segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Tem algo no ar, além dos aviões de carreira

O texto abaixo foi escrito em 2001, após o atentado contra o World Trade Center.

Bombardeio ao Afeganistão é apenas um "aperitivo": a sobrevivência do capitalismo exigirá cada vez mais violência

Virou moda, depois de 11 de setembro, dividir nossa época em a.A e d.A.: "antes do atentado" e "depois do atentado".

         É claro que a conjuntura internacional mudou, depois que choveram aviões sobre o World Trade Center e o Pentágono. Mas há um elemento de continuidade entre o "antes" e o "depois", sem o qual o atentado pareceria um "raio em céu azul". Este elemento é a crise.

         Não se trata de qualquer crise. Em primeiro lugar, diferentemente do que aconteceu durante os anos 1990, a crise agora está evidente, de maneira simultânea, na tríade: Japão, Europa e principalmente Estados Unidos. Portanto, a crise, que antes atingia a periferia do capitalismo (México, Coréia do Sul, Indonésia, Rússia, Argentina, Brasil), agora atinge seu centro.

         Em segundo lugar, a chamada globalização promete transformar esta crise em algo diferente de tudo o que já vimos. Afinal, os Estados Unidos são, muito mais do que antes, a "locomotiva" da economia mundial. A desaceleração, uma recessão ou depressão da economia norte-americana desencadeia ondas de choque por todo o planeta.

         Em terceiro lugar, trata-se de uma crise do capitalismo –não apenas, como muitos pensam ou querem que se acredite, uma crise do neoliberalismo. O que está em questão não é apenas a "fiação" do sistema, não é apenas a hipertrofia do setor financeiro, que poderia ser corrigida por algo como a Taxa Tobin ou uma "prioridade para os mercados internos". No fundo da crise está um enorme impasse estrutural, um problema nos fundamentos: uma queda da taxa de lucros vis a vis a superprodução de mercadorias e de capitais.

         Crise no centro, crise global, crise capitalista

As alternativas para esta tripla crise são várias e conhecidas: aumento da exploração do trabalho, aumento da centralização e da concentração do capital, conquista de novas áreas (geográficas ou produtivas), estímulo ao consumismo, financeirização da economia etc.

         Todas elas exigindo, ao contrário da lenda, uma ampliação da força e da interferência estatais nos países capitalistas centrais, bem como a afirmação do Estado enquanto "comitê executivo" dos interesses da classe capitalista, sem as mediações típicas do welfare state e sem a hipocrisia da "terceira via".

         Mas todas aquelas alternativas não fazem senão empurrar o problema para a frente, aumentando-o de tamanho enquanto isso.

         Vejamos a história: de 1914 até 1945, tivemos quarenta anos marcados por crises, guerras e revoluções. Nesse período, muitos autores marxistas profetizaram a "crise final" do capitalismo.

         Na verdade, a história deu razão para Lenin, que dizia não existir situação sem saída para a burguesia: ou o capitalismo era derrotado politicamente, ou daria a volta por cima.

         Foi o que aconteceu, depois da Segunda Guerra: embora o movimento socialista tenha crescido de força no interior dos países capitalistas centrais, embora os comunistas tenham chegado ao poder em vários países periféricos, embora os movimentos por independência nacional e pelo desenvolvimento econômico tenham obtido várias vitórias, o fato é que o capitalismo sobreviveu e –paradoxalmente— cresceu enormemente nos 25 anos seguintes.

         Em decorrência, durante um quarto de século, tivemos a chamada "era de ouro", onde para muita gente parecia ser possível conciliar crescimento econômico, democracia, bem-estar social e capitalismo.

         Este período chega ao fim quando, a partir dos anos 70, o capitalismo entra em nova crise geral. O neoliberalismo surgiu então como uma saída para aquela crise, lançando mão exatamente das alternativas mencionadas acima.

         O desmanche do chamado campo socialista reforçou, ideológica, política, militar e economicamente, o neoliberalismo, ensejando ainda as conhecidas besteiras sobre o "fim da história". Duas décadas de neoliberalismo, entretanto, nos deixaram frente a uma crise maior do que a que enfrentávamos em 1970.

Guerra, destruição e lucros

         Assim, nada mais previsível que a guerra apareça, de novo, como uma solução adequada para a crise.

         Não se trata, apenas, dos lucros que a guerra proporciona a determinados segmentos do capital. A guerra é útil, ao capitalismo como "sistema" porque ela permite destruir o excesso de forças produtivas, o excesso de mercadorias, o excesso de capitais. Para um sistema que se encontra "no limite", a guerra permite retroceder e recomeçar.

         Assim como o genocídio e a recessão, a guerra possui o "dom" de sanear as cavalariças do capitalismo. O que diz quase tudo sobre a natureza desse modo de produção. Um problema é: quanta destruição será necessária para produzir um efeito "terapêutico" semelhante ao da Segunda Guerra?

         Além de interessar diretamente a setores hegemônicos do capital (o complexo industrial-militar e o imperialismo norte-americano em particular), a guerra tem desdobramentos imediatos muito úteis para um sistema que se encontra em dificuldades para manter sua hegemonia política e ideológica.

         Convém lembrar que o final dos anos 90 e o início do novo século foram marcados pela desmoralização ideológica do neoliberalismo e também da chamada "terceira via". No plano político, surgiu um movimento internacional de massas contra a "globalização". Aumentaram os conflitos entre os grandes países capitalistas. Tudo isto em meio a crises agudas nos países periféricos e crise crônica nos países centrais.

         Nesse contexto, os atentados ao WTC e ao Pentágono "vieram em boa hora": deram ao governo norte-americano o pretexto para enfrentar, através da guerra, a crise em marcha, lançando mão de uma espécie de "keynesianismo" militar e reconstituindo a coalizão vigente na guerra do Golfo e no bombardeio da Iugoslávia.

Além disso, deram também o pretexto para enfrentar o movimento anti-globalização e, na política doméstica, serviram para (tentar) recuperar a legitimidade de um presidente derrotado nas urnas. Deram aos governos japonês e alemão, em particular, um "motivo" para ressuscitar o militarismo. E, de maneira geral, deram aos governos pró-capitalistas de todo o mundo um "argumento" para atacar as liberdades democráticas e reforçar seus aparatos de segurança.

Claro que, com o passar do tempo, o pretexto, o motivo e o argumento vem sendo desmascarados. Os Estados Unidos não têm como objetivo derrotar o terrorismo, Bin Laden e os Talebans, que aliás são sócios recentes do governo norte-americano. O objetivo real é intimidar todos os que "não estejam com eles": nações de política externa mais independente (China, Venezuela, Cuba etc.), os chamados "estados-bandidos" (Iraque, Coréia do Norte etc.), os movimentos democráticos, anti-imperialistas e anti-capitalistas em todo o mundo (as guerrilhas colombianas, por exemplo, são consideradas pelo Departamento de Estado dos EUA como organizações "terroristas").

Por isso, é decisivo recuperar as ruas, em oposição a guerra, ao terrorismo de Estado e ao sistema econômico que o gerou e que ele busca perpetuar.

    Nessa operação, não devemos contar com o apoio dos governos social-democratas (terceira via, onda rosa, centro-esquerda), cuja atitude guarda semelhança com a adotada na guerra do Golfo e no bombardeio da Iugoslávia, embora tal semelhança não esconda uma insatisfação com o hegemonismo norte-americano.

Independente do desfecho de curto prazo do conflito militar, a crise econômica e as guerras devem continuar marcando o cenário internacional. Devem aumentar, também, as agressões contra as liberdades democráticas, em todo o mundo.

         Daqui até janeiro de 2002, viveremos um período crucial. Trata-se de criar as condições, inclusive através da mobilização imediata, para que o II Forum Social Mundial seja a afirmação massiva de que outro mundo é possível, um mundo socialista, única alternativa a guerra e a barbárie capitalistas.

         Para onde for o Brasil...

         Neste contexto de crise internacional, ganha muita importância a situação brasileira. Aqui, como no mundo, o neoliberalismo foi adotado como pretensa solução para uma crise mais antiga. E, aqui como lá, nos encontramos hoje em situação mais difícil do que nos anos 80.

         As características e os desdobramentos econômicos e sociais desta crise são conhecidos. Na política, ela resultou num descontentamento crescente dos trabalhadores, dos chamados setores médios e mesmo de setores da grande burguesia. É este descontentamento que está na base da desmoralização ideológica do neoliberalismo, dos conflitos no bloco governista, da força acumulada pela oposição de esquerda, da lenta mas persistente retomada das lutas sociais e da possibilidade da esquerda vencer as eleições de 2002.

O cenário das eleições de 2002 ainda não está configurado. Por um lado, a esquerda parece ter mais chances do que em 1994 e 1998. Por outro lado, os partidos governistas possuem uma extensa base política em governos de estado e prefeituras, dispõem de maioria parlamentar, têm enorme poder econômico, controlam a maior parte dos meios de comunicação, possuem apoio internacional e não vacilarão em utilizar todos os meios para impedir que a esquerda ganhe o governo de uma das maiores economias industriais do mundo.

Isto porque o governo federal ocupa um lugar muito especial no esquema de poder que sustenta o capitalismo no Brasil. Um governo federal de esquerda –mesmo que com intenções meramente "reformistas", de melhorar a vida do povo sem tocar no capitalismo— introduzirá um fator de perturbação muito grande na estabilidade do capitalismo em nosso país, com as decorrentes consequências internacionais.

Nesse sentido, tanto para os trabalhadores quanto para o grande capital, a batalha "eleitoral" de 2002 pode adquirir um sentido tático-estratégico. Ou seja, pode ser aquela batalha que decide, não a guerra, mas o curso da guerra.

Todos os gatos são pardos?

Desde o início de 2001, os "formadores de opinião" vem destacando a crescente intenção de voto na esquerda, a persistente dificuldade que os partidos governistas enfrentam para definir seu candidato e a tendência da eleição ocorrer em meio a uma crise maior do que a de 1998.

Daí muita gente deduz que a esquerda só perde as eleições do próximo ano para si mesma. Ledo engano. Vantagem semelhante da esquerda ocorreu em 1994. Crise econômica semelhante ocorreu em 1998. Mas para além das dificuldades, naqueles momentos prevaleceu a férrea decisão de derrotar a esquerda e o eficiente aproveitamento de nossas debilidades.

Nada indica que a decisão seja menos férrea, hoje. Ao contrário, todas as pesquisas feitas acerca da posição do grande capital indicam que, mesmo mais moderada, a esquerda brasileira (personificada no PT) continua sendo vista como um obstáculo aos interesses "do mercado".

Ao mesmo tempo, o bloco social que amparou a vitória de Collor, no segundo turno de 1989, e a de Fernando Henrique, em 1994 e 1998, continua existindo e operando. Possui um eficiente estado-maior e trabalha, desde o início de 2001, para neutralizar a força eleitoral da esquerda e construir uma candidatura confiável.

A principal força da esquerda está nela ser uma alternativa ao que está aí. Neutralizar a esquerda exige, portanto, firmar a idéia de que todos estão contra a atual política econômica e todos defendem a mesma alternativa.

As declarações de Tasso Jereissati contra o Consenso de Washington, de José Serra contra o déficit nas contas correntes e o programa econômico do Instituto Cidadania mostram exatamente uma convergência geral em torno de duas idéias básicas: crescimento econômico & políticas sociais.

Por detrás dessa convergência, algumas premissas: respeito ao "estado de Direito", respeito ao estoque de riquezas acumuladas, respeito aos limites do mercado, respeito as privatizações já realizadas, respeito a responsabilidade fiscal etc.

Uma vez atraída a esquerda para a armadilha da convergência programática, os estrategistas do grande capital passaram à fase dois de seu plano de neutralização: "demonstrar" que para mudar de modelo, o PT é a pior alternativa.

Assim, os mesmos formadores de opinião que festejaram o programa econômico do Instituto Cidadania, agora atacam o PT, por seus "vínculos com o populismo" e a "irresponsabilidade fiscal"; por seus vínculos com os interesses "corporativistas", em detrimento das grandes massas populares; por seus vínculos com setores "radicais", o que dificultará a governabilidade; pela incapacidade pessoal de suas principais lideranças etc.

Noutras palavras: se é para mudar com segurança, como pretendem alguns moderados da esquerda (na cola de Mitterand), o melhor é a "continuidade sem continuísmo" de José Serra.

A operação de neutralização se completa engessando os governos de esquerda, através da Lei de Responsabilidade Fiscal; e enlameando a imagem de partido ético, para o que concorrem certas alianças exóticas, além das denúncias de corrupção envolvendo governantes e dirigentes.

Nada garante que a neutralização dê certo ou que surja um candidato confiável. Nada garante, também, que desta vez a crise econômica não impulsione a mudança, ao invés do medo, como ocorreu em 1998. Mas uma coisa é certa: o estado maior das elites opera com eficiência e tem recebido a contribuição involuntária de setores da esquerda, que acreditam que a moderação programática e a aliança com parcelas do grande empresariado constituem o caminho para a vitória.

Programa é bússola, não apenas receita

Se não desmontar a convergência programática, o mais provável é que a esquerda perca as eleições. E para desmontá-la, o primeiro passo é desistir de produzir o programa "possível" e tratar de produzir o programa "necessário".

Medidas que hoje parecem “impossíveis” são necessárias e podem transformar-se em possíveis através da luta política. Foi isso que fizeram os neoliberais entre 1989 e 1994. Eles ganharam a maioria da sociedade para seus princípios ideológicos e objetivos programáticos (por exemplo: a superioridade do privado sobre o público e a privatização das estatais). Venceram as eleições com este programa. Não conseguiram aplicá-lo por completo: a correlação de forças, os obstáculos institucionais e dificuldades econômicas obrigaram-nos a privatizar aos poucos e, até hoje, a tarefa segue inconclusa. Mas seu programa serviu de bússola, não apenas de receita.

O segundo passo, para romper a convergência programática, é deixar claro que nosso programa defende uma ruptura radical com a ordem neoliberal e tem como objetivo histórico o socialismo.

Se a esquerda vencer as eleições de 2002, a luta pelo socialismo não terá chegado ao fim (longe disso). Mas o curso desta luta assumirá uma nova forma: o governo federal terá mudado de mãos e poderá ser um instrumento a mais na disputa pelo poder, que será muito mais intensa que hoje e envolverá, diretamente, temas como o controle das forças armadas, do poder econômico, dos meios de comunicação e da política internacional do país.

O grande capital tem consciência disso. Mesmo acreditando na sinceridade reformista de grande parte da esquerda, os grandes empresários não estão dispostos a correr o risco de ver uma frente popular "administrando a crise do capital". Por isso, adulam algumas lideranças de esquerda, ao mesmo tempo que articulam nossa derrota.

Nos setores moderados da esquerda, predomina um raciocínio meramente tático sobre 2002 (quando muito, uma batalha sobre o modelo neoliberal), em detrimento de um raciocínio tático e estratégico (uma batalha sobre o modelo neoliberal e sobre a natureza da formação social brasileira).

Uma campanha eleitoral orientada por uma estratégia socialista deve tratar dos problemas colocados para os trabalhadores e seus aliados: necessidades básicas como trabalho, salário, teto, saúde, educação, terra etc. Ocorre que, neste momento de brutal crise (internacional e nacional, do neoliberalismo e do capitalismo), só medidas radicais darão conta de resolver os principais problemas dos trabalhadores.

             Trata-se de recuperar as estatais que foram privatizadas ao longo dos anos 90; colocar o setor financeiro sob controle público; suspender o pagamento da dívida externa; revogar a Lei de Responsabilidade Fiscal; romper com o FMI e com as negociações da Área de Livre Comércio das Américas; quebrar o monopólio dos meios de comunicação de massa, inclusive revendo as concessões públicas de rádio e tevê; adotar um modelo baseado no atendimento das necessidades populares, através da reforma agrária, urbana e da expansão dos serviços públicos etc.

             Em resumo, para melhorar a vida do povo, é preciso transferir renda, riqueza e poder, dos imperialistas, dos latifundiários e do capital monopolista, para os demais setores da sociedade. Este programa inclui medidas de sentido socialista, mas não se trata de um programa de "erradicação" do capitalismo. Até porque a erradicação das relações capitalistas de produção exigirá um longo processo histórico.

             Este programa, compatível com os interesses de vastos setores de pequenos e médios capitalistas, trata-se "apenas" de um programa anti-monopolista, anti-imperialista e anti-latifundiário, com três grandes metas: romper com a dependência externa, construir uma democracia popular e erradicar a desigualdade.

             Aprender com a Argentina

             Não devemos confundir a atual insatisfação com o governo FHC e o desencanto com o programa neoliberal, com uma situação de contestação revolucionária contra a ordem capitalista.

             Exatamente por isso, o centro de nossa tática, hoje, é ganhar o governo federal através da disputa eleitoral. Por isso também, nosso programa deve tratar das medidas necessárias para que um governo popular, eleito, melhore, rápida e radicalmente, a vida do povo.

             Outra questão é saber o que ocorrerá, no país, quando um governo popular perseguir aqueles objetivos e implementar aquelas medidas. Se isso acontecer, as classes dominantes –pela primeira vez na história do Brasil— não conseguirão mais governar como antes.

             Outros preferem um governo de esquerda que governe em acordo com parcelas do grande capital. Imaginam que, agindo assim, evitarão que os "mercados" desestabilizem o governo popular. Pensam que adotar um programa radical seria mexer na onça com vara curta. Pensam, também, que não se deve dizer para o povo que –se ele quiser mudar de vida— terá que enfrentar grandes batalhas.

             Não aprenderam nada da Argentina, onde o grande capital não poupou nem mesmo um governo que havia prometido, durante a campanha eleitoral, que não mexeria no modelo.

Ganhemos ou percamos as eleições de 2002, a primeira década do século 21 será de enormes desafios e embates para a esquerda. Assim, para ganhar ou para perder, é fundamental ter clareza do que está em jogo.

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