vale. A elite fechou o debate sobre questões do tipo: o sistema financeiro brasileiro – e o desenvolvimento que ele está tendo hoje, no sentido de sua internacionalização – é bom para o Brasil e para a economia brasileira, ou teremos que reformá-lo, nacionalizá-lo?
            Os meios de comunicação de massa, organizados na forma de empresas privadas, capitalistas e monopólicas – porque a situação comum no Brasil hoje, fora dos grandes centros, é sempre essa: o mesmo grupo, a mesma família, tem as repetidoras do SBT e da Globo, tem os dois jornais e os quadro rádios na cidade, um sistema que foi montado durante a ditadura e depois vem sendo recauchutado num processo de barganha política das elites – representam um sistema adequado à sociedade brasileira ou esse sistema precisa ser seriamente reformado para que possamos ter um espaço público nos meios de comunicação de massa etc?
            A inserção internacional do Brasil é adequada, ou nós teremos que romper mesmo com a inserção subordinada, pagando o preço que for preciso, dizendo o seguinte: “Nossa soberania não tem preço.”?
            Sabe aquela situação do Hegel, na dialética do senhor e do escravo, onde o Hegel se pergunta por que um é senhor e outro é escravo, e desenvolve um raciocínio que diz que no fundo o senhor coloca a liberdade acima da vida, quer dizer, ele vai até o fim, enquanto o escravo coloca a vida acima da liberade e pára num certo momento de lutar, e por isso ele é escravo... O Brasil nas suas relacões internacionais, vai ter que decidir se é senhor ou escravo. Sua soberania tem preço? Porque se tiver, ele não vai ter soberania, pois o sistema internacional vai pagar o preço necessário para pagar essa soberania. Ou ela não tem preço, e nós estamos dispostos a ser senhor e a não ser escravo?
            A reforma agrária a sério, não a soma de assentamentos, mas a eliminação do latifúndio como decisão política... Enfim, esse conjunto de questões, que são muito mais importantes do que a macroeconomia... O ataque direto à pobreza, à eliminação da miséria, da pobreza e da incultura – objetivo central da sociedade brasileira neste momento histórico, pois todos os outros vão se subordinar a esse objetivo... Olha que eu tenho consciência das consequências disso para o padrão de vida da classe média, para o padrão de consumo de produtos importados, é isso, a sociedade quer eliminar a pobreza, a miséria e a incultura... É isso que eu chamo o impensável, porque hoje quando você discute pobreza no Brasil, você assume que a pobreza vai ser eliminada num futuro distante, pelo jogo de uma economia, à medida em que esta se desenvolva. E ninguém sabe se a economia vai se desenvolver ou não, assim como talvez no futuro, quem sabe, ninguém saiba quando vai melhorar o patamar da pobreza.
            Isto tem sido o ambiente em que os economistas discutem, quando a questão está aí. O Brasil hoje eleva a produtividade média do trabalho a 3,5% ao ano, numa estimativa conservadora. Entram 2,7% de jovens no mercado de trabalho. Se essa economia crescer 6,2% por ano, ela só absorve os jovens e mantém o estoque de desemprego que está aí. Ela está crescendo entre 0 e 1% -- a trajetória da economia brasileira é de plano inclinado nos últimos quatro anos.
            Ou se faz alguma coisa muito diferente ou vamos assumir que não tem solução esta questão. É isso que eu chamo pensar o impensável. Porque na verdade, diante disso, se vier um economista do PT e disser que em vez de desvalorizar o câmbio 7% ao ano, vamos desvalorizar 8,5%, em vez de botar os juros em 23% vamos colocar em 21,5%, eu vou dar uma gargalhada, porque isso é aceitar pensar o pensável, é aceitar dizer que não vamos eliminar a pobreza e a incultura, que não vamos colocar em marcha processos sociais que mexam nestas estruturas que reproduzem a pobreza e a incultura.

Antonio: Um dos eixos do projeto, então, é este: um grande esforço da sociedade para eliminar a pobreza, a miséria e a incultura.

César: É uma decisão política. A sociedade tem que ter consciência dela, saber o quanto ela custa, saber o tempo que isso leva, leva talvez 15, 20 anos, e ser ganha para isso, para os valores que estão em torno disso, porque isso pressupõe outros valores, principalmente da solidariedade como organizadora da vida social, e isso te conduz para os meios de comunicação de massa.
            Você pode ter um projeto desse tipo com os meios de comunicação de massa difundindo o consumismo, o individualismo, a vulgaridade e minando a auto-estima do povo? Não pode. O projeto alternativo é um projeto todo vinculado entre si, você não faz uma coisa sem fazer a outra, você não se lança nesse caminho sem reformar o sistema financeiro, você precisa ter capacidade de financiamento.
            É isso que eu vejo no PT, o PT não tem coragem de olhar para essa realidade e dizer: “Olha isso pressupõe isto, aquilo, aquilo, e eu vou comprar essa briga, vou apresentar esse projeto de conjunto. O discurso do PT tem grandes tergiversações, grandes silêncios e é um discurso inconsistente.

Valter: Quais são os meios políticos para viabilizar a Opção brasileira? Porque você está apontando as fragilidades do discurso do PT. Supõe-se portanto a fragilidade da própria campanha e uma potencial fragilidade do próprio governo Lula. Quais são os caminhos políticos de médio prazo para viabilizar esta Opção elaborada pela Consulta?

César: Se a gente olhar para o Brasil com uma perspectiva histórica mais alargada, a nossa sociedade está entrando num período de transformação social. Nós encerramos um ciclo longo de desenvolvimento, que foi um ciclo burguês, mas que organizou o conjunto da vida social em torno de um projeto de modernização capitalista dependente. Por que organizou esse conjunto? Porque acelerou brutalmente a industrialização, formou a classe operária, urbanizou o país, e isso significa que muitas outras classes sociais foram incorporadas nesse processo. Então você tem um ciclo longo em que você vê condições da classe dominante construir sua hegemonia, na medida em que não é um projeto só seu, exclusivamente seu. É um projeto que abre alternativas de desenvolvimento para o conjunto da sociedade, com todas as desigualdades e irracionalidades que a gente conhece.
            Este ciclo acabou e nós entramos num projeto que a meu ver não tem potencial estruturante da sociedade brasileira, que é o projeto neoliberal. Ao contrário do projeto desenvolvimentista.
            Se você pegar os grandes indicadores do Brasil hoje, você vai ver claramente duas coisas. Primeiro, que esses indicadores apontam para uma situação não sustentável no médio prazo. Os indicadores sociais, por exemplo, apontam nessa direção e os da economia também, o grau de vulnerabilidade etc.
            De outro lado, a sociedade que fecha este ciclo longo não é a mesma sociedade de oitenta anos atrás. O que nós tínhamos em 1930? A maioria da população morava no campo, dispersa, sem informação, sem nenhuma capacidade efetiva de uma ação coletiva. Hoje, nós temos 80% da nossa população nas cidades, jogada num mundo mercantil, num sistema capitalista que vive um momento em que não precisa aborvê-los. Porque o capitalismo dependente brasileiro em alguns momentos precisou absorver mais e noutros menos, e nós estamos num momento em que esse capitalismo precisa soltar gente, os centros dinâmicos dele não estão precisando desse povo.
            Esse povo está urbanizado, está no mercado, não tem mais 10 porcos, 30 galinhas no quintal, seu pé de milho... Esse povo está sendo chamado a se integrar culturalmente, ideologicamente, num sistema de mercado que não os assimila. Eu acho que do ponto de vista estrutural, o Brasil hoje tem melhores capacidades de viver movimentos transformadores do que teve em qualquer outro momento de sua história. Estou falando em termos de período, não em termos de conjuntura, e eu acredito que isso vai aflorar nos próximos anos, porque os limites econômicos desse modelo estão ficando claros, seu componente anti-social tende a ficar mais claro e nós estamos diante de um modelo que não apresenta alternativa para a massa da população e portanto não tem potencial de construir uma hegemonia duradoura.
            Então falta da nossa parte ter estatura, política, moral, para nos colocarmos à altura da luta política que está se abrindo e vai se abrir no Brasil nos próximos anos, que tem que ser uma luta entre dois grandes projetos, o projeto que a gente chama no livro de não-nação, da desagregação da nação, que é um projeto que atrai as elites, porque as elites não precisam mais da nação: se você pendura a acumulação de capital na bolha especulativo-financeira do sistema internacional, você não precisa mais de uma nação atrás de si. A escola pública, a saúde pública podem não funcionar, mas você tem alternativas próprias.
            A própria economia real pode não funcionar, porque você está acumulando no sistema financeiro. O povo não tem essa alternativa, o povo precisa das instituições da cidadania, precisa que a economia funcione, precisa da geração de empregos. Enquanto esse projeto atual que a gente chama de projeto da não-nação for aparentemente o único, ele vence, e quanto mais misturados com ele nós estivermos, mais o povo fica em torno dele.
            Acho que o nosso papel hoje é separar os projetos, para que o povo possa tomar suas decisões com clareza. Pode ser que isso demande alguns anos, pois é um trabalho de luta política, mas nós precisamos separar estes projetos, e mostrar um projeto da nação, aqui, que no fundo é um projeto de rompimento com o capitalismo dependente e portanto é um projeto que aponta para o socialismo. Não a longuíssimo prazo, aponta num desdobramento claro na direção do socialismo, num processo de luta política. Se a gente souber separar as coisas, o povo olha os dois e tende a optar por aquele que é o único que dá opção para ele. Mas para isso a gente tem que ter esse papel pedagógico, esse papel didático, de levar a informação e organizar o pensamento, para isso nós temos que pensar o impensável, nós temos que fugir do...
            Nós estamos trabalhando hoje com todos os limites que vocês conhecem. O que a gente tenta fazer? Valorizar os movimentos sociais, formar quadros, recriar uma ética da esquerda, da militância coletiva, pensar uma saída estratégica e difundir isso ao máximo possível. E trabalhar com todas as forças que estejam neste campo, aguardar os desdobramentos que a conjuntura vai ter, na direita, na esquerda, no processo eleitoral, fora dele, de maneira que sejam quais forem esses desdobramentos, a gente esteja bem posicionado, tenha acumulado força própria para tomar decisões.

Valter: Você não me respondeu como esse projeto se torna poder de Estado. Voce não quer me responder, é uma questão que não é pensável ou vocês não têm uma opinião?

César: Ele se torna poder de Estado por um processo combinado de formas de luta, de lutas de massa, lutas eleitorais, de conquistas de maioria, que de certa maneira está em curso. A eleição do segundo semestre agora é um episódio deste processo. Ganhe ou não Lula, esse processo continua, de conjunturas diferenciadas. Se o Lula ganhar é uma; se o FHC ganhar, é outra. Mas é um processo que transcende esse momento eleitoral. Se você quiser uma descrição precisa desse processo até seu último estágio, eu não sei te dar, não sei e acho que não é um bom caminho a gente tentar essa descrição. A esquerda sempre trabalhou sabendo, entre aspas, tudo o que ia acontecer no futuro e como ele ia se comportar. Nós não sabemos. Nós aprendemos que nós não controlamos a realidade. Ela tem muito mais variáveis do que aquelas que a gente pode controlar. O que a gente pode fazer nesse contexto é ir criando essa visão estratégia de projeto e ir fortalecendo um campo social político que seja portador desta visão. E em cada momento a gente define tarefas multiplicadoras. Neste momento, agora, a organização das oitenta colunas que vão estar durante um mês e pouco em campo. Por que isso? Por vários motivos. As colunas são mais interessantes do que os comícios. O militante que vai aos comícios fica parado. Ocorre uma luta política nos bastidores, para ver quem vai falar, por quanto tempo vai falar, entre a burocracia. Vai o militante, ouve e aplaude. O militante que entra numa coluna é chamado a ser um dirigente, porque ele está em movimento, está em contato com a população e ele está decidindo, está falando, formando pessoas... São 80 grupos de 200 a 300 pessoas, que vão a partir do dia 3 de agosto até o dia 7 de setembro, percorrer em torno de 500 cidades pequenas e médidas do Brasil.
            Na nossa avaliação, o Lula já encostou ou ultrapassou FHC nas grandes cidades, vai ter um desempenho pelo menos de igual para igual com FHC nas grandes cidades, e FHC coloca uma dianteira significativa nas pequenas e médias cidades do país.
            Então as colunas vão percorrer 500 cidades pequenas e médias, em movimento, com muita flexibilidade, porque o Brasil é muito desigual, e para isso não há uma forma única de agir, cada região está definindo a sua. Nas regiões mais urbanizadas, as colunas vão ficar na periferia das cidades, nas regiões que têm cidades próximas as colunas vão a pé, nas regiões que têm cidades distantes, as colunas vão de caminhão.
            Os 300 integrantes de cada coluna vão estar em contato com o povo, discutindo o seu projeto alternativo. Essa forma de trabalho é diferente do que a esquerda vem fazendo nos últimos anos. Primeiro, porque você não entrega a iniciativa para a liderança, mas para a base. Você chama a base a assumir a liderança do processo, e com isso a base se vê estimulada a estudar, a melhorar, a compreender o projeto. Por outro lado, a liderança, que também vai estar nas colunas, vai estar trocando experiência, e também vai estar aprendendo. É isso que a gente chama de uma tarefa multiplicadora.
            O livro foi uma tarefa multiplicadora, depois teve a cartilha e agora a gente está pensando em fazer uma história em quadrinhos...
            Nós trabalhamos, é verdade, com um horizonte que não é o grande horizonte estratégico dos próximos cinco ou 10 anos, mas por outro lado ganhamos com isso também um grande vigor na nossa atividade prática, e estamos atentos para ir monitorando os movimentos estratégicos. Não temos uma teoria da revolução – pelo menos coletivamente não temos – mas queremos recolocar a idéia da revolução como uma idéia pensável, pois ela se tornou uma idéia impensável nos últimos anos.

Antonio: É difícil a gente entrar na discussão do programa, porque você mesmo frisa, no livro e agora, que não se trata de alterar variáveis macroeconômicas. Mas você também diz que devemos apresentar perspectivas concretas. Talvez a fábrica essencial de pobreza, hoje, seja uma dívida pública que transfere as riquezas do conjunto da população para um pequeno grupo de aplicadores do sistema financeiro, e mina todos os recursos do Estado. De que forma um novo programa enfrentaria esta questão?

César: Nós optamos, neste primeiro momento, por propor um sistema de idéias, e não um programa de governo, muito menos uma plataforma eleitoral. Isso foi uma opção consciente. Se você tem esse sistema de idéias, se milhares de pessoas têm esse sistema de idéias, você tem esse núcleo de compreensão que te dá coerência e flexibilidade para você encarar a situação e pensar até soluções. Se você não tem esse sistema de idéias você cai no pragmatismo. Você não toma nenhuma decisão que pressupõe grandes idéias porque você não está ancorado em grandes idéias. Como eu acho que o PT está imerso no pragmatismo, quando ele vai se aproximando de uma grande questão, ele entra em pânico. O PT, por exemplo, não pode dizer: “Eu apoio o sistema financeiro atual”, mas também não tem coragem de dizer: “Eu vou reformar o sistema financeiro atual”, e essa é uma questão central da economia brasileira, de qualquer economia capitalista contemporânea: quem tem o controle do sistema financeiro.
            A gente conscientemente quis apresentar à esquerda um sistema de idéias. Existe uma outra interpretação da história do Brasil, da crise brasileira do final do século XX, dos desdobramentos possíveis desta crise, que não é a interpretação da classe dominante, não é tributária dela. E essa outra interpretação tem coerência lógica, tem aderência à história, à realidade, tem viabilidade histórica. A partir daí a gente define um campo de pensamento. Neste momento, a gente está mais preocupado em delimitar esse campo de pensamento e massificá-lo entre a militância do que com as medidas propriamente ditas.
            O Estado brasileiro, ao longo de sua história recente, no século XX, sempre apoiou o desenvolvimento do capitalismo, mas apoiou financiando durante muito tempo a acumulação produtiva de capital e criando economias externas a essa acumulação, ou seja, liderou a industrialização do Brasil.
            O Estado brasileiro na crise atual muda o seu papel, mesmo diante do capitalismo, e passa a ser um financiador da acumulação financeira de capital, não só sob a forma da dívida interna pagando juros, mas sob outras formas também.
            Eu diria que o Estado brasileiro hoje tem três grandes funções: tem a função de internalizar pressões externas, a de garantir a rentabilidade do grande capital, o que faz sob a forma financeira e de doação de patrimônio, e tem ainda uma terceira função que é criar áreas restritas de operação de empresas globais.
            Uma empresa multinacional que queira hoje se instalar no Brasil, obtém do Estado brasileiro condições para ter uma área restrita onde possa operar.
            Essas três funções têm muito pouco a ver com a organização da vida da população. A vida da população não passa pela acumulação financeira, nem sequer por essas empresas multinacionais. Então o Estado brasileiro é um Estado que desorganiza a vida social no Brasil e tem que mudar estruturalmente o seu papel. No âmbito específico do que diz respeito à sua relação com o sistema financiero, precisa deixar de ser financiador da acumulação financeira. Isso pressupõe romper a bomba do endividamento, desmontar essa bomba do endividamento e para você obter condições de financiar um novo modelo de crescimento para o país, pressupõe que esse Estado controle o sistema financeiro. Eu não vejo como você conseguiria retomar o desenvolvimento sustentado no Brasil se você tem um sistema financeiro desregulamentado, oligopolizado e internacionalizado, num mundo de capitais voláteis.
            Por isso é que eu digo, eu até aceito discutir com a direita do PT se a siderurgia é ou não estratégica, se ela deve ou não ser estatizada, desde que ela aceite discutir comigo se o sistema financeiro deve ou não ser estatizado também. O que não vale é você só achar que deixou de ser estratégico um monte de coisas, e para aquilo que virou estrátégico você não ter política nenhuma, que é a posição do PT hoje.
            A gente deve propor uma profunda reforma do sistema financeiro, que garanta que ele se mantenha em bases nacionais, não seja internacionalizado como está sendo hoje, e que essas bases nacionais estejam a serviço da produção, portanto dirigidos por outros agentes econômicos que não os grupos oligopólicos. Essa é uma questão que a esquerda não deve elidir, a esquerda pode vir a público dizer: “Eu apoio o sistema financeiro atual”, mas não pode ficar em silêncio.
            Ao fazer isso, a gente cria condições econômicas de alterar o modelo sem a volta da inflação. Porque se você desmonta a bomba do endividamento, você dá de novo ao Estado a capacidade de controlar a quantidade de moeda que vai circular. O Estado volta a controlar o poder emissor. E se você controla o sistema financeiro, você controla a velocidade de circulação da moeda. Com o controle desses dois parâmetros, você impede uma crise inflacionária. Se você não controlar esses dois parâmetros, como hoje o Estado brasileiro pode não controlar, você está exposto a uma crise inflacionária aguda, que desorganizaria todo o seu projeto

Antonio: No projeto alternativo que vocês elaboraram, quais seriam os mecanismos essenciais de transferência de riqueza em benefício dessa meta de acabar com a pobreza?

César: Veja bem, nós trabalhamos ainda com aquilo que eu chamei de sistema de idéias. O Brasil é um sistema retardatário em termos de sistema internacional, e esse caráter retardatário é sucessivamente reposto. Não é que a gente tenha sido retardatário lá atrás e ponto. O Brasil fez um imenso esforço de aceleração do desenvolvimento entre 1930 e 1980, que o conduziu a completar a industrialização relacionada à segunda revolução industrial. No início dos anos 80, a indústria brasileira já é uma indústria bastante moderna. Grandes segmentos seus acabam de ser implantados de maneira moderna nos anos 80. E a gente vê que o caráter retardatário se repõe. A gente faz um imenso esforço, atualiza de certa maneira a economia brasileira, e em poucos anos volta a ser retardatário de novo. Nossa condição periférica se recompõe com grande rapidez. Isso tem a ver com todo o desenvolvimento histórico em que, por exemplo, a estruturação do mercado interno nunca foi um elemento chave para o funcionamento do nosso capitalismo dependente. Ao contrário, por exemplo, da Europa e dos Estados Unidos, que estruturaram desde o século passado – e principalmente no século XX – grandes mercados internos. E o mercado interno tem uma função de liga na sociedade, tanto regional quanto socialmente.
            O Brasil continua escravista, tardiamente escravista, continua dependente, e com isso se atrasa na constituição de seu próprio mercado interno.
            A gente acha que existe uma superposição de camadas de atraso histórico no Brsil, de tal maneira que hoje a gente tem que trabalhar com várias agendas. De certa maneira a agenda do século XVIII não foi cumprida no Brasil. O Brasil do século XVIII não faz o que a Europa faz. No século XIX também não faz. Nós perdemos a primeira e a segunda revoluções industriais. Nós continuamos o modelo escravista e primário-exportador quando a Europa já estava vivendo a segunda revolução industrial. O Brasil não fez a reforma agrária, não massificou a educação. Todas as nações que se constituiram no mundo moderno tomaram essas duas medidas básicas, não só por motivos econômicos, mas por motivos estratégicos. Quando você dá à sua população acesso aos meios de produção e dá a ela uma base educacional, cultural, ligada à identidade nacional, você cria uma nação de cidadãos.
            Isso na Europa, por exemplo, foi muito uma necessidade de defesa nacional. Depois que Napoleão criou a guerra baseada em exércitos não mercenários, tornou-se imprescindível para todos os países europeus basearem a defesa nacional nos seus cidadãos. Isso tornou imprescindível que esses países fizessem reforma agrária e massificassem a educação, porque é isso que forma cidadãos.
            O Brasil não viveu esse proceso, então o Brasil vai acumulando ao longo da história defasagens sucessivas... Por outro lado, vai se modernizando também. Isso cria esta realidade complexa que é o Brasil, um capitalismo que é a oitava economia do mundo, que vive com êxito um ciclo industrializador importante de 1930 a 1980, e que no entanto vem acumulando ao longo de sua história sucessivos estratos de questões não resolvidas.
            Temos todas as questões do passado, desde o século XVIII até hoje, não resolvidas, e já temos as questões do século XXI, porque nós somos uma economia suficientemente poderosa para olharmos para as questões do século XXI. Não somos um país tão periférico e tão atrasado que não possamos colocar essas questões, até porque várias questões do século XXI têm a ver com nosso potencial: por exemplo, o potencial da Amazônia, em termos de farmacologia, potencial genético etc.
            Nossa hipótese mais geral sobre a história do Brasil é que nós tivemos um primeiro grande imaginário no Brasil, que foi o imaginário da consolidação de um grande território unificado. O Brasil quando se torna independente, em 1822, só tem duas pequenas faixas de fronteira delimitadas: a que separa o Rio Grande do Sul da Argentina, no Rio Uruguai, e a que separa o que é hoje a Rondônia da Bolívia, no rio Guaporé.
            Então o Estado brasileiro se lança, durante um século, num megaprojeto, de forma competente, exitosa, de constituição e unificação de um território. Ao longo desse megaprojeto, consegue manter uma grande coerência na sua ação durante cem anos, porque esse projeto só se conclui no século XX.
            Ao longo desse projeto você tem movimentos populares regionalizados, que eram acusados de representar uma ameaça a esse ideal de unidade e por isso foram massacrados; você tem uma economia escravista, durante boa parte desse tempo; você tem uma dificuldade muito grande de identificar o agente nacional dessa construção, porque você tem populações indígenas, com uma base técnica muito precária, de que não partiram civilizações grandiosas que deram o ponto de partida para a civilização moderna, você tem a população negra escrava, a população branca portuguesa representante de um passado colonial que a gente quer deixar para trás. Então você tem dificuldade de encontrar aqui dentro o agente de construção da nação. Você se joga na construção desse território. É um primeiro grande ciclo do imaginário nacional, que marcou muito o Brasil. Parte da reação popular à venda da Vale vem desta herança, desta idéia de que o território é alguma coisa relacionada com a fundação da nação no caso brasileiro.
            Esse ciclo se encerra em 1912, 1915. Em 1930 se abre novo ciclo do imaginário brasileiro, que é o imaginário da modernização, ligada à industrialização. Mais uma vez o Estado brasileiro assume, de cima para baixo, uma grande tarefa que vai organizar as instituições por 50 anos no Brasil. Esse ciclo também terminou o seu desempenho. E aí o Brasil fica sem imaginário, num novo interregno. Assim como teve um interregno depois de 1912-30, quando vai construir aí o embrião de um novo imaginário que vai resultar na revolução de 30.
            Hoje estamos num outro momento deste tipo e a hipótese que a gente avança é que enquanto esses dois primeiros ciclos se completavam e se encerravam, outro processo acontecia por baixo, que é o que a gente chama no livro de a constituição de um povo novo, a constituição étnica, cultural, nacional, do povo brasileiro e a sua passagem das relações patriarcais, no campo etc., para as relações mercantis na cidade.
            E a hipótese mais geral que está por trás do livro é que um novo ciclo que se abrirá no Brasil, e portanto o novo imaginário, traz uma qualidade nova, pois nesse novo ciclo será o povo que estará no centro. A gente completou o território, a gente viveu a modernização capitalista dependente, e hoje nós temos um povo capaz de ocupar o centro, o que nós não tínhamos em 1930 e não tínhamos no século XIX.
            Essa emergência do povo como aspecto central da construção nacional é que caracterizará este novo ciclo, e essa emergência traz uma qualidade nova para a construção nacional. Porque até aqui foram as elites que conduziram o processo, e as elites tem raízes no passado, elas tem compromissos com o passado, elas trazem o passado. As elites que fizeram a revolução de 1930 não fazem a reforma agrária porque elas têm raízes agrárias. As elites que fazem a abolição não atacam a apartação social, porque têm raízes na escravidão.
            Agora terá que ser um novo agente social a comandar o processo de construção nacional e esse agente não tem compromissos com o passado, o que significa que você tem no Brasil hoje uma convergência de dois processos: o processo de completar a construção da Nação e, simultaneamente, romper com o capitalismo dependente e construir uma sociedade nova. São dois aspectos de um mesmo processo histórico que vão se fundir no processo.

Valter: O livro trabalha com a idéia de que existem dois projetos: o projeto conservador e a Opção brasileira. Nos anos 30, houve uma terceira via, que foi a que predominou: um setor da oligarquia agro-exportadora foi capaz de dar início a um projeto que o conjunto da oligarquia agroexportadora contestava, o projeto industrializante. Por que você acha que isso não pode acontecer agora? O projeto neoliberal não tem potencial estruturante de longo prazo, enquanto a opção popular tem esse potencial... Mas a burguesia brasileira tem vocação suicida? Diante de uma crise monumerntal, ela não seria capaz de achar um terceiro caminho, que mantenha os traços fundamentais da sociedade brasileira, de opressão, de desigualdade, mas ao mesmo tempo preserve seu parque industrial, seu poder? Por que tanto desprezo pela capacidade da classe dominante?

César: No momento, a burguesia brasileira não tem mostrado essa vocação. Ela hoje perde como industrial mas ganha na acumulação financeira. Ganha associando-se às empresas multinacionais, vendendo seu patrimônio, ganha importando, por exemplo, ela tem alternativas de rentabilidade.
            A hipótese com que a gente trabalha é que o capitalismo dependente brasiliero não foi incompatível com o processo tortuoso e incompleto de construção nacional até agora, até a crise que se fecha em torno de 1980. Esse capitalismo dependente foi capaz de, em momentos críticos, encontrar alternativas que desenvolviam a nação, mesmo de maneira injusta, tortuosa e incompleta. Hoje, prosseguir com esse processo de desenvolvimento econômico, social e cultural, significaria romper com as bases do capitalismo dependente.
            E nós não vemos na sociedade brasileira, hoje, uma burguesia pelo menos capaz de liderar isto. Se as camadas populares oferecerem uma alternativa, talvez haja um espaço de negociação com segmentos da burguesia brasileira, desde que o centro de gravidade desse projeto esteja muito bem definido no povo brasileiro. Se o povo brasileiro tiver força própria para colocar o seu projeto, haverá espaço de negociação. Se não tiver força própria, não vejo como a burguesia brasileira será o centro de gravidade de um projeto desse tipo.

Valter: Mas essa não é a mesma ilusão de ótica que teve um setor da esquerda revolucionária, no final dos anos 50, início dos anos 60, que dizia que sem superar o latifúndio e o imperialismo, o capitalismo brasileiro ia cair na estagnação? Lendo o livro e ouvindo você falar, a impressão é que há uma disjuntiva entre “opção brasileira” e “barbárie”. Que é um pouco aquilo que boa parte da esquerda revolucionária imaginava no início dos anos 60: se o Brasil não rompesse com o latifúndio, com o imperialismo, o Brasil ia estagnar, não ia ter futuro. E na verdade ele não rompeu com o latifúndio, não rompeu com o imperialismo e não estagnou...

César: Mas também não construiu o futuro...

Valter: Construiu. O próprio livro admite que a ditadura militar, em especial com o II PND, concluiu o processo de industrialização. Não construiu o nosso futuro.

César: Mas as questões se repõem. Quando a sociedade não resolve uma questão, ela se repõe ou ela mesma, ou modificadamente, lá na frente. Essa vem sendo a história do Brasil. O Brasil não resolve as grandes questões, até porque a elite comandou até hoje a solução. Então foram sempre soluções negociadas e sempre soluções intermediárias. A gente faz a independência em 1822, mas continua uma economia dependente. Faz a abolição em 1888, mas continua com uma gravíssima apartação social. Faz a república em 1889, mas continua primário-exportador. Faz a revolução de 1930 e não faz a reforma agrária, e assim sucessivamente. E essas questões velhas, da dependência, da apartação social, da reforma agrária, elas acabam reaparecendo, ou elas mesmas, ou de forma modificada.
            Por exemplo: a questão da escravidão de certa forma reaparece na questão agrária, a questão agrária reaparece na questão urbana, as massas agrárias despejadas nas cidades no século XX vão gerar a questão urbana. Não é verdade que o capitalismo tenha resolvido estas questões, nós vivemos uma longa fuga para a frente, a nossa história é uma longa fuga para a frente, a gente não resolve e também não cai na estagnação.
            Nós somos grandes demais, conseguimos negociar inserções no sistema internacional que nos garantem espaços de desenvolvimento. No contexto atual, nós estamos assistindo de novo a isso. No fundo o que FHC está fazendo é isso, renegociando uma nova inserção no novo quadro internacional, dentro da ótica dele, de forma a permitir um novo ciclo de desenvolvimento para o Brasil, dentro dos marcos da dependência e dos marcos do capitalismo brasileiro. Tem sido muito difícil essa renegociação e neste momento ela não está apontando para uma reorganização do capitalismo brasileiro, para uma retomada do desenvolvimento. É claro que essa hipótese ninguém pode afastar para daqui a 10 ou 15 anos pois a ciência social não tem capacidade de previsão para você dizer que nunca mais haverá desenvolvimento do capitalismo dependente.
            O que nós estamos dizendo é que nesta crise atual está sendo muito difícil essa renegociação, o Brasil em 1930 e no Getúlio renegocia e industrializa. Continua capitalista dependente mas se desenvolve, mas agora fechou-se esse ciclo e não estamos conseguindo abrir outro.
            E ao longo desse tempo, o potencial de crise da sociedade se torna maior. Temos São Paulo com 20 milhões de pessoas, o Rio com 15 milhões...

Valter: Eu queria insistir nesse tema, porque faz muita diferença, do ponto de vista político, você dizer que só tem duas saídas; ou você dizer que tem duas saídas, mas a burguesia é capaz também de forjar uma terceira. Fez muita diferença, por exemplo, para a geração que se jogou na luta armada nos anos 60, acreditando que como o capitalismo só podia oferecer estagnação, ele não tinha como cooptar a massa, e isso justificava e possibilitava uma ação mais ofensiva.
            Quanto às comparações históricas. Você disse antes da entrevista que o que está acontecendo hoje lembra Campos Sales. Mas e se você disser que o que está acontecendo hoje lembra Artur Bernardes?
            Outro exemplo: você diz que está tendo muita crise agora. É verdade, mas estamos longe de termos o que houve nos anos 20, que foram levantes militares sucessivos. Ainda há espaço para muita crise, até que se possa forjar uma alternativa...

César: Eu estou trabalhando com um horizonte de 10 anos para essa crise brasileira. Não há condições de ninguém afirmar, em ciências sociais, um futuro longínquo. A hipótese de que o capitalismo brasileiro se reorganize num futuro longínquo e apresente um novo ciclo de desenvolvimento não pode ser descartada. O que nós estamos dizendo é que não é isso que está em curso hoje, não é isso que é visível para o período que está se abrindo, e é nesse período que estamos atuando.

Valter: Mas como é que você interpreta que Delfim Netto, Rubens Ricupero, Benjamin Steinbruch, Antonio Ermírio de Moraes... Se você acompanhar o discurso da “elite da elite”, há uma recuperação do discurso nacional. O Ricupero é o mais escandaloso desse ponto de vista. Seus artigos na Folha de S.Paulo defendem o projeto nacional, tomam a China como parâmetro. Benjamin Steinbruch, veja a ironia, defende “não o nacionalismo, mas o patriotismo”. Você pode dizer que isso é uma embromação. Mas não podemos ver aí sinais de que, diante do naufrágio, setores da burguesia podem fazer uma guinada noutro sentido? Num contexto de cirse internacional semelhante ao de 1929, em que o sistema financeiro internacional não tenha mais como oferecer as vantagens relativas que ele oferece hoje, não existiriam bases econômicas, sociais e políticas para esse setor assumir o discurso nacional?

César: Eu não vejo isso no curto prazo. Talvez o Ricupero esteja falando isso porque como ele está no exterior, está acompanhando uma situação de crise internacional, que está num processo de expansão. Embora eu ache que não se deva ser catastrofista, as instituições do capitalismo internacional hoje são obviamente inadequdas para gerenciar as forças demoníacas que ele mesmo libertou, principalmente na área financeira. Quem está no exterior está vendo isso muito claramente, as crises financeiras são cada vez maiores e estão se aproximando do centro, já estão chegando no Japão, que é uma economia do núcleo do sistema, diferente de Coréia, Indonésia, Filipinas, Brasil e Argentina. Existe uma bolha financeira internacional crescente, existe uma polêmica hoje mesmo entre os ideólogos do capitalismo sobre como tratar esta bolha. Milton Friedman, por exemplo, está defendendo deixar quebrar. Ele é contra a intervenção corretiva do FMI. O capitalismo é feito de investimento, há investimento bom e investimento ruim, quem investe errado tem que perder. Se o capitalismo não deixar quebrar, ele estará violentando sua própria lógica, deixando crescer o capital que é ruim, o capital que investe mal, estará preparando crises maiores para o futuro. Só que deixar quebrar é um problema político grave para os países centrais... Então há uma tensão ali dentro.
            Nesse contexto, não tem havido espaço para um projeto nacional brasileiro nos marcos do capitalismo. Nós estamos numa área de criação do superávit americano, a relação Estados Unidos-América Latina é uma relação espoliativa mesmo, nós estamos perdendo os instrumentos de política econômica interna. O Estado brasileiro está perdendo sua capacidade de influir na própria economia, nós modificamos profundamente o perfil da nossa sociedade. Temos hoje uma sociedade urbanizada que viveu o ciclo industrializador e tem a memória da industrialização no seu interior, onde as contradições sociais tendem a ser mais agudas, onde as crises tendem a ser mais rápidas.
            Se segmentos da classe dominante brasileira se preocupam com este quadro, é natural que eles se preocupem, mas eu não vejo como eles possam elaborar uma alternativa. Pode ser que... Eu estou falando para uma perspectiva de anos, de alguns anos, não para a eternidade.
            Então a minha impressão é que cabe às forças populares apresentar uma alternativa, porque se nós não fizermos isso continua a disputa entre o projeto e o vazio, e o projeto sempre ganha, seja qual for o projeto. Eu não estou vendo por onde a burguesia brasileira poderia romper com o grau de dependência financeira, tecnológica, cultural que ela já tem junto ao imperialismo e liderasse um projeto nacional...

Valter: Mas nos anos 20 você também não via isso. Nos anos 20, o debate não sinalizava que ia existir com Vargas um ciclo daquela natureza. Todos os traços que você elencou da situação atual, exceção feita à industrialização, também existiam nos anos 20: o grau de dependência...

César: Eu acho muito boa a comparação com os anos 20, eles foram muito interessantes...

Valter: Mas o que é que existia ali que você pudesse dizer que havia na classe dominante uma hegemonia que indicasse que ia haver um ciclo industrializante? Nada. Mas diante de uma situação de crise real, a burguesia não se suicidou, ela buscou uma saída, ela achou uma saída. Porque é relevante a comparação? Porque naquela época, o Partido Comunista via no projeto industrializante o caminho de longo e médio prazo. Quando a burguesia assumiu aquele discurso, de certa forma esvaziou o potencial popular do projeto alternativo. Pelo que eu estou entendendo, voce não acha possível, pelo menos no curto prazo que isso aconteça. Você não acha que a classe dominante brasileira tenha capacidade real de assumir um projeto nacional.

César: Mas tua hipótese pressupõe uma grande crise. Essa discussão só se colocará se houver uma grande crise. Se não houver, ela nem sequer se coloca. Eu acho que isso nos  une, no seguinte sentido: eu não vejo, e acho que você também não vê, um desenvolvimento linear do quadro atual, como se você tivesse uma hegemonia se consolidando, um novo ciclo se abrindo, e nós na oposição a esse novo ciclo. Eu não vejo que a trajetória dos próximos dez anos de luta política no Brasil seja essa. Isso que está aí não tem potencial estruturante, não há de momento uma alternativa burguesa ao que está aí, e compete a nós elaborar uma alternativa. Acho provável que nesses dez anos nós vivamos uma situação de grande crise, que pode ser detonada por vários motivos: internamente, externamente, de várias maneiras. O que me preocupa é que, nesse momento, os setores populares tenham um projeto para colocar na mesa. O que me preocupa é que a gente tenha capacidade não só de formular os elementos centrais, mas de disseminar na sociedade – o que é mais importante ainda – entre muitos milhares de pessoas, os elementos centrais dessa alternativa.
            Claro que nesse contexto se estabelece uma situação de conflito e de negociação na sociedade brasileira. E claro que nesse contexto a classe dominante brasileira não vai ficar parada e não vai cometer suicídio. Nisso eu concordo contigo. O que eu tendo a achar é que nós podemos apresentar um projeto que conquiste hegemonia, e que tenhamos portanto condições de negociação em outras bases, com alguns segmentos burgueses que quiserem negociar conosco.
            O que me preocupa hoje é que a esquerda está se desarmando para desempenhar este papel. Na medida em que a gente deixa de colocar as grandes questões, se ajusta à agenda dominante e busca penetrar no Estado cada vez mais profundamente, a gente perde o contato, a capacidade de mobilização social, que é o quadro geral da esquerda hoje. A gente não está se preparando para ser o ator principal desta grande crise. E eu acho que é esse o nosso papel, buscar uma centralidade nesta crise.
            O espaço de negociação que haverá com a burguesia, nós não sabemos exatamente qual é. Eu acho que vamos ter que pensar uma reorganização profunda da economia brasileira, em bases endógenas, que nacionalize alguns setores, crie espaços públicos bastante amplos, que coloque a questão da pobreza, da miséria e da cidadania no centro da construção nacional. Ou seja, que a gente passe a operar com uma lógica econômica, social e cultural muito diferente da lógica dos setores dominantes.
            Quanto à capacidade de adaptação da burguesia brasileira a esse cenário, eu não sei, tendo a achar que é baixa.

Valter: A Opção brasileira abre com uma reflexão sobre a mudança nos termos do debate nacional, mas não faz nenhuma referência a um aspecto importante, que coincide com aquela mudança nos termos do debate nacional, que é a crise do socialismo. Mais adiante, o texto fala que a Opção vai significar uma reatualização das possibilidades do socialismo. E no final ele conclui dizendo que, “se perguntarem”, a Opção é um projeto de natureza socialista. Sobre isso eu queria te fazer várias perguntas, a começar pelo seguinte:
            O projeto socialista sempre se propôs internacional. As vicissitudes da luta política deste século fizeram com que ele acabasse adquirindo características regionais ou nacionais. Mas se queremos recolocar os fundamentos, por que é que vocês optaram por recolocar os fundamentos em marcos nacionais?
            Há uma passagem no final da Opção em que você inclusive desenvolve a idéia de que é difícil, impossível, pensar e operar de forma transformadora em escala global, o que também é uma visão contraditória com o pensamento clássico socialista.
            Noutras passagens, você faz uma crítica dura à globalização e em nenhum momento ressalta, diz ou aponta que essa globalização pode também significar um ponto de partida, dada a internacionalização, para uma sociedade de outra natureza.
            Queria que você comentasse um pouco isso.

César: Primeiro, nós evitamos pensar o futuro tal como ele foi pensado muito pela esquerda. Você imagina os traços de uma sociedade futura, supostamente ideal ou muito próxima disso, e a partir daí você estabelece os vínculos, os laços entre essa sociedade futura e a nossa sociedade atual. Esses laços são de natureza lógica, quer dizer, eu sei qual é o futuro, uma sociedade ótima, e vou caminhar naquela direção. Aí você olha a sociedade atual e seleciona, dentro dela, os elementos que vão te conduzir àquele futuro que você imaginou, e portanto estabelece um nexo lógico entre o presente e o futuro. Este é um modo ruim de raciocinar.
            O processo de construção do futuro é um processo de natureza histórica, não de natureza lógica. E por isso é mais importante você compreender o movimento histórico que a sociedade fez, o campo de possibilidades que esse movimento abre hoje e imaginar a transição para o futuro como uma transição histórica, não como um passo lógico em direção a uma sociedade ideal que você imaginou. Por isso é que talvez uma leitura de esquerda mais presa aos cânones mais tradicionais da esquerda sinta falta desta descrição dessa sociedade futura...

Valter: Não é disso que eu sinto falta. Aliás, você faz tudo isso que você acabou de criticar, só que em relação ao Brasil. Você aponta um projeto futuro e diz: “Vamos caminhar para lá”. O que eu questiono é por que, já que é para pensar o impensável, a base de pensamento não é internacional.

César: A gente não está fazendo uma obra acadêmica, uma teoria acadêmica. A gente está pensando um texto voltado para a ação política. E o espaço da ação política estratégica, na atual configuração da humanidade – e nossa aqui no Brasil – é o espaço nacional. Especialmente num país como o Brasil. Porque você não tem no espaço global instituições, um ponto de Arquimedes onde você coloque sua alavanca para movê-lo. Assim como você também não tem no espaço local.
            O espaço local é um espaço que vai superpondo demandas imediatas, mas é muito difícil construir uma visão estratégica em termos históricos a partir do espaço local, é um erro que frequentemente se comete, os ecologistas e outras correntes, o importante é o espaço local.
            Na verdade, o espaço nacional é o único espaço em que você tem instituições públicas, de natureza abrangente, capacidade de manejo, de formação de uma vontade coletiva suficientemente poderosa para modificar o curso da história, você tem relações que as pessoas estabelecem que não são apenas relações de mercado, você tem o horizonte da cidadania, coisa que você não tem no espaço global.
            Então a nossa preocupação é: qual é o espaço manejável para que a história se faça? E esse espaço politicamente manejável é o espaço nacional. É claro que ele tem um desdobramento internacional e tem um desenvolvimento local e regional, mas é ele que é o espaço da ação estratégica. É um pouco a idéia que a gente sugere no livro: vamos pensar esse espaço como espaço privilegiado da ação estratégica, sabendo que ele tem desdobramentos para fora e para dentro.

Valter: Mas você então cede à classe dominante internacional o direito dela, sem contestação, pensar o mundo.

César: Não, nós estamos pensando o mundo também. Veja bem, onde é que estão hoje as forças sociais que podem fazer história e sobre as quais a gente pode agir?  É no espaço nacional que nós temos instituições, capacidade de fazer planejamento econômico, nós temos capacidade de montar instituições que expressem a cidadania, ampliar os espaços públicos, definir metas claras e atingí-las, inclusive a erradicação da pobreza, onde a gente possa construir uma força que rompa com a lógica da globalização capitalista neoliberal. Quer dizer: é esse conjunto, é sobre ele que a gente tem que colocar nossa alavanca para que ele funcione. Sabendo que esse conjunto está dentro de um conjunto maior.
            O que me preocupa é a impotência política que decorre das forças que só pensam o espaço global e aquelas que só pensam o espaço local. Elas acabam caminhando para diferentes tipos de impotência política, porque mudar o mundo está acima da nossa capacidade de operação, mudar o local não é possível, mas mudar a trajetória do país é possível e é necessário.

Antonio: Evidentemente, o ponto de Arquimedes é o nacional, mas o projeto da esquerda precisa ser um projeto internacional, até porque muitas vezes, agindo no espaço nacional, você provoca repercussões externas. Além do mais, o imaginário global é um imaginário diferente, depois da globalização. De que forma a Opção brasileira vê o papel do Brasil no marco de uma nova ordem global? E de que forma os trabalhadores brasileiros se relacionam nele com os trabalhadores coreanos ou com os trabalhadores mexicanos?

César: Em primeiro lugar, quando se fala em mudança, em transformação, a elite brasileira acena muito com a perspectiva do isolamento internacional do Brasil. A gente trata disso numa passagem do texto. Eu não acredito numa política de isolamento em relação ao Brasil, por três motivos.
            Em primeiro lugar, o Brasil não é isolável. O Brasil é um país suficientemente importante no mundo, com relações multifacéticas com todas as regiões, não é fácil isolar o Brasil, nem do ponto de vista econômico, nem cultural, nem diplomático. O Brasil tem muitos espaços de manobras.
            Segundo, é que se fosse isolável, o Brasil sobreviveria. O Brasil tem capacidade de melhorar as condições de vida de sua população, numa situação de isolamento. E não sobreviveria miseravelmente, não.
            Exatamente por isso eu acho que a estratégia deles não vai ser a do nosso isolamento porque seria uma estratégia burra. A grande consequência de um isolamento do Brasil, num contexto de transformação revolucionária brasileira, seria o fortalecimento das bases nacionais de nossa transformação. Eles não nos quebrariam de fora para dentro. Por esse lado, eu acho que não caminharemos para um contexto de isolamento. Nem queremos caminhar, nem caminharemos.
            Por outro lado, o Brasil é o líder natural de um continente. Já é... Enfim, é o grande país da América do Sul, de tal maneira que um projeto nacional brasileiro, com outra qualidade, que efetivamente rompesse e com êxito, teria um impacto brutal sobre o continente, e isso faz com que esse projeto seja muito perigoso, do ponto de vsita do sistema capitalista, dos Estados Unidos especialmente.
            Os Estados Unidos têm uma capacidade bastante interessante de manter objetivos estratégicos de longo prazo. A política do Estado americano, ao longo da história, é uma política coerente. Se você pegar a formação da sociedade americana, começando naquela faixa na costa leste, ocupada pelos ingleses, eles vão definindo mega-objetivos estratégicos, ocupando o território numa faixa horizontal até o Pacífico. Então é um mega-movimento que envolve guerras, extermínio de populações indígenas, a dominação do Atlântico, a dominação do Pacífico.
            E um dos grandes movimentos estratégicos dos Estados Unidos, que eles vêm mantendo há muito tempo, está expresso da seguinte maneira, num documento oficial americano: “Impedir que um país ou grupo de países do hemisfério ocidental rivalize com o governo dos Estados Unidos.” Um país ou grupo de países... É evidente que eles falam do Brasil ou do Brasil e algum grupo de países. Então existe um conflito estratégico entre um projeto nacional exitoso no Brasil e interesses que os Estados Unidos consideram permanentes, como seus, o que abriria uma frente de cooperação, conflito, disputa e por aí...
            Por outro lado, essa emergência do Brasil poderia ser não de todo desinteressante para outros países importantes, como a China, o próprio Japão. A emergência de um país do porte do Brasil, no continente americano, como um novo protagonista da história internacional no século XXI.
            Então eu não me preocupo tanto em formular esse impacto internacional no projeto nacional nosso, porque eu acho que ele seria tão grande que é impossível você pensar um projeto nacional brasileiro sem ter essa dimensão, porque ele tem necessariamente essa dimensão, ele tem um impacto sobre a África, sobre a América do Sul, sobre os Estados Unidos, sobre a Europa. Então me parece que esse é um terreno que a gente não vai poder esquecer, porque queira ou não a gente vai semear vento e vai colher tempestade.

Valter: Que terá impacto, é evidente. Mas veja: o projeto nacional norte-americano teve impacto sobre as Américas. Subordinou o desenvolvimento das Américas aos EUA. O projeto nacional chinês hoje está tendo um impacto devastador sobre o sudeste da Ásia e está criando dificuldades para as economias capitalistas daquele cinturão. Você pode ter um projeto nacional no Brasil que tenha um impacto sobre a Argentina, sobre outros países da América, que seja de subordinar essas economias e prejudicar os trabalhadores. Por que na ausência de um projeto internacional mais claro, um país com a potencialidade que o Brasil tem pode cumprir um papel libertador, do ponto de vista do socialismo, ou pode também cumprir um papel opressor.

César: O que a gente aponta no texto a esse respeito é que no mundo atual, em que você está construindo blocos e até mega-Estados, como no caso da União Européia, o Brasil tem um papel-chave na construção de um núcleo histórico de um bloco latino-americano alternativo, que seria a única alternativa para retirar esse conjunto de países da situação de marginalização em que eles estão hoje no cenário internacional. Sem o Brasil, esse bloco não tem força própria para se constituir e o Brasil seria essencial para a constituição do núcleo histórico desse bloco, assim como Alemanha e França são o núcleo histórico da Europa unificada, seja qual for o processo de unificação; assim como os Estados Unidos são o núcleo da unificação geopolítica da América do Norte; assim como o Japão desempenhou na Ásia um papel até hoje, e hoje Japão e China vêm emergindo, constituindo potencialmente um novo núcleo histórico de uma região. Então o Brasil teria que ter relações de solidariedade profunda com a América do Sul e Latina de uma maneira geral, até porque essa vai ser uma área de disputa com os Estados Unidos...

Valter: E de competição com os outros mega-Estados? Então o cenário internacional que você antevê, caso consigamos fazer com que a Opção Brasileira tenha poder de Estado, por um certo período, é a inserção do Brasil, em condições melhores, como líder de um bloco de Estados, na competição com esses outros blocos de Estados?

César: Competição, não necessariamente no sentido negativo. Depende do cenário internacional. Competição, se for necessário, e cooperação. Veja bem: depende de como essas coisas evoluem. É claro que a gente quer ter relações de solidariedade com os povos. É claro que a gente quer um mundo que caminhe para uma sociedade, enfim, de paz, desenvolvimento, igualdade social, de liberdade, e é isso que a gente vai construir. Aliás, teremos aliados dentro desses países todos, porque o projeto neoliberal está recriando pobreza, desigualdade, mal-estar social que hoje é nítido, se disseminando, na Europa, nos Estados Unidos. Mas nós não sabemos qual é o cenário internacional em que a gente vai operar.

Valter: A revolução russa foi feita imaginando uma revolução em escala européia, e eles foram obrigados a seguir outro caminho. De fato não há como prever um cenário, mas há como apontar um cenário melhor. Vocês, em parte por opção, por falta de condições, não desenvolveram ao mesmo nível que a “opção brasileira”, esse projeto internacional. E o que existe de desenvolvido aponta no sentido do Brasil ser líder continental.

César: Não, tem um pouco mais. O que a gente aponta, aliás eu acho que de maneira interessante, é que o cenário internacional nas últimas décadas, especialmente após o segundo pós-guerra e até o início dos anos 80, é um cenário muito influenciado pelo fato de que o conjunto de países intermediários adotou diferentes estratégias que aceleraram o desenvolvimento econômico desses países.
            Antes da segunda guerra, você tem o caso da União Soviética. Depois da segunda guerra, você tem um conjunto de países que não pertencem ao centro capitalista, mas também não mergulham naquela situação periférica mais atrasada e sem perspectiva, constituem economias regionalmente poderosas, e vivem processos de modernização e industrialização bastante rápidos: Brasil, Indonésia, México, Argentina, Coréia do Sul... Enfim, constituem uma rede de países intermediários dentro do sistema.
            Esses países intermediários são importantes para o equilíbrio do sistema, tanto porque eles são o espaço de valorização do capital sobrante no centro, porque exatamente por serem intermediários eles têm negócios a fazer com o centro, são espaços de valorização do capital e essas economias intermediárias também são economias que sustentam economias periféricas nas suas regiões. Cada um desses países é líder de um certo conjunto de países.
            Então você tinha um processo de estruturação crescente desse elo intermediário do sistema e um êxito aparente das estratégias de desenvolvimento desse elo intermediário. Se você pegar as taxas médias de crescimento econômico desses países intermediários durante trinta anos, foram muito superiores aos do centro do sistema. Então, a partir daí você tinha discursos otimistas. No caso brasileiro, por exemplo, o otimismo do desenvolvimentismo brasileiro; no caso da Rússia, o otimismo do desenvolvimento kruscheviano. Por quê? Porque matematicamente se o centro cresceu a uma média de 3% e se nós estávamos crescendo a uma média de 9%, então nós estávamos nos aproximando do centro. Todos viviam esse otimismo.
            Há um fato novo importante nos anos 90 que é a quebra sucessiva de todos esses países intermediários. Uma quebra implacável que começa na crise da dívida de 1982, na América Latina. Então você desarticula o ciclo desenvolvimentista latino-americano e a partir de então esse continente fica à deriva, exportando capital e se ajustando passivamente às crises que estão sendo colocadas.
            No fim dos anos 80, você tem a crise do Leste Europeu. Outro conjunto de países economicamente intermediários se desarticula, com a especificidade de que um desses países ocupava o centro do sistema do ponto de vista político-militar. Há uma assimetria entre essas esferas econômica e político-militar.
            No meio dos anos 90, esse processo de desarticulação atinge as experiências que continuavam tendo êxito, de países intermediários, que eram o Leste da Ásia.
            Assim como você tem, de 1945 até 1980, um período em que as economias intermediárias de modo geral iam bem, você tem hoje uma situação em que elas, de modo geral, estão em colapso. A exceção é a China, porque tem uma trajetória bem diferente desses outros países intermediários. A China vem de fora do sistema para cá, ela se isola, reconstrói  suas próprias bases nacionais e sociais de desenvolvimento e agora ela se junta ao sistema internacional, cheia de salvaguardas.
            Esses países intermediários quebram, e quando eles quebram já não são mais aquelas sociedades agrárias, atrasadas. A primeira grande onda de quebras de países intermediários ocorre na periferia da economia americana, mas a economia americana é muito poderosa. Ela é continente, ela se isola com grande facilidade da crise de sua periferia, ela usa esta crise, se isola...
            A economia japonesa não, até porque ela é muito mais relacionada com sua periferia do que a economia americana, muito aberta, sob certo ponto de vista. Não tem petróleo, não tem minério, não tem carvão, não é uma economia continental, não tem terra agricultável. Ela tem um sistema de subcontratação: tem relações financeiras muito mais profundas com a Ásia do que os Estados Unidos com a América do Sul.
            Hoje, esse processo de quebra do sistema intermediário começa a atingir um componente do núcleo do sistema, que é o Japão, e não é impossível que esse componente contamine o núcleo do sistema. O Japão é um grande credor internacional. Ele tem um trilhão e duzentos bilhões em títulos americanos na mão. Se usar os seus ativos, tem um impacto que é diferente: a economia japonesa é uma economia de 5 trilhões, enquanto a da Coréia deve ser de algumas poucas centenas de bilhões.
            A minha hipótese é de que esses países intermediários que estão quebrando – e que foram transformados em espaços de valorização do capital financeiro – podem ser um componente novo de alternativa para o século XXI, exatamente porque nem eles são tão fracos a ponto de não terem alternativa nem foram incorporados ao núcleo do sistema. São povos novos, que ainda vivem problemas de pobreza, desigualdade, que não foram incorporados ao centro do sistema, mas já representam um conjunto de países suficientemente forte para constituir uma alternativa, ou buscar alternativas próprias.

Valter: Eles podem constituir alternativas para desorganizar o sistema, mas você imagina que eles possam constituir um pólo hegemônico novo?

César: Não estou falando em pólo hgemonônico novo, não estou falando em hegemonia, estou falando em constituição de uma rede nova, de uma alternativa nova.

Antonio: Aí criou outro debate... Entra o Dostoievsky: qual é o “Deus” dessa nova ordem internacional?

César: O que você chama de “qual é o Deus”?

Antonio: Qual é o projeto?

Valter: Porque se nós temos uma crise em marcha, e se o mundo pode entrar em colapso, o que é que a esquerda tem a oferecer ao mundo?

César: Eu não acho que devemos trabalhar só com a hipótese de um colapso. Aí eu uso o teu raciocínio sobre o Brasil...

Valter: Eu troco o meu raciocínio pelo seu e estamos satisfeitos.

César: Claro que a hipótese de uma crise econômica internacional grave está colocada, só que o tempo dessa crise pode ser o tempo de muitos anos, o sistema é muito grande, as formas de adaptação vão se...

Valter: Mas você oferece ao mundo uma alternativa que o socialismo sustentou por setenta, oitenta anos, um certo padrão de luta política internacional. E isso se começou a fazer no final do ciclo do século passado, que desembocou na primeira guerra mundial. Então por que não fazermos nós hoje, no final do século, aquilo que Marx e a social-democracia internacional fizeram no final do século passado?

César: Eu me sentiria um pouco pedante em dizer: “Eu ofereço ao mundo uma alternativa.” Nós temos a oferecer uma sociedade diferente, baseada na solidariedade, no trabalho e na cultura, ou seja, uma sociedade socialista. Não há como hesitar neste tipo de questão, se a gente abrir mão de nossa história a gente se enfraquece a ponto de não conseguir enfrentar esta crise. O que eu não acho correto é que a gente aposte todas as nossas fichas, como fazem os trotskistas, há muito tempo, de que a crise mundial do capitalismo é iminente. Há um processo de crise em marcha, sem dúvida que há, mas este é um processo que pode ser longo, e a resultante deste processo nós não sabemos qual é. Então nós temos que ter uma estratégia mais flexível, e não dizer: “Olha, haverá a grande crise, estamos nos preparando para ela e vamos salvar o mundo”, pois isso nos paralisa politicamente. Prefiro pensar o seguinte: existe uma alternativa viável a ser construída a partir de nosso país.

Valter: Mas por que paralisa? A Rússia, a China, o Japão construíram um projeto nacional e tinham um projeto internacional...

César: Eu não sei se eu concordo contigo.

Valter: O que eu não entendo é porque colocar as coisas nesses termos, como se ter um projeto, um horizonte internacional...

César: O que você chama de ter um projeto internacional?

Valter: Eu te digo, e aí eu recupero uma questão que ficou em aberto: por que não enxergar na globalização, além de toda a fieira de aspectos negativos, também um momento daquele processo que o Marx indicava, de internacionalização do capital, que abre condições para a internacionalização da sociedade humana, em outros termos? Por que reagir a um momento de internacionalização do capital, oferecendo para uma sociedade que pode apontar um outro caminho para o mundo, um caminho nacional, que diz tão pouco sobre o mundo e mais sobre nós mesmos?

César: Nós não dizemos pouco sobre o mundo, não, ao contrário. Se você pegar a parte final do livro, nós discutimos alternativas, inclusive de desenvolvimento, que estão fora do horizonte do núcleo do sistema, e o meu sentimento é de que um projeto nacional exitoso no Brasil tem um brutal impacto internacional e pode constituir uma alternativa inclusive para questões da humanidade.

Valter: Mas veja o que diz o livro A opção brasileira: “Cedo ou tarde crescerá em todo mundo a demanda por uma nova ordem, capaz de moderar a arrogância de alguns poucos Estados e minimizar os desmandos de um capitalismo sem controle.” Ou seja, na escala internacional, o que o livro fala, exceto além do que diz respeito ao próprio Brasil, das declarações de intenção de projeto político em relação à América e aos países intermediários, quando se fala da nova ordem internacional, o livro é tão despretensioso quanto o PT. O livro fala literalmente em “moderar a arrogância” e “minimizar os desmandos”.

César: Não é só isso. O que a gente fala é que o modelo que o centro do sistema capitalista está apresentando ao mundo não é generalizável, portanto vai ser necessário construir outro modelo, e que o Brasil é um dos países que têm potencial para desenvolver elementos desse outro modelo.

Valter: Mas pensando no modelo, não naquilo que é necessário de imediato: a capacidade de produção de alimentos existente no mundo é superavitária. Nesse sentido, não é necessário que cada país tenha toda a cadeia ou quase toda a cadeia produtiva instalada, mas é exatamente isso que se propõe na “Opção brasileira” para o Brasil.

César: Não, é o contrário. A gente diz que esse novo modelo não só é compatível, como ele deseja uma inserção internacional em que você vai ampliar o sistema de trocas.

Valter: Mas onde é que isso fecha, em escala mundial? Por que está todo mundo tentando fazer isso, exportar o máximo possível? Onde isso fecha?

César: Por que as trocas internacionais são tão importantes? Porque elas podem otimizar a operação do seu próprio sistema produtivo. Se você tem muita dificuldade de obter um certo bem que só pode obter de maneira muito cara, e tem facilidade de obter outro bem de uma maneira barata, e tem outro país que tem a situação inversa, é racional que você troque com esse país aquilo que você produz de maneira barata por aquilo que ele produz de maneira barata, e os dois otimizam a operação do seu sistema econômica. Você otimiza a tua operação inserindo-se num sistema de trocas mais amplo.

Valter: Mas essas contas não fecham em escala internacional. Isso é economia clássica... Se todos fizerem isso, vai haver superprodução em todos.

César: Mas você está pensando em quê, em termos do capital?

Valter: Eu estou pensando em termos da produção mundial. Quando a gente fala qual é o horizonte mundial que se oferece, esse horizonte não pode ser o de todos os países produzirem tudo. Se todos fizerem isto, se todos os que podem fizerem isto que está sendo proposto aqui para o Brasil, o resultado concreto será um enorme desperdício de produção, porque a capacidade instalada de todos é mais ou menos semelhante...

César: Eu não estou entendendo qual é o eixo de discussão que você quer pegar, porque isso não está colocado no livro dessa maneira. O que a gente faz é uma crítica da inserção atual do Brasil no sistema internacional, que é uma inserção subordinada, que é desfavorável ao nosso povo, que nos impede de galgar melhores níveis na divisão internacional do trabalho, nos retira soberania etc. etc. E diz que nós queremos um modelo que vai expandir o mercado interno, que vai atacar a pobreza, a desigualdade etc. Mas nós dizemos que esse modelo, para otimizar a operação do seu sistema produtivo, estabelecerá relações com o conjunto da economia internacional.

Valter: Vou colocar de outra forma. Os EUA adquiriram uma hegemonia no mundo, neste século, que não é só política, militar. É ideológica. Venderam para o mundo inteiro seu modelo de consumo, seu modelo de produção, seu modo de vida, como sendo o adequado.
            A esquerda só vai conseguir ter hegemonia em escala mundial quando oferecer uma coisa dessa natureza Ou seja: oferecer um modelo de vida, um modo de produção, uma maneira de se relacionar que seja hegemônica.
            O modelo econômico não é internacionalizável, não é possível nem desejável que todo o mundo adote o modelo norte-americano. Vou te fazer agora a pergunta pela positiva: o modelo proposto aqui para o Brasil é adotável em todo o mundo, ele é internacionalizável, ele é passível de ser adotado em escala mundial?

César: Eu não sei exatamente qual é esta pergunta. Esse modelo é para as especificidades do Brasil...

Valter: Voce está me respondendo, de uma certa forma. Ele não se propõe a ser internacionalizável. A opção brasileira, por definição, ela não está se propondo a ser modelo para uma nova etapa mundial. Ela não é internacionalizável. A esquerda continua carente de um projeto internacional, de um Deus dostoievskiano. Os EUA conseguiram resolver o seu problema durante algum período e implantaram sua hegemonia em escala mundial, apesar de seu modelo não ser generalizável. A opção também não é, pelo que você está falando.

César: Eu diria que é uma tentativa de pensar um modelo que maximize o potencial da sociedade brasileira, e ao fazer isto este modelo contém em si elementos que são importantes para o conjunto da humanidade, elementos técnicos. Mas a gente não se propõe a apresentar um modelo para o conjunto da humanidade, isto com certeza não.

Valter: Na parte final do livro, é dito que o Basil, para ter uma inserção internacional boa para o país, precisa estar na ponta da inovação tecnológica...

César: Não de qualquer inovação. Ele precisa capturar posições que lhe garantam a capacidade de inovação, manter a capacidade de inovação.

Valter: Essa capacidade, num regime capitalista, advém das necessidades de dispensar mão de obra ou da competição intercapitalista. Se nós vamos trabalhar com o uso intensivo da mão de obra, não poderemos usar esse, que é um instrumento que ajuda na inovação tecnológica, pois afinal nós não queremos agravar o desemprego no Brasil. Aliás, esse foi um dos problemas dos países socialistas: abriram mão de usar este instrumento de inovação tecnológica que possibilita economizar mão de obra. Qual é o outro instrumento?...

César: O que aparece no livro é uma idéia combinada. O Brasil é um país grande demais e complexo demais para você definir uma idéia central, uma idéia força, e você dizer: “Toda a economia vai seguir essa idéia.”
            Os neoliberais fazem isso pelo outro lado. Eles se fixam na idéia da competitividade internacional, e aí destroem toda a economia que não tem competitividade internacional, o que é uma barbaridade, num país como o Brasil principalmente.
            A China tem tido êxito em parte por sua capacidade de ter estratégicas múltiplas. A China olha para o seu território e diz: “Quero ter competitividade internacional aqui, nesse setor, nesse segmento.” Mas ela olha para uma área agrícola de cidade média e diz: “Aqui eu não vou destruir essa teia de relações, embora não tenha competividade internacional, porque meu objetivo é outro.”
            Essa capacidade de ter múltiplos objetivos e trabalhar com múltiplas estratégias é que os países grandes têm que ter. No caso brasileiro, por exemplo, somos suficientemente grandes para pensar nosso mercado interno, as tecnologias absorvedoras de mão de obra e não abrirmos mão de disputar a ponta tecnológica em alguns setores, assim como não abrirmos mão de uma inserção internacional competitiva. Há segmentos da economia brasileira que são competitivos internacionalmente, e é importante que sejam para a economia nacional funcionar bem.
            O que eu acho é que a gente não deve reduzir a nossa estratégia a um elemento só. A gente deve trabalhar com a diversidade do país, para combinar esse conjunto de estratégias, e no caso da questão especificamente tecnológica o que a gente aponta é que não adianta sair por aí mimetizando o que os caras fazem, e também não adianta pensar uma situação de estagnação tecnológica. E a gente aponta algumas saídas para isso.
            É uma loucura que no mundo atual não se tenha feito a vacina contra as doenças parasitárias, que tecnologicamente é muito mais simples que a vacina contra a Aids, e se você pegar os recursos são da ordem de 100x1. E no entanto as doenças parasitárias matam 100x1 em relação à Aids, mas é doença de pobre, doença de terceiro mundo, não tem na Europa, não tem nos Estados Unidos. Você tem por aí um caminho que envolve pesquisa básica, biologia molecular etc., que o Brasil tem que assumir, porque o Brasil é um país de doença parasitária.
            Daqui a 20 ou 30 anos, o Brasil tem que ter uma estrutura do tipo da Petrobrás para cuidar da Amazônia. Seis mil zóologos, botânicos, especialistas em farmacologia, botânica... O Brasil tem que retomar a capacidade de fazer grandes opções, o Brasil perdeu essa capacidade, e isso pode te colocar na ponta tecnológica em vários segmentos, em agricultura, em piscicultura, em energia, em farmacologia. O Brasil tem esse potencial e isso é importnate, porque isso faz com que você seja um país capaz de disputar com o centro a inovação e portanto o perfil da estrutura produtiva do futuro.

Antonio: Você estava falando no início que uma das características do projeto é colocar a política diante da macroeconomia. As instituições brasileiras são impermeáveis ao povo. Como você vê a necessidade de uma reforma profunda das instituições?

César: Esse é outro problema que a meu ver o PT elide também, não consegue, fica engasgado. Eu acho que o livro A opção brasileira é a meu ver corajoso...
            Nós tivemos um êxito recente, na história política brasileira, de transitar da ditadura militar para uma democracia, mas assim como outros êxitos na história do Brasil, como a Abolição ou a República, esse compartilha com os outros o fato de que não resolveu radicalmente as questões que o suscitaram. Nós não transitamos na direção de uma democracia que generalize a cidadania: estacionamos no meio, numa democracia restrita. Democracia porque preserva certos elementos de qualquer regime democrático; e restrita no sentido de que os centros de poder permanecem ocultos e inacessíveis ao povo.
            Com um aspecto agravante: o de que o principal centro de poder hoje, no Brasil, está capturado por forças de caráter supranacional, e esse centro de poder negocia com o legislativo, que é o locus onde se articulam forças de caráter subnacional. Então você tem, dentro da elite brasileira, uma incapacidade de ter uma visão nacional das questões, porque você negocia de maneira supranacional ou subnacional.
            Além disso você tem uma democracia que desestimula a cidadania. Você tem deformações evidentes na composição da Câmara dos Deputados, na organização dos meios de comunicação de massa, e assim sucessivamente, e isso faz com que esse sistema político seja inadequado, tanto do ponto de vista de enfrentar a questão social como do ponto de vista de traçar as grandes estratégias do Brasil.
            Nós defendemos que se reabra a discussão sobre a reorganização do sistema político brasileiro, e nesse ponto achamos que a democracia restrita ao mesmo tempo coroa e frustra a luta contra a ditadura militar, da mesma forma como a república oligárquica coroou e frustrou a luta republicana, assim como a abolição da escravatura, do jeito que foi feita, coroou e frustrou a luta abolicionista.
            Sempre que isso ocorre, há um interregno em que a vitória ainda está valorizada demais e portanto aquilo não pode ser criticado. Hoje, por exemplo, criticar o sistema político brasileiro é uma certa heresia, porque ele é resultado do fim da ditadura, ele é uma conquista. Mas com o tempo,  seus limites vão ficando claros.
            Se você pegar o desempenho da nossa democracia na área social, ele é pior do que o da ditadura. É claro que você não pode fazer essa comparação linearmente, porque o desempenho da economia é diferente nos dois períodos. Mas você pode dizer que o Brasil se redemocratizou e dissociou sua democracia de qualquer perspectiva de justiça social crescente, o que já aponta um limite desta democracia, o que já a deslegitima parcialmente.
            Mas as forças políticas institucionais têm muita dificuldade de dizer isto, porque isso significa atentar contra as instituições de que elas participam. Nós dizemos isso, dizemos que isso é um tema central da reflexão, propomos alguns elementos de encarar esta questão e não afastamos a possibilidade de que esta transição, de uma democracia restrita para uma democracia ampliada, passe por um processo de ruptura.
            A idéia de ruptura não nos assusta, é uma idéia que faz parte da vida histórica de uma sociedade, momentos em que ela se reorganiza em tempo condensado.

Antonio: Essses elementos seriam de participação de tipo plebiscitário?

César: Também. Você tem que reformar os meios de comunicação de massa, de maneira que eles deixem de cumprir o papel fragmentador e isolador que eles constituem hoje, de transmissor da ideologia da clase dominante. Você tem que rever as bases da organização institucional do Estado brasileiro. O Estado brasileiro não tem mais um conjunto de instituições, nem que expressem a cidadania, nem que sejam capazes de ser portadores de um sentido estratégico para a nação. O Estado hoje está demolido. As instituições de planejamento foram desmontadas. A Universidade não funciona. Os mecanismos decisórios são feitos com base na composição de interesses supranacionais e subnacionais, completamente dissociados do povo, que é chamado de quatro em quatro anos a consumir políticos, como consome a bunda da Carla Perez no seu cotidiano.
            Esse sistema não é adequado para enfrentar os grandes desafios brasileiros, seja na área social, seja no grande desafio do desenvolvimento do Brasil. Nós não temos hoje mecanismos de tomada de decisão que estejam à altura desses dois grandes desafios: encarar a questão social e colocar o Brasil numa rota sustentada de desenvolvimento.
            É preciso recompor os mecanismos de decisão. Essa recomposição tem que transferir para o povo a capacidade não só de votar de quatro em quatro anos, mas de influir na condução dos negócios de Estado cotidianamente. Hoje em dia ou o povo se alheia da condução dos negócios do Estado, ou protesta contra alguma decisão do Estado, e quase sempre protesta de maneira ineficaz.
            É preciso construir um sistema que seja permeável à influência do povo, cotidianamente, que estimule a generalização da cidadania, que se baseie na cidadania, e não o contrário, como é hoje, que se baseia na não-cidadania.
            Essa transição da democracia restrita para a democracia ampliada não se dará de dentro para fora. Não é a democracia restrita que vai se reformando, e se transforma em democracia ampliada. Esse é um outro objeto que o PT tem dificuldade de pensar. Ele não consegue dizer isso com clareza. Não é a reforma interna da democracia restrita que produz a democracia ampliada. É um processo social, muito mais amplo, muito mais rico, que quebra os mecanismos que fazem dessa democracia uma democracia restrita e implantam outros mecanismos de democracia ampliada. Ou seja, é recolocar a idéia da ruptura e da revolução, associada a idéia da construção de uma nova institucionalidade. Não é para construir um regime de exceção permanente, mas a construção de uma nova institucionalidade democrática, que passa por esse momento de ruptura.

Valter: O texto diz o seguinte: “Não tememos o cenário de um golpe de Estado” porque “as forças armadas recusarão o papel de gendarme que as elites lhe reservam. Cedo ou tarde serão levadas a se posicionar ao lado do povo e da nação, como já o fizeram em outros momentos.” Esse tipo de afirmação é bastante recorrente na história da esquerda latino-americana; em vários momentos partidos importantes ou figuras importantes acreditaram que as forças armadas, num momento de conflito entre o povo e a elite, iam ficar do lado do povo. Só que elas ficaram historicamente do lado das elites. Qual a base histórica para reapresentar esse tipo de afirmação?

César: O parágrafo que você citou prossegue elencando uma série de condições novas...

Valter: Perfeito. Mas por que essas condições novas levam àquela afirmação? Por exemplo, está entre as condições novas o desmonte do Estado brasileiro. Pois bem, o Estado-Maior deu apoio à privatização da Telebrás.

César: O que não quer dizer que as forças armadas apoiem. É um cargo político.

Valter: Você então confia que existe nas forças armadas brasileiras, ou pelo menos num setor significativo delas, uma resistência ou uma capacidade de aderir a um projeto que possa inclusive conduzir ao socialismo e que passa por uma ruptura?

César: Eu estou convencido de que existe nas forças armadas um sentimento amplamente majoritário anti-neoliberal, um grande incômodo com o que está acontecendo hoje no país. Acho que nós pertencemos a uma geração que foi muito fortemente marcada pelo confronto direto da esquerda contra as forças armadas. Essa situação que nós vivemos não é generalizável para a história, do passado e do futuro. Não há uma maldição que faça com que até o fim dos tempos nós e as forças armadas tenhamos que nos confrontar em campos opostos. Ao contrário, eu digo que interessa muito às elites que essa situação se perpetue: forças armadas de um lado, esquerda do outro. Quando na verdade isso é produto de um processo histórico específico. As bases que conduziram a esse processo histórico, a idéia da construção de um poder nacional no sistema capitalista, que se desenvolvia e industrializava, o conflito ocidente-bloco soviético, o fortalecimento do Estado nacional no período desenvolvimentista, a idéia de que caminhávamos para níveis crescentes de integração social, de que a paz social dependia da continuidade daquele desenvolvimento, todo esse conjunto de idéias não é sustentável hoje.
            O Estado brasileiro se torna incapaz de manter objetivos estratégicos permanentes, entre os quais o da defesa do território, para o qual as forças armadas são profissionalmente investidas dessa função. O conflito se desloca para um conflito norte-sul, em que nós nos posicionamos no Sul, não só geográfica como geopoliticamente. O nível de desagregação da sociedade se torna maior e portanto a perspectica de futuro, mesmo do ponto de vista de um poder nacional, se torna menor à medida que as bases sociais internas se tornam mais frágeis. As elites brasileiras são cooptadas por um processo cosmopolita de acumulação de capital, de valores etc. Tudo isso está redefinindo o quadro.
            O que eu acho que seria o erro da esquerda brasileira seria não perceber esse potencial de redefinição, repito, de médio e longo prazo.

Valter: Mas no texto você fala com mais ênfase, “em outros momentos da história do Brasil [nos quais] as forças armadas já estiveram do lado do povo e da nação”. Quando isso aconteceu?

César: Em vários momentos!

Valter: Quais?

César: Em 1888, a escravatura já vinha num processo de enfraquecimento, mas o último tiro de misericórdia é dado quando o processo de fuga de escravos se acelera, as guardas nacionais não dão conta, a monarquia chama o Exército e o Exército não vai...

Valter: E depois disso?

César: Depois disso o Exército faz a República, faz um conjunto de revoltas oligárquicas contra a república velha...

Valter: Mas aí não são as forças armadas, mas um setor que se demonstrou militar e politicamente minoritário.

César: Mas foi um setor...

Valter: Mas você fala da instituição. Não há um certo exagero aqui?

César: Não, há uma ênfase clara, porque eu sei que esse é um tema para o qual as pessoas não estão sequer psicologicamente preparadas para enfrentar. É uma questão tabu, e é ruim para a esquerda, para a nação, que continue sendo um tema tabu. Nós fomos treinados para olhar a partir da questão social. Os militares foram treinados a partir da questão nacional. Esses dois olhares, numa fase de capitalismo financeiro dependente de projeto neoliberal, têm que se encontrar. Porque não há um projeto socialmente justo no Brasil que não tenha como ponto de Arquimedes uma idéia de nação e não há nação com o grau de exclusão social que está se construindo nesse país. Então é preciso que esses dois olhares estabeleçam pontos em comum.

Valter: Esse é um argumento lógico, que não diz nada sobre a possibilidade das forças armadas deixarem de cumprir um papel de gendarme. Por exemplo, o México, um caso mais escandaloso do que o Brasil: os Estados Unidos do lado, tomaram uma parte do território mexicano, houve uma revolução no México constituinte do imaginário nacional e as forças armadas são uma das forças mais repressivas da história americana.

César: Mas o México tem uma situação geopolítica muito diferente da do Brasil...

Valter: Mas e outros países? Em qual país do mundo capitalista, nessa etapa recente, as forças armadas se voltaram contra as elites a favor de um proejto nacional? Países com características semelhantes às do Brasil...

César: O que eu estou afirmando é que, nesta fase histórica que está se abrindo no Brasil, existe uma potencialidade nova, e que nós não podemos ficar presos ao confonto direto que nossa geração viveu tão intensamente com as forças armadas, a tal ponto de nos recusarmos a pensar esta possibilidade nova. Não é no sentido de que temos que fazer uma conspiração com as forças armadas. É possível construir um projeto no Brasil que some forças que têm na justiça social seu valor mais importnate, mais imediato, e forças que têm na questão nacional, no poder nacional, o seu valor central. Não é só possível como é necessário fazer isso. Na medida que nós apresentemos um projeto em que o Estado nacional recupere sua capacidade de cumprir funções permanentes, entre as quais a da defesa nacional, em que nós recusamos as limitações à busca de ciência e tencnologia sensíveis que os países centrais não difundem para a periferia, em que nós apresentemos a elevação do povo brasileiro à condição cidadã como a base para uma nova nação, nesse contexto será possível que se estabeleça uma relação diferente do que aquela que se estabeleceu no passado entre a esquerda e as forças armadas. As forças armadas tiveram um papel na industrialização do Brasil...

Valter: Claro que as forças armadas tiveram um papel na constituição da nação brasileira, com tudo que ela tem de bom e de ruim. Mas é fato histórico que as forças armadas cumpriram um papel histórico...

César: Mas esse contexto está mudando, esse contexto de guerra fria.

Valter: Acontece que não existia guerra fria antes de 1945 e as forças armadas cumpriram esse mesmo papel. O movimento tenentista foi abosrvido e seu setor radical foi expurgado. O imaginário do exército brasileiro foi construído na idéia da vingança contra os “traidores de 35”, que teriam matado os oficiais que estavam dormindo na cama. Me parece que aqui há um desejo, talvez até uma esperteza política, mas não tem consistência histórica a afirmação de que em outros momentos da história do Brasil o papel das forças armadas foi...

César: Foi progressista, eu afirmo isso.

Valter: Progressista é um termo impreciso. O que o texto fala, e que eu julgo inconsistente, é que as forças armadas estiveram “ao lado do povo, contra as elites”.

César: O que eu estou dizendo é que à medida que o povo brasileiro emerja como centro da questão nacional, e eu acho que é essa fase que está se abrindo na virada do século XXI..., e nosso povo nunca ocupou papel nem central nem minimamente importante na construção desta nação pois sempre foi usado na condição de mão de obra, usado e jogado fora de acordo com os ciclos de acumulação de capital, que não têm uma vinculação com a construção desta nação como tiveram com a de outros países da Europa e mesmo com os Estados Unidos. Nos países desenvolvidos, a acumulação de capital e a construção da nação  foi um processo mais integrado do que no Brasil. O povo brasileiro, por isso, permaneceu como uma massa externa a esse processo de construção nacional. Mas esse povo foi se constituindo e amadurecendo enquanto esse capitalismo hoje vive uma crise grave.
            Então a hipótese que a gente trabalha é a de que esse povo ocupe o centro nessa nova fase histórica. É aí que eu não dou de barato que as forças armadas se oporão a esse movimento. Eu não entrego para as elites esse trunfo...

Antonio: Para isso precisa ter ação política. Há alguma iniciativa para incluir setores das forças armadas na Consulta?

César: Não. Há discussão, por exemplo, deste texto, que desdobra um texto anterior que foi bastante discutido. O Lula tem vencido as eleições nas forças armadas, tanto em 1989 quanto em 1994.

Valter: Mas pelo que você fala da candidatura do Lula, isso não resolve a questão. O voto no Lula pode ser produto de um sentimento vago de oposição, que não é adesão a um projeto que assume explicitamente a ruptura...

César: Esse projeto nunca foi oferecido. Há um descontentamento difuso mas, é verdade, não há projeto. O que eu quero dizer é que nosso projeto não pode renegar que haja uma área de interesse estratégico comum.

Valter: Com os militares sim, com as forças armadas é que eu não entendo. Há uma diferença entre você dialogar e buscar atrair a instituição, e você buscar atrair setores, segmentos ou indivíduos que a compõem. É a mesma relação que nós mantemos com a burguesia: é possível você atrair segmentos ou setores, mas achar que você vai atrair o conjunto da classe é uma pretensão sem base histórica.

César: A história vai dizer, eu sou mais otimista que você. O nível de desagregação do Estado chega a um ponto em que o Estado deixa de ser capaz de cumprir suas funções permanentes e isso é grave. Assim como o médico chega ao hospital público e o raio-x está quebrado, e o cara diz “Porra, eu estudei seis anos e não consigo tirar uma chapa”; o cara que chega ao quartel e não tem munição para treinar tem uma vivência semelhante.

Valter: Há uma contradição no texto, um problema conceitual: o texto assume que houve uma “construção nacional” nesse período, com uma série de problemas, mas houve, e localiza isto na fase mais recente, o divórcio entre a classe que conduziu esse processo de construção da nação, “defeituoso”, e a capacidade dela continuar construindo a nação, e a partir desse momento se constrói a idéia de nação e anti-nação.
            Ora, usando esta chave de leitura, e voltando atrás na história, nós veremos o quê? Que todas as vezes em que a classe dominante deu passos no sentido de construir a nação, foram momentos também em que ela construiu a anti-nação, sempre para usar os termos do livro...
            Por que então vocês não trabalharam com a idéia de que, na história brasileira, confrontaram-se dois projetos nacionais diferentes? É só por razões propagandistícas?

César: O que você chama de dois projetos nacionais?

Valter: Um projeto nacional conduzido pela classe dominante; e outro projeto nacional, que sempre foi derrotado na história do Brasil, de conteúdo democrático e popular. Repito: por que vocês adotaram esta dicotomia de nação e anti-nação?

César: O que a gente diz é o seguinte. Você tem um processo tortuoso, injusto, longo e incompleto, de trânsito entre uma situação original – a colônia, a escravidão, o mercado externo como determinante, a fragmentação territorial – aquilo é o marco inicial do Brasil, que se insere como uma nação capitalista e dependente no sistema internacional.
            Essa sociedade, no entanto, desenvolve tensões que apontam no sentido do seu trânsito da colônia para o Estado nacional, da economia primário-exportadora para a indústria etc. Esse trânsito não foi incompatível com o capitalismo dependente durante um longo período, embora a prevalência do capitalismo dependente tenha definido a forma, um tempo, limitações para esse trânsito etc
            Dentro dele é óbvio que emergiram outros projetos, que nunca foram projetos dominantes.
            O que a gente afirma é que na conjuntura atual está cada vez mais difícil conciliar capitalismo dependente e construção da nação. Se estabelece um divórcio entre as duas possibilidades. Neste momento, ou a Nação opta por se manter capitalista dependente, e interrompe aquele trânsito de longo curso, ou opta pela continuidade da construção nacional, que tem que girar em torno de outro eixo, de outras classes sociais, de outro projeto econômico, de outro tipo de relação social.
            É claro que dentro do período anterior, outros projetos emergiram, mas não foram dominantes.

Valter: Mas isto significa que no período anterior, nação e anti-nação eram uma unidade...

César: Com a prevalência de um processo de construção nacional...

Valter: Isso significa que o projeto nacional dominante aqui no Brasil era nação e anti-nação. Aceitando os termos que estão postos, eu ainda não consigo entender por que é que não se trabalhou com a idéia de que havia dois projetos nacionais?

César: Quem seria o portador desse outro projeto?

Valter: Os movimentos sociais, as revoltas populares, o tenentismo, o Partido Comunista, a luta dos escravos... Mesmo que não fosse um projeto explícito, eles eram esmagados exatamente porque potencialmente indicavam noutro sentido.

César: É, mas você teve, principalmente ao longo do Império, revoltas regionais que nunca constituiram um discurso alternativo global.

Valter: Mas isso fazia delas o quê?

César: Fazia delas projetos incompletos que não ameaçavam o projeto hegemônico. Por que ele foi hegemônico? Porque ele conseguiu dar continuidade a um certo ciclo histórico.

Valter: Então o que nós vamos fazer agora é prosseguir uma tarefa que a burguesia não consegue mais fazer?

César: Não é prosseguir, é modificar o conteúdo desta tarefa.

Valter: Essa modificação não deveria levar a uma modificação dos termos? Por quê assumir o termo nacional?

César: Porque a própria burguesia nunca assumiu completamente esta noção.

Valter: Mas por que nós o temos que fazer? O clima de Copa mostra a facilidade que a burguesia tem de esvaziar, manipular os símbolos da nacionalidade.

César: Essa construção histórica chamada Brasil não esgotou seu potencial e tem uma contribuição a dar ao destino da humanidade. São valores importantes que a própria burguesia só manipula hoje no terreno lúdico. E mesmo assim está lá no uniforme da seleção o símbolo da Nike. Então nós temos todos os motivos para..

Valter: Há passagens que dizem assim: “Na geração dos nossos pais” havia mais otimismo com o futuro. Mas a geração dos nossos pais pegou a ditadura militar. Naquela fase, então, havia otimismo porque naquela fase o discurso nacional estava combinado com a construção da nação? Eu queria que você desenvolvesse mais isso.

César: Se você não recupera a tua auto-estima, a tua identidade, você não é capaz de criar um ambiente cultural em que as grandes idéias, as grandes alternativas possam vicejar. O ambiente hoje no Brasil tende a mediocrizar todas as decisões, elas nem se colocam porque o pensamento é medíocre.
            Os relatórios técnicos diziam que não havia petróleo no Brasil, mas nós criamos a Petrobrás. Aquele fundo de auto-estima é fundamental para você se lançar em aventuras que poderiam ser contestadas num discurso mais chão.
            Hoje em dia, se você disser: “Vamos criar a Petrobrás da Amazônia!”, sabe o que vai acontecer? O Malan vai pedir para consultar o FMI. O ministro do Planejamento vai dizer que não tem dinheiro no orçamento. Todas as grandes idéias morrem no nascedouro porque o ambiente cultural minou a auto-estima a tal ponto que você não consegue pensar grande nem se considera capaz. O primeiro obstáculo é o suficiente para te fazer recuar e se não há obstáculo, você imagina um.
            É preciso mudar esse ambiente cultural do país, para que o país volte a se recolocar grandes opções, inclusive para pagar os custos da transição. A transição deste modelo para outro envolve custos, envolve fricções com o sistema internacional. Nós só conseguiremos fazer isso se tivermos um imaginário alternativo muito claro, que nos devolva a auto-estima e a identidade. Essa é a nossa preocupação central...

Valter: Mas assim a gente não corre o risco de mistificar ou mitificar o passado? Por exemplo: a bandeira e o hino do México ou da França foram produtos de grandes lutas, de revoluções. Nosso hino, nossa bandeira, os símbolos nacionais brasileiros são construções artificiais, não são produto da luta de massas, de grandes rupturas históricas.
            Não te parece que há passagens na Opção brasileira, que do ponto de vista histórico são exageradas, são um pouco uma tentativa de dar um sentido heróico a esses símbolos?

César: O que a gente afirma é que, no Brasil, três grandes etnias se encontram, desenraizadas aqui, e esse destino de construir um povo novo, um povo único, não é o único destino possível. Olha para o resto do mundo. Você tem muitas situações em que não foi esse o destino: a divisão entre diversas nações; a participação numa mesma nação mas com grandes divisões internas.
            A gente quer mostrar que, apesar de todo um processo de dominação cruel que houve no Brasil, há um processo que acabou se afirmando ao longo do tempo, que é a construção de um povo único, dotado de identidade cultural e uma composição étnica crescentemente miscigenado.
            A gente não pode ter uma relação negativista com o passado. Se a gente olhar para o passado e disser “Foi tudo uma merda”, nós somos uma merda, e quem é uma merda não constrói o futuro.
            Toda relação com o passado é uma relação seletiva, de uma certa maneira, de qualquer nação com seu próprio passado. Todas as nações estabelecem um certo início mítico para si próprio. A construção do povo francês, do povo alemão, a visão dos americanos sobre história americana, contêm, evidentemente, elementos míticos. Não quer dizer que sejam mentirosos, quer dizer que você olha para o passado e faz uma leitura que te permita olhar para o teu futuro. Todas as leituras são assim.
            A nossa leitura do nosso passado não pode ser aquela que faz terra arrasada da história e do nosso povo, porque isso destrói a nossa capacidade de pensar este povo como agente de nosso futuro. É preciso olhar com um mínimo de realismo, é uma história de massacre, de dependência, de exclusão, mas é uma história também em que se vão constituindo elementos que nos permitem ir pensando o futuro. Se nós não tivermos esses elementos, a gente não pode pensar o futuro.

Valter: Mas qual é a diferença entre isso e o patriotismo, o nacionalismo radical, que estiveram presentes na história do Brasil? O socialismo propriamente dito no Brasil é recente e nunca teve hegemonia nem na classe trabalhadora. Os tenentistas defendiam uma reforma política, mas tinham um sentimento nacional muito forte. O partido que tinha hegemonia de massa na classe trabalhadora nos anos 50 era o PTB, e seu melhor setor era nacionalista radical. Os melhores traços da sociedade brasileira tiveram sempre um peso nacionalista radical. Qual a diferença entre esse nacionalismo e...

César: Não acho nem que eu esteja falando em nacionalismo. Outro dia descobri surpreso que houve escravidão negra na Argentina. E perguntei para um argentino: “Cadê os negros?” Disseram para mim que no século XIX, quando houve a decisão de acabar com a escravidão, mataram todos os negros e tentaram fazer uma europazinha na Argentina. Sobraram uns grupinhos que fugiram para a Patagônia.
            O fato do destino do Brasil não ter sido esse é importante ou não é? Nós poderíamos ter nos dividido em diversas nações, mas não nos dividimos. Poderíamos ter constituído segmentos étnicos e culturais com muito pouco contato entre si, que não se reconhecessem como portadores de um mesmo sentido de futuro, mas não foi assim. Hoje você vai no Brasil inteiro e todo mundo se reconhece como brasileiro. Nós poderíamos ter massacrado fisicamente os negros, não massacramos. Isto tudo não é indiferente, isso tudo são elementos reais da nossa história.
            Quando a gente quer pensar o futuro, a gente tem que buscar esses elementos que nos permitem buscar um futuro diferente, que são reais, não são mistificação. Nós temos um povo miscigenado, que construiu unidade linguística, que construiu identidade nacional, que manteve unificado um grande território, que foi capaz de enfrentar desafios como o da modernização industrial, que formou quadros técnicos, que desenvolveu potencial cultural expressivo. E quando eu digo isto, você diz: “Isso é nacionalismo.” Não, isso não é toda a nossa história. A nossa história tem dominação, tem exclusão, tem dependência, tem mediocridade, mas se eu só contar a história da exclusão, da dominação, eu não estou constituindo o imaginário: também estou fazendo uma seleção, todo mundo faz uma seleção, mas essa seleção não me permite construir um imaginário que me dê base para construir meu futuro. Então eu tenho que olhar o meu passado, sem esconder esses elementos todos, mas buscando neles aquilo que me permita construir o meu futuro.
            A construção do povo brasileiro como o centro da nação, esse processo que amadurece esse povo, que é capaz de ser um povo novo e um povo nação no século XXI, é um elemento importante da história do Brasil e que não está presente na América espanhola. Não há nenhuma leitura do passado que seja unívoca, mas nossa leitura de nosso passado não pode decantar apenas elementos negativos, que façam terra arrasada do nosso passado, porque isso impede que a gente construa a auto-estima necessária para construir nosso futuro. E esses processos que a gente aponta no livro, que nos dão sentido de futuro, são processos reais da sociedade brasileira.
            Nós não eliminamos os negros, nós mantivemos o território unificado, nós construímos unidade linguística, nos construímos identidade nacional. E isso aqui eu vou pegar, juntar de outra maneira e dizer que isso está presente no meu futuro também.

Antonio: Como o PT tem encarado a Opção brasilieira?

César: As lideranças públicas do PT têm encarado em silêncio. Agora, nas reuniões que a gente faz, de 200, 300 pessoas, tem sempre muita gente do PT.

Valter: O que é que a gente deve rejeitar do Celso Furtado e do Caio Prado Júnior?

César: O Celso compartilhou com a geração dele uma crença, respeitável e bonita, que não é simplória, de que o processo de industralização por si só conduziria, por gravidade, à superação do subdesenvolvimento. A idéia dele se centrou muito na industrialização e no crescimento econômico, e que o conjunto de consequências desse processo modernizaria o conjunto da sociedade.

Valter: Mas não é essa a idéia que de certo forma você sustenta quando insiste tanto na necessidade de elevar a produtividade média do trabalho, que era uma idéia tão cara ao Celso Furtado? Não era a partir dali que ele imaginava que ia se produzir de um lado elevação salarial e de outro...?

César: Essa idéia é correta. Aliás, eu não compartilho de uma visão negativista do trabalho da Cepal. A economia política da Cepal é um esforço respeitável, um esforço de pensamento respeitável, que deu frutos, é preciso conhecer esta escola de pensamento. Mesmo dentro da esquerda, a expressão cepalina ganhou um sentido pejorativo. Para mim não tem esse sentido. Eles tem elementos centrais que continuam vigindo. Agora, havia esse otimismo com o processo industrializador, com o qual a gente não compartilha neste livro.
            Existe um capítulo da Opção brasileira que faz uma crítica explícita a essa visão. A gente tenta mostrar que é uma ilusão, embora respeitando aqueles pensadores.

Valter: E o Caio Prado?

César: Ele legou uma obra histórica importante. A idéia de uma nação inconclusa e a idéia da necessidade de rompimento do caráter capitalista dependente, ele desempenhou um papel importante ao combater a visão errada do PCB, que trabalhava com a matriz “feudalismo em trânsito para o capitalismo”. O Caio Prado entra propondo outra matriz para o entendimento da sociedade brasileira, a de que nunca houve feudalismo, e sim capitalismo dependente, e o trânsito portanto é do capitalismo dependente para o socialismo. Isso tem vigência hoje.

Valter: Esse é o elogio, qual é a crítica?

César: O Caio fez um trabalho de historiador. No livro mais contemporâneo dele, a Revolução Brasileira, ele certamente subestimava a capacidade de modernização do capitalismo dependente. Ele aponta uma idéia estagnacionista no livro, ele subestima a capacidade de um novo ciclo de desenvolvimento capitalista, mas esses são problemas que as pessoas cometem, quem pensa em tempo real...

Valter: De novo, o socialismo. No início do texto, você fala que o debate nacional empobreceu, e não fala do impacto que teve a crise do campo socialista nesse empobrecimento do debate. No final, você diz que se perguntarem, esse projeto é de natureza socialista. Porque você não dá ênfase à crise do socialismo nessa mutação do debate nacional? Afinal, uma parte da esquerda participou desse debate na perspectiva do socialismo, não havia uma discussão descolada entre o projeto nacional e o socialismo. Outra coisa: por que em trechos onde, há 10 ou 20 anos nós escreveríamos “igualdade”, você escreveu “solidariedade”? Por que a palavra “socialismo”, como a palavra “igualdade”, são tão pouco presentes no texto?

César: Talvez a idéia de igualdade possa remeter a uma idéia equivocada, de uma pasteurização, de que a sociedade que nós queremos é uma sociedade de pessoas iguais, no sentido de suas opções ideológicas etc., quando não é isto.
            O que a gente quer é estabelecer uma base comum de dignidade material, cultural, espiritual, a partir da qual as pessoas vivam a sua dignidade. Talvez por isso, de maneira inconsciente, eu tenha optado por uma idéia de solidariedade, a construção de uma solidariedade fundamental, que é a base das relações, que permite portanto o florescimento de uma desigualdade no plano cultural, no plano dos costumes, no plano da diversidade da vida social.
            A idéia da igualdade no socialismo tradicional ficou muito vinculada à idéia de uma homogeneidade, e numa sociedade moderna não me parece correto imaginar o futuro dessa maneira. Os comportamentos, as opções serão diferenciados.
            Eu quis evitar que o debate tendesse a que uma defesa abstrata do socialismo fosse contraposta a um ataque abstrato ao socialismo. O objeto do debate, desde o início, é a sociedade brasileira. E isso aparece na própria construção estrutural do texto, pois ele é construído em cima da sociedade brasileira. E a tese que no fim vai se explicitar de maneira mais clara é de que a continuidade do desenvolvimento dessa sociedade passa pelo fim do sistema capitalista dependente.
            E aí a gente também toca no assunto que a esquerda tem tido dificuldade de tocar: utiliza-se ou não o planejamento nesta economia? O texto defende o planejamento de forma combinada com elementos de mercado, mas defende o planejamento, e então a gente vai construindo uma idéia de uma sociedade socialista. Não é um parti pris para nós, não é um ponto de partida, não é uma coisa que paira de maneira abstrata...

Valter: Não é o “Deus” dostoievskano. O Deus é o Brasil?

César: Não, porque na verdade a idéia é de que as duas coisas no momento histórico atual se fundem.

Valter: Um país onde predomine a opção brasileira é um país socialista?

César: Sim, porque você vai alterar as relações de financiamento, a estrutura agrária, os meios de comunicação de massa, o papel do Estado e do planejamento, a inserção internacional. Imaginar que a burguesia brasileira vai fazer tudo isso mantendo o sistema capitalista no Brasil é desconhecer toda a história do Brasil, o que é o Brasil. Isso só será possível se outro bloco social estiver a frente, e este bloco social tem o eixo no mundo do trabalho, que passa a comandar a economia, e isso é o fundamento da idéia do socialismo, você deslocar o poder para os grupos sociais que estão no mundo do trabalho e da cultura.

Valter: Outros países do mundo se constituíram como nação e a maior parte deles é capitalista.

César: Eu admito isso.

Valter: Existe a possibilidade do Brasil se constituir como nação...

César: Existe a possibilidade do capitalismo não ser incompatíver com a construção de uma nação desenvolvida, mas essa possibilidade não se deu no Brasil.

Valter: Os trotskistas terão todo o direito de criticar esse projeto como socialismo num só país ou não?

César: Não, porque é tão evidente o impacto internacional de um projeto socialista no Brasil, que isso até independe de nós. Ele se desdobra num projeto continental, numa primeira instância, porque nós somos um país líder no continente. E o impacto é muito grande num mundo em que você tem 15 ou 20 países intermediários se desestruturando.

Valter: Um tema que eu senti fraco, tocado lateralmente, é o tema da redução da jornada de trabalho.

César: É porque na verdade não entramos muito nas medidas.

Valter: Mas a redução da jornada não é apenas uma medida. Você ter uma sociedade onde as pessoas tenham tempo livre, o máximo de tempo livre possível, não é apenas uma medida, é uma questão relativa ao futuro da sociedade.

César: Bem, a idéia da redução da jornada de trabalho é uma idéia muito cara, talvez devesse ter tido mais ênfase, talvez o motivo de não ter mais ênfase tenha sido esse, de não ter descido a medidas específicas. Mas talvez você tenha razão, isso é uma medida mais geral, é um compromisso até cultural.

Valter: Para você ver, o PT assume a redução da jornada de trabalho...

César: Assumir que você vai reduzir a jornada de trabalho é assumir que a sua economia vai perder competitividade com o sistema capitalista internacional.

Valter: Não necessariamente, não se você aumenta a produtiviade. Eu te respondo o que você me respondeu antes, tem uma variável importante que é a produtividade.

César: Eu digo isso numa boa. Porque numa economia capitalista, e eu não quero crer que o PT a sério esteja pensando em mudar a natureza da economia brasileira, não é racional diminuir o tempo de trabalho. Isso implica aceitar que você está perdendo competitividade no mundo de hoje. É mais competitiva a indústria que aumenta a jornada de trabalho, desemprega e diminui o salário. Então a redução da jornada é uma idéia boa porque mexe em fundamentos, não é uma idéia asséptica, você tem que aceitar consequências de sua idéia, de que o fetiche da competitividade internacional...

Valter: Toda a Opção brasileira está alicerçada, uma peça fundamental do texto é a idéia de elevar a produtividade média do trabalho. Você está dizendo agora que o efeito da redução da jornada de trabalho sobre a produtividade média do trabalho é danoso, sob o capitalismo.

César: Não, estou falando que o efeito sobre a produtividade microeconômica é danoso, não necessariamente sobre a média.

Valter: Mas a maioria dos países capitalistas avançados, com exceção do Japão e da Coréia, tem jornadas reduzidas e sua produtividade é maior do que a dos países atrasados.

César: Mas o ponto de partida deles é outro. O que eu estou dizendo é que no capitalismo brasileiro hoje, tal como ele está estruturado, esta proposta de redução da jornada é boa até porque ela mexe em fundamentos do sistema, não é uma proposta na margem. Se esse sistema se volta para elevar a produtividade microeconômica de alguns segmentos, tendo em vista a competitividade internacional, esta proposta é irracional. Se o PT coloca isso no seu programa, e não está a sério comprometido com uma mudança qualitativa da economia nacional, isso não vai prosperar. Talvez por isso essa idéia devesse ter sido mais trabalhada no livro, até porque ela mexe com fundamentos.

Valter: Você não faz nenhuma concessão à globalização como ponto de apoio para a construção de uma sociedade nova?

César: Nessa globalização que está aí, você não está globalizando o mundo do trabalho, o mundo da cultura., você está internacionalizando um certo padrão cultural, você não está globalizando a diversidade cultural da humanidade, você não esta liberando a circulação da mão de obra, você não está ampliando a cidadania dos que não são cidadãos. Esse é o processo de globalização do capital. Pode ter um ou outro elemento periférico de que você possa falar, mas é periférico. Hoje, você globaliza o capital e desestrutura um conjunto de estruturas para poder globalizar o capital.

Antonio: A gente deve responder hoje à globalização hegemonizada pelos neoliberais, com um não à globalização, ou com uma globalização hegemonizada pelos trabalhadores?

César: Eu acho que a gente deve responder com um projeto nacional alternativo, ou seja, com uma reorganização do espaço que a gente pode operar com eficácia, e esse projeto nacional alternativo deve ter força, fôlego suficiente, para se inserir a médio e longo prazo num projeto internacional maior e mais complexo. O que eu não quero é ficar me colocando a dicotomia entre a impotência e a onipotência. Ou eu mudo o mundo, ou eu fico aqui reclamando que o mundo tem que mudar. É preciso haver um espaço eficaz de intervenção.

Valter: Outros que mudaram o mundo não se recusaram a propor alternativas para o mundo.

César: Os bolcheviques não seriam nada se não ocorresse a revolução russa.

Valter: Mas eles não teriam dirigido a revolução russa se não tivessem na cabeça fazer uma revolução internacional.

César: Que não houve também.

Valter: Muitas coisas importantes não acontecem mas são importantes para impulsionar...

César: O espaço operacional, de ação política eficaz, que deu a eles uma plataforma para ser uma referência mundial, foi o espaço russo. Eles seriam um clube de exilados, como houve centenas...

Valter: Mas você concorda que um elemento decisivo para eles terem conseguido hegemonia sobre os revolucionários foi a posição deles frente à guerra mundial. Eles adotaram uma posição profudamente anti-nacional, para os padrões da época, que foi a posição do derrotismo revolucionário. Eles tinham uma posição sobre a questão da guerra que era a partir de uma lógica oposta à lógica dominante da época, e que não era necessariamente a lógica dos intereses da Rússia-nação.

César: Mas era a lógica do povo russo...

Valter: Tornou-se a posição do povo russo depois de três anos de guerra. Os bolcheviques, já no início da guerra, ao contrário de Plekhanov e outros mencheviques que apostaram na guerra, assumiram uma posição derrotista, e a partir desta posição internacionalista consequente se posicionaram bem na luta nacional. Eu não aceito a dicotomia que você propõe. Às vezes, para você ter um projeto nacional com viabilidade, é fundamental ter um projeto internacional. São poucas as revoluções exitosas que não tenham feito essa combinação, entre ter um projeto nacional e ter um projeto internacional.

César: A revolução russa foi muito influenciada pelo cenário internacional por causa da guerra, que foi decisiva para a criação da conjuntura revolucionária, que desagregou o exército, piorou as condições de vida da população e gerou uma bandeira que só os bolcheviques tinham a ousadia de sustentar naquele momento. O que eu quero dizer é que se eles não operassem no espaço nacional russo, seriam um clube de exilados.

Valter: Mas essa é uma discussão que não existe, sobre isso nós temos acordo.

César: O que eu sinto é que tem uma esquerda olhando para o asfalto da rua, small is beautiful, a municipalidade, o orçamento participativo é um barato, muda tudo, este é que é o grande espaço da política, fazer boas prefeituras. Tem outra esquerda que diz: “Crise internacional do capitalismo e socialismo.” E eu acho que essas duas visões condenam a gente a uma incapacidade de simultaneamente nos transformarmos com dimensão histórica e operarmos com eficiência. Porque eu posso transformar um pouquinho a nível local, fazer grandes teorias no terreno internacional, mas história eu faço no sistema brasileiro.

Valter: É óbvio que a classe trablahadora só vai atuar no terreno internacional para valer na hora em que ela virar poder de Estado, e para que ela faça isso, tem que atuar no terreno nacional. Então a discussão em que você está insistindo não é a discussão existente entre nós. A tese é a seguinte: para atuar com eficácia e com razão política no cenário nacional, principalmente nesta conjuntura internacional que a gente vive hoje, é importante ter também um projeto internacional mais ou menos claro.
            Só como metáfora, peguemos o caso do subcomandante Marcos. Eles têm operado uma engenharia muito complicada: eles atuam num espaço subnacional, defendem um projeto nacional, a base social deles é étnica, mas eles fazem uma nítida articulação internacional. Então eu vejo neles maior audácia do que no que você está me expondo.

César: É que o México não tem alternativa de curto e médio prazo, o Brasil tem. Há uma impotência nessa situação.

Valter: Então você acha que a audácia deles de tratar do mundo é produto de sua impotência nacional?! Está clara a sua posição. Vamos a outra questão: esse projeto da Opção brasileira me parece que tem similitudes com aquilo que vem fazendo o PC chinês. A ênfase na construção do mercado interno, na integração nacional, no aproveitamento das potencialidades próprias, uma inserção no mundo sem perder o controle sobre a economia nacional, a idéia de ter um projeto socialista mas de fato estar construindo a potência cultural, econômica e social nacional, ter uma idéia de conflito com a ordem econômica internacional mas sem um conflito frontal. Eles não se propõem a derrotar a ordem, eles querem alterá-la, não é uma lógica cubana anos 60. Queria que você falasse da China.

César: Até onde eu posso ver, a China tem evitado alguns dos processos que conduziram ao colapso da URSS. Ela não está disputando o centro do sistema a curto e médio prazo. Ela se santuarizou militar e eocnomicamente, no sentido de que ninguém a destrói. Ela é inexpugnável. Construiu um sistema econômico que não é desestabilizável de fora para dentro. Por outro lado, ela não está agressivamente disputando com os Estados Unidos o centro do sistema mundial. Ela tem demonstrado uma flexibilidade no tratamento de questões, como por exemplo a utilização do mercado, bastante diferente daquela que houve na URSS a partir da coletivização. Agora, a China é uma sociedade muito complexa, por isso não faço grandes afirmações. Ela tem tido êxitos espetaculares, um país de 1 bilhão de habitantes que cresce 10% ao ano durante 15 anos não é pouca coisa. Você dobra o seu produto a cada sete anos. Por outro lado, os níveis de desigualdade vão aumentando, começa a ter desemprego, inflação. É uma experiência em curso, que eu observo com muita cautela, não conheço o suficiente para poder fazer grandes afirmações.

Valter: Tem uma passagem do texto que afirma que os Estados Unidos estão vivendo uma nova fase de hegemonia internacional. Essa idéia está ligada à idéia de que o Brasil não deve disputar o centro?

César: O nosso projeto seria mal tolerado pelos EUA, porque nós estamos vivendo no hemisfério deles, e eles sabem do potencial do Brasil. Eles não querem que nesse hemisfério surja um agente geopolítico, econômico e independente com o peso que o Brasil tem. Nesse sentido, nossa trajetória futura conterá elementos de negociação e de conflito com os EUA. Agora, qual vai ser a relação, a gente não sabe. O que eu sei é que nós, para entrarmos nessa nova fase, teremos que definir claramente que a soberania não tem preço. Se nós tivermos um limite, os Estados Unidos bancam. Se tiver limite, eles pagam. Nossa única chance é que não tenha limite. Vão nos isolar, isolem. Vão nos atacar, ataquem.

Valter: Tem duas passagens no texto que entram em contradição com o que você afirmava na tua polêmica com os verdes. Numa você diz que os solos disponíveis para agricultura já são fator escasso no mundo; noutra passagem você fala de outros recursos naturais que tendem a escassear, o que proporcionaria uma vantagem comparativa para o Brasil. Mas essa escassez não é relativa?

César: No longo prazo, sim. No curto e no médio prazo, o Brasil tem vantagens evidentes. A idéia é de que estamos subutilizando nossa capacidade produtiva.

Valter: É essa história que a demanda por alimentos vai superar a oferta?

César: É que as projeções para 20, 30 anos, prevêem a entrada da China como compradora no mercado mundial e isso desequilibra, a médio prazo, esse mercado. O Brasil pode ser um país que tenha vantagens comparativas no contexto de desequilíbrio agrícola internacional.

Valter: Tem várias passagens no texto em que você diz que “seja qual for o critério adotado, a pobreza e a desigualdade existentes no Brasil são incompatíveis com a capacidade produtiva que nossa sociedade já adquiriu”. Tem várias passagens assim que são uma crítica moral, não uma crítica econômica. Do ponto de vista do capitalismo, essa incompatibilidade não existe. Esse tipo de crítica moral atravessa boa parte do texto: o Brasil não pode ser do jeito que é. Isso não tem a ver com a sua idéia de que a burguesia não será capaz de dar o salto e nos englobar? Falo isso porque a bandeira da nação tem sido muito agitada nos últimos 10, 15 anos, mas em 90% dos casos tem sido agitada por forças conservadoras e até regressivas. Qual é a tua base de segurança, além da moral, para achar que essa bandeira da nação não pode ser instrumento de um setor da burguesia brasileira que faça como Vargas em 30?

César: Eu acho que o tipo de dependência que se estabelece hoje, entre a economia brasileira e a economia internacional, é muito diferente daquela que se abriu no ciclo Vargas. Ali você tinha a afirmação da hegemonia americana através da exportação de capitais e da exportação de filiais de empresas multinacionais. Então a dependência naquele contexto não era incompatível com o processo de desenvolvimento das forças produtivas no território nacional. E hoje nós estamos numa dependência basicamente financeira. De tal maneira que a dependência hoje não aponta, não está apontando, para um um novo surto de desenvolvimento das forças produtivas, a não ser em certos segmentos, mas isso não estrutura o conjunto do país.
            Pode ser que eu esteja errado, mas há uma mudança para pior no caráter da dependência, hoje em relação aos períodos Vargas/Juscelino. O Vargas jogou com muita habilidade nas brechas do sistema internacional... O Brasil tem essa característica, sabe jogar nas brechas do sistema internacional para obter vantagens como sócio menor. Juscelino jogou, o Vargas jogou, a ditadura militar jogou, hoje o jogo está mais difícil, até porque o Estado nacional está mais desmontado também, nós perdemos instrumentos, e além disso o sistema internacional não está aberto a essa dependência industrializante, ele se vinculou a uma dependência financeira... Isso faz com que me pareça que não está pintando um projeto nacional-desenvolvimentista dependente na periferia. Ao contrário, as economias da periferia estão todas desarticuladas pelo centro do sistema, pela retomada da hegemonia do sistema, por essa massa de liquidez internacional vagabunda...
            Sobre a crítica que você chama de moral, eu acho que a gente tem que recuperar a idéia da esperança, da viabilidade de nosso projeto, tentar mostrar que não é verdade que a gente está condenado a esta situação. A pobreza, a miséria no Brasil hoje é uma excrescência... Esse país não pode ter 10 milhões de pessoas passando fome. Se houver um mínimo de organização, de solidariedade, de capacidade de previsão, de planejamento, de seriedade no trato de seus recursos, há condições de eliminar a fome. Com isso você retoma a idéia da esperança.
            Então eu acho que essa crítica deve ser feita, uma crítica que chama ao coração das pessoas... O Brasil tem potencial para viver um novo surto de crescimento, e esse novo surto de crescimento pode estar acoplado a uma solução relativamente rápida de um conjunto de problemas básicos da população. Talvez muitos países africanos não tenham essa possibilidade, mas nós temos.
            Tomar para nós a bandeira da dignidade de nossa sociedade, da esperança, é fundamental para a gente recompor a nossa auto-estima, o que vai nos permitir pensar grande, pensar em recolocar as questões grandes da história do Brasil.
            O que os governos brasileiros têm feito nos últimos anos senão gerenciar o curto prazo? Eles não conseguem ver longe...

Valter: Não seria mais adequado dizer que eles vêm longe, mas de outro ponto de vista de classe?

César: Talvez para você, que é um marxista ortodoxo empedernido, mas para um público mais amplo...

Valter: Mas eu sou favorável a oferecer nosso biscoito fino para um público mais amplo. Acontece que o texto todo está carregado dessa idéia. Não é que eles não tenham um projeto, eles vêm amplo...

César: O projeto deles é um não-projeto.

Valter: O projeto deles é um projeto de classe, diferente do nosso. Acontece que a linguagem é nacional.

César: Acontece que o projeto deles é um não-projeto para o conjunto do país.

Valter: Não, é um projeto para parte do país. Acontece que a chave de leitura que você se propôs a seguir, ao longo do livro, te leva em vários momentos a formular esse tipo de frase que é um equívoco. A classe dominante brasileiro vê longe, ela tem um projeto de longo prazo, que é o de uma sociedade de 80% dos excluídos, é um projeto de classe diferente do nosso.

César: Não há diferença no que nós estamos dizendo. É claro que é um projeto, mas é um não-projeto para a maioria da população, desarticula a possibilidade da grande maioria da população vivenciar níveis crescentes de progresso material, cultural e espiritual. Então a fase fundamental dele é a de ser um não-projeto.

Valter: É que a minha hipótese é de que a burguesia brasileira é capaz de assumir um projeto nacional de classe. No mundo, a globalização bateu no teto. Começa a haver um processo de fechamento das economias nacionais, para se protegerem. Então essa onda de nacionalismo vai se generalizar, em todas as classes sociais, nas burguesias que podem e as que não podem. No nosso caso, se a gente construir todo um discurso estruturado em torno da idéia da nação, eu posso estar preparando as pessoas para serem hegemonizadas pelo adversário. Eu preferia construir o mesmo projeto, com outra matriz de leitura, que imunizasse mais gente. Por que que a esquerda brasileira foi tão facilmente hegemonizada ao longo desse ciclo 1930/1980? Porque a matriz básica da proposta da esquerda era a do desenvolvimento e da industrialização, ou seja, estava no terreno do adversário. Se você pega todos os grandes teóricos de esquerda nos anos 40, 50, 60, o que eles demandaram, a burguesia conseguiu fazer. Se você tiver razão, o problema não vai se colocar. Se eu tiver razão, o problema vai se colocar, e toda essa exaltação dos valores nacionais vai estar adubando terreno.

César: Eu não acho que a gente faz exaltação dos valores nacionais, não, a gente apenas deixa claro que o espaço estratégico de nossa política é nacional. Nossa elaboração não é toda construída em torno dessa chave de leitura, ela tem nuances.

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