A experiência dos governos de esquerda na América Latina e Caribe
Até 1998, os principais governos latino-americanos e caribenhos eram governados por partidos alinhados com os Estados Unidos e com o neoliberalismo.
Desde 1998 até 2009, partidos progressistas e de esquerda venceram as eleições em importantes países da região, entre os quais Brasil, Argentina, Venezuela, Uruguai, Bolívia, Equador, Paraguai, Nicarágua e El Salvador.
Isto alterou a correlação de forças na região. Antes de 1998, predominava não apenas o neoliberalismo, mas também uma política internacional subordinada aos interesses dos Estados Unidos. Em 2009, predominava uma política internacional autônoma em relação aos interesses dos Estados Unidos e a busca de uma política econômica alternativa ao neoliberalismo.
Desde 2009, as forças progressistas e de esquerda não conseguiram conquistar nenhum novo governo, embora tenham conseguindo vencer novamente no Brasil. Uruguai, Bolívia e Equador. Já as forças de direita e neoliberais conquistaram o governo do Chile, vencendo as eleições presidenciais também no Panamá. Além disso, as forças de direita e neoliberais promoveram um golpe de Estado em Honduras.
Desde 2009, portanto, podemos dizer que se interrompeu a ofensiva de esquerda e progressista iniciada em 1998. E podemos falar, também, num certo equilíbrio de forças, ainda favorável as forças de esquerda e progressistas.
Em agosto de 2010, o XVI Encontro do Foro de São Paulo, organização que reúne grande parte da esquerda latino-americana e caribenha, adotou as seguintes diretrizes para o período: 1) não perder nenhum governo para a direita; 2) aprofundar as mudanças nos países que governamos; 3) acelerar a integração regional.
O XVI Encontro do Foro de São Paulo também apontou a importância de conquistarmos novos governos (com destaque para Peru, Colômbia e México) e para a importância de ampliarmos a cooperação entre os partidos que integram o Foro de São Paulo. Esta cooperação deve estar presente, inclusive, na troca de informações e na elaboração de um pensamento socialismo latino-americano e caribenho.
Um dos temas que têm sido objeto freqüente de nossa reflexão é a análise do que está sendo feito pelos governos de esquerda, populares e progressistas da América Latina e Caribe.
Este é o objetivo de um projeto denominado Observatório de governos progressistas e de esquerda da América Latina e do Caribe. Este projeto, aprovado pelo XV encontro do Foro de São Paulo, pretende exatamente reunir informações sobre a ação dos citados governos; elaborar uma metodologia de análise comparada; e oferecer a matéria-prima indispensável para uma análise concreta da situação concreta.
Em todos os governos progressistas e de esquerda em América Latina e Caribe, é hegemônica a preocupação com o desenvolvimento econômico, seja como reação a lógica neoliberal, seja para viabilizar rapidamente o atendimento das necessidades sociais, seja para atender aos reclamos de setores capitalistas, seja como parte de uma estratégia socialista de longo prazo, seja como expressão de uma combinação entre alguns ou todos estes aspectos.
Entre os anos 1930 e 1950, o desenvolvimentismo populista ou conservador foi hegemônico em muitos países latino-americanos. O ciclo de golpes militares ocorrido, a partir dos anos 1960, foi uma reação da direita política, do grande capital e do imperialismo, contra a radicalização do desenvolvimentismo populista, muitas vezes aliado com setores socialistas. Nos anos 1970, o desenvolvimentismo conservador entrou em crise, vindo depois a crise das dívidas, o neoliberalismo e as democracias restritas.
Uma das questões que emerge desta análise, portanto, é a necessidade de analisar as semelhanças e diferenças entre os dois ciclos desenvolvimentistas. Isto é particularmente importante, em cinco dimensões: o papel do Estado, a democracia política, a igualdade social, a relação com o meio ambiente e a integração regional.
Em todos os países da região, há um fortalecimento do papel econômico do Estado, não apenas como regulador e indutor, mas também como produtor direto e proprietário de alguns bens nacionais (petróleo, água, gás etc.).
Embora em alguns países isso seja apresentado como parte da implantação do socialismo, é mais exato falarmos do crescimento de um setor capitalista de Estado, indispensável em geral, especialmente quando se pretendem crescimentos rápidos.
Este processo nos faz retomar o debate clássico acerca do caráter de classe do Estado, o papel da burocracia e o papel do Estado no desenvolvimento econômico, inclusive a confusão entre estatismo e socialismo. Não se pode falar que exista nas esquerdas latino-americanas, entretanto, uma visão única acerca do papel do Estado.
Em todos os países da região, há um crescimento da participação popular na vida política, sob as mais variadas formas. Isto também ocorreu no ciclo desenvolvimentista do século XX, com a seguinte importante diferença: o atual ciclo, à diferença daquele, é hegemonizado por partidos de esquerda.
Em todos os países, o crescimento da participação popular gerou tensões com as camadas sociais que antes detinham o monopólio político, com os meios de comunicação a serviço daquelas camadas sociais e daquele monopólio, bem como com a institucionalidade herdada do período anterior (sistemas eleitorais e partidários, justiça, forças de segurança, burocracia estatal).
Em alguns países, como Bolívia, Equador e Venezuela, foi possível realizar processos constituintes, que buscaram criar uma nova institucionalidade. Noutros isto não foi possível ou, pelo menos, não foi tentado. De qualquer forma, há um crescimento das liberdades democráticas, uma radicalização retórica e prática por parte das camadas que antes detinham o monopólio político e a constatação de que a estratégia eleitoral consome imensas energias, além de causas distorções de variados tipos, nas forças de esquerda.
Como a ampliação dos espaços democráticos das maiorias produz, via de regra, a redução dos espaços antes monopolizados pelas minorias, estas minorias acusam os governos de esquerda de terem tendências autoritárias ou totalitárias. Esta acusação é ridícula, mas há nela um tema que deve ser explorado: como evitar que a ampliação da democracia para as maiorias e a redução dos espaços ilegitimamente ocupados pelas minorias, resulte em perda de apoio junto aos setores médios da população?
Em toda a região, os governos progressistas e de esquerda adotam políticas públicas de combate à pobreza e à desigualdade social. No primeiro caso, os êxitos são visíveis. No segundo caso, há controvérsias.
Há três tipos de políticas sociais, que aparecem de forma combinada: políticas emergenciais, políticas de Estado e reformas estruturais.
As políticas emergenciais (geralmente de transferência monetária direta) estão fortemente presentes em todos os países.
As políticas de Estado (saúde, educação, previdência, pisos salariais etc.) são uma meta estabelecida para todos, mas totalmente presentes apenas em alguns.
Já as reformas estruturais (ou seja, que alteram a estrutura de propriedade ou, pelo menos, que estabeleçam um novo patamar na relação entre as classes sociais –como é o caso de reformas tributárias fortemente impositivas sobre a herança e a riqueza) estão praticamente ausentes, embora freqüentem os discursos com muita força.
A ausência ou a fraqueza das reformas estruturais faz com que o desenvolvimento produza redução na pobreza, ao mesmo tempo que reproduz e as vezes até amplia a desigualdade social.
Um aspecto importante: os governos progressistas e de esquerda beneficiaram-se, num primeiro momento, de aspectos do modelo produtivo herdado do período neoliberal, numa conjuntura de ampliação da venda de produtos primários e disponibilidade de capitais.
A crise internacional de 2008 alterou este cenário, obrigando os governos a tentar introduzir modificações mais intensas no modelo produtivo herdado. O que aguçou a disputa política em todos os países da região, bem como ampliou o conflito distributivo.
Um dos subprodutos do desenvolvimentismo, bem como do readequamento produzido pela crise de 2008, é a pressão sobre o meio-ambiente.
Em todos os países, inclusive aqueles onde o discurso oficial é pró-ambientalista, há um crescente conflito, resultante de uma equação óbvia: se os países ricos não se dispõem a arcar com os custos ambientais e ainda ameaçam a estabilidade econômica e política dos paises pobres, estes são forçados a escolher entre crescimento rápido (propenso a danos ambientais) ou crescimento com alto nível de proteção ambiental (mas muito caro e lento).
A convergência de posições entre alguns grupos ambientalistas, o neoliberalismo e os interesses estrangeiros na América Latina é, portanto, algo bastante lógico. A todos interessa baixas taxas de crescimento produtivo.
Observado o conjunto dos governos progressistas e de esquerda, é possível constatar que em todos falta uma “harmonia processual”. Noutras palavras: as mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais não evoluem de maneira equilibrada. E este desequilíbrio é a brecha através da qual a oposição de direita e as forças imperialistas (européias ou estadounidenses) buscam penetrar e reconquistar o governo.
Este é um dos motivos que torna estratégico o processo de integração regional. Ele permite compensar mutuamente os desequilíbrios, oferecendo sinergia. Esta é uma outra diferença importante entre o atual ciclo desenvolvimentista e o anterior. Este tem uma vocação pró-integração regional, que se traduziu na criação da Unasul e da Celac (Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos).
Há, entretanto, diferentes visões acerca do processo de integração.
Registramos que a maioria dos governos professa um latinoamericanismo retórico, mas impulsiona de fato o sulamericanismo. Note-se que a contra-ofensiva de direita teve mais êxito e é mais forte exatamente na região centro-americana e caribenha.
Registramos, também, a existência de visões diferentes acerca do conteúdo da integração. Entre estas visões, citamos a que defende priorizar o processo de integração entre governos ideologicamente afins (caso da Alba); e os que defendem priorizar a integração regional, independente da orientação ideológica dos governos.
Por outro lado, há que se considerar que a hegemonia econômica dos Estados Unidos segue poderosa, inclusive em países como Venezuela, Equador e El Salvador (nestes dois últimos casos, as economias foram dolarizadas durante o período neoliberal).
Há que se considerar, finalmente, que a estratégia geral dos Estados Unidos frente a crise parece ser a mesma adotada em situações similares: aproveitar a hegemonia que ainda possui no âmbito militar, utilizá-la para chantagear em favor de seus interesses econômicos e inclusive forçar situações de guerra. O que gera duas atitudes aparentemente contraditórias, da parte dos governos progressistas latino-americanos: por uma parte, fazer todos os esforços em favor da paz (a exemplo do feito no caso do acordo Irã-Brasil-Turquia); por outro lado, elaborar uma doutrina de defesa regional e preparar forças armadas compatíveis com isto.
Finalmente, há uma discussão de longo prazo, acerca da estratégia socialista. Obviamente, tal discussão exige uma leitura prévia acerca da formação social da região, de suas sub-regiões e países integrantes. Ou seja, é necessário dispor de uma análise das classes sociais e da luta de classes na região e em cada país.
Como esta análise é muitas vezes deficiente, vários partidos de esquerda da região adotam uma leitura “politicista” acerca do que está ocorrendo nas sociedades latinoamericanas. Assim, fala-se do confronto de projetos, do conflito entre esperança e medo, entre mudança e conservadorismo, evitando detalhar o conteúdo de classe de cada projeto.
Em certa medida, esta dificuldade decorre do evidente caráter pluriclassista dos projetos em disputa, que algumas vezes não se adapta aos nossos esquemas de análise. Por exemplo: podemos falar que estamos diante de um processo socialista, numa determinada sociedade, se nesta sociedade a burguesia privada é hegemônica?
A dificuldade é evidente. E, pelo menos algumas vezes, esta dificuldade é contornada através de uma operação discursiva que borra as diferenças entre o objetivo do partido no governo e o processo realmente em curso na sociedade.
Vale dizer que esta operação discursiva é praticada, antes de mais nada, pela forças da oposição de direita, que tratam como comunista, socialista ou revolucionária, toda e qualquer medida democratizante.
A operação discursiva politicista destaca e valoriza as transformações ocorridas no terreno da política, em detrimento das transformações ocorridas no terreno econômico-social (propriedade, processo de produção e circulação, relações capital e trabalho, desigualdade social etc.).
Longe de nós considerar secundária a luta política, no sentido estrito da palavra. Mas é importante lembrar que as mudanças políticas ocorridas na América Latina, desde 1998, ainda são muito superficiais. Para ser mais exato, o todo é maior do que as partes: na atual situação mundial, o que está em curso na América Latina é extremamente importante; e o processo de conjunto na América Latina é mais importante, qualitativamente, do que o que está em curso em cada país tomado isoladamente.
Nos países analisados, a esquerda controla (as vezes com muitas dificuldades) o governo, mas ainda está muito longe de controlar o poder. E a experiência chilena demonstrou que é possível para uma força de esquerda permanecer no governo, durante um período mais ou menos longo, sem que isso implique em transformações profundas, seja na estrutura social, menos ainda na institucionalidade política.
O politicismo analítico estimula uma análise concentrada em responder o que favorece ou não a manutenção de uma determinada força política no poder. Quando se faz necessário responder o que favorece (ou não) o fortalecimento do poder político, econômico e social de uma determinada classe ou aliança de classes.
Finalmente, é importante lembrar que parte da esquerda latino-americana acredita que exercer o governo é (ou pode ser) parte do caminho para o socialismo.
Esta afirmativa provoca diversos interrogantes, entre os quais:
a) em que medida o exercício do governo está transferindo poder para as classes trabalhadoras?
b) em que medida o exercício do governo está contribuindo para transformações na estrutura da sociedade, que reduzam a hegemonia do capitalismo?
c) em que medida as mudanças podem ser desfeitas através de vitórias da direita (risco implícito numa estratégia de tipo eleitoral)?
Esses e outros temas estratégicos estão sendo debatidos no processo preparatório do XVII Encontro do Foro de São Paulo, marcado para 17 a 21 de maio, em Manágua (Nicarágua).
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