quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Habemus centro!!!

Versão reduzida do texto abaixo foi publicada na edição n. 57 do jornal Página 13, de maio de 2007. Outra versão, mais desenvolvida, foi enviada aos membros do Diretório Nacional do PT. Ambas, assim como a versão abaixo, que contém algumas alterações em relação a que foi enviada aos dirigentes do PT, fazem uma análise da tese “Mensagem ao Partido. O PT e a revolução democrática”, uma das 12 teses inscritas ao 3º Congresso do Partido dos Trabalhadores.[1]


“Refundação”, “valores republicanos” e “revolução democrática”: estas são as mais destacadas contribuições da tese “Mensagem ao Partido”.

A “refundação” provocou tanta celeuma, que os signatários da “Mensagem” não a incluíram na versão inscrita oficialmente para os debates do 3º Congresso. Uma pena, pois nos parece uma síntese mais que perfeita do que pensam os proponentes daquela tese.

Os “valores republicanos” não provocaram igual celeuma, mas tampouco viraram sucesso de crítica e público. [2]

Já a “revolução democrática” emplacou. Presente em algumas resoluções anteriores do PT e figurante em mais de uma tese ao 3º Congresso, a “revolução democrática” parece agradar quase todos os gostos: radical o suficiente (“revolução”), mas sem perder a ternura (“democrática”) jamais.

Por trás do que muitas vezes é tratado como mero slogan, existe uma visão acerca de qual deve ser a estratégia do PT. Visão que busca solucionar um problema anunciado, mas não resolvido, por outra tese.

A saber: como combinar um programa de desenvolvimento do capitalismo com uma estratégia socialista, sem cair na social-democracia?

A tese “Construindo um Novo Brasil” apresentou assim o problema: “temos de criar o mercado interno que, com a integração da América do Sul, dê dinamismo ao capitalismo brasileiro e promova outro tipo de reforma. A partir daí poderão surgir outros temas em discussão, aparentemente proibidos hoje, como a propriedade social e o caráter da empresa privada. Cria-se uma perspectiva socialista, e não só de reformas dentro do capitalismo”.

A tese “Mensagem ao Partido” tenta apresentar uma solução para estas questões. Neste particular, ambas as teses partem da mesma problemática. E, como veremos, não se diferenciam muito na “solucionática”.

A revolução brasileira

Conforme a “Mensagem ao Partido”, o segundo governo Lula teria o “potencial” de “começar a efetivar mais plenamente a revolução democrática no Brasil”.

Ou seja: a revolução democrática seria um processo real, que já estaria em curso, cabendo ao governo Lula efetivá-lo “mais plenamente”.

Esta abordagem mostra que os autores da “Mensagem” adotam um padrão de análise muito comum na esquerda brasileira dos anos 1960, qual seja: o de considerar que estaria em curso um processo objetivo chamado de “revolução brasileira”, cabendo à esquerda dirigi-lo de maneira conseqüente e vitoriosa.

Ao denominar como “revolução” o processo histórico então em curso, aquela abordagem confundia as mudanças sociais profundas, causadas pelo processo de desenvolvimento capitalista ocorrido no Brasil, com um processo revolucionário.

Esta confusão era motivada, em alguns casos, pelo duplo sentido do termo “revolução”.

Geralmente consideramos “revolução” um processo de curta duração e eminentemente político, no qual o poder passa de uma classe social para outra. Mas o termo “revolução” pode designar, também, um processo de longa duração, no qual a sociedade se transforma profundamente, mas sem que as classes dominantes sejam substituídas abruptamente do (ou ameaçadas de perder o) poder político.

Os dois processos podem estar presentes e vinculados no processo histórico de cada país. Longos períodos de “revolução no sentido amplo” preparam curtos períodos de “revolução no sentido estrito” da palavra, que por sua vez abrem novos períodos de “revolução no sentido amplo”.

Para evitar a confusão, alguns autores falam em “revolução pelo alto”. Talvez fosse mais adequado utilizar os termos “evolução” e “revolução”. No Brasil dos anos 1960, este tipo de distinção não foi considerada por muitos autores de esquerda. Havia motivos para isto.

Por um lado, as mudanças econômicas e sociais provocadas pelo processo de evolução (como a industrialização e a urbanização) eram ou pareciam ser, num certo sentido, revolucionárias.  Por outro lado, a resposta das classes dominadas (camponeses, assalariados) a este processo de evolução assumia formas políticas cada vez mais radicalizadas, o mesmo ocorrendo com a reação das classes dominantes (burguesia, latifundiários).

Ambos os fenômenos (mudanças e enfrentamentos) resultaram numa radicalização ideológica, em todos os espectros políticos e sociais, o que ajuda a entender porque o golpe militar de 64 foi apresentado como uma “revolução”.

A confusão é evidente no livro A revolução brasileira, de Caio Prado Jr. O livro critica a visão do Partido Comunista, nos anos 1950 e 1960, acerca da sociedade brasileira. O PCB subestimava o desenvolvimento capitalista realmente existente no Brasil. Em decorrência disto, os comunistas afirmavam que a “revolução brasileira” teria como objetivo desenvolver o capitalismo. Caio Prado, por outro lado, superestimava o desenvolvimento capitalista no Brasil e apontava o socialismo como objetivo da revolução brasileira.

O debate proposto por Caio Prado Jr. dizia respeito à natureza de nossa formação social e às decorrentes “tarefas” ou “programa” da revolução brasileira.

No ambiente pós-golpe de 1964, as reflexões de Caio Prado sobre as transformações de longo prazo que estavam em curso na sociedade brasileira, foram recebidas como um estímulo a mais para a adesão imediata à luta armada, entendida na época por parcela da esquerda como o único caminho da revolução brasileira. Confusão facilitada pelo duplo sentido do termo “revolução”.

Em 2007, como é óbvio, vivemos um ambiente político totalmente diferente. Se nos anos 1960, a confusão entre os dois sentidos do termo “revolução” ajudava a empurrar muitas pessoas para a esquerda, hoje pode ocorrer o contrário.

Afinal, se o processo “normal” de desenvolvimento é denominado de “revolução”, então a luta por reformas passa a ser enxergada como se tivesse, em si mesma, um conteúdo também revolucionário (no sentido estrito da palavra).

Noutras palavras, algumas pessoas começam a achar que a luta por reformas democráticas seria capaz de resolver o problema que, na história, só as revoluções no sentido estrito conseguiram resolver: transferir o poder de uma classe social para outra classe social.

Democracia política e revolução social

A “Mensagem ao Partido” diz que “o que chamamos de revolução democrática é a expressão no plano histórico da identidade socialista e democrática do PT”.

Como muitos conceitos, o de “revolução democrática” é polissêmico. Há dois sentidos mais usuais: o de revolução democrático-burguesa e o de democratização radical.

Os signatários da “Mensagem ao Partido” não levam em conta o primeiro sentido. Uma pena, pois considerá-lo ajudaria a esclarecer os vínculos entre a “refundação”, os “valores republicanos” e a “revolução democrática”.

O que a “Mensagem” chama de revolução democrática coincide, em larga medida, com a idéia da “democratização radical”. Para alguns de seus signatários, que nos anos 1990 compunham uma corrente partidária denominada “democracia radical”, isto certamente não constitui novidade.

Aliás, o debate sobre as relações entre revolução democrático-burguesa, democracia radical e socialismo é tão antigo quanto o próprio movimento socialista.

Nas grandes revoluções burguesas (a inglesa, do século XVII; a francesa e a americana, na segunda metade do século XVIII; as européias, ao longo do século XIX), existia um setor mais radical, que defendia a máxima extensão da democracia política e também medidas de democratização radical da propriedade. Portanto, um setor que pretendia levar a revolução além dos limites desejados pela burguesia.

Pouco a pouco, esta “ala esquerda da revolução burguesa” foi adquirindo maior nitidez teórica e política, dando origem ao que conhecemos hoje como movimento socialista.

Em 1848, grande parte dos socialistas acreditava que a revolução ultrapassaria rapidamente seus limites burgueses. Basta dizer que Marx e Engels abrem o Manifesto anunciando que “um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo”.

Essa expectativa, muito humana, de experimentar uma grande revolução socialista ainda no curso de suas vidas, acompanhou Marx e Engels por muitos anos depois de 1848. Foi neste contexto que Marx utiliza a expressão “revolução permanente”, que seria retomada posteriormente por Parvus e por Trotsky.

Dentro do movimento socialista europeu, na segunda metade do século XIX, conviviam e disputavam diversas posições frente ao capitalismo, frente ao Estado e frente às liberdades democrático-burguesas.

Ganharam mais força as posições que combinaram a propaganda sobre o objetivo final socialista, com políticas de acumulação de forças, através da luta por reformas democráticas e sociais, mesmo que nos marcos do capitalismo.

Essa tendência ganhou mais força após o esmagamento da Comuna de Paris (1871) e com o surgimento do Partido Social-Democrata Alemão (1875).

Foi neste marco que ocorreu o grande debate sobre “reforma ou revolução”. Que no fundo dizia respeito a como combinar a luta por reivindicações democráticas e sociais, que visam melhorar aqui e agora as condições de vida das classes trabalhadoras, com a luta por revolucionar o capitalismo e criar uma sociedade socialista.

Trata-se de um debate muito complexo, inclusive porque sua solução no terreno teórico não o soluciona do ponto de vista prático. Noutras palavras: as revoluções, as crises e situações revolucionárias, são fenômenos raros. O que cria uma situação muito difícil para todos os partidos que se pretendem revolucionários: como participar da vida política cotidiana (ou seja, na luta por reformas), sem cair no “reformismo”.

É nesses marcos que devemos apreciar a seguinte passagem da “Mensagem ao Partido”: “uma experiência de transição democrática ao socialismo é inédita na história da humanidade. Contra os argumentos de que ela é impossível frente à resistência violenta e ao poder econômico, é preciso confiar na força da vontade democrática das grandes maiorias, na capacidade da democracia de vencer opressões históricas, nas dimensões criativas que só um pluralismo autêntico pode gerar, na legitimidade que a democracia confere ao uso circunscrito e controlado da força contra atos que firam a legitimidade democrática”.

Nesta como em outras passagens, a “Mensagem” permite variadas interpretações. Mas o mais provável é que a “Mensagem” esteja se referindo, neste trecho, ao processo de luta e conquista do poder.

O que é inédito? Uma “transição democrática ao socialismo”. Podemos deduzir, portanto, que teria havido transições não-democráticas ao socialismo. E o que caracterizaria estas “transições não-democráticas”? Seria a violência revolucionária?

Se esta hipótese estiver correta, nesta pequena passagem, a “Mensagem” estabelece uma oposição entre “violência revolucionária” e “democracia”. Neste caso, sendo procedente nossa hipótese, os defensores da “revolução democrática” pretenderiam fazer uma “revolução não-violenta”.

É paradoxal, mas nesse caso o conceito de “democracia” esposado pela “Mensagem” excluiria, por definição, a democracia revolucionária. E seu conceito de “revolução” excluiria, também por definição, a violência revolucionária.

Nesta questão, como em outras, a “Mensagem ao Partido” se aproxima bastante das preocupações da tese “Construindo um novo Brasil”, para quem “a superação do capitalismo não se dará pela via da ruptura violenta”.

Como sempre, os velhos reformistas dizem com clareza aquilo que os recém-convertidos só admitem com muitos rodeios. Ou será que nossa hipótese está incorreta? Com a palavra, os autores da “Mensagem”.

De nossa parte, entendemos que a noção de socialismo processual, sem “ruptura violenta”, tem pelo menos duzentos anos. Trata-se de uma tese de grande popularidade, principalmente entre as massas trabalhadoras. O problema é que nossos desejos de uma “transição pacífica” não foram, até agora pelo menos, correspondidos pelas classes dominantes.

Por isso, quem defende que a superação do capitalismo dispense a “ruptura violenta”, precisa desenvolver mais suas idéias a respeito. Ou que combine com os “russos” o desfecho da partida.

De nossa parte, entendemos que “rupturas” fazem parte da vida social, podendo assumir formas mais ou menos violentas, mais ou menos pacíficas. Quem luta contra o capitalismo, luta a favor de uma ruptura, que pode ser parcial (o que chamamos de “reformas”) ou geral (o que chamamos de “revolução”).

Por óbvio, aos trabalhadores e aos socialistas interessa que estas rupturas sejam extremamente radicais no conteúdo e extremamente pacíficas na forma. Quem se beneficia das guerras, da destruição, das mortes, da cultura da violência e do medo, é o capitalismo.

Quanto mais força, organização e consciência os trabalhadores tiverem, maior a possibilidade das rupturas (reformistas ou revolucionárias) serem radicais no conteúdo e pacíficas na forma. Lembrando Maquiavel: se nosso lado for muito forte, maior a chance de vencermos sem precisar “desembainhar a espada”.  

Acontece que isto não depende de nossa vontade. Pelo contrário, a experiência histórica mostra que, antes mesmo que as classes trabalhadoras se fortaleçam (“socializando a política” e “ampliando o espaço público”) ao ponto de ameaçar a continuidade da ordem capitalista, os defensores desta ordem lançam mão, preventivamente, de todos os instrumentos disponíveis para defender o status quo.

Por isso, uma estratégia socialista não pode ser ingênua nem dogmática. Muitos serão os caminhos da democracia e da revolução.

Entendendo a “revolução democrática”

A “Mensagem”, após registrar que a expressão “revolução democrática” está presente em várias resoluções nacionais do PT, acrescenta o seguinte: “a experiência de liderar a coalizão que governa o país desde 2003 permite enriquecer o conceito de revolução democrática em cinco dimensões: a de seu sentido nuclear e unificador, sua dinâmica histórica, a construção da coalizão político-social necessária para viabilizá-la e, enfim, o sentido da experiência na sua relação com os conceitos do socialismo democrático”.

O seu sentido “nucleador e unificador” estaria na “construção da esfera pública” (daí a importância do “republicanismo”).

Segundo a “Mensagem”, o Brasil teria experimentado ao longo do século XX três padrões de organização estatal, correspondentes ao varguismo, à ditadura militar e ao neoliberalismo.

Agora, “a construção de uma era de desenvolvimento com distribuição de renda e soberania nacional, depende do processo de construção de um novo Estado profundamente democratizado no fundamento e no exercício de seu poder político e universalizado em suas funções”.

A “Mensagem”defende que o “avanço na construção da esfera pública” permitirá “uma aproximação cada vez maior da universalização da cidadania”, em termos de direitos econômicos, sociais, culturais e políticos.

Este avanço “permitirá ir quebrando a histórica e brutal apropriação do Estado brasileiro, desde suas origens, pelas classes dominantes, transformando-o em instrução de distribuição de riquezas e de incentivo à emancipação social, apontando um rumo claramente anticapitalista”.

Para tal, a “Mensagem” propõe um ataque em três “frentes combinadas”: “o aprofundamento da democracia e da universalização das funções do Estado brasileiro”, “a construção de novas formas de controle e regulação da atividade econômica” e “a construção de áreas mistas de atuação entre o Estado e a sociedade civil organizada”.

Ninguém pode ser contra a adoção de medidas de democratização política, de políticas públicas universais ou de ações que limitem os danos causados pelo “livre mercado”. A questão é saber que lugar estas medidas ocupam numa estratégia de luta pelo socialismo.

Neste particular, a “Mensagem” não explica como, através destas medidas, será possível ampliar a esfera pública, até transformar o Estado hoje pró-burguês, num Estado que “aponte um rumo claramente anticapitalista”.

E, principalmente, a “Mensagem” não esclarece como será possível universalizar plenamente a cidadania, sem provocar uma “reação conservadora” por parte das classes dominantes? O processo de ampliação dos direitos econômicos e sociais exigirá ou não, em algum momento, para ter continuidade, um processo de ruptura em profundidade?

A dinâmica da revolução democrática

Curiosamente, a “Mensagem” ao Partido não chama, em apoio a suas teses, o processo atualmente em curso na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Tampouco faz referência ao que se passou no Chile, onde se tentou fazer uma transição ao socialismo nos marcos da democracia eleitoral.

A ausência de citação é compreensível (pois a realidade não valida várias das teses da “Mensagem”), mas não deixa de ser chocante, particularmente no caso do Chile. Afinal, há um evidente parentesco entre a “área de propriedade social” defendida pela Unidade Popular e a “economia do setor público [como] o caminho histórico da transição democrática para o socialismo”, tal como é defendido pela “Mensagem”.

O estudo das experiências citadas, a começar da chilena, é algo fundamental para a esquerda brasileira.

Tal estudo mostra, em primeiro lugar, que as medidas propostas pela “Mensagem” (subordinação do Banco Central ao presidente da República, sistema de financiamento de longo prazo da economia, ampliação do Conselho Monetário Nacional, o Estado como indutor do desenvolvimento, uma revolução na educação e a construção de um sistema nacional de inovações, entre outras) são absolutamente insuficientes para constituir um setor público capaz de enfrentar as grandes corporações privadas e os grandes Estados capitalistas.

Neste sentido, a “Mensagem” peca por timidez: sua “revolução democrática” é muito pouco reformista.

O estudo das experiências latino-americanas citadas mostra, em segundo lugar, que a questão central da dinâmica de curto prazo tanto de uma revolução, quanto de um processo de reformas radicais, está na política, não na economia.

A mudança na estrutura de propriedade e de comando da economia é fundamental para o sucesso de médio e longo prazo de uma revolução. No curto prazo, por outro lado, problemas econômicos podem dar combustível para a reação, mas não são suficientes para viabilizar um golpe. Nesse particular, o fundamental é o controle dos meios de comunicação, das forças armadas, do legislativo, do judiciário, da burocracia estatal e, é claro, o apoio internacional.

A esse respeito, a “Mensagem” afirma que “a revolução democrática é um processo histórico que combina o aprofundamento da democracia com as transformações na vida social do país”.

Mas logo depois, diz que devemos ter “a determinação de realizar as mudanças que forem objeto de claro apoio majoritário na sociedade, fruto de consensos amplos, respeitando sempre os direitos políticos das minorias”.

Posto nestes termos, qualquer mudança profunda (e, portanto, polêmica) é inviabilizada de antemão. Se o “apoio majoritário” tem que ser combinado com “consensos amplos”, o ritmo da marcha será dado pelos setores mais atrasados, mais conservadores, mais reacionários.

Talvez por isto, a “Mensagem” adote um tom braudeliano, de longa duração, ao falar que a “imaginação da revolução democrática deve ser capaz de construir toda uma era de mudanças”. Um tempo “não linear”, incluindo até mesmo “governos de forças políticas externas à coalizão que sustenta a revolução democrática”.

Ou seja: a “Mensagem” fala de uma “revolução” que produzirá mudanças no longo prazo e que, no curto prazo, pode sofrer imensos “recuos e descontinuidades” no terreno da política. Sendo assim, é quase incompreensível que a “Mensagem” afirme que “a revolução democrática significa um processo permanente de alteração da correlação de forças em favor dos trabalhadores e do povo”.

Na verdade, o que os autores da tese parecem defender é um método: cabe lutar por uma alteração permanente da correlação de forças em favor dos trabalhadores e do povo. Mas este método, esta postura, é uma variável indissociável de qualquer força política de esquerda, em qualquer época histórica, em defesa de qualquer estratégia.

Algo semelhante pode ser dito da seguinte afirmação: “lutamos para que esta mudança se expresse nas posições crescentemente conquistadas na institucionalidade democrática, no aumento da organização e da capacidade de mobilização dos movimentos sociais e na evolução da própria cultura política do país, tornando-a cada vez mais receptiva aos valores do socialismo democrático”.

Ocorre que este método de atuação não se traduz, necessariamente, nos resultados pretendidos por nós. Por outro lado, se tivermos sucesso crescente neste processo de acúmulo de forças, isto certamente produzirá uma reação de alta intensidade por parte das classes dominantes.

Esta reação não parece fazer parte dos cálculos estratégicos da “Mensagem”. É como se, apesar dos recuos e descontinuidades que a “Mensagem” reconhece inevitáveis, ao fim e ao cabo nossa vitória estivesse garantida. Sem rupturas, é claro.

Neste sentido, tirando o lulismo exagerado (“A liderança pública do presidente Lula deve ser valorizada como uma grande expressão política e cultural deste novo protagonismo das classes trabalhadoras e populares. Ela alcançou uma dimensão histórica. Ela tem uma dimensão internacional: o presidente Lula é símbolo mundial da luta contra a fome e a miséria e protagonista central na unificação política da América Latina. Sua liderança se fez na luta pela democracia, firmou-se na relação com coletivos de partidos e movimentos sociais autônomos, nacionalizou-se com o amadurecimento da democracia brasileira e só pode se expandir em meio ao mais amplo pluralismo e direitos políticos”.), o problema central da “Mensagem”, quando fala da “dinâmica da revolução”, é teleológico

Seus autores parecem acreditar que, ocorra o que ocorrer, a revolução democrática seguirá seu curso, pois o Brasil caminha em direção ao progresso, à democracia e ao socialismo. No final do século XIX, este fatalismo era típico da social-democracia alemã. Como o socialismo era inevitável, o reformismo era a política mais recomendável. Sabemos no que deu esta aposta estratégica.

Revolução democrática e socialismo

Alguns signatários da “Mensagem” acreditam que a “revolução democrática” seria nosso caminho para o socialismo.

Não é o que se deduz de várias passagens da tese, entre as quais a que afirma o seguinte: como “a revolução democrática envolve a realização de reformas de caráter nacional, democrática e popular, as tarefas de sua direção envolvem a formação de uma grande coalizão histórica político-social. Esta coalizão é necessariamente mais ampla que a unidade entre as forças políticas que se reivindicam do socialismo democrático”.

Claro que a “Mensagem” defende que as forças da esquerda político-social tenham protagonismo nesta coalizão. Chega a propor que os movimentos sociais se reconheçam como “co-governo”, numa afirmação que se for levada a sério é contraditória com a tradição petista, de autonomia dos movimentos sociais.

Ao mesmo tempo, a “Mensagem” defende a “construção de fóruns nacionais --como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social-- ou setoriais, em que estejam representadas as classes fundamentais do país”.

Conselhos deste tipo são apontados como uma “necessidade da revolução democrática, no sentido de estabelecer pontes de diálogo e acordos entre os setores produtivos nacionais e os trabalhadores e criar novos parâmetros de regulação da economia”.

Quem acredita que a “revolução democrática” seria nosso caminho para o socialismo, deveria ler, também, a esclarecedora entrevista que Tarso Genro concedeu ao jornalista Otávio Cabral (Veja, 28/3/2007).

Nessa entrevista, um dos mais importantes signatários da “Mensagem” (tese que em determinado trecho critica a idéia social-democrata da neutralidade do Estado), afirma que “desde a Constituição de 1988, os sucessivos governos foram profissionalizando cada vez mais a Polícia Federal. A margem de uso da polícia pelo poder político foi se estreitando cada vez mais. Portanto, repito: o risco é zero (...) Um dirigente do PT, sendo ministro da Justiça, precisa dar exemplo de comportamento republicano”.

Sobre a proposta de que o “presidente da República possa fazer consultas plebiscitárias diretas à população, sem passar pelo Congresso”, Genro afirma que “é uma discussão residual dentro do partido. Mas, de novo, é preciso levar em conta que essa idéia não prospera dentro do governo nem dentro do PT”. Ou seja, a “revolução democrática” (ao menos na versão de Tarso) possui limites muito precisos, inclusive no terreno da democratização política do país: não suporta nem mesmo um plebiscito diretamente convocado!!

Ainda sobre o tema do Estado, Tarso Genro esclarece que “o PT também se originou de organizações revolucionárias que defendiam a visão unitária do estado a partir da luta de classes. Mas (...) essa visão unitária do estado nunca foi hegemônica no PT. Hoje, é altamente minoritária, não tem nenhuma chance de vingar. É por isso, inclusive, que o PT vem sofrendo algumas dissidências. Dentro do partido, as visões mais tradicionalmente ligadas ao messianismo proletário tornaram-se cada vez menos expressivas. Hoje, independentemente de ranço ideológico aqui e ali, não há mais nenhum grupo no PT que defenda um projeto socialista compatível com a supressão das liberdades, com uma visão de dominação de classes, de estado classista”.

Ou seja, falar do caráter de classes do Estado é “ranço ideológico”. Mas então o que é o Estado? Algo neutro, que paira acima das classes? Ou um “espaço em disputa” entre várias classes sociais? Admitida alguma destas teses, por qual motivo então a “Mensagem” critica a ilusão social-democrata na “neutralidade do Estado”?

Vale lembrar que, a rigor, os social-democratas não acreditam que o Estado seja “neutro” no sentido vulgar da palavra; fosse assim, eles não disputariam como disputam o controle do aparelho de Estado. O que os social-democratas modernos não aceitam é a teoria que atribui um “caráter de classe” ao Estado, entre outros motivos porque isso revelaria os limites das disputas eleitorais e obrigaria a discutir a necessidade de substituir o Estado “burguês” por um Estado “socialista”.
 
Sobre a relação entre democracia e desigualdade social, Tarso explica que é difícil uma democracia se consolidar “com tanta desigualdade social. Isso porque a democracia tem um arcabouço institucional, mas sua base é a coesão social”.

Para o caso de não ter ficado claro o alcance do argumento, Tarso Genro desenvolve: “a palavra adequada é coesão social. A democracia tem de admitir uma desigualdade social relativa, senão ela não será democracia. O elemento estratégico vital para sua consolidação é a coesão social. Eu diria que a grande utopia da revolução democrática do Brasil é fazer com que as pessoas pertençam às classes sociais, e não que sejam destituídas de classes sociais. Temos de reestruturar a sociedade de classe. As pessoas têm de ter o sentimento de pertencer às classes sociais porque assim elas participam de um diálogo de coesão. Isso é que dá estabilidade e força à democracia”.

Repetimos, para que fique claro:

a)”a democracia tem de admitir uma desigualdade social relativa, senão ela não será democracia”;

b)”o elemento estratégico vital para sua consolidação é a coesão social”;

c)“a grande utopia da revolução democrática do Brasil é fazer com que as pessoas pertençam às classes sociais, e não que sejam destituídas de classes sociais”.

Exagerando no rigor, poderíamos traduzir assim o raciocínio: o Estado democrático burguês não é compatível com o fim da desigualdade. Nos marcos do Estado democrático burguês, o máximo que se pode fazer é reduzir a desigualdade. Pois para eliminarmos a desigualdade, teríamos que superar a divisão da sociedade em classes. E isto exigiria implementar uma visão unitária do Estado a partir da luta de classes, o que revelaria ranço ideológico. Mas para manter a democracia-com-desigualdade, é preciso coesão social. Um elemento central da coesão social é que as pessoas aceitem a divisão da sociedade em classes. O que supõe que de cima cedam, para que os de baixo subam um pouco.

O raciocínio de Tarso Genro é claramente social-democrata. Um pensamento coerente para quem confessa, candidamente, que “até meus 30 ou 35 anos, eu era um admirador de Lenin (...) Depois dos meus 30 ou 35 anos, passei a ter grande admiração por Nelson Mandela. Ele é um gênio político, comandou uma transição sem sangue de dentro do cárcere e conseguiu derrotar o apartheid pela ação política, pela convocação e pela mobilização social. Se não fosse pela generosidade de Mandela, a África do Sul estaria hoje afogada em sangue: sem revolução, sem paz e sem estado. Por fim, do ponto de vista teórico, tenho duas referências intelectuais fortes: Antonio Gramsci, que foi o grande intérprete da cultura política revolucionária originária do Renascimento e do Iluminismo, e Norberto Bobbio, cuja genialidade demonstrou que, sem regras estáveis e previsíveis, o resultado é sempre pior para uma maioria. Bobbio interferiu profundamente nos destinos do socialismo italiano, dizendo que, se existe uma possibilidade verdadeira de socialismo, ela é, em primeiro lugar, uma questão democrática”.

Claro que Tarso Genro é apenas um dos signatários da “Mensagem”. Suas opiniões, por mais peso que tenham, não necessariamente expressam uma posição hegemônica dentro daquela tese. Assim, vale a pena ler o que escreveram, sobre a “revolução democrática”, dois importantes dirigentes da tendência Democracia Socialista.

Revolução democrática e etapismo

No artigo “Por que revolução democrática?”, Juarez Guimarães e Carlos Henrique Árabe afirmam que “é preciso construir os fundamentos para o PT ser o partido líder da revolução democrática”. Para isso, é preciso “colocar o debate do 3º Congresso do PT no plano da revolução democrática”.

Segundo os dois autores, “a noção de que estamos inseridos em uma revolução democrática no atual período histórico supera, pela base, uma visão etapista que limita os horizontes do PT ao imediatamente possível e adia para um futuro indeterminado as dimensões socialistas da experiência de governar o Brasil. Ora, sem um princípio democrático de transição ao socialismo, pensado em um tempo histórico alargado, o PT inevitavelmente ficará cindido entre sua identidade socialista democrática e a sua experiência real, guiada pelos pragmatismos da hora”.

Árabe e Juarez explicam que “é preciso ir criando desde já a legitimidade para as transformações estruturais democrático-populares no campo da propriedade, da renda e do poder. A reforma agrária e a reforma urbana demandam a discussão pública da função social da propriedade; uma reforma tributária progressiva é vital em um país com escandalosa concentração da propriedade, da riqueza e da renda. A superação do desemprego estrutural, a distribuição de renda, a radicalização das políticas de inclusão social, a conquista de direitos iguais para as mulheres e os negros, um novo contrato ecológico com a natureza não ocorrerão sem uma radical democratização do poder na sociedade e, simultaneamente, democratização do Estado”.

Para debater melhor o raciocínio dos autores acerca do “etapismo”, é preciso fazer uma longa nota de rodapé histórica.

No final do século XIX, os socialistas estavam presentes e relativamente organizados inclusive em países que não haviam experimentado revoluções democrático-burguesas.

Foi o caso, por exemplo, da Rússia, onde a maior parte dos socialistas considerava necessária, inevitável e desejável a ocorrência de uma revolução burguesa, que criaria as condições para o desenvolvimento do capitalismo e para uma posterior revolução socialista.

Claro que havia diferentes posições sobre que política os socialistas deveriam adotar no curso da ansiada revolução burguesa. Este é o tema, por exemplo, do famoso livro de Lênin: “Duas táticas da social-democracia na revolução democrática”.

Os bolcheviques entendiam que quanto mais radical e popular fosse a revolução democrático-burguesa, mais rapidamente se daria a passagem para a etapa seguinte: a revolução socialista.

Portanto, defendiam que no curso da revolução democrático-burguesa, os socialistas lutassem pela mais radical democratização da sociedade e da política. Mas os bolcheviques não questionavam o caráter democrático-burguês, capitalista, não-socialista, da revolução russa de 1904-1905.

Após fevereiro de 1917, Lênin altera sua posição e passa a defender o caráter socialista da revolução, entrando em choque com os “velhos bolcheviques” que seguiam defendendo a mesma posição de 1904-1905.

Esta guinada de Lênin é apresentada, por diversos estudiosos, como um reconhecimento tardio das teses de Trotsky sobre a revolução permanente, segundo as quais ocorreria uma rápida transição da etapa burguesa para a etapa socialista da revolução russa.

A defesa do caráter socialista da revolução tinha uma implicação imediata: os conselhos de operários, soldados e camponeses deviam assumir todo o poder (que estava parcialmente dividido com o governo provisório, integrado por partidos socialistas e partidos burgueses).

Neste ponto, Lênin e Trotsky estavam identificados. Mas, após tomar o poder e enfrentar uma violenta guerra civil, o mesmo Lênin e a maioria dos bolcheviques adotam a “Nova Política Econômica” (NEP), reconhecendo explicitamente que a construção do socialismo na Rússia exigiria desenvolver, mesmo que de maneira controlada, o capitalismo.

Este desenvolvimento “controlado” do capitalismo durou vários anos, até que a direção do Partido Comunista da União Soviética, já então dominada pelo grupo de Stálin, desencadeou a coletivização forçada e a industrialização acelerada. Por uma dessas ironias trágicas da história, ao desencadear a “revolução pelo alto”, Stálin adotou posições que tinham sido defendidas anteriormente por Trotsky. Que, nessa altura, já havia sido expulso da URSS.

De todo modo, fica claro que as condições para a “tomada do poder” e as condições para a “construção do socialismo” no terreno econômico-social não andavam juntas, na Rússia de então. Lênin mesmo chegara a dizer que era mais fácil tomar o poder na Rússia do que na Alemanha; mas seria mais difícil construir o socialismo na Rússia do que na Alemanha.

Discrepância semelhante se verificou em todas as experiências revolucionárias do século XX, ocorridas em países de baixo desenvolvimento econômico capitalista.

Para complicar ainda mais, na maioria dos países que experimentaram revoluções socialistas durante o século XX , a “radicalização da democracia” que foi característica do período que antecedeu e sucedeu imediatamente a tomada do poder, não conseguiu sobreviver posteriormente. A institucionalização da revolução não foi acompanhada da ampliação da democracia política. O que tem uma relação direta com o atraso econômico e com a decisão de centralizar pesadamente todos os recursos, para obter um crescimento acelerado.

Como já dissemos, a “problemática” posta pela revolução russa (relação entre revolução democrático-burguesa e revolução socialista, entre desenvolvimento prévio do capitalismo e construção do socialismo) esteve presente em todas as outras “revoluções socialistas” ocorridas no século XX.

Frente a esta problemática, surgiram várias respostas. A que obteve mais adeptos, sendo praticamente a estratégia oficial do movimento comunista nos países periféricos, antes e logo depois da Segunda guerra mundial, era a “etapista”, segundo a qual a revolução socialista teria que ser precedida de uma revolução democrático-burguesa, que criasse as condições para o desenvolvimento do capitalismo.

A teoria das "etapas" é desenvolvida de maneira mais completa no VI Congresso da Internacional Comunista, realizado em julho de 1928. Reproduzimos a seguir um resumo do item 8º do programa aprovado naquele Congresso, conforme elaborado por Antonio Mazzeo (Sinfonia inacabada, 1999, pp.46-47):

"A revolução mundial do proletariado é resultado de processos de naturezas diversas, que se efetuam em períodos distintos: revoluções proletárias, propriamente ditas; revoluções de tipo democrático-burguês que se transformam em revoluções proletárias; guerras nacionais de libertação; revoluções coloniais", caracterizados em três tipos fundamentais de revolução:

a)países de capitalismo de tipo superior, como os Estados Unidos da América, Alemanha, Inglaterra etc., com potentes forças produtivas, com uma estrutura produtiva altamente centralizada, com um regime político democrático-burguês estabelecido. Nesses países a passagem à ditadura do proletariado é direta, podendo-se proceder à imediata expropriação da grande indústria e estruturação do Estado em moldes soviéticos e, ainda, à coletivização da terra;

b)países de nível médio de desenvolvimento do capitalismo, como Espanha, Portugal, Polônia, Hungria, países balcânicos etc., onde permanecem importantes vestígios de relações semifeudais na economia agrária, com o mínimo de elementos materiais necessários para a construção do socialismo, e onde o processo de transformação democrática ficou incompleto. Em alguns desses países é possível a transformação, mais ou menos rápida, da revolução democrático-burguesa em revolução socialista. Em outros, pode ser desencadeada uma revolução proletária com grande contingente de objetivos de caráter democrático-burguês. Em todos estes países a ditadura do proletariado está subordinada à forma que irá tomar a revolução democrático-burguesa, na qual o proletariado deverá disputar a hegemonia na condução do processo;

c)países coloniais e semi-coloniais, como China e Índia e os países dependentes, como Argentina e Brasil, onde estão presentes germens de indústrias ou existe desenvolvimento industrial considerável, mas insuficiente para a edificação independente do socialismo. Nesses países predominam relações de modo de produção asiático ou relações feudal-medievais, na economia e na superestrutura política, nas quais a concentração dos meios produtivos encontra-se em mãos de grupos imperialistas: as empresas industriais, o comércio, os bancos mais importantes, os meios de transportes, o latifúndio etc. Nesses países a luta fundamental é contra o feudalismo e contra as formas pré-capitalistas de produção, em que constituem objetivos conseqüentes a luta pelo desenvolvimento agrário, a luta antiimperialista e a luta pela independência nacional. Sendo assim, a luta pelo socialismo somente será viável mediante uma série de etapas preparatórias e como resultado de um grande período de transformação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista".

A estratégia da revolução em duas etapas, adotada pelo Partido Comunista desde sua fundação, em 1922, reservava ao movimento comunista (e à classe trabalhadora, em certa medida) um papel subalterno, por princípio; uma força auxiliar no curso da revolução democrático-burguesa no Brasil.

Segundo Jacob Gorender, a linha política aprovada no V Congresso do Partido Comunista do Brasil, em 1960, defendia “a concepção da revolução brasileira em duas etapas (...) a primeira etapa seria a da revolução nacional e democrática, de conteúdo antiimperialista e antifeudal. Após a vitória dela é que se passaria à segunda etapa --a da revolução socialista. (...) Propunha-se a [seguinte] composição de forças sociais para a realização das tarefas revolucionárias da primeira etapa: o proletariado, os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia nacional. (...) falava-se no requisito da hegemonia do proletariado. (...) requisito (...) ilusório, quando se trata de hegemonizar a burguesia nacional de um país como o Brasil." (Combate nas trevas, p. 33)

O “etapismo” era compatível com a hegemonia burguesa sobre o processo revolucionário, mas também com a busca de uma hegemonia do proletariado frente a uma burguesia "incapaz de realizar a revolução democrático-burguesa". Da mesma forma, a teoria das etapas é compatível tanto com a tese da transição pacífica, quanto com a da inevitabilidade da violência revolucionária.

A estratégia etapista, com suas nuances, foi mantida em todas as fases do movimento comunista brasileiro até os anos 1980, inclusive pelas organizações que travaram a luta armada contra a ditadura militar.

Mesmo nos momentos de maior radicalização na retórica ou nas formas de luta, esta estratégia subordinada não foi abandonada. E os setores do movimento comunista que criticaram esta estratégia, ou tiveram reduzidíssima influência, ou terminaram retornando ao leito da estratégia originalmente criticada.

Na base da estratégia “etapista” está a idéia de que o socialismo (ou processo de transição ao comunismo) pressupõe que a sociedade capitalista tenha chegado a um certo estágio de desenvolvimento, estágio este que colocaria as “forças produtivas em contradição com as relações de produção capitalistas”. Na maioria dos países do mundo, o estágio seria outro, dadas as condições de atraso econômico (geralmente provocadas pela dominação e exploração imperialistas).

Nesses países, a “primeira etapa” consistiria em transformações de natureza nacional, democrática e popular, cujo efeito principal seria acelerar o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo em que fortaleceria os setores populares, em particular a classe operária (que, em muitos casos, seria criada a partir daquelas transformações).

Desta forma, se abriria o caminho para o desenvolvimento capitalista, que num certo ponto produziria contradições agudas que colocariam na ordem do dia, como tarefa imediata, a segunda etapa: a revolução socialista.

Portanto, a etapa democrático-burguesa da revolução tinha como objetivo superar os obstáculos para o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Neste ponto, o "etapismo" entra em contato, sofre a influência e também influencia um conjunto de explicações sobre a sociedade brasileira, formuladas nos anos 1950 e 1960, que tinham em comum a idéia de que o desenvolvimento brasileiro estaria "obstaculizado".

A mais conhecida e persistente dessas explicações foi a formulada por Celso Furtado, até hoje influente em setores da esquerda brasileira (vide César Benjamin e A opção brasileira).

A idéia de que o capitalismo brasileiro tinha sua expansão obstaculizada pelo latifúndio, pela dependência e pelo mercado interno restrito comportava duas conclusões. Na primeira delas, a disjuntiva era entre desenvolvimento e imperialismo. Na outra, a disjuntiva era entre capitalismo e socialismo. Mas ambas consideravam impossível, sem reformas estruturais ou sem revolução, que o capitalismo pudesse se desenvolver.

Acontece que o capitalismo desenvolveu-se durante a ditadura militar, metabolizando o latifúndio, a dependência e o mercado interno restrito, que não foram "entraves", mas partes integrantes do "desenvolvimento capitalista realmente existente" em nosso país.

O etapismo e a "teoria dos obstáculos" ou entraves conduziram a maior parte da esquerda brasileira, nas suas mais variadas matizes, a ser hegemonizada pelo desenvolvimentismo. Hegemonia que, de maneira naturalmente diferente, se faz presente ainda hoje.

Revolução “permanente” e etapismo

Noventa anos depois da revolução russa, a “problemática” inaugurada pela revolução russa pode ser respondida de outra maneira.

Em primeiro lugar, percebendo que o completo desenvolvimento das forças produtivas (que segue sendo uma condição necessária para que se tenha uma sociedade sem exploração, nem opressão) não se dará no capitalismo, entre outros motivos porque é da natureza deste modo de produção gerar um desenvolvimento desigual (embora combinado), que recria e metaboliza relações de produção anteriores (como a pequena produção e até mesmo o escravismo), além de gerar crises e destruições periódicas das forças produtivas acumuladas (o que inclui a destruição da natureza e a brutalização dos seres humanos). 

Portanto, quem imagina superar o “atraso” através de “uma etapa capitalista”, para depois lutar pelo socialismo, está fadado ao eterno recomeçar.

Por outro lado, quem imagina que o advento do socialismo dispensará o desenvolvimento das forças produtivas (e dispensará, inclusive, a presença de relações capitalistas de produção em setores da economia), estará ajudando a criar um socialismo que não superará efetivamente o capitalismo.

A solução teórica para este problema está em compreender o socialismo como um período de transição, em que conviverão, durante um tempo ao que tudo indica muito prolongado, relações de produção “capitalistas” e “comunistas”.

Dito de outra forma: devemos nos propor a “completar o desenvolvimento” e “realizar as tarefas democrático-burguesas” já nos marcos da “revolução socialista”.

Como se deduz, há entre os críticos ao etapismo pelo menos duas vertentes:

a) a que incorpora, nos marcos da transição socialista, as tarefas democrático-burguesas pendentes, bem como um certo nível de sobrevivência de relações capitalistas de produção, por um tempo mais ou menos longo;

b) a que minimiza, desconhece ou até nega a inclusão, nos marcos da transição socialista, daquelas tarefas democrático-burguesas, bem como a necessidade de conviver com relações capitalistas de produção.

Para os integrantes desta segunda tradição, o problema central da transição socialista estaria nas relações de produção. Havendo vontade política, relações de produção “socialistas” poderiam surgir e se tornar predominantes, mesmo em condições de brutal atraso no desenvolvimento das forças produtivas. Sendo assim, toda e qualquer concessão às relações de produção capitalistas (da manutenção da pequena propriedade privada, até a instituição de políticas salariais não igualitárias, passando por certa autonomia das unidades produtivas frente ao planejamento central) poderia ser interpretada como uma traição.

Para esta segunda tradição, as dificuldades enfrentadas pelas tentativas de construção do socialismo no século XX estavam ligadas, centralmente, a temas da “política”: a burocratização do aparato do Estado, a democracia interna no “partido de vanguarda” etc. Já os temas da “economia” tinham um papel menor, levando a construções teóricas curiosas, como a do Estado operário burocraticamente degenerado e a do Social-imperialismo soviético, que empobreciam brutalmente a dialética entre política e economia, entre relações de produção e forças produtivas.

Após o desmanche do chamado “campo socialista”, muitos dos que defendiam estas interpretações (por exemplo, alguns ramos do maoísmo e do trotskismo, por exemplo) fizeram um curioso giro teórico.

Abandonaram muito do pensavam sobre o socialismo. Mas, do mesmo jeito que antes, seguiram considerando a “política” estrito senso como aspecto central, dissociando-a da “economia”. Usando palavras atuais: para eles, antes como agora, a essência do socialismo estaria na “radicalização da democracia”.

Antes, isto poderia significar a defesa de posições extremamente radicalizadas e esquerdistas, segundo as quais a vontade política seria capaz de superar rapidamente dilemas materiais profundos. Agora, poderia significar a defesa de posições extremamente moderadas, segundo as quais a institucionalidade política seria capaz de progredir em direção a valores socialistas, sem tocar nas bases do funcionamento material da sociedade.

Feita a digressão histórica, perguntamos: a “noção de que estamos inseridos em uma revolução democrática no atual período histórico supera, pela base, uma visão etapista que limita os horizontes do PT ao imediatamente possível e adia para um futuro indeterminado as dimensões socialistas da experiência de governar o Brasil”?

A resposta é: em certa medida, sim; mas em definitivo, não.

Em certa medida, sim, já que os signatários da “Mensagem” não acreditam que haja uma etapa “democrática” separada e anterior a uma etapa “socialista”.

Em definitivo, não, porque os signatários da “Mensagem” tentam superar o etapismo, eliminando a revolução.

Dito de outra forma, a “Mensagem” exagera as continuidades e subestima as descontinuidades que existem entre o que denominam de “revolução democrática” (e que nós chamamos de luta por reformas estruturais democrático-populares) e aquilo que se convencionou chamar de “revolução socialista”.

Para não limitar “os horizontes do PT ao imediatamente possível” e para não adiar “para um futuro indeterminado as dimensões socialistas da experiência de governar o Brasil”, os signatários da “Mensagem” dão “conteúdo socialista” a ações de caráter democrático.

Conferem ao Orçamento Participativo uma capacidade e uma expectativa que não correspondem à experiência prática. A “republicanização” do país torna-se uma batalha épica. E caso isto tudo não seja suficiente, trata-se de rebaixar programaticamente o socialismo (desconsiderando o tema central da propriedade dos grandes meios de produção), pois assim o socialismo se torna mais “próximo” da dura realidade de um governo de centro-esquerda.

Neste sentido, o modelo estratégico da “Mensagem” não é etapista, porque é processual. Ou, como diriam os antigos, reformista. Dependendo do trecho da tese (e da versão de cada signatário), pode soar como um reformismo socialista ou um reformismo social-democrata.

Achamos que a “Mensagem” faz um esforço sincero para evitar a cisão entre a “identidade socialista democrática” do Partido e sua ação prática, cotidiana. Mas a solução proposta pela “Mensagem” tem o mesmo anima que guiou as brilhantes contribuições de Berstein, no final do século XIX: maximizar o movimento, minimizar o objetivo final e abrir mão da revolução.

Não achamos que esta abordagem “processual”, “reformista” e proclive à social-democracia seja a única maneira de vincular a cisão entre a “identidade socialista democrática” do Partido e sua ação prática, cotidiana.

Não achamos, tampouco, que para lutar por “transformações estruturais democrático-populares no campo da propriedade, da renda e do poder”, precisamos abrir mão da revolução e assumir um discurso que não esclarece as diferenças entre social-democracia e socialismo.

A estratégia democrático-popular

A “revolução democrática” é inferior ao que o PT já produziu, em termos estratégicos, nos anos 1980, bem como inferior aquilo que a esquerda do PT produziu de reflexão nos anos 1990.

Inferior, entre outros, num aspecto fundamental: nos anos 1980, o PT deixava claro que a conquista do poder e a construção do socialismo supunham acúmulo de forças e também rupturas revolucionárias. Este último aspecto desaparece totalmente na estratégia proposta pela “Mensagem ao Partido”. 

A resolução do 5º Encontro afirmava o seguinte: “para extinguir o capitalismo e iniciar a construção da sociedade socialista é necessário, em primeiro lugar, realizar uma mudança política radical: os trabalhadores precisam transformar-se em classe hegemônica e dominante no poder de Estado, acabando com o domínio político exercido pela burguesia”.

Apresentando a burguesia como inimiga principal, o 5º Encontro defendia a aliança dos trabalhadores assalariados e dos trabalhadores pequeno-proprietários na luta pelo socialismo.

Tendo em vista que não estavam “colocadas na ordem do dia, para as mais amplas massas trabalhadoras, nem a luta pela tomada do poder, nem a luta direta pelo socialismo”, o 5º Encontro defendia a adoção de uma política de acúmulo de forças, combinando a construção do próprio PT, a construção do movimento social e a ocupação de espaços institucionais.

Mesmo não estando colocada na ordem do dia a luta pela tomada do poder, nem a luta direta pelo socialismo, a resolução do 5º Encontro defendia que o PT se apresentasse para toda a sociedade como um partido socialista. E afirmava que “a alternativa que apresentamos à Nova República e à dominação burguesa no País é democrática e popular e está articulada com a nossa luta pelo socialismo".

A resolução do 5º Encontro dizia ainda que, “na situação política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados criarem as condições para as transformações socialistas. Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio – tarefas não efetivadas pela burguesia – tem duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista.”

Levando em consideração o que afirmavam tanto o 5º Encontro quanto o 6º Encontro Nacional do PT (este último realizado em 1989), podemos dizer que no final dos anos 1980 o PT enxergava assim o seu “caminho para o poder”:
a) o objetivo estratégico é o socialismo;
b) a luta pelo socialismo exige construir e conquistar o poder político;
c) construir o poder exige acumular forças, através da construção do Partido, organização dos movimentos sociais, ocupação de espaços institucionais, realização de alianças e formação de uma cultura socialista de massas;
d) existem alianças sociais e políticas, estratégicas e táticas, sendo que a aliança estratégica se realiza entre os trabalhadores assalariados e os trabalhadores pequeno- proprietários;
e) as classes trabalhadoras possuem reivindicações e objetivos imediatos, táticos e estratégicos, que entram em choque fundamentalmente com os interesses dos latifundiários, do grande capital monopolista e do imperialismo;
f) as reivindicações e objetivos das classes trabalhadoras são sistematizadas pelo programa democrático-popular;
g) o programa democrático-popular detalha os objetivos da luta pela igualdade social, pela democratização política e pela soberania nacional, articulando as tarefas anti-latifundiárias, anti-monopolistas e anti-imperialistas com a luta pelo socialismo;
h) nas condições do Brasil dos anos 1980 (e o mesmo continuou valendo nas décadas posteriores), as disputas eleitorais e o exercício de governos constituíam parte da política de acúmulo de forças, portanto integram o processo de construção do poder;
i) a eleição do presidente da República visava dar início, através do governo federal, à implementação de reformas estruturais de caráter democrático-popular;
j) a execução destas reformas e a previsível reação das classes dominantes alterariam o patamar da luta de classes, criando uma situação em que ficaria claro, para amplos setores das classes trabalhadoras, a necessidade de passar da construção à conquista do poder.

A estratégia proposta pelo 5º Encontro e pelo 6º Encontro permitiam, além do resumo feito por nós, outras interpretações. Estas diferentes interpretações decorriam, em parte, das limitações e contradições internas das resoluções citadas. Decorriam, também, das dificuldades políticas e conceituais inerentes ao próprio conceito de transição socialista.

A transição socialista

Numa das fórmulas clássicas a respeito, a transição socialista é apresentada como tendo um ponto de partida político (a conquista do poder pelo proletariado), um ponto de chegada político-social (a abolição das classes e do Estado) e um parâmetro (sem o qual não faz sentido falar em transição): a progressiva socialização da propriedade, da produção e do poder político.

No início do século XX, imaginava-se que a transição socialista teria início em países onde o capitalismo era mais avançado. Mas as revoluções e tentativas de construção do socialismo, ocorridas a partir de 1917, ocorreram todas em países onde o capitalismo era pouco desenvolvido.

Nesses países, se os trabalhadores assalariados quisessem ter o apoio da maioria da população, eles precisavam fazer uma aliança com o campesinato (trabalhadores pequeno-proprietários). Isso exigia deixar claro, para esses aliados, que o processo de socialização imposto à grande propriedade capitalista não afetaria, ou afetaria de maneira diferente, a pequena propriedade individual ou familiar.

Essa promessa foi feita, por exemplo, pelos social-democratas (bolcheviques) russos, em 1917. Mas na prática, houve imensos conflitos com o campesinato e um brutal processo de coletivização forçada da pequena propriedade privada camponesa.

Em parte por conta deste problema gravíssimo, após a Segunda guerra mundial, quando partidos comunistas chegaram ao poder na China e em vários países da Europa Oriental, os novos governos foram denominados de “democrático-populares”.

O uso do termo “democrático-popular” visava, entre outras coisas, deixar claro que nesses países se manteria o espaço da pequena propriedade privada, individual ou familiar.

Noutras palavras, o uso do termo “democrático-popular” visava deixar claro que a existência de um governo socialista resultante do processo revolucionário (ou, em alguns casos, do fato do Exército Vermelho soviético ter assumido o controle de vários países, após a derrota das tropas nazistas) não implicava automaticamente na socialização do conjunto da propriedade e do processo de produção.

No caso daqueles países, onde o capitalismo era muito atrasado e que muitas vezes não haviam experimentado revoluções democrático-burguesas vitoriosas, o governo socialista teria que dar cabo de “tarefas inconclusas”, “não realizadas” ou “típicas de revoluções democrático-burguesas”, como a independência nacional, a reforma agrária e a democratização política.

Segundo esta tradição, falar de "governo democrático-popular" equivalia a falar de “primeira fase da transição socialista”.

O governo democrático-popular na tradição do PT

Já na década de 1980 e posteriormente, foi muito comum a confusão entre o governo democrático-popular que daria término à Nova República versus o governo democrático e popular que daria início à transição socialista.

A distinção deveria ser muito clara: no primeiro caso, o governo democrático e popular seria produto de um processo eleitoral. No segundo caso, o governo democrático e popular seria produto de uma ruptura revolucionária.

Acontece que as resoluções do 5º e do 6º Encontros dão o mesmo nome para ambas as coisas, quando o mais adequado talvez tivesse sido dar nomes distintos, para governos cujo conteúdo e tarefas eram diferentes.

A resolução do 6º Encontro demonstra que havia consciência da diferença, pois afirma claramente que “embora não exista uma crise do tipo revolucionário, nem mesmo uma situação revolucionária, podemos e devemos conquistar o Executivo, a Presidência da República, inaugurando um novo período no qual, com a posse do governo – portanto, de parte importante do poder do Estado – a disputa pela hegemonia se dará em outro patamar. Estará colocado para o PT e para as forças democráticas e populares a possibilidade de iniciar um acelerado e radical processo de reformas econômicas, políticas e sociais. Tudo isso criará as condições para a conquista da hegemonia política e de transformações socialistas.”

Em seguida, a resolução do 6º Encontro afirma o seguinte: “um governo do PT e da Frente Brasil Popular deverá realizar as tarefas democráticas e populares no país, de conteúdo antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista. A efetivação de medidas deste gênero, mesmo que de cunho não explicitamente socialista, choca-se diretamente com a estrutura do capitalismo aqui existente (...) o PT não acredita na possibilidade de uma etapa de capitalismo popular no País. Ao contrário, por meio de um processo simultâneo de acúmulo de forças, enfrentamentos e conquistas dos trabalhadores criaremos as condições para dar início às transformações socialistas no Brasil (...) o governo democrático e popular e o início da transição socialista são elos do mesmo processo. A passagem de um ao outro, no entanto, não é automática (...) A implementação na globalidade de um programa democrático-popular só pode ocorrer com a revolução socialista”.

Ou seja: embora reconhecendo que se tratava de governos com conteúdos e tarefas distintas, a resolução do 6º Encontro (dando continuidade ao que era dito na resolução do 5º Encontro) trabalhava com a hipótese de que a passagem de um para outro se daria rapidamente. Ambos os governos seriam não apenas “elos de um mesmo processo”, mas também elos muito próximos no tempo.

As mudanças na correlação de forças, ocorridas na década dos 1990, tanto em âmbito nacional quanto mundial, conduziram exatamente no sentido oposto. Ou seja: embora pudessem continuar fazendo parte do mesmo processo, era cada vez mais provável que houvesse uma grande distância temporal entre os elos. O conteúdo e as tarefas de um governo democrático-popular eleito seriam cada vez mais distantes do conteúdo e das tarefas de um governo democrático-popular revolucionário.

Alguns setores da esquerda brasileira optaram por desconhecer as mudanças na correlação de forças e continuaram atuando como se estivéssemos ainda na conjuntura de 1989.

Outros se prostraram frente à piora nas condições objetivas e subjetivas e optaram por abandonar os propósitos revolucionários e socialistas. Ao invés de dar prosseguimento à elaboração estratégica construída nos anos 1980, adequando a estratégia do PT a um novo período histórico, marcado pela crise do socialismo e pela ofensiva neoliberal, estes setores (que se tornaram majoritários na direção nacional do PT durante os anos 1990) optaram por elaborar outra estratégia.

Sem hierarquizar importâncias, nem estabelecer uma relação de causa-e-efeito, podemos citar as seguintes alterações promovidas por estes setores na linha do Partido:
a) o progressivo abandono do socialismo como objetivo estratégico, em favor da luta contra o neoliberalismo (não mais contra o capitalismo). O PT foi deixando de se apresentar publicamente como um partido socialista;
b) o acelerado abandono do conceito de “revolução” e de conquista do poder, substituindo-os por uma versão extremamente suavizada da disputa de hegemonia, onde ao PT caberia o papel de “partido de interlocução”, que disputa de espaços na institucionalidade;
c) o abandono do objetivo de conquistar o poder, colocando no seu lugar a construção de um “projeto” que contrapõe ao neoliberalismo os "valores do socialismo";
d) a vulgarização do uso do conceito “governo democrático-popular”, em detrimento do sentido estratégico com que o termo era utilizado nas resoluções do 5º Encontro. Prefeituras e governos estaduais passaram a receber esta denominação. “Governo democrático-popular” passou a ser visto, cada vez mais, como sinônimo de “governo Lula”.

Em 1989, praticamos esse mesmo reducionismo, mas com sentido inverso. Naquele momento, acreditávamos que um governo democrático-popular eleito se transformaria, mais ou menos rapidamente, devido à reação das classes dominantes, num governo de tipo revolucionário. Nunca saberemos se esta hipótese se materializaria ou não. Mas, olhando agora, podemos dizer que era grande a confusão entre tática e estratégia, desejo e realidade.

Nos anos 1990, o reducionismo continuou, mas com outro significado.

Nas condições vigentes na década dos 1990, um governo democrático-popular eleito certamente atuaria em margens muito estreitas. Muito dificilmente se criariam as condições para uma mudança de patamar, a nosso favor, da luta de classes.

Em nome desta leitura realista da correlação de forças, vários setores do PT abandonaram completamente qualquer propósito rupturista. Alguns propuseram inclusive abandonar o conceito “democrático-popular”, em favor de dois termos que foram introduzidos quase simultaneamente no debate petista: o de “revolução democrática” e o de “governo de centro-esquerda”.

O que poderia ser um recuo tático transformou-se, assim, num recuo programático e de concepção estratégica. É importante dizer que este recuo estratégico e programático atingiu, de diferentes maneiras, outros setores da esquerda brasileira, que mesmo criticando o pragmatismo do chamado “campo majoritário”, também abandonaram ou relativizaram o objetivo do socialismo e defenderam estratégias que, ao fim e ao cabo, não acumulavam forças na luta pelo poder.

A opção feita pelo grupo majoritário no PT, a partir de 1995, foi substituir a estratégia democrático-popular original por uma estratégia de tipo eleitoral, baseada num arco de alianças de centro-esquerda, em torno de um programa anti-neoliberal, supostamente inspirado nos valores do socialismo. Esta nova estratégia visava vencer as eleições presidenciais, não para dar início à uma “transição democrática e popular rumo ao socialismo”, mas para realizar um governo antineoliberal.

Em certo sentido, a posição defendida pelo chamado “campo majoritário” recordava a estratégia “etapista”, defendida nos anos 1950 pelo Partido Comunista.

No caso do “campo majoritário”, o etapismo se materializava: a) na defesa de uma aliança estratégica com um setor do capital, supostamente contra o neoliberalismo; b) na defesa implícita de sucessivos governos de centro-esquerda, tendo como perspectiva governos cada vez mais progressistas, até que supostamente teríamos um governo democrático-popular e uma correlação que tornaria possível recolocar o socialismo na agenda política do país.

Qualquer semelhança entre isto e alguns aspectos da estratégia proposta pela “Mensagem”, não é mera coincidência.

Um novo “centro” para o PT

As “amplas linhas de ligação entre a revolução democrática e a construção do socialismo” são mais tênues do que imaginam alguns signatários da “Mensagem”.

Numa descrição cheia de boa-vontade, a “revolução democrática” pretende ser uma “justificativa” aceitável para a atuação de um Partido desconfiado da social-democracia, que chegou ao governo federal, em um país capitalista, num momento não-revolucionário, num contexto de radicalização continental.

Numa descrição plena de mau-humor, trata-se de uma tentativa de “dourar a pílula”, praticada por alguns velhos reformistas e muitos recém-convertidos, que carregam no palavreado revolucionário para aplacar sua consciência culpada.

Em qualquer dos casos, a crítica que a “Mensagem” faz à social-democracia (“acredita na neutralidade do Estado e adota como horizonte máximo a luta por reformas no interior do próprio capitalismo”) não passa de uma saudação à bandeira.

Isto fica claríssimo no capítulo “Socialismo democrático e republicano”, que abre falando que o “socialismo é um princípio de civilização alternativo ao capitalismo”, que requer “não apenas a construção de outro modo de produção e distribuição e de outro paradigma de Estado, mas a organização de um outro modo de vida social”, mas que depois envereda pela defesa da introdução de valores republicanos no Estado brasileiro realmente existente. Isto para não falar, é claro, da defesa do espaço da “instituição empresarial” como “elemento valorizador da vida social cotidiana” no socialismo.

Como todos sabem, o movimento capitaneado pela “Democracia Socialista” e pelo hoje ministro Tarso Genro visa constituir um novo “centro” para o PT.

Caso tenham sucesso, o novo “centro” impulsionado pela “Mensagem” será doutrinariamente proclive ao reformismo e à social-democracia.

Perante o social-liberalismo estimulado pelos setores paloccistas do campo ex-majoritário e perante o pragmatismo galopante em alguns setores, isto constituiria sem dúvida um avanço.

Perante a tradição do PT, as afirmações doutrinárias da “Mensagem” implicariam numa parcial refundação.

Já para a Democracia Socialista, principal animadora da tese “Mensagem ao Partido” e que durante anos foi a principal corrente socialista do PT, será a consolidação doutrinária de uma viragem que esta tendência vem fazendo há anos, em direção a posições de centro.



[1] O jornal Página 13 está publicando uma série, dedicada a analisar as teses inscritas ao 3º Congresso. O primeiro texto, publicado na edição 56 de abril de 2007, intitula-se “Doze teses e um destino”.
[2] A respeito, ler o texto “De substantivos e adjetivos: o debate sobre socialismo e republicanismo”, assinado por Iole Ilíada e publicado em www.pt.org.br e também em www.pagina13.com.br
 

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