terça-feira, 13 de setembro de 2011

Debate entre comunistas


O texto abaixo é o capítulo 4 de uma dissertação de mestrado, não publicada em formato de livro, intitulada Comunistas do Brasil: a formação do PCdoB e defendida no ano 2000.

Aqui, analisaremos os quatro temas que emergiram da resenha bibliográfica feita no segundo capítulo, a saber: o "stalinismo", o "maoísmo", a "via pacífica" e a análise da realidade brasileira.

O debate sobre o "stalinismo"

         O stalinismo foi hegemônico no movimento comunista internacional, de meados dos anos 20 até meados dos anos 50 ((tendo como marcos, respectivamente, a derrota da "Oposição de Esquerda" no PC Soviético e a morte de Josef Stálin, em 1953).
         No final da Segunda Guerra Mundial, o stalinismo chega ao seu apogeu e inícia o seu declínio. Apogeu derivado principalmente da expansão do chamado campo socialista. Declínio devido as tensões internas à URSS e entre esta e os demais países do "campo socialista".
Em 1953, pode-se dizer que o stalinismo --tal como existira até então-- já tinha seus dias contados. A morte de Stálin apenas acelera o processo, que atinge seu clímax em 1956, durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, onde Nikita Kruchev, o secretário-geral do Partido Comunista da URSS lê um relatório “secreto” em que faz duras críticas aos métodos adotados pelo falecido secretário-geral.
O relatório é publicado pela imprensa norte-americana e reproduzido, no Brasil, pelo jornal O Estado de S. Paulo. Passado um momento inicial, em que se tentou negar sua veracidade, o efeito é devastador.
A imprensa do PCdoB começa, à revelia da direção, a discussão sobre o Relatório, que logo se torna um debate sobre os princípios, a estratégia, a tática e a concepção de partido vigentes no movimento comunista internacional, e principalmente brasileiro.
Alguns meses depois, Prestes em pessoa toma a iniciativa de “por ordem” no debate. Os críticos mais veementes são afastados ou se afastam. Em 1957, os dirigentes supostamente identificados com práticas “mandonistas” são afastados do Politburo (comissão política central do Partido) e do secretariado do Partido Comunista. Forma-se um novo núcleo dirigente, este como o anterior ao redor de Prestes.
Grande parte dos dirigentes afastados participará da dissidência de 1962. Isto –somado ao fato do próprio PCdoB vir a reivindicar o "legado de Stálin"— ajudou a consolidar a tese segundo a qual o PCdoB seria uma “dissidência stalinista”.
Entretanto, esta tese mais confunde do que esclarece as motivações que produziram a cisão de 62. É o que se pode verificar, quando estudamos o conteúdo do debate travado em torno do relatório “secreto” de Kruchev, bem como quando analisamos os métodos utilizados pelo núcleo dirigente formado em 1957. E, principalmente, quando analisamos o que é exatamente o "stalinismo" e em que medida ele prossegue hegemônico --depois da cisão de 1962-- entre os comunistas, "do Brasil" ou "brasileiros".

Quando o Partido tomou conhecimento do discurso de Kruchev, já estava em curso um debate acerca da estratégia do PC. Vale lembrar que, após o fracasso de 1935, o Partido enfrentara uma situação muito difícil, sendo reorganizado apenas em 1943, na chamada Conferência da Mantiqueira.
Nesse evento, prevaleceria a tese da "unidade nacional contra o fascismo", que se materializaria numa aliança entre os comunistas e Vargas; e, durante o início do governo Dutra, na afirmação do Partido Comunista como o "partido da lei e da ordem".
A nova linha coincide com um curto período de legalidade, em que os comunistas elegem 14 deputados e 1 senador (entre eles, Prestes), participa da Assembléia Nacional Constituinte, obtém 10% dos votos nas eleições presidenciais e obtém importantes vitórias nas eleições municipais.
O intenso crescimento do PC é um dos motivos pelos quais, em 1947, a justiça cassa o registro do partido. Mas a cassação tem relação, também, com a ofensiva anti-comunista mundial, um dos inícios da chamada Guerra Fria.
Cassado e caçado, o Partido faz um giro de 180 graus em sua política, aprovando uma linha que prevê a criação de sindicatos paralelos e a formação de um exército popular revolucionário. O partido insiste nesta linha, com crescentes mediações impostas pela realidade, até o suicídio de Vargas (em 1954).
A reação popular ao suicídio voltou-se, também, contra o PC, que fazia então dura oposição a Vargas. O partido vai pouco a pouco sendo empurrado para uma nova linha, que se materializa na colaboração tática com o governo Juscelino, no apoio à candidatura de Lott, no apoio ao governo Jango e na aproximação com o PTB.
O relatório “secreto” sobre Stálin aparece neste contexto, como um ponto de apoio importante para os setores que defendiam a mudança na linha política. Nesse sentido, os debates em torno do relatório de Kruschov precisam ser analisados também sobre este ângulo. A chave para entender a posição de uns e outros não era exclusivamente a posição frente ao stalinismo.
Logo depois de Prestes “pôr ordem” no debate acerca do relatório secreto, o Partido começa a se preparar para o V Congresso (1960). As páginas da imprensa partidária acolhem então uma polêmica muito dura, onde as referências ao stalinismo são marginais.
Sobre este tema, a maioria dos dirigentes optou por uma linguagem cifrada: a referência a quebras na “legalidade socialista” e nos “princípios leninistas de direção coletiva”. A referência tímida ao stalinismo, entretanto, pode ser compreendida como fruto de limites pré-estabelecidos em 1956-57 (é o que pensa Antonio Galdino); ou mais simplesmente porque ficara claro que o centro do debate preparatório do V Congresso era a estratégia do Partido Comunista. E, nesse debate, os futuros dissidentes afirmam existir "duas linhas e duas orientações políticas".
O novo núcleo dirigente, formado a partir da reunião de agosto de 1956, opera com decisão e consegue controlar a maioria dos delegados ao Congresso, elegendo a quase totalidade do novo Comitê Central. A mudança do nome do Partido é apenas um detalhe, uma repetição farsesca do episódio de 1945-1947. Mas no contexto em que se deu, adquiriu um sentido simbólico, transformando-se numa espécie de Rubicão que os dissidentes não estavam dispostos a atravessar; e que, muito pelo contrário, pretendiam utilizar como arma contra o Comitê Central.
Evidentemente, existe uma forte vinculação entre o debate sobre o relatório “secreto” e o debate sobre a estratégia do PC. Mas a vinculação é muito mais complexa do que a adesão explicita --ou não-- ao stalinismo.

O culto à pessoa de Stálin é um aspecto menor do que se convencionou chamar de stalinismo (embora o culto a alguma personalidade seja uma de suas partes fundamentais).
Luís Carlos Prestes, por exemplo, foi o principal beneficiário do culto a personalidade no movimento comunista brasileiro. Prestes foi um dos responsáveis pela linha do Manifesto de Agosto, assim como foi um dos responsáveis –juntamente com Jacob Gorender, Mário Alves e Giocondo Dias— pela Declaração de Março e das Teses ao V Congresso.
Em nenhum desses momentos Prestes foi minoritário no Comitê Central. Ao contrário, as maiorias se estabeleciam em torno dele. Foi o caso da maioria que barrou o debate acerca do relatório “secreto”. Se os “stalinistas” eram “os outros”, porque Prestes fez tanta questão de “por ordem” no debate?
Não deixa de ser sintomático que muitos anos depois, Salomão Malina, membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, responda assim a uma pergunta sobre "a liderança carismática de Prestes": "O Partido Comunista Brasileiro tem um líder carismático, e esse é um dado da realidade. É o camarada Prestes. Carismático porque é um homem e um líder de grande tradição popular. Um homem e um líder que não foi inventado por ninguém, pois tem uma historia vivida. Sua presença no Partido tem um peso sério, e nós o levamos na devida conta. Mas, dos anos 50 para cá, nosso Partido tem procurado fazer um esforço no sentido de melhorar, de aperfeiçoar os processos coletivos de direção. O que não exclui a existência e o reconhecimento da personalidade do camarada Prestes. Basicamente, entretanto, o princípio diretor de um Partido Comunista foi e é o da direção coletiva".
Perguntando mais diretamente, sobre se "alguma vez Luís Carlos Prestes foi vencido ou não seguido pelo conjunto do Partido", Salomão Malina dá uma resposta no mínimo curiosa: "De modo geral, o camarada Prestes colocou-se de acordo com as posições majoritárias --e isso foi muito bom. Se não tivesse agido assim, certamente nossas dificuldades teriam sido muito maiores. Sua grandeza esteve nesse fato de não procurar sobrepor seu prestígio ao coletivo do Partido". (Pedro Del Picchia: O PCB no quadro atual da política brasileira, 1980, pp. 32-33)
Um comportamento ultra-centralista por parte do Comitê Central também não constitui a característica fundamental do stalinismo, embora seja sem dúvida um comportamento fortemente associado a ele.
E, de qualquer maneira, o novo grupo dirigente que se forma em 1957 e se consolida no V Congresso, adota métodos “stalinistas” contra a minoria que criará o PCdoB. Este mesmo grupo, posto em minoria em 1967-68, receberá o mesmo tratamento que havia dispensado à dissidência de 1962.
Em 1957, apenas uma minoria da direção do PC –-ainda que com postos importantes— foi afastada ou rebaixada. Mesmo que aquela minoria fosse muito comprometida com o stalinismo, mesmo que aceitássemos ter sido esse o motivo de seu afastamento, ainda assim restaria a pergunta: e os que permaneceram na direção, não eram também “stalinistas”?
         Dizer que os que fundaram o PCdoB eram stalinistas; e os que se mantiveram no PCB não o eram é um tour de force teórico. Na verdade, os métodos e as concepções continuarão semelhantes em ambos os partidos.
         Para além do culto à personalidade e do ultra-centralismo, o que conhecemos por "stalinismo" compreende outras dimensões, a saber:
Em primeiro lugar, o de variante do marxismo, com fortes afinidades eletivas com o positivismo Em segundo lugar, o de uma determinada estratégia de luta pelo socialismo, inspirada na "leitura" que Stálin e outros farão da experiência bolchevique. Em terceiro lugar, o de um determinado “modelo” de construção do socialismo, cujos pilares são a ditadura do partido, o planejamento centralizado e a industrialização pesada. Finalmente, em quarto lugar, um determinado método de direção partidária, marcado entre outros traços pelo culto à personalidade e pelo ultracentralismo (predomínio do Comitê Central sobre o partido; e do secretário-geral sobre o Comitê Central).
         Existe uma vasta literatura que podemos chamar de "stalinista", composta tanto pelas obras do próprio Stálin, quanto por grande parte da produção editorial do movimento comunista "oficial", nas décadas de 30, 40 e 50. Há também uma vasta literatura sobre o "stalinismo", de início restrita basicamente a setores do movimento socialista (em particular, Trotsky e seus seguidores), mas que posteriormente se confunde com o estudo do próprio movimento comunista no século XX.
         A biografia em três volumes que Isaac Deutscher escreveu sobre Trotsky (O profeta armado, O profeta desarmado, O profeta banido: Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984); o estudo de Charles Bettelheim (As lutas de classes na U.R.S.S., Lisboa, Publicações Europa-América, 1978, 4 volumes) e a também monumental História da Rússia Soviética, de Edward Hallet Carr --em particular El Interregno e El socialismo em um solo país, 1 e 2 (Madri, Alianza Editorial, 1974, 1975 e 1977)-- dão uma visão bastante completa das condições que conduziram Stálin à condição de dirigente máximo do Partido Comunista e da URSS.
Especificamente sobre Stálin, há dois ensaios sintéticos de E.H. Carr: "El camino hacia el poder" e "La dialéctica del stalinismo" (in: Estudios sobre la Revolucion, Madri, Alianza Editorial, 1970, pp 197-223). E a biografia escrita por Isaac Deutscher (Stálin: a political biography, publicada no Brasil como Stálin, a história de uma tirania: Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, 2 volumes).
Também de Isaac Deutscher, há dois ensaios: "El final de la era de Stálin" e "Rusia en transición", terceira e quarta partes de Herejes y renegados (Barcelona, Ediciones Ariel, 1970, 4a edição).
Em todas estas obras, evidentemente, faz-se referência aos trabalhos de Leon Trotsky, que enquadra o fenômeno principalmente em A revolução traida, de 1936 (publicado no Brasil pela Global Editora). Perry Anderson faz uma análise crítica da visão trotskista sobre o stalinismo num pequeno ensaio, intitulado "La interpretación de Trotsky sobre el stalinismo" (in: Democracia y socialismo. Buenos Aires, Editorial Tierra del Fuego, 1988).
         A leitura de A crise do movimento comunista, de Fernando Claudín (São Paulo, Global Editora, 1986, 2 volumes) e História de las democracias populares, de François Fejto (Barcelona, Ediciones Martínez Roca, 1971, 2 volumes) permitem contextualizar o tema na trama geral do movimento comunista e do chamado "campo socialista".
         Finalmente, há vários ensaios publicados na coleção História do Marxismo (São Paulo, Paz e Terra), organizada por Eric Hobsbawn, com destaque para o volume VII: M. Lewin, "Para uma conceituação do stalinismo"; R.Macneal, "As instituições da Rússia de Stálin"; F.Márek, "Sobre a estrutura mental de Stálin"; M.L.Salvadori, "A crítica marxista do stalinismo". No volume IX da mesma coleção, há "Stálin, Lenin e o marxismo-leninismo", de V.Gerratana. Finalmente, no volume X temos "A desagregação do stalinismo", de F. Márek.
         Especificamente sobre o caso brasileiro, pode-se ler "A influência do leninismo de Stálin no comunismo brasileiro", de João Quartim de Moraes (in: História do Marxismo no Brasil. O impacto das revoluções. Volume I, São Paulo, Paz e Terra, 1991).
Segundo Quartim, "a primeira dificuldade com que nos defrontamos para discernir a influência propriamente staliniana sobre o comunismo brasileiro está em distingui-la do processo dito de 'bolchevização' do movimento comunista internacional." (p. 68)
         A "adaptação" das seções nacionais do Komintern ao "paradigma da organização revolucionária consequente" --ou seja, o partido russo-- "constitui o processo dito de 'bolchevização' do movimento comunista internacional."[1]
         "Embora Stálin estivesse em plena ascensão no grupo dirigente do Partido Comunista soviético, não lhe coube exercer nenhuma influência decisiva na fundação do Komintern nem na definição das vinte condições de acesso à nova Internacional (foi Lenin quem as redigiu). Terá exercido influência, mais adiante, no processo de 'bolchevização', mas não se deve exagerá-la. Pelo menos até 1925, a adaptação ao paradigma russo foi empreendida com entusiasmo, muitas vezes sectário, pelas próprias direções nacionais. Na esquerda italiana, a influência decisiva foi de Gramsci, preocupado não somente em 'bolchevizar' seu próprio partido como em polemizar com outras tendências oriundas da Segunda Internacional que também pretendiam filiar-se ao Komintern". (p.69)
         Um dos primeiros contatos entre o Partido Comunista do Brasil e a Internacional Comunista é descrita, de maneira extremamente saborosa, no chamado Relatório Canellas (reproduzido na íntegra in: O Partidão, de Moisés Vinhas, pp 18-62), que descreve a participação do jornalista Antônio Bernardo Canellas no IV Congresso da Internacional Comunista, em 1922. Canellas será expulso em 1933 e o PCB só será aceito na Internacional Comunista no V Congresso da Internacional Comunista.
Prossegue Quartim: "Quando Stalin tornou-se o principal dirigente do PC soviético, nos últimos anos da década de 20, o Kominter estava já ' bolchevizado', tanto ideológica quanto organicamente. Está, portanto, em boa medida 'stalinizado', já que o chefe mundial do bolchevismo passara a ser, incontestavelmente, Stalin. Entretanto, qando falamos em 'stalinização' do comunismo internacional, não é ao processo de bolchevização (que, em sua fase final, efetuou-se sob o mando de Stalin), mas aos métodos policialescos de intervenção nos diferentes partidos nacionais, que estamos nos referindo. Vale dizer: a bolchevização ocorreu nos anos 20, a stalinização, nos anos 30." (p. 69)
         Para Quartim, "se é clara e indiscutível a natureza terrorista da ditadura staliniana na União Soviética, sua capacidade coercitiva variou, no plano internacional, na razão inversa da distância (...) O comunismo latino-americano, inclusive o brasileiro, escapou desse controle policial-terrorista não apenas devido à distância geográfica que o separava do centro moscovita, mas também por sua posição periférica relativamente ao próprio movimento revolucionário dos povos oprimidos pelo imperialismo, cujo epicentro se situava na Ásia, notadamente na China. O controle que sofreu foi político e ideológico e, por isso mesmo, a diferença entre 'bolchevização' e 'stalinização', perfeitamente clara nos partidos comunistas dos centros metropolitanos do capitalismo, é pouco perceptível entre nós." (pp. 69-70)
         A esse respeito, é preciso lembrar a eleição de Luís Carlos Prestes para a direção do Kominter[2] e, depois, o episódio de sua filiação ao Partido Comunista do Brasil. Bem como a vinda, para o Brasil, de um grupo de dirigentes e "técnicos" da Internacional, que acabaram envolvidos nos episódios de 1935. Com base nestes episódios, há quem sustente (como William Waack, no livro Camaradas) que a relação entre o partido brasileiro e a Internacional era muito mais verticalista do que afirma Quartim.
         Mesmo sem citar nenhum autor nominalmente, Quartim acrescenta "contra longa, tenaz e aguerrida interpretação conspirativa que reduz o combate dos comunistas nos quatro cantos do planeta ao mero cumprimento 'burocrático' de ordens emanadas de Moscou, que mesmo relativamente à revolução chinesa, sobre a qual se concentraram, em meados dos anos 20, suas preocupações, o Komintern, Stalin incluído, pesou pouco ou praticamente nada em decisões cruciais do Partido Comunista chinês, como a de empreender a 'Longa Marcha', transformando-se em vanguarda de um exército guerrilheiro maciçamente composto de camponeses. Mao Zedong, embora prestando constante homenagem a Marx, Engels, Lenin e Stalin, sempre seguiu, no que dizia respeito às diretrizes e ao curso da revolução chinesa, sua própria cabeça e seu próprio caminho. Não por acaso um de seus lemas mais célebres era o de 'contar principalmente com suas próprias forças'." (p. 70)
         No caso do Brasil, segundo Quartim, "enquanto corrente política, o comunismo precedeu o marxismo" ou, "mais exatamente, já que ambos, embora estejam longe de se confundir, são inseparáveis, o marxismo penetrou na luta política por meio do comunismo." (p. 72)
         Como consequência, "no Brasil inverteu-se o processo histórico-intelectual que levou ao comunismo a partir do marxismo. Ora, a partir de 1924, Stalin, amigos e epígonos vão gradualmente assumindo o monopólio da hermenêutica marxista-leninista e, em geral, o controle da produção literária comunista. Isso não significa que no plano bibliográfico o leitor brasileiro tenha sido reduzido aos textos de Stalin." (p. 74)
Entre 1924 e 1930 inclusive, como revela o levantamento feito por Edgar Carone (in: O marxismo no Brasil, 1986) não se publicou nenhum livro de Stalin.
"Mas os dirigentes do PCB, particularmente seus dois mais brilhantes intelectuais, Astrojildo e Octavio Brandão, que tinham acesso à literatura socialista publicada em línguas estrangeiras, foram fortemente influenciados, em seu esforço de assimilação dos fundamentos do marxismo e do bolchevismo, pela concepção staliniana do marxismo-leninismo, tal como formulada em Sobre os princípios do leninismo, notadamente." (pp. 74-75)
         Quartim busca demonstrar, em detalhes, esta influência sobre Octavio Brandão, que a 22 de agosto de 1924, dois anos depois de entrar no PCB (ingressou em 15 de outubro de 1922), "escondido da polícia de Artur Bernardes (...) concluiu seu 'Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil", subtítulo de Agrarismo e industrialismo." (p. 75)
Segundo Quartim, o "arcabouço teórico dessa obra exprime uma concepção da teoria marxista próxima da de Stalin", uma "proximidade metodológica", não podendo existir "qualquer dúvida a respeito da substancial convergência do marxismo de Brandão com o marxismo de Stalin". (p. 75)
         Quartim chega a afirmar que Brandão foi pioneiro na utilização do termo "marxismo-leninismo", fórmula que só "seria lançada na URSS no final da década" de 20: "em 1924, nem Stalin nem qualquer outro dirigente do comunismo internacional designavam o corpus teórico-doutrinário de seu movimento pela expressão 'marxismo-leninismo'. Não é de se excluir --até prova em contrário-- que Brandão, ao autodefinir seu ensaio como 'marxista-leninista', tenha antecipado com agudíssima intuição intelectual uma evolução doutrinária que, mesmo na própria União Soviética, só se configuraria vários anos depois." (p. 77)
         Caberia estudar, é claro, em que medida o contexto cultural brasileiro --notadamente a forte influência do positivismo-- pode ter influenciado nestas, digamos, afinidades eletivas.
         "O fato de que Brandão, mais de meio século depois da redação de Agrarismo e industrialismo, tenha minimizado no testamento político que é Combates e batalhas sua convergência com o marxismo de Stalin se explica pela óbvia e compreensível motivação de se distanciar de um fantasma incômodo. Isso não quer dizer que ele tenha sido mais 'stalinista' do que outros comunistas de sua geração. Com a evidente exceção dos trotskistas e daqueles que deixaram o Partido 'batendo a porta', até 1956 ser comunista, ser bolchevista e ser stalinista eram expressões praticamente sinônimas." (p. 80)
         Esta conclusão nos parece central: até 1956, ser membro do Partido Comunista e ser "stalinista" eram sinônimos. Depois do XX Congresso, isso muda. Mas qual o conteúdo desta mudança?
Para Quartim, "muito mais importante do que abrir um inquérito político-intelectual sobre o grau de stalinismo de cada comunista brasileiro é salientar que os conceitos e métodos de análise expostos e desenvolvidos em Sobre os princípios do leninismo continuaram em uso durante muitos anos após a morte do Gengis Khan do bolchevismo (1953) e de sua condenação pelo XX Congresso do PC soviético (1956). Utilizaram-no mesmo dirigentes políticos e intelectuais revolucionários que romperam com o PCB em 1966-67 para passar à luta armada, ou que, como é o caso do núcleo dirigente dos COLINA, não haviam sido formados nem na escola do PCB nem na do PCdoB (este, como se sabe, assumiu decididamente o legado de Stalin), mas na do POLOP." (p.80-81)
Ou seja, o stalinismo teria sobrevivido, enquanto variante do marxismo e enquanto linha estratégica. Quartim fala explicitamente em "persistência da influência teórica de Stalin no marxismo pós-staliniano da segunda metade dos anos 60 em nosso país (...) ao sobreviverem à condenação política de seu autor pelos novos dirigentes soviéticos, as idéias de Stalin mostraram possuir uma força própria de atração e uma consistência teórico-doutrinária que não poderia (...)ser reduzida ao enquadramento intelectual exercido pelo aparelho partidário do comunismo inernacional durante o quarto de século em que esteve submetido à autoridade discricionária do então Guia Genial dos Povos." (p. 81)
         Quartim considera que "Stálin sobreviveu como teórico muito mais do que como dirigente político", já que mesmo os maoístas "admitiram, com discretíssimo eufemismo, que ele havia cometido 'certos erros'."
         Duarte Pereira descreve assim a posição do PCdoB e do PC Chinês frente a Stálin:
"Entre os partidos marxistas-leninistas que se levantaram contra Kruschov e  o revisionismo contemporâneo, havia duas posições. O PC da China e vários partidos  marxistas-leninistas da América Latina, entre outros,  salvaguardavam  os méritos de Stálin e o aspecto principal positivo da obra realizada pelo Partido Comunista da União Soviética e pela III Internacional, mas julgavam necessário investigar e debater publicamente os erros cometidos, para que fossem corrigidos e evitados."
Já "o Partido do Trabalho da Albânia e o  PC do Brasil, entre outros, empenhavam-se numa defesa unilateral e irrestrita de Stálin e da III Internacional. Não reconheciam erros relevantes, ou, se reconheciam, não julgavam oportuno que fossem discutidos".
         Duarte Pereira revela que, "conversando sobre esse tema com o saudoso dirigente do PC do Brasil, Carlos Danielli, ele me relatou o debate que tivera com um dirigente do PC Marxista-Leninista da Colômbia, que insistia nos erros cometidos por Stálin e pela III Internacional. Respondendo, Danielli fizera questão de começar ressaltando: 'Nosso Partido se orgulha de ser um partido stalinista'."
         Duarte afirma que a Ação Popular, "ao contrário, pretendeu, desde suas origens, fazer uma crítica dos erros de Stálin e da experiência soviética sem renunciar à perspectiva socialista, como pode verificar-se no Documento-Base de 1963. Chegando ao campo do marxismo, não abandonou essa pretensão de uma crítica de esquerda das experiências socialistas. Via no pensamento de Mao Tsetung a possibilidade de fazer essa crítica, como indicam algumas passagens do anteprojeto da Tese sobre a Unificação, de 1972", onde se pode ler o seguinte:
“O verdadeiro partido marxista-leninista-maoísta (...) tem uma posição de princípio, clara e inabalável, sobre a avaliação de Stálin e da III Internacional. Sabe que o aspecto principal da obra teórica e prática de Stálin e da III Internacional foi justo e correspondeu ao leninismo. Por isso, considera-se um continuador das tradições revolucionárias e das posições justas da III Internacional. Compreende que o movimento comunista internacional já travou três e não duas grandes lutas ideológicas. Além da luta de Lênin e seus discípulos contra os revisionistas e oportunistas da II Internacional e da luta atual dos autênticos marxistas-leninistas contra os revisionistas contemporâneos, existiu a luta, não menos essencial e decisiva, de Stálin e da III Internacional em defesa do leninismo contra Trotsky e seus seguidores e aliados. (...) Ao mesmo tempo, o verdadeiro partido marxista-leninista-maoísta leva em conta que o trabalho de direção de Stálin e da III Internacional apresentou erros e deficiências. Sabe que esses erros e deficiências contribuíram em certa medida para que o revisionismo contemporâneo pudesse propagar-se por todo o movimento comunista internacional. Por isso, o verdadeiro partido marxista-leninista-maoísta não perde de vista que dois erros podem ser cometidos na avaliação de Stálin e da III Internacional. O erro mais grave é sustentar que o aspecto principal de Stálin e da III Internacional é negativo. Mas é um erro importante também não reconhecer que no trabalho de Stálin e da III Internacional existiram falhas e insuficiências sérias. O novo movimento comunista internacional não pode ser forjado sem preservar os aspectos positivos da III Internacional, mas também não o pode sem aprender com suas experiências negativas.”
         Outra passagem do mesmo Anteprojeto afirmava que:
“Em sua atitude para com a teoria do proletariado, os verdadeiros partidos marxistas-leninistas-maoístas partem de uma firme posição anti-revisionista. (...) Sabem que o revisionismo contemporâneo ainda não foi liquidado e continua sendo o perigo principal para o movimento operário. Ao mesmo tempo, têm também uma firme posição antidogmática. Não confundem as leis gerais com as leis particulares da revolução. Não transplantam mecanicamente experiências de um país para outro. Sabem que o marxismo é uma ciência viva, que tem de desenvolver-se incessantemente para acompanhar o próprio desenvolvimento incessante da realidade. (...) Para desenvolvê-lo, (...) sabem que precisam partir de uma firme posição internacionalista e manter ao mesmo tempo uma posição de independência, de autoconfiança e autodecisão, e de apoio nas próprias forças.”
         Segundo Duarte Pereira, ao aceitar as críticas do PC do B e abandonar as posições equivocadas sobre a “nova época histórica”, a “terceira etapa” na teoria do proletariado e o “tipo inteiramente novo” de partido proletário, era necessário que a AP reafirmasse que não abandonava sua avaliação distinta de Stálin e da III Internacional, nem renunciava à importância de que os erros cometidos  fossem investigados e debatidos. Era preciso que o Comitê Central do PC do Brasil reconhecesse, pelo menos, o caráter legítimo desse debate e a existência de avaliações diferenciadas. Acabei isolado nessa exigência".
         Ainda segundo Duarte Pereira, "o problema se agravou nos anos seguintes, quando o Partido do Trabalho da Albânia e o PC do Brasil, obstinando-se na defesa irrestrita de Stálin e da experiência soviética e salientando os erros cometidos pela liderança chinesa, passaram a negar, retrospectivamente, a natureza socialista da revolução chinesa e o caráter marxista-leninista do PC da China e do pensamento de Mao Tsetung, como atestam os livros de Enver Hodja, O imperialismo e a revolução, de 1979, e de João Amazonas, O revisionismo chinês de Mao Tsetung, de 1981"
         Duarte Pereira ressalta que o PCdoB mudaria de posição posteriormente: "com o colapso do socialismo na Europa, inclusive na Albânia, no final dos anos 80, o PC do Brasil foi obrigado a revalorizar experiências socialistas como as da China, de Cuba e do Vietnã, ou de partidos como o PC de Portugal, e a abrir finalmente o debate sobre os erros cometidos na União Soviética e na III Internacional - na delimitação das etapas revolucionárias, nos excessos repressivos, na aplicação da democracia partidária e em outras questões. Reconheceu também que o combate ao revisionismo contemporâneo havia sido unilateral, por não ter sido combinado com a luta  necessária contra a estagnação teórica e o dogmatismo. Esse movimento autocrítico, ainda em desenvolvimento, não chegou à possível raiz teórica dos erros, o  marxismo impregnado de positivismo que caracterizou a filosofia soviética oficial, mas representa um indiscutível avanço na trajetória do PC  do Brasil."
Segundo Quartim,.a sobrevivência teórica de Stálin "não se circunscreveu ao PCdoB, vale dizer, aos stalinianos explícitos. Manteve-se no PCB, como em boa parte dos demais partidos comunistas ligados ao PC soviético, mesmo porque a partir de 1964, quando Leonid Brejnev assumiu-lhe a direção, o processo de 'desestalinização' ficou congelado, embora não tenha havido uma 'reabilitação' formal do ditador morto onze anos antes." (p. 81)
         O ponto fundamental sobre o qual Quartim insiste é que "a tese de que no caminho brasileiro para o socialismo há uma etapa democrática e nacional foi incontestavelmente elaborada sob a influência do marxismo de Stalin. Mantendo essa tese, o PCB manterá aspecto importante do legado marxista-leninista". (p.86)
         A isso poderíamos acrescentar que o modelo de construção do socialismo --afirmado na União Soviética e em boa medida assimilado pelas "democracias populares" do pós-Segunda Guerra-- manteve-se hegemônico no movimento comunista internacional muito tempo depois da morte de Stálin, do XX Congresso e da cisão de 62. A esse respeito, pode-se ler o ensaio já citado de Perry Anderson, bem como a volumosa literatura escrita a respeito depois da "Queda do Muro" (por exemplo, a obra organizada por Robin Blackburn: Depois de queda, São Paulo, Paz e Terra, 1992).
         Nesse sentido, nos parece excessivamente simplificador dizer que "a cisão de 1962 separou stalinistas e antistalinistas". É verdade que o PCdoB assumiria, rapidamente, a missão de defender a obra de Stálin. É verdade, também, que o PCB adotaria frente ao tema a mesma postura circunspecta e obsequiosamente silenciosa do PCUS, depois que Leonid Brejnev assumiu a secretaria-geral daquele partido. Somente no final dos anos 70 e durante os anos 80 a crítica ao stalinismo voltaria, com força maior ou menor, a ser feita em ambos os partidos.
         Mas é ainda mais verdade que PCB e PCdoB continuaram compartilhando um legado teórico, uma visão estratégica, um modelo de construção do socialismo e uma concepção partidária ancoradas, sem a menor sombra de dúvida, no fenômeno histórico conhecido como "stalinismo". O que era apontado, aliás, pelas organizações trotskistas, que nos anos 80 referiam-se a ambos os partidos desta forma.
        
A influência maoísta

       A cisão de 1962 é apresentada por muitos autores como um desdobramento da disputa entre os Partidos e os Estados soviético e chinês. O tema é exposto da seguinte maneira por Ronald Chilcote:
         "As posições divergentes dos partidos chinês e soviético foram expostas na conferência de partidos comunistas em novembro de 1960, realizada em Moscou, depois de uma primeira tentativa aparentemente fracassada de se chegar à unanimidade (Bucareste, junho de 1960); os pontos principais da divergência foram revelados numa troca de correspondência diplomática em 1963." (p. 295)
         Estes acontecimentos são descritos em detalhe no livro As grandes divergências do mundo comunista, de Jean Baby. Outro ponto de vista pode ser encontrado em Wladimir Pomar: O enigma chinês: capitalismo ou socialismo.(São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1987).
         Prossegue Chilcote: "Na questão da guerra, os dirigentes chineses culpavam os dirigentes soviéticos de fortalecerem a ilusão de que a guerra pudesse ser eliminada enquanto o imperialismo existisse; em resposta, a União Soviética acusou os comunistas chineses de visualizarem a construção do futuro sobre as ruínas de uma guerra termonuclear. Sobre a revolução, os chineses acusavam os dirigentes soviéticos de buscarem enfraquecer o movimento revolucionário mundial, enfatizando excessivamente os meios parlamentares e legais na derrubada do capitalismo, enquanto os soviéticos condenavam os chineses por estimularem o desencadeamento de revoluções armadas prematuras no Terceiro Mundo." (p. 295)
         Outras questões eram objeto de controvérsia: a "crise dos mísseis", em Cuba; a retirada da ajuda econômica soviética à China; a análise do papel de Stálin; as relações entre o PCUS e a URSS, vis a vis os demais partidos comunistas e as democracias populares.
         Chilcote diz que "quando esta briga travada na cúpula caiu no domínio público, bem antes de 1960, as divergências, aparentemente, já tinham afetado o movimento comunista no Brasil: como já vimos, os esforços chineses para enfraquecer a hegemonia soviética sobre o PCB começaram já em 1956. Naquela época, Diógenes Arruda Câmara fora convidado a visitar a China, depois de assistir ao XX Congresso do partido soviético, e voltou com relatórios entusiásticos, segundo Osvaldo Peralva,que o encontrou em Moscou em julho de 1956." (p. 296)
         Vale lembrar, contudo, que Prestes também realizaria uma longa visita à China, em 1960. Na verdade, como lembra Chilcote, "no começo dos anos 60, os chineses procuravam influenciar as forças de esquerda em certos países latino-americanos, inclusive o Brasil" (p. 296), tendo inclusive passado a irradiar 8 horas diários de programas em português. Atividade que durante alguns anos foi executada por Lídia e Benedito de Carvalho, um dos tenentes de 35, eleito membro do Comitê Central do PCB em 1954, chegando a manter contatos com o PCdoB após a cisão (depoimento ao autor, 1988).
         Ainda segundo Chilcote, "a cisão do PCB ocorreu numa época em que os chineses relutavam em apoiar divisões nos partidos comunistas em escala internacional. Assim, a fundação do PCdoB não foi mencionada na imprensa chinesa; em março de 1963, uma delegação de duas pessoas do novo partido que visitou Pequim e fora recebida por Mao Tsé-Tung, ainda era descrita na Revista de Pequim como delegação do PCB. Só a partir de setembro é que existem indicações de reconhecimento oficial do PCdoB por Pequim." (p. 297)
         Segundo Ernst Halperin ("Pekin and the Latin American Communists", pp. 49-50, citado por Chilcote), a primeira cisão pró-chinesa oficialmente reconhecida na América Latina foi a do Peru, formada em janeiro de 1964. Entretanto, neste período ao menos, Halperin acredita que o PCdoB não recebia apoio financeiro do PC Chinês. O próprio Chilcote, entretanto, diz que os comunistas do Brasil recebiam apoio de China (e de Cuba) para "fazer funcionar o partido, sua gráfica e o jornal quinzenal, A Classe Operária." Sobre o apoio cubano, ele teria cessado depois de uma visita de Prestes a Havana, tornando os dissidentes "totalmente dependentes do apoio chinês". (p. 297)
         Não há dúvida de que, após 1962, o PCdoB e o Partido Comunista Chinês passaram a manter relações regulares. Suas relações políticas ficaram formalmente públicas quando o Comitê Central aprova a "Resposta a Kruchev", datada de 27 de julho de 1963, em resposta a uma "Carta Aberta" publicada no Pravda de 14 de julho, assinada pelo Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética.
         A questão, entretanto, é saber se antes da cisão os dissidentes já mantinham contatos "fracionais" com o PC chinês; bem como saber se a cisão constituia um reprodução, em escala local, do cisma sino-soviético.
         Esta questão é largamente abordada por Daniel Aarão Reis Filho, no artigo "O maoísmo e a trajetória dos marxistas brasileiros" (História do Marxismo no Brasil, volume I, Paz e Terra, 1991, São Paulo).
         Daniel Aarão Reis Filho começa sua análise chamando a atenção para que "o estudo do maoísmo, ou pensamento Mao Zedong, deve considerar um itinerário de imagens cambiantes: num primeiro momento, aparece como estratégia revolucionária para a tomada do poder político na China e, nesse sentido foi caracterizado como uma aplicação criadora do marxismo-leninismo às condições históricas chinesas, ou ainda, em outras palavras, como uma concepção que fora capaz de efetivar a sinização do marxismo. Quase simultaneamente, mas numa outra dimensão, a via revolucionária chinesa será apresentada como um caso exemplar para as demais sociedades asiáticas, em particular, e para o conjunto dos povos explorados e oprimidos pelo imperialismo, em geral. Nesse registro, o maoísmo já aparece com uma nova qualidade, a de um modelo revolucionário para a emancipação dos povos dependentes e/ou colonizados". (p. 107)
Este tema é discutido por M. Bernal: "Mao e a Revolução Chinesa", in: História do Marxismo, volume VIII. Um descrição jornalística das posições de Mao Tsé Tung e do Partido Comunista chinês pode ser encontrada na obras do jornalista Edgar Snow: La larga revolucion, Madri, Alianza Editorial, 1972.
         Segundo Daniel Aarão Reis Filho, "mais tarde, o maoísmo surgirá como uma proposta original de construção do socialismo na China, convertendo-se, mais ou menos rapidamente, e novamente, em modelo revolucionário mundial. A evolução, em espiral, atinge agora um nível de expressão mais alto: o da universalização. O pensamento de Mao Zedong encarnará a verdade revolucionária, ou seja, como apreciavam dizer os comunistas chineses em fins dos anos 60, o maoísmo é o 'marxismo-leninismo do nosso tempo'." (p. 107)
Sobre esta questão, Duarte Pereira revela que a Ação Popular caracterizava o "pensamento de Mao Tsetung como uma nova etapa na teoria revolucionária do proletariado mundial, o denominado 'marxismo-leninismo-maoísmo'. Esta posição, adotada pelo PC da China durante breve período, foi introduzida na AP pela corrente liderada por 'Dorival' (Jair Ferreira de Sá). Generalizou-se com a exclusão do 'grupo de Rolando' e foi oficializada no Programa Básico de 1971".
Já o PC do Brasil "defendia, naquele momento, a natureza socialista e avançada da revolução chinesa; relacionava-se com o PC da China como um partido irmão, líder nos embates com o imperialismo e com o revisionismo contemporâneo; e reconhecia Mao Tsetung como um revolucionário proletário destacado e eminente marxista-leninista. Admitia também que existiam problemas novos que precisavam ser investigados. Mas não aceitava, com razão, que a história tivesse entrado numa fase distinta da época do imperialismo e da revolução proletária, estudada por Lênin; o leninismo permanecia atual, portanto, e não era necessário que os partidos marxistas-leninistas assumissem características inteiramente novas para cumprir suas tarefas. Os dois aspectos da posição do PC do B, na época, estão claramente expostos no artigo 'Atualidade das Idéias de Lênin', publicado por A Classe Operária em abril de 1970."
         A análise das características gerais do maoísmo, feita por Daniel Aarão Reis Filho no texto citado, nos levaria longe demais do objeto desta dissertação. Mas é fundamental registrar que "desde o início do processo chamado de 'desestalinização', em meados dos anos 50 e, principalmente, ao longo dos anos 60, o maoísmo adquiriria uma outra dimensão fundamental: a denúncia e a luta contra o 'revisionismo' soviético. O fenômeno teria repercussões duradouras no equilíbrio das grandes potências mundias e, sobretudo, no movimento comunista internacional (...) é exatamente a partir desse conflito, e das dimensões que adquire, que o maoísmo surge na cena internacional com um perfil nítido enquanto alternativa para o conjunto do movimento comunista. Em outras palavras: o maoísmo não se gesta a partir do ou concomitantemente ao cisma sino-soviético, mas é inegável que o cisma contribui decisivamente para descobri-lo ou revelá-lo, atuando como um catalisador, precipitando contradições latentes e acelerando sua dramática eclosão". (p. 118)
         Daniel Aarão Reis Filho considera que a "polêmica teve como núcleo detonador aparente a interpretação a propósito do papel de Stalin na história da construção do socialismo na URSS". Mas registra que "em relação ao assunto (...) o maoísmo cultivaria não poucas ambiguidades". (p. 119)
A nosso ver, essas ambiguidades começam já nos anos 20, quando os comunistas chineses –orientados pelos soviéticos— participam do Kuomitang e depois realizam um fracassado experimento de insurreição urbana. Um setor então minoritário do PCChinês –encabeçado por Mao Zedong— defende outra política, baseada no trabalho entre os camponeses, na guerra popular prolongada e no cerco das cidades pelo campo. É apenas no curso da Longa Marcha que a posição de Mao torna-se majoritária no PC chinês.
         As divergências entre o PCCh e o PCUS prosseguem em 1945-49, quando os soviéticos em parte não acreditam e em parte parecem não desejar que os chineses consigam tomar o poder. Seu comportamento na Manchúria reflete isto. Assim, mesmo que se aceite as divergências em torno do "papel de Stálin" como "núcleo detonador aparente" das divergências sino-soviéticas, é preciso ter em mente que há raízes históricas e divergências estratégicas anteriores e profundas, que ficam muito mais evidentes quando o PCCh assume o poder.
Ganha vulto nos anos 50, também, o contraste entre o modelo soviético de construção do socialismo --baseado na premissa de que era necessário desenvolver as forças produtivas, leia-se, industrializar pesadamente-- e o experimentalismo chinês, ou mais propriamente maoísta, que destacou por muitos anos a possibilidade de dar saltos no processo de construção do socialismo, através fundamentalmente de mudanças nas relações de produção.
Finalmente, há a divergência entre a estratégia moderada, frente ao capitalismo mundial, defendida pelos soviéticos; e a postura ofensiva proposta pelos chineses. Não há espaço aqui para estudar a contradição entre a teoria professada por ambos e a prática real dos partidos e dos Estados respectivos em escala internacional, ficando apenas o registro de que neste caso, as aparências enganam profundamente.
As divergências entre os dois partidos foram tornando-se públicas até chegarem a um ponto de não-retorno, sendo um marco a retirada dos técnicos soviéticos que estavam na China.
Esse complexo de contradições entre os dois maiores partidos comunistas do mundo resultará numa situação paradoxal, nos anos 50: o PCChinês –que tinha vários motivos para criticar Stalin e o stalinismo— reagirá negativamente ao rumo proposto por Kruchev; este, por sua vez, embora criticando Stálin, deu no fundamental prosseguimento à política desenvolvida por este em relação à China.
Daniel Aarão Reis Filho ressalta outro aspecto das ambiguidades do maoísmo: "de um lado, considerava a obra de Stalin fundamentalmente positiva, ressalvados certos erros e deficiências. Um pouco mais tarde, já nos anos 60, exacerbaria esses mesmos erros, por meio do delirante culto à personalidade de Mao Zedong por ocasião da Revolução Cultural." (p. 119)
"De outro lado, elaboraria com suas propostas uma alternativa ao modelo dos Planos Quinquenais soviéticos, identificados com razão, como aspecto essencial do chamado modelo stalinista, e isso sem prejuízo do resgate permanente de uma experiência e de uma liderança que, justamente, se propunha a superar. Além disso, na própria formulação teórica e prática de uma alternativa ao stalinismo (Grande Salto e Revolução Cultural), integram-se elementos do sistema objeto de crítica (culto à personalidade de Mao, já referido, e recurso à noção da radicalização crescente da luta de classes no processo de construção do socialismo)." (p. 119)
Estas contradições remetem à mesma questão já discutida no capítulo anterior: o que é exatamente o stalinismo, e como ele se fez presente na história do movimento comunista inclusive entre aqueles que se apresentavam como anti-stalinistas.
"A divergência sino-soviética radicalizou-se muito rapidamente: em poucos anos a URSS e seu Partido Comunista passariam de guias da revolução mundial para a condição de superpotência social-imperialista, mais perigosa ainda do que os próprios Estados unidos, considerados potência imperialista 'em decadência'." (p. 119)
É nesse sentido que se desenvolvem as formulações do Partido Comunista do Brasil sobre a URSS: de país que constrói o socialismo e marcha para o comunismo, tornou-se "social-imperialista" --e, portanto, objeto da restauração do capitalismo. Posteriormente, o fracassado golpe que o PCUS e setores das forças armadas soviéticas intentam contra Boris Yeltsin é saudado como "notícia alvissareira" por João Amazonas. Finalmente, o PC Russo é hoje considerado "partido irmão" do PCdoB. A respeito deste tema, embora não constitua a posição oficial do Partido Comunista do Brasil, deve-se ler Luís Fernandes (URSS, ascensão e queda. São Paulo, Editora Anita Garibaldi, 1991).
Prossegue Daniel Aarão Reis Filho: "A desqualificação da capacidade revolucionária dos soviéticos e, em consequência, da sua condição de 'farol' da revolução mundial, abriu espaço para que a China e seus dirigentes se apresentassem como novos guias, liderando, então, a formação de uma autêntica nova internacional comunista: o chamado movimento marxista-leninista, constituído, em sua grande maioria, por cisões no interior dos partidos comunistas que, de modo geral, acompanharam o processo de desestalinização promovido por Moscou." (p. 119)
Desde meados dos anos 90, está em curso um "reencontro histórico" entre partidos deste movimento "marxista-leninista" e partidos que apoiaram a URSS no conflito com os chineses, como é o caso do Partido Comunista Português, do PC Argentino e do PC Chileno.
Como afirma Duarte Pereira, "com o colapso do socialismo na Europa, inclusive na Albânia, no final dos anos 80, o PC do Brasil foi obrigado a revalorizar experiências socialistas como as da China, de Cuba e do Vietnã, ou de partidos como o PC de Portugal, e a abrir finalmente o debate sobre os erros cometidos na União Soviética e na III Internacional - na delimitação das etapas revolucionárias, nos excessos repressivos, na aplicação da democracia partidária e em outras questões. Reconheceu também que o combate ao revisionismo contemporâneo havia sido unilateral, por não ter sido combinado com a luta  necessária contra a estagnação teórica e o dogmatismo. Esse movimento autocrítico, ainda em desenvolvimento, não chegou à possível raiz teórica dos erros, o  marxismo impregnado de positivismo que caracterizou a filosofia soviética oficial, mas representa um indiscutível avanço na trajetória do PC  do Brasil."
Segundo Daniel Aarão Reis Filho, a disputa sino-soviética "influenciou, em maior ou menor medida, a luta interna no Partido Comunista no Brasil. Passado algum tempo, o PCdoB alinhar-se-á com o PCChinês contra o PCUS; e proclamará sua adesão à chamada “guerra popular prolongada”.
Mas isso não é igual a dizer que a cisão de 1962 foi um reflexo da disputa sino-soviética. Num documento datado de 27/07/1963, o próprio PCdoB afirmaria que “quando se iniciou a discussão no Comitê Central, os camaradas que posteriormente procuraram reorganizar o Partido não conheciam as divergências no movimento comunista mundial. Mais tarde, ao se inteirar da existência de questões controvertidas, ignoravam sua real profundidade”.
         O que reforça a idéia de que é a disputa "nacional", em torno da estratégia dos comunistas, é que pode explicar a aproximação e/ou o distanciamento frente ao maoísmo, e não o contrário.
         Segundo Daniel Aarão Reis Filho, o cisma sino-soviético é "um marco decisivo para o estudo do impacto do maoísmo entre os marxistas brasileiros". Mas ele cuida de analisar as relações entre "o maoísmo e a esquerda brasileira antes, durante e depois do cisma histórico que iniciou o processo de desagregação do movimento comunista internacional e pelo qual o maoísmo adquiriu um perfil próprio". (p. 120)
         Segundo Aarão, "a vitória da revolução chinesa foi recebida com surpresa e euforia pelos comunistas brasileiros", num contexto em que os "comunistas encontravam-se na clandestinidade, acuados pela política política, desfeito o sonho da legalidade e da participação ativa nas lutas institucionais. Desde janeiro de 1948 sucediam-se conclamações inflamadas à radicalização das lutas sociais e políticas. O processo de viragem à esquerda alcançaria o clímax com a formulação do Manifesto de Agosto, de 1950, a mais completa sistematização da orientação política do Partido Comunista no período." (p. 121)
         Segundo Aarão, "menos de um ano depois da vitória da revolução chinesa, verificada em outubro de 1949, é possível detectar ressonâncias do acontecimento em propostas centrais do Manifesto de Agosto. A defesa da revolução agrária e antiimperialista colocava para o povo brasileiro, como bandeiras centrais, os eixos da luta recém-vitoriosa do povo chinês: a questão da terra e a questão nacional". (p. 121)
         "Da mesma forma, a idéia de um bloco nacional-revolucionário, firmemente hegemonizado pelos comunistas, figurados como dirigentes do proletariado, e a denúncia enérgica da 'burguesia conciliadora' pareciam extrair as consequências das vicissitudes que haviam marcado as tensas relações entre os comunistas chineses e o Guomindang. Inclusive porque o Bloco Revolucionário deveria ser construído na e pela luta prática contra os inimigos da nação e os latifundiários." (p. 121)
         "Também observando o caminho trilhado pelos comunistas chineses, os brasileiros propunham a constituição de uma 'ampla frente nacional', acima de quaisquer diferenças --sociais, políticas, ideológicas e religiosas. Além disso, as propostas de criação imediata de uma Frente Democrática de Libertação Nacional e de um Exército Popular de Libertação Nacional, instrumentos na luta por um Governo Democrático e Popular, faziam eco, em certa medida, à experiência revolucionária dos chineses". (p. 121)
         Mesmo considerando "inegável" a influência chinesa --no Manifesto de Agosto e no IV Congresso do Partido Comunista do Brasil, realizado em novembro de 1954--, Aarão considera que ela "operava pela mediação dos comunistas soviéticos. Moscou seguia sendo considerada vanguarda e centro inquestionável da revolução mundial". (p. 122)
         Além disso, sempre segundo Aarão, no IV Congresso, apesar das "ressonâncias maoístas (não explicitadas)", os comunistas brasileiros já estariam "em marcha batida para o abandono da perspectiva do enfrentamento aberto". Em apoio a esta tese, Aarão cita alguns dos Informes feitos durante o IV Congresso (entre eles o de Prestes), que revelariam "claramente as inclinações favoráveis à luta institucional e à participação nos processos eleitorais". (p. 122)
         "Tratava-se (...) de uma evolução que remontava a 1952", quando o PC havia "revisto (e abandonado) a proposta de organizar 'sindicatos paralelos', voltando à participação na estrutura sindical corporativa legal." Segundo Aarão, "a Declaração de Março de 1958 ainda não estava escrita, mas já apontava no horizonte, ao menos como prática. Nesse novo quadro, o maoísmo tinha poucas chances de crescer como referência para os comunistas brasileiros." (p. 123)
         Um segundo momento da influência maoísta no movimento comunista brasileiro --segundo Aarão-- se daria durante o cisma sino-soviético. "O debate aberto, no contexto da 'desestalinização', prenunciaria divergências que explodiriam mais tarde. Os comunistas chineses já então apareciam com interpretações próprias, diversas da apresentada por [Nikita Kruschov] em seu famoso Informe 'secreto" sobre o papel de Stalin na construção do socialismo na URSS." (p. 123)
         "Embora divulgados em conta-gotas, e sem maior contextualização, os textos produzidos no período pelos comunistas chineses sobre o assunto provavelmente influenciariam a constituição de uma linha de resistência às propostas soviéticas de demolição de Stálin." (pp. 123-124)
         Entretanto, Aarão destaca o caráter "ambíguo" e a "cautela" com que os comunistas chineses tratavam do tema, o que "não contribuia para o esclarecimento do debate" e "permitia a defesa da tese de que eventuais problemas no campo socialista seriam incapazes de abalar sua 'unanimidade granítica'." (p. 124)
         Aarão lembra que "mesmo depois da definição da Declaração de Março de 1958 (...) e embora a nova linha política nada tivesse a ver com o que era considerado essencial para o maoísmo, os comunistas brasileiros manteriam uma aparência de unidade, defendendo, ao mesmo tempo, a aparente unidade do movimento comunista internacional". Nesse contexto, Luís Carlos Prestes, voltando de uma visita à China Popular, realizada em começos de 1960, "se permitiria efetuar aproximações entre a situação chinesa e a Declaração de Março de 1958." (p. 124)
         Segundo Aarão, seria nos debates preparatórios ao V Congresso do Partido Comunista, em 1960, que as "amenidades e as ambiguidades mais extremas teriam fim".  (p. 125)
         "As divergências viriam à tona em torno de questões centrais: o caráter da revolução, as alianças prioritárias de classe (burguesia ou campesinato), a questão da hegemonia, o papel da violência na revolução (luta armada versus transição pacífica), a forma pela qual os comunistas deveriam relacionar-se com as lutas institucionais, incluindo-se a espinhosa questão da legalização do Partido Comunista. Os princípios revisados por N.Khrushtchev voltariam à discussão, entre outros e, principalmente, as questões da ditadura do proletariado e do internacionalismo proletário." (p. 125)
         Nesse contexto, "as referências defendidas pelo maoísmo, apesar de suas ambiguidades, passavam a influenciar e a legitimar, cada vez mais, os dissidentes das concepções aprovadas em março de 1958 e confirmadas pelo V Congresso, realizado em agosto de 1960 depois de uma nova e intensa discussão pública." (p. 125)
         Foi só em 1961, "tomando como pretexto os trâmites realizados com vistas à legalização do Partido Comunista, e a proposta de sua mudança de nome (o tradicional Partido Comunista do Brasil seria substituído por Partido Comunista Brasileiro), os dissidentes constituiriam organização própria, rachando o velho partido fundado em 1922 e reinvidicando o nome que vinha de ser abandonado: nascia, ou renascia, então, o Partido Comunista do Brasil em oposição ao Partido Comunista Brasileiro." (p. 125)
         Neste ponto, Aarão toma o cuidado de precisar o seguinte: "seria importante, porém, distinguir entre a influência, já registrada, que o maoísmo teve no debate, alimentando com argumentos de autoridade a controvérsia, e um suposto incondicionalismo dos militantes que fundaram o PCdoB, em relação ao comunismo chinês, o que lhes valeria serem injustamente acusados então pelos seus ex-companheiros de marionetes de Pequim. A acusação seria depois retomada pelo polícia política e por muitos estudiosos da esquerda brasileira, o que não a torna menos falsa." (p. 125)
         Para Aarão, "só mais tarde, em 1963, é que os comunistas do novo PCdoB iriam romper publicamente com os comunistas soviéticos, passando a compor o recém-criado movimento marxista-leninista sob liderança maoísta." (p. 125-126).
         Poderíamos dizer, portanto, que é anacrônico imputar à cisão de 1962 a condição de desdobramento local do "cisma sino-soviético". Ademais, como veremos no próximo tópico, a influência maoísta sobre o PCdoB foi suplantada pela influência cubana, mais especificamente pela teoria "foquista".

O debate sobre "o caminho pacífico"

A disputa entre “via pacífica” e “luta armada” constituiu um aspecto importante da cisão de 62, assim como da cisão de 1967/68. Como disse o já citado Apolônio Carvalho, “houve dois momentos, dois ciclos de ruptura do PCB: 61/62 e 64/67. As origens são as mesmas (...)".
Parte expressiva do Comitê Central eleito pelo V Congresso saiu do PCB após o Golpe de 1964, atirando-se à luta armada. É o caso de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira (Ação Libertadora Nacional); Jover Telles, Jacob Gorender, Mário Alves e Apolônio de Carvalho (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), entre outros.
Por motivos opostos aos que foram expulsos, Armênio Guedes (in: O PCB no quadro atual da política brasileira, p.22) considera que tanto o V Congresso quanto o VI Congresso foram "momentos importantes de ruptura com uma concepção que dominou entre os comunistas no fim da década de 40 e em alguns anos da década de 50".
É importante registrar que vários integrantes do núcleo responsável por formular a Declaração de Março de 1958 e que supostamente substituiria "os stalinistas" na direção do Partido, são expulsos do Partido antes do VI Congresso.
Gorender diz que "pelos jornais da grande imprensa, tivemos conhecimento da realização do Congresso e da resolução que expulsava" Marighella, Mário Alves, Manoel Jover Telles, Jacob Gorender, Joaquim Câmara Ferreira, Miguel Batista dos Santos e Apolonio Carvalho. A resolução foi oficialmente publicada no nº 35 da Voz Operária, de janeiro de 1968". (Combate nas Trevas, p. 101)
         Uma série de motivos explica a adesão à luta armada, não apenas como orientação estratégica, mas também como forma imediata de luta. Entre estes motivos podemos citar: o ambiente internacional, em particular a influência da revolução cubana; a ditadura militar e sua ofensiva contra as lutas de massa e a própria legalidade burguesa; a base social das novas organizações, predominantemente estudantil.
Outros motivos também ajudam a entender porque as diferentes organizações da guerrilha urbana não se reuniram em um único agrupamento ou partido: as diferentes interpretações acerca da luta armada; as diferentes concepções acerca da necessidade ou não de um partido político; as condições de clandestinidade e ditadura militar; a pressa em “partir para a ação”.
Em qualquer caso, é evidente que o tema da violência revolucionária foi um dos elementos decisivos tanto na cisão de 1962, quanto na cisão de 1967/68, não havendo dúvida sobre a influência da experiência cubana sobre os grupos que rompem com o Partido Comunista na segunda metade dos anos 60.
         O tema é enquadrado por Juan Carlos Portantiero, no seu balanço do "marxismo latino-americano" (in: História do Marxismo, volume II, 1989).
         Emir Sader, num artigo intitulado "Cuba no Brasil: influências da revolução cubana na esquerda brasileira" (História do Marxismo no Brasil, volume I, O impacto das revoluções, Paz e Terra, 1991, São Paulo), discute como a imagem da revolução cubana "chegou ao Brasil, como foi assimilada, que papel ela teve no desenvolvimento da esquerda brasileira" (p. 173)
         "Correm dois processos paralelos e suas respectivas interações: o primeiro foi o da aquisição de sua própria identidade pela Revolução Cubana, que assumiu seu próprio timing. O outro foi o das transformações do processo político brasileiro e, com ele, da esquerda brasileira, sobre quem a leitura da Revolução Cubana operou de forma diferenciada, conforme as etapas e as forças envolvidas." (p. 173)
         "Um primeiro período pode ser caracterizado como aquele que vai do triunfo revolucionário em Cuba até o golpe militar de 1964 no Brasil. Primou nesse período a solidariedade dentro da esquerda brasileira, com leituras diferenciadas conforme a organização política que interpretava o caráter ou o aspecto mais relevante da Revolução Cubana. Para o PCB tratava-se de mais um processo de ruptura com o capitalismo que seguiria, entre curvas e atalhos, o mesmo destino dos outros países --integrar-se ao 'campo socialista". (pp. 173-174)
         Para o PCB, as "heterodoxias" da revolução cubana e suas evidentes contradições com a "linha oficial" do movimento comunista para e na América Latina não merecem registro: "era como se o Brasil vivesse uma etapa histórica muito diferenciada da cubana". (p. 175)
         "Os grupos dissidentes da linha do PCB, por sua vez, encontravam no triunfo cubano uma de suas grandes bandeiras de propaganda para propor soluções radicais para a crise brasileira. Alinhavam-se, entre elas, a via socialista como alternativa para um capitalismo em crise; a via armada como forma de acesso das maiorias ao poder; a ruptura com a dominação externa como forma de impulsionar um desenvolvimento econômico soberano; uma reforma agrária radical como instrumento de resolução da crise da terra no país." (p. 176)
         Entre os grupos dissidentes, Emir cita a Polop, a Ação Popular, as Ligas Camponesas e o Partido Comunista do Brasil, que "ao assumir a via chinesa como modelo de solução para o país, apenas somava o caminho cubano como reforço de soluções alternativas ao reformismo dos comunistas pró-Moscou." (p. 176)
         Emir Sader conclui que "de forma resumida, pode-se dizer que a influência da Revolução Cubana sobre o marxismo brasileiro foi veiculada basicamente em seus efeitos sobre a esquerda brasileira, tendo destacado, em cada etapa do desenvolvimento de Cuba como regime revolucionário e das forças de esquerda em nosso país, aspectos distintos do processo histórico daquela nação." (p. 180)
         "Numa primeira etapa primou o caráter antiimperialista e anticapitalista da via escolhida pelos cubanos para enfrentar seus principais problemas. Coincide, no Brasil, com o período político prévio ao golpe de 1964, com [a] hegemonia política do PCB e do nacionalismo na esquerda brasileira, onde apenas começavam a surgir alternativas mais radicais." (pp. 180-181)
         Jacob Gorender, em "Receitas para a luta armada" (Combate nas trevas, pp. 89-92) considera que no início dos anos 60, "o foquismo era a teoria oficial da Revolução Cubana": "a descoberta atribuída a Fidel Castro sobre a revolução que começa com um pequeno foco de guerrilheiros numa região camponesa, de preferência montanhosa". (p.88)
         Segundo Gorender, "o ponto de partida da teoria do foco consistia na afirmação da existência de condições objetivas amadurecidas para o triunfo revolucionário em todos os países latino-americanos. Guevara dizia que a revolução latino-americana seria continental, impondo-se por cima de diferenças nacionais secundárias, e diretamente socialista." (p. 88) Mais ainda: "se já existiam as condições objetivas, também eram necessárias as condições subjetivas (...) a vontade de fazer a revolução por parte das forças sociais por ela beneficiadas. Aqui entrava a grande descoberta: as condições subjetivas podiam ser criadas ou rapidamente completadas pela ação de um foco guerrilheiro. Este funcionava como o pequeno motor acionador do grande motor --as massas." (p. 88)
         Ainda segundo a síntese que Gorender faz do Che Guevara de A guerra de guerrilhas, "o foco se iniciava com um punhado de homens e se punha a atuar entre os camponeses de uma região cujas condições naturais favorecessem a defesa contra ataques do exército (...) Numa segunda etapa, colunas guerrilheiras se deslocavam da região inicial, levavam a luta armada a outras regiões e confluíam afinal para o exército rebelde capaz de infligir ao inimigo a derrota definitiva."
A influência cubana sobre o PCdoB pode ser intuída pelo fato de, entre os primeiros livros publicados pelo novo Partido, após a cisão de 1962, estar Fidel Castro. De Moncada à ONU (Rio de Janeiro, Edições Futuro, sem data); além da já citada edição de Guerra de guerrilhas, de Che Guevara --o primeiro traduzido por Pedro Pomar, o segundo por Maurício Grabois.
Entretanto, a leitura dos documentos oficiais do PCdoB registra uma crítica direta ao foquismo e ao "fidelismo", por exemplo em "O Partido Comunista do Brasil na luta contra a ditadura militar", aprovado pelo Comitê Central em novembro de 1967 (In: Guerra Popular: caminho da luta armada no Brasil, Lisboa, Edições Maria da Fonte, 1974, p. 38). Mas no balanço da guerrilha do Araguaia, realizado em meados dos anos 70, início dos anos 80,.setores do Partido argumentaram que ela se tratou de uma experiência foquista.
A exposição mais completa desta opinião está em Wladimir Pomar (Araguaia, o partido e a guerrilha, pp. 10-63): "O caminho realmente tentado, tanto pelas organizações declaradamente fidelistas, quando pelo PCdoB (que em tese era antifoquista), foi o da organização de grupos armados independentes do movimento de massas, independentes do nível de consciência, de luta e de organização alcançado pelas massas em cada região e no país inteiro" (p. 25).
Opinião oposta é sustentada por Romualdo Pessoa Campos Filho (A guerrilha do Araguaia, a esquerda em armas), para quem a guerrilha "não constituiu um foco revolucionário": "o PCdoB se encontrava muito influenciado pelas idéias de Mao Tsé Tung sobre a guerra popular", tendo prevalecido "a linha chinesa na preparação da Guerrilha do Araguaia". (p. 191)
A análise da guerrilha do Araguaia não constitui o objeto desta dissertação. Entretanto, é interessante observar como o PCdoB mantém --até hoje-- em relação a guerrilha o mesmo comportamento ambíguo que o Partido Comunista manteve, nos anos 50, frente à "insurreição de 1935". Este comportamento ambíguo traduz-se, tanto num caso como noutro, em converter o que era uma ação ofensiva, destinada a derrubar o governo, em uma ação defensiva.
Nessa re-leitura, o levante armado de 1935 teria como objetivo "deter o avanço fascista" (ver entrevista já citada de Prestes); e a guerrilha do Araguaia teria sido um episódio de "resistência armada", uma "gloriosa jornada pela liberdade dos brasileiros" (conforme depoimento de João Amazonas, presidente do PCdoB, à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, realizado no dia 16 de maio de 1996, in: Guerrilha do Araguaia, pp. 9-11; bem como suas declarações no livro de Romualdo Pessoa Campos Filho).
Vistos retrospectivamente, ambos os episódios consistiram exatamente nisso: em ações de "resistência". Mas seria anacronismo atribuir esta percepção aos insurgentes ou aos guerrilheiros, mais ou menos como faz Fernando Gabeira em relação a si mesmo em O que é isso, companheiro. Anacrônico e --se desacompanhado de uma crítica direta à versão brasileira da estratégia foquista e/ou da guerra popular-- intelectualmente desonesto. Afinal, quem poderia ser contra o direito de resistir à tirania? Mas não era apenas disso que se tratava, em nenhum dos casos.
Em resumo, podemos reafirmar --utilizando-se da definição sintética de Wladimir Pomar-- que a questão da violência revolucionária transformou-se no denominador comum da resistência à política majoritária no Partido Comunista, nas diversas cisões ocorridas durante os anos 60.
Em todos os casos --inclusive no do PCdoB-- há uma hegemonia das concepções foquistas.
Mas quando estudamos os debates do V Congresso, pode-se verificar que o centro da crítica dos futuros dissidentes não é exatamente “a via pacífica”, mas sim à subordinação estratégica e tática do PCB à burguesia brasileira, em particular ao governo Juscelino Kubitschek.
Ao contrário, os futuros dissidentes são bastante cautelosos ao abordar a questão da "transição pacífica". Nos parece que foi a incapacidade de ir até as últimas consequências, na crítica aos fundamentos estratégicos da estratégia hegemônico no movimento comunista, que transformou a violência revolucionária no mínimo denominador comum de que fala Wladimir Pomar.

Os caminhos da "revolução brasileira"

A crítica à “via pacífica”, feita pela cisão de 1962, não entusiasmou aqueles que a fariam, às vezes com ainda maior ênfase, alguns anos depois. Como diz Wladimir Pomar, "o PCdoB não se transformou na organização catalisadora do descontentamento de ponderáveis correntes que antes estavam sob a influência do partido revisionista e que agora haviam despertado para a necessidade da luta armada".
Gorender é de opinião que o imperativo da luta armada, transformado em axioma, não unificou a esquerda porque, "à questão da luta armada se acrescentavam outras, concernentes, aos antecedentes partidários e doutrinários, a influências teóricas de origem nacional e internacional, pressões de países socialistas, limitações regionais etc."
Seria o cruzamento "destas e outras variáveis" que explicaria a "proliferação de tantas siglas na esquerda daqueles anos. O número de siglas não tem relevância, quando o apoio de massas funciona como seletor. Nas fases de ascenso político, prevalece a tendência aglutinante, importando menos para a ação prática que pequenos grupos sobrevivam à margem das grandes organizações ou gravitem em torno delas. Já nas fases descendentes, após o impacto de derrotas e no ambiente de refluxo do movimento de massas, em condições de clandestinidade cada vez mais densa, quando o intercâmbio flui através de precários canais, prevalece a tendência à fragmentação, às cisões repetidas. São as fases de rachas, de divisões e subdivisões, às vezes motivadas por questões secundárias ou pelas rivalidades personalistas". (p. 87)
Não caberia, aqui, fazer uma crítica desta "sociologia das cisões". Mas é evidente que a contestação à hegemonia do Partido Comunista sobre a esquerda brasileira começou no início dos anos 60, num período de ascenso do movimento de massas. Portanto, parece haver uma relação direta a radicalização de massas e a contestação da linha majoritária no Partido Comunista.
Essa contestação aumentou após o golpe de 1964, porque este colocou em questão, de maneira pública, a linha dos comunistas brasileiros. Mas antes disso esta linha já vinha sendo questionada. De fora do Partido, pelos dirigentes da Ação Popular, das Ligas Camponesas, da Política Operária e de outras organizações. De dentro do Partido, fundamentalmente pelos que fariam a cisão de 1962.
Porque nenhuma dessas organizações conseguiu se constituir em novo centro hegemônico da esquerda brasileira? Isto tem relação, a nosso ver, com vários fatores, o principal dos quais tem relação com as transformações que estavam em curso na classe trabalhadora neste período e que se aprofundaram ao longo da ditadura, dando origem a uma "nova" classe operária, que emergiria no final dos anos 70 e se constituiria em centro hegemônico real da esquerda brasileira.[3]
Mas há um fator de natureza subjetiva, que parece ser a incapacidade de formular uma análise da realidade brasileira capaz de compreender o que se passava naquele momento histórico, bem como a correlata incapacidade de formular uma estratégia adequada para aquele período. Esta incapacidade e inadequação é amplamente citada, na literatura consultada, embora geralmente a partir de pontos de vista diametralmente opostos.
A incapacidade e inadequação transparecem em três níveis. Por um lado, na adesão da maior parte da esquerda à chamada teoria das etapas. Por outro lado, no que chamaremos provisoriamente de "teoria dos entraves" ou "obstáculos". Finalmente, na discussão sobre quem seria a "classe revolucionária".
A teoria das "etapas" é desenvolvida de maneira mais completa no VI Congresso da Internacional Comunista, realizado em julho de 1928. Reproduzimos a seguir um resumo do item 8º do programa aprovado naquele Congresso, conforme elaborado por Antonio Mazzeo (Sinfonia inacabada, 1999, pp.46-47):
"A revolução mundial do proletariado é resultado de processos de naturezas diversas, que se efetuam em períodos distintos: revoluções proletárias, propriamente ditas; revoluções de tipo democrático-burguês que se transformam em revoluções proletárias; guerras nacionais de libertação; revoluções coloniais", caracterizados em três tipos fundamentais de revolução:
a)países de capitalismo de tipo superior, como os Estados Unidos da América, Alemanha, Inglaterra etc., com potentes forças produtivas, com uma estrutura produtiva altamente centralizada, com um regime político democrático-burguês estabelecido. Nesses países a passagem à ditadura do proletariado é direta, podendo-se proceder à imediata expropriação da grande indústria e estruturação do Estado em moldes soviéticos e, ainda, à coletivização da terra;
b)países de nível médio de desenvolvimento do capitalismo, como Espanha, Portugal, Polônia, Hungria, países balcânicos etc., onde permanecem importantes vestígios de relações semifeudas na economia agrária, com o mínimo de elementos materiais necessários para a construção do socialismo, e onde o processo de transformação democrática ficou incompleto. Em alguns desses países é possível a transformação, mais ou menos rápida, da revolução democrático-burguesa em revolução socialista. Em outros, pode ser desencadeada uma revolução proletária com grande contingente de objetivos de caráter democrático-burguês. Em todos estes países a ditadura do proletariado está subordinada à forma que irá tomar a revolução democrático-burguesa, na qual o proletariado deverá disputar a hegemonia na condução do processo;
c)países coloniais e semi-coloniais, como China e Índia e os países dependentes, como Argentina e Brasil, onde estão presentes germens de indústrias ou existe desenvolvimento industrial considerável, mas insuficiente para a edificação independente do socialismo. Nesses países predominam relações de modo de produção asiático ou relações feudal-medievais, na economia e na superestrutura política, nas quais a concentração dos meios produtivos encontram-se em mãos de grupos imperialistas: as empresas industriais, o comércio, os bancos mais importantes, os meios de transportes, o latifúndio etc. Nesses países a luta fundamental é contra o feudalismo e contra as formas pré-capitalistas de produção, em que constituem objetivos consequentes a luta pelo desenvolvimento agrário, a luta antiimperialista e a luta pela independência nacional. Sendo assim, a luta pelo socialismo somente será viável mediante uma série de etapas preparatórias e como resultado de um grande período de transformação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista".
Segundo Gorender, a linha política aprovada no V Congresso do Partido Comunista, em 1960, "partiu da mesma premissa do Programa do Quarto Congresso: a concepção da revolução brasileira em duas etapas (...) a primeira etapa seria a da revolução nacional e democrática, de conteúdo antiimperialista e antifeudal. Após a vitória dela é que se passaria à segunda etapa --a da revolução socialista. A identidade de premissas entre as duas linhas conduzia à identidade do ponto de vista estratégico. Propunha-se a mesma composição de forças sociais para a realização das tarefas revolucionárias da primeira etapa: o proletariado, os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia nacional. Como antes, falava-se no requisito da hegemonia do proletariado. Veremos que esse requisito é ilusório, quando se trata de hegemonizar a burguesia nacional de um país como o Brasil." (Combate nas trevas, p. 33)
Como se depreende desta leitura, a teoria das etapas pode levar tanto à aceitação da hegemonia burguesa sobre o processo revolucionário, quanto à busca de uma hegemonia do proletariado frente à uma burguesia "incapaz de realizar a revolução democrático-burguesa". Da mesma forma, a teoria das etapas é compatível tanto com a tese da transição pacífica, quanto com a da inevitabilidade da violência revolucionária.
É por isto, aliás, que tantos defensores da Declaração de Março passarão --sem nenhuma autocrítica sobre os fundamentos da estratégia "etapista"-- à luta armada, poucos anos depois. Nalguns casos, haverá até mesmo uma exaltação da etapa de "libertação nacional".[4]
Mutatis mutandis, entre os que criticavam o etapismo, havia quem defendesse um conceito "processual" de revolução. É o caso de Caio Prado Jr. (A revolução brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1966), para quem é  "no socialismo que irá desembocar afinal a revolução brasileira". A esse respeito, vale dizer que A revolução brasileira foi antecipada pelos artigos que Caio Prado Jr. escreveu para os debates do V Congresso, artigos publicados por Novos Rumos.
Segundo Galdino, "no processo preparatório do Congresso foram difundidas a todo o partido as posições oficiais da direção pecebista, na forma de 'Teses para o debate', que desenvolviam e ampliavam a argumentação dos pontos essenciais" da Declaração de Março. "Abriu-se, então, um processo de debate oficial, que durou cerca de cinco meses, até então inédito na história do PCB, onde os militantes e intelectuais do partido puderam expressar abertamente suas opiniões sobre a linha política do partido na 'Tribuna de Debates' do semanário Novos Rumos." (p. 31).
         "Nesse contexto, os ex-dirigentes conseguiram articular uma ofensiva contra as posições oficiais das 'Teses', através de uma bateria de artigos, cujos principais autores foram João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Carlos Danielli e Calil Chade." Ao todo, eles publicaram 31 artigos na "Tribuna de Debates" do V Congresso.
         Segundo Galdino, na análise do desenvolvimento capitalista no Brasil, "os 'oposicionistas' tocavam em diversos pontos fracos da análise pecebista em suas críticas e esboçaram uma opinião mais adequada à realidade (...) Contudo, por resultarem mais de uma posição dogmática, do que de uma reflexão crítica ao quadro doutrinário do PCB, tais idéias não serão desenvolvidas de maneira consequente, permanecendo como posições circunstanciais." Já Wladimir Pomar considera que existiam, entre os futuros dissidentes, duas posições ou tendências distintas, expressas respectivamente nos artigos de Maurício Grabois e Pedro Pomar. (Wladimir Pomar: "Elementos para o estudo e debate da história do Partido", mimeografo, s/d).
         "Os 'oposicionistas' são derrotados no V Congresso. E, aparentemente, se submetem ao resultado. A resolução política resultante do congresso apresentará fórmulas mais à esquerda que as 'Teses', demonstrando que as críticas das vozes dissidentes tiveram certo eco dentro do PCB. Este fato está certamente relacionado à própria ideologia nacional-democratista vigente no partido, que ainda não superara definitivamente suas ambiguidades e contradições (...) A linha política sistematizada na 'Declaração de Março' já estava em gestação, nos anos de 1955 a meados de 1957, quando Amazonas, Grabois e Arruda Câmara compunham, ainda, o núcleo do grupo dirigente do PCB. Esses dirigentes, e outros, compartilharam do início da crítica e reformulação da política calcada no Programa de 1954, Não é, pois, fortuito que se vejam obrigados a reconhecer formalmente os impasses decorrentes do hiato existente entre o esquema estratégico sistematizado no Programa do IV Congresso e os espaços e possibilidades de ação política e de alianças junto às lideranças do chamado movimento nacionalista."(p. 43)
         "Nos debates do V Congresso, os 'oposicionistas' defendem uma posição intermediária ou a meio caminho, entre as formulações de 1954, que expressaram tentativas espontaneístas de combate à ordem política e social vigente e a nova linha expressa da 'Declaração de Março', sustentando simultaneamente as premissas ideológicas que permitiram a legitimação de uma postura pragmática, de integração política ao populismo. Figuravam nas formulações dos 'oposicionistas' a crença de um papel positivo da burguesia nacional frente às tarefas da revolução nacional e democrática, a valorização da luta por reformas democráticas e a preservação da ordem constitucional democrático-burguesa inaugurada em 1946 --e a tradicional tese da necessidade da violência revolucionária para a conquista de transformações na sociedade brasileira, da ruptura com a institucionalidade ou legalidade na qual expõe a pretensão de atuar e ocupar espaços".
         "Dito de outra forma, os 'oposicionistas' mantinham ideológicamente em uma posição onde estavam presentes, de forma mais explícita e marcada, os elementos ideológicos contraditórios do nacional-democratismo.
"A visão espontaneísta sobre a iminência da revolução, ainda presente na visão dos 'oposicionistas', não se expunha no debate, portanto não sendo objeto de uma reflexão que superasse a mera admissão de que existira no passado. Desse modo, tal concepção voluntarista, poderá explicitar-se após a fundação do PCdoB, aguçando as incoerências de sua ideologia política --baseado no nacional-democratismo--, particularmente após o golpe miltiar, quando a proposta de luta armada se tornará ponto central para a maior parte das organizações de esquerda."
Portanto, quando estudamos os debates travados no PCB, em torno da Declaração de Março de 1958, bem como os debates do V Congresso, podemos verificar que o centro da crítica dos futuros dissidentes não é exatamente “a via pacífica”, mas sim a subordinação estratégica e tática do PCB à burguesia brasileira, em particular ao governo Juscelino Kubitschek.
Maurício Grabois ("Duas concepções, duas orientações políticas", in: "Tribuna de Debates" do V Congresso do PCB, Novos Rumos, abril de 1960) diz que a Declaração de Março "considera que as forças revolucionárias chegarão ao poder através da acumulação de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas. Mas como acumular tais reformas no atual regime e com o poder nas mãos das forças reacionárias?”
Mas ao mesmo tempo, Grabois dirá que “embora, na presente situação do mundo, se deva ter em conta a viabilidade do caminho pacífico, não se pode, nas condições brasileiras, torná-lo absoluto”.
Enquanto mantém uma atitude aparentemente aberta no que diz respeito ao tema da violência revolucionária, Grabois é taxativo em afirmar que “toda orientação estratégica e a linha tática expostas na Declaração têm em vista quase que exclusivamente os interesses da burguesia, conduzem ao fortalecimento de suas posições políticas, em prejuízo das demais forças revolucionárias. Superestima a magnitude e a profundidade da contradição entre a burguesia e o imperialismo, como se a burguesia não pudesse chegar a acordos com os imperialistas”.
         Pedro Pomar (“Análise marxista ou apologia do capitalismo?”, publicado na "Tribuna de Debates" do V Congresso do PCB, jornal Novos Rumos de 6 a 12 de maio de 1960) diz que a Declaração de Março de 1958 é, “de um modo geral, falsa, nacional-reformista". Sobre o tema da "coexistência pacífica", evita chocar-se com a tese em si, preferindo criticar o fato dela estar sendo "compreendida, pela direção, como amainamento da luta contra o imperialismo".
Mas, como Maurício Grabois, Pedro Pomar é taxativo em dizer que "diante do desenvolvimento capitalista no país, a Declaração (...) caiu no objetivismo, na exaltação ao capitalismo (...) O desenvolvimento capitalista é um fenômeno objetivo (...) que nas condições brasileiras é progressista. Mas à classe operária e ao Partido incumbe encarar o desenvolvimento capitalista de acordo com seus interesses e suas tarefas revolucionárias e não prosternar-se diante dele (...) Ao constatar o caráter progressista do capitalismo no Brasil, embora na presente etapa a revolução não tenha objetivos socialistas, é profundamente errôneo apresentar ao nosso povo a perspectiva de um desenvolvimento capitalista”.
Podemos dizer que "o mínimo denominador comum" dos futuros dissidentes, na altura do V Congresso, não é (ainda) a questão da violência revolucionária, mas sim o tema da subordinação à burguesia. Embora não tenha chegado ao ponto de constituir uma estratégia alternativa, havia elementos que apontavam nesse sentido.

         Na base da estratégia “etapista” está a idéia de que o socialismo (ou processo de transição ao comunismo) pressupõe que a sociedade capitalista tenha chegado a um certo estágio de desenvolvimento, estágio este que colocaria as “forças produtivas em contradição com as relações de produção capitalistas”. Na maioria dos países do mundo, o estágio seria outro, dadas as condições de atraso econômico (geralmente provocadas pela dominação e exploração imperialistas).
Nesses países, a “primeira etapa” consistiria em transformações de natureza nacional, democrática e popular, cujo efeito principal seria acelerar o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo em que fortaleceria os setores populares, em particular a classe operária (que, em muitos casos, seria criada a partir daquelas transformações).
Desta forma, se abriria o caminho para o desenvolvimento capitalista, que num certo ponto produziria contradições agudas que colocariam na ordem do dia, como tarefa imediata, a segunda etapa: a revolução socialista.
         Portanto, a etapa democrático-burguesa tinha como objetivo superar os obstáculos para o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Neste ponto, o "etapismo" entra em contato, sofre a influência e também influencia um conjunto de explicações sobre a sociedade brasileira, formuladas nos anos 50 e 60, que tinham em comum a idéia de que o desenvolvimento brasileiro estaria "obstaculizado".
         A mais conhecida e persistente dessas explicações foi a formulada por Celso Furtado, até hoje influente em setores da esquerda brasileira (ver, por exemplo César Benjamin: A opção brasileira. Rio de Janeiro, Contraponto, 1998).
Gorender diz que "tese da estagnação econômica duradoura", elaborada por Celso Furtado, foi uma "coqueluche da esquerda" nos anos 60[5]. Fundamental, também, é a leitura de Caio Navarro de Toledo (ISEB, fábrica de ideologias, 1997, 2a edição).
         A idéia de que o capitalismo brasileiro tinha sua expansão obstaculizada pelo latifúndio, pela dependência e pelo mercado interno restrito comportava duas conclusões. Na primeira delas, a disjuntiva era entre desenvolvimento e imperialismo. Na outra, a disjuntiva era entre capitalismo e socialismo. Mas ambas consideravam impossível, sem reformas estruturais ou sem revolução, que o capitalismo pudesse se desenvolver.
         Interpretação semelhante pode ser encontrada no capítulo "Divergências e convergências dos projetos revolucionários, o caráter da revolução brasileira" (in: O fantasma da revolução brasileira, 1993, pp.30-37).
         Naquele quadro teórico, a violência revolucionária ganhava uma "legitimidade estrutural", já que neste quadro de estagnação só a intervenção direta e imediata daquela "parteira" seria capaz de trazer à luz a nova sociedade, mesmo que essa nova sociedade fosse capitalista.
         Nesta visualização dos "entraves", como indica Daniel Aarão Reis Jr., havia um "notável campo de acordos" entre PCdoB, PCB e Polop. O mesmo diz Marcelo Ridenti, para quem, pelos mesmos motivos, "não havia tanta distância entre os dois modelos de revolução".
Como sabemos, o capitalismo desenvolveu-se durante a ditadura militar, metabolizando o  latifúndio, a dependência e o mercado interno restrito, que não foram "entraves", mas partes integrantes do "desenvolvimento capitalista realmente existente" em nosso país.
Uma crítica mais abrangentes destas teorias encontra-se em Guido Mantega (A economia política brasileira, 1984), Maria Rita Loureiro (50 anos de ciência econômica no Brasil, 1997) e Ricardo Bielschowsky (Pensamento econômico Brasileiro, 1988). Raimundo Santos, em "Alberto Passos Guimarães num velho debate" (in: O pecebismo inconcluso, pp 89-97), aborda um aspecto fundamental desta polêmica: a questão agrária.
O etapismo e a "teoria dos obstáculos" ou entraves conduziram a maior parte da esquerda brasileira, nas suas mais variadas matizes, a ser hegemonizada pelo desenvolvimentismo. Hegemonia que, de maneira naturalmente diferente, se faz presente ainda hoje[6].
Ao mesmo tempo que compartilhavam do etapismo e do que chamamos aqui de "teoria dos entraves" ou obstáculos, as organizações de luta armada também enfrentavam um problema comum: a inação da classe operária.
Após o golpe de 1964, aquelas organizações, majoritariamente formadas na tradição marxista, para quem a classe operária é "o coveiro do capitalismo", trataram o problema de duas maneiras diferentes e, de certa forma, complementares: estimulando a "proletarização" de quadros e elaborando novas teorias sobre o "sujeito revolucionário" --seja o papel revolucionário do lumpesinato, seja o campesinato como força principal do processo revolucionário brasileiro.
A diretiva de "integração na produção" e do "papel revolucionário das massas marginalizadas" são descritas por Jacob Gorender (Combate nas trevas, p. 125 e p. 151, respectivamente).
Quanto ao papel do campesinato na revolução, há duas variantes a considerar: a defesa do campo como o "espaço" privilegiado, em detrimento do modelo soviético da insurreição urbana; e a defesa direta do campesinato como principal destacamento do processo revolucionário.
Estas duas concepções --a do campo como "terreno favorável" e do campo como "massas camponesas e não terreno" (Wladimir Pomar, p. 24)-- vão estar presentes na ação do Partido Comunista do Brasil.
Num país que vivia então um processo de acelerada urbanização e industrialização capitalistas, a transformação do campo em cenário geográfico e/ou social da revolução torna pertinente perguntar: o comunismo do Brasil --entre outras organizações da "luta armada"-- representava, de fato, quem? qual setor social?


[1] Uma análise deste processo é feita por M. Hajéc: "A bolchevização dos partidos comunistas" (in: História do Marxismo, volume VI).

[2] Internacional Comunista, fundada em 1919 e dissolvida em 1943.
[3] Da mesma forma, a disputa atualmente em curso, entre as várias correntes de esquerda, tem como pano de fundo as mudanças ocorridas na classe trabalhadora ao longo dos anos 90.
[4] É o caso, particularmente, de Carlos Marighella.
[5] Na Classe Operária (ver capítulo 3) Pedro Pomar critica duramente Celso Furtado, no artigo "As teorias do 'rompimento cataclísmico' do Sr. Celso Furtado". Paulo Schilling também ataca duramente Celso Furtado no livro Como se coloca a direita no poder, p. 119. 
[6] Para uma análise da sobrevivência dessas concepções na esquerda brasileira, nos anos 90, ver Valter Pomar: "A opção brasileira", in: América Latina, alternativas e propostas, São Paulo, Xamã Editora, 1999.

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