terça-feira, 20 de setembro de 2011

Aula sobre neoliberalismo e globalização

Trata-se de um roteiro para aula, provavelmente realizada no ano 2000, mas que com adaptações e atualizações pode ser utilizada ainda hoje.

Primeiramente eu gostaria de agradecer ao Conselho de Leigos e Leigas da Arquidiocese de Campinas e a Escola de Formação Permanente "Kairós" pela oportunidade de dar aula neste curso.

Gostaria também de me apresentar. Profissionalmente, sou gráfico e editor. Sou formado em história, especializado em história econômica. Nos últimos três anos, tenho colaborado de maneira sistemática com a Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em torno da temática da dívida externa.

Finalmente, acho importante deixar claro --já que este é um curso de formação política para a cidadania-- que uma das formas que eu utilizo para exercer a minha cidadania é a militância no Partido dos Trabalhadores.

Acho importante afirmar isto, desde o início, para que todos saibam que a palestra que vou apresentar aqui tem um duplo caráter.

Por um lado, constitui uma análise que eu pretendo objetiva, obtida do estudo da realidade a partir de um método científico.

Mas por outro lado, trata-se de um ponto de vista militante, tanto porque observa o neoliberalismo e a globalização do ponto de vista dos trabalhadores, quanto porque estuda estes dois fenômenos com a pretensão de modificá-los.

Dito isto, vamos então ao tema desta aula: "neoliberalismo e globalização, macroeconomia, teorizações e práticas".

"Neoliberalismo" e "globalização" são dois neologismos, duas palavras de origem recente. Surgiram no final dos anos 80, tentando dar conta de dois fenômenos profundamente vinculados.

O primeiro destes fenômenos foi a criação de uma economia-mundo do tamanho de todo o mundo.

O segundo destes fenômenos foi uma mudança na ideologia dominante no mundo.

Vamos por partes.

Há 500 anos, quando as navegações estavam no seu auge, existiam várias economias-mundo.

O Velho-Mundo, por exemplo, constituia uma unidade econômica, distinta da unidade econômica existente em torno dos impérios Inca, Asteca e Maia; distinta, por sua vez, da unidade econômica existente em torno do Império do Meio, a China; distinta das várias unidades econômicas existentes na África e assim por diante.

Naquela época, podemos falar que existia uma economia mundial, mas apenas como figura de linguagem, já que os vínculos entre as diferentes economias-mundo eram muito residuais ou, as vezes, inexistentes.

A história dos últimos 500 anos foi, em boa medida, exatamente a transformação da "economia mundial" em economia-mundo. Ou, noutras palavras, uma economia-mundo que abrange todo o planeta Terra.

Não foi um processo tranquilo, nem pacífico. Na verdade, o que assistimos foi a conquista da economia mundial por uma de suas economia-mundo.

Com as navegações e com a colonização, a economia-mundo existente na Europa ocidental se expandiu para o conjunto do Planeta. Evidentemente, esta expansão transformou a própria economia européia. E transformou o próprio capitalismo, que assumiu uma forma industrial e mudou de sede várias vezes: das cidades-Estado italianas para os Países-Baixos, destes para Inglaterra e finalmente para os Estados Unidos.

Nesta expansão, o capitalismo enfrentou enormes desafios.

Enfrentou modos de produção distintos, como o comunismo primitivo existente em 1500 no que hoje é o território brasileiro; enfrentou o modo de produção asiático, seja na sua forma original, seja na forma vigente nos Impérios Inca, Asteca e Maia; enfrentou o feudalismo, seja pelo método da absorção, seja pelo método da revolução; enfrentou o socialismo, tanto na sua forma de luta por reformas sociais, quanto como movimento revolucionário.

O capitalismo conseguiu vencer cada um destes desafios. A mais recente destas vitórias ocorreu nos anos 80, quando veio abaixo o chamado "campo socialista", organizado principalmente ao redor da União Soviética.

A dissolução da União Soviética criou um fato novo na história dos últimos 500 anos. Pela primeira vez, o capitalismo não apenas vencera, como se encontrava (pelo menos aparentemente) sem competidores. Nunca o capitalismo tinha conseguido atingir tamanha hegemonia.

Alguns teóricos do capitalismo chegaram a falar então em "fim da história". O capitalismo teria vencido não apenas mais uma batalha, mas sim toda a guerra. Não existiriam mais alternativas fora do capitalismo.

É esse estado de coisas que fez surgir a expressão "globalização".

Não se trata, é claro, de uma palavra inocente. Trata-se, propositalmente, de uma palavra simpática, destinada a conferir face humana a um processo econômico-social cujos efeitos são muito duros para a maioria da humanidade.

Por isto mesmo, existem alguns teóricos que negam a existência da globalização. Acham que se trata de um engodo, de uma mistificação. Dizem que na verdade a globalização é apenas o nome dado pelos norte-americanos para o processo de domínio do mundo pela economia norte-americana. Dizem, também, que na verdade não existe uma só economia-mundo; existem várias economias nacionais e regionais, que são invadidas e oprimidas por uma economia-mundo dominante, que é a norte-americana.

Para os que defendem este ponto de vista, o discurso da globalização seria uma espécie de encantamento, servindo para convencer os governos dos países médios e pobres a abrir suas portas às "delícias da globalização", que seria um fenômeno natural como as chuvas e inevitável como a morte.

De fato, a globalização não é um fenômeno "natural e inevitável", pelo simples e bom motivo que ela resulta de ações humanas e, portanto, outras ações humanas podem subvertê-la total ou parcialmente. Não custa lembrar que a escravidão também foi considerada "natural"; e a morte por lepra era tida como inevitável.

Entretanto, negar que hoje existe uma economia-mundo articulada --construída exatamente sobre os escombros das economias nacionais que a integram-- me parece negar a realidade.

Um fenômeno como a crise ocorrida no Brasil, em 1998, só pode ser compreendida como uma manifestação desse caráter integrado da economia mundial. E não se trata de uma integração apenas financeira, mas também ocorre no terreno da produção material.

Se estamos de acordo com isto --portanto, se pensamos que a "globalização" é um fenômeno real, o nome que damos à transformação do capitalismo em economia-mundo-- temos várias alternativas.

Aceitar as regras do jogo, que é a posição do nosso governo federal.

Participar do jogo, mas sem aceitar suas regras do jogo, que é a posição de parcelas da oposição.

Mudar de jogo, que é a posição de outra parcela da oposição.

E mudar de jogo pode significar, entre outras variantes, a luta por uma globalização diferente desta que está aí, uma globalização que implique em redistribuir para os pobres, para os trabalhadores deste mundo, as riquezas que eles produziram mas que são açambarcadas por tão poucos.


Assim como a globalização, neoliberalismo é um neologismo que entrou em moda no final dos anos 80, início dos anos 90.

Como o próprio nome diz, trata-se de um "novo" liberalismo, ou seja, uma nova versão da doutrina econômica e política que orientou a ação dos governos e dos capitalistas durante o século XIX e durante as primeiras décadas do século XX.

A doutrina liberal tem duas facetas: a econômica e a política.

No primeiro caso, o liberalismo defende que o Estado não deve interferir na economia, salvo para impedir a liberdade econômica dos capitalistas.

Falando em português claro, cabe ao Estado impedir que uma greve de trabalhadores perturbe o livro jogo das forças econômicas. Afinal, o contrato de trabalho, nesta teoria, é firmado entre duas pessoas --o empregador e o empregado. Se os empregados unem-se num cartel, exigem aumentos e fazem greve, eles estão desrespeitando as regras do jogo. E nesse caso, em defesa da liberdade econômica, cabe ao Estado intervir.

Cabe ao Estado intervir, também, quando uma nação qualquer impede o livre comércio, cobrando impostos altos, estabelecendo proteção para sua própria indústria etc. Nesse caso, é preciso que o Estado garanta a liberdade, mesmo que para isso precise fazer uma guerra.

A faceta política do liberalismo é um desdobramento da faceta econômica.

Lembremos os dois pilares do liberalismo político:

1)Todos são iguais perante a lei;

2)Cada cidadão, um voto;

A primeira coisa óbvia é que o liberalismo político separa a esfera pública da privada, a política da economia. O que quer dizer que a "liberdade" termina na porta de fora da casa, da escola, da fábrica e da senzala.

A segunda coisa não tão óbvia --porque omitida-- é que cidadão, para o liberalismo, é o cidadão-proprietário. Como a democracia grega, a democracia liberal supõe a existência de não-cidadãos que trabalhem, produzam mas não decidam.

É por isso que no século XIX, na Europa, travou-se uma grande luta política entre os liberais e os democratas. E a medida que os democratas ganharam, a medida que o direito de voto foi se estendendo, a medida que as "classes perigosas" passaram a eleger seus representantes para o parlamento, o liberalismo absorveu isto porque no limite continuam predominando os seus princípios básicos: a igualdade perante a lei e o voto individual.

Portanto, mesmo quando a democracia liberal foi alargada, não se alterou os fundamentos: a desigualdade econômica, social e cultural que interfere profundamente no exercício do voto e nos benefícios da lei.

O liberalismo original foi atacado por baixo e por dentro. Por baixo, pelos trabalhadores, o que resultou no surgimento da chamada "democracia de massas". Por dentro, pelo próprio capitalismo, o que resultou no Estado invervencionista.

Explico: um dos pressupostos fundamentais do liberalismo econômico é a crença na tendência ao equilíbrio. Assim como numa feira os preços começam altos e depois vão ao chão, também na economia haveria ciclos periódicos de ascensão, crise e recuperação. O Estado não deveria interferir nisso.

No início do século XX, entretanto, parte das elites capitalistas percebeu  três coisas:

1)quando as crises periódicas do capitalismo coincidem com uma enorme onda de agitação social --alimentada principalmente pelo desemprego--, o capitalismo pode ser ameaçado por uma revolução socialista;

2)a maneira liberal de administrar a economia é ineficaz nos momentos de guerra, quando se faz necessário planejar e gerenciar centralizadamente os recursos nacionais;

3)quando o capitalismo chega a um estágio muito alto de seu desenvolvimento, a alocação de recursos exige uma escala que os simples capitalistas individuais não são capazes de fornecer;

Em resumo, o capitalismo deixado a si mesmo poderia colocar em risco a sua própria sobrevivência.

Mas para que as elites aceitassem isto, foi preciso uma sequência impressionante de acontecimentos: a primeira guerra mundial, a revolução russa, a crise das bolsas em 1929, a ascensão do nazismo, a segunda guerra mundial, a expansão do movimento socialista mundial após a guerra.

Só assim as elites perceberam que a sobrevivência do capitalismo dependia dele se tornar mais "organizado" e também dele aceitar políticas sociais e reformas democráticas mais generosas. Era isso ou a revolução socialista.

Assim, de 1950 a 1973, o liberalismo foi para o baú. E a ideologia dominante passou a ser formada pelas idéias de Keynes, pela intervenção do Estado na economia, pelo papel social do Estado etc.

Foi a chamada "era de ouro do capitalismo", porque estas concessões coincidiram, alimentaram e foram alimentadas, por uma expansão impressionante da economia capitalista.

Claro que estudando de perto este período, nós vamos perceber que nem tudo que reluz é ouro. Por exemplo, é desse período o início da corrida atômica, as guerras da Coréia e do Vietnã, o macartismo etc.

Mas o que nos importa aqui é perceber que nesta fase o capitalismo lançou mão de uma ideologia não-liberal.

Nos anos 70, isto tudo acabou. O capitalismo, que vinha crescendo a taxas impressionantes em todo o mundo, entrou numa espiral de crise. Os remédios keynesianos não solucionaram esta crise e o jeito foi buscar ajuda nas fórmulas antigas do tônico liberal.

Há vários estudos sobre a crise dos anos 70, que demonstram que ela foi derivada do sucesso.

Durante 20 anos, de 1950 a 1970, o capitalismo lucrou tanto, que não lhe era mais possível mais sustentar esta taxa de lucro apenas reinvestindo na produção. O lucro chegara a tal ponto que seu re-investimento aumentaria a produção, gerando queda nos preços e nos lucros.

Os capitalistas começaram então a jogar seu sobre-lucro noutro lugar, criando um mercado financeiro que chegou a emprestar dinheiro a taxas de juros negativas.

Esta solução miraculosa --dinheiro gerando dinheiro, sem passar pela produção-- gerou um problema adicional. A partir de então, o investimento na produção de mercadorias só valia a pena se gerasse um lucro equivalente aquele produzido no mercado financeiro.

E para que isso acontecesse, era necessário quebrar as conquistas dos trabalhadores, desmontar o Estado de bem estar social e eliminar a competição oriunda dos chamados países em desenvolvimento.

Claro que tudo isso era uma operação de risco, até porque nos anos 70 ainda existia um "campo socialista" relativamente poderoso.

Não há tempo aqui para relatar em detalhes a operação desenvolvida desde meados dos anos 70 pelas elites dos grandes países capitalistas. Em suas linhas gerais, os grandes marcos foram os seguintes:

1)a transformação do dólar em moeda mundial;

2)a crise da dívida externa;

3)a segunda-guerra fria;

4)a eleição de Thatcher e de Reagan;

5)a cooptação dos partidos socialistas europeus;

6)a "queda do Muro".

7)as crises mundiais de 95-98.

Essa operação política, econômica e militar já dura quase 30 anos. As idéias que a orientaram constituem, exatamente, o neoliberalismo.

A idéia fundamental do neoliberalismo é "a liberdade mais absoluta dos capitais".

Quais são as contrapartidas disto?

1.A financeirização;

2.A concentração de capitais;

3.As crises periódicas;

4.A supressão das defesas dos países da periferia;

5.O mais absoluto controle sobre o Trabalho;

6.A oligarquização da democracia.

São idéias derivadas do liberalismo, tanto na economia quanto na política. Mas podemos dizer também que constituem uma radicalização das idéias liberais. Portanto, um liberalismo novo e piorado.

No momento, tanto a globalização quanto o neoliberalismo estão em crise. Quem admite isto são os dirigentes de organizações insuspeitas como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Não há consenso, é óbvio, sobre as causas da crise, nem tampouco sobre suas soluções.

Para alguns, trata-se de um problema de fiação. Uma pequena reforma, um fusível aqui e outro ali resolveriam o problema. No fundamental, trata-se de evitar que as crises ocorram sem aviso prévio.

Para outros, trata-se de um problema de arquiquetura. A economia hoje é mundial, mas não há um governo mundial. Logo, trata-se de construir este governo, através de organismos como a Organização Mundial do Governo, o G7 e a Otan. Ou seja, organismos em que o poder deliberativo esteja nas mãos de quem tem o poder econômico e militar.

Finalmente, existem aqueles que localizam a causa fundamental da crise na própria natureza da economia-mundo. Uma economia baseada na produção de cada vez mais mercadorias, mas que produz na outra ponta um número cada vez menor de consumidores, tem necessariamente que entrar em crise.

De fato, fenômenos como a privatização de serviços públicos, os investimentos militares (que consomem nos Estados Unidos, por ano, a módica quantia de US$ 263 bilhões), o estímulo ao consumismo e a financeiração da economia indicam que o capitalismo está as voltas com um problema criado por ele mesmo.

Não é a primeira vez que isto acontece. Mas é a primeira vez que isto acontece de maneira tão "global".

Setores da elite mundial estão preocupados e isso se traduz numa mudança do discurso (do neoliberalismo para a "centro-esquerda") e, infinitamente em menor medida, na prática, principalmente com tentativas de controlar os fluxos do capital financeiro.

A imagem que define o que está acontecendo é a seguinte: as elites estão tentando realizar um "pouso suave". Trazer a economia mundial, que está voando no céu da especulação financeira, para o chão da produção.

O problema é que o único com força suficiente para fazer isso, os Estados Unidos, não tem motivos nem vontade para agir nesse sentido, pelo motivo simples de que é o maior beneficiário do que ocorreu no mundo nos últimos 30 anos.

Assim, salvo uma intervenção externa --vinda dos trabalhadores, dos pobres, dos lascados deste mundo-- a tendência é preocupante.

E mais preocupante ainda num país como o nosso, onde os efeitos sociais, econômicos e políticos de tudo que acabei de expor estão por todas as partes.

Bem, onde está a saída?

A boa notícia é que não há saída, portanto trata-se de dar um jeito na situação, para começo de conversa compreendendo-a, em seguida formulando uma visão alternativa e em terceiro lugar atuando para transformá-la.

No debate, eu posso expor melhor como vejo esta alternativa.

Não temos nem podemos ter nenhuma certeza, como sempre, de que conseguiremos. Mas é melhor ser julgado por não conseguir, do que por não tentar.

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