A China tem vários problemas, mas neste momento o fuso horário é o mais angustiante. Pior ainda é acordar as 3h da madrugada, cair na besteira de olhar mensagens e deparar com um artigo da Miriam Leitão. No caso, um artigo acusando o PT de ajudar a extrema-direita golpista.
Antes de
tratar do grão, confesso que admiro a cara-de-pau da direita gourmet brasileira,
especialmente de seus funcionários que trabalham em certos meios de comunicação.
Os caras trataram o PT a pau e pedra. Contribuíram para o ascenso da extrema-direita.
Mas não perdem a pose e continuam se achando no direito de nos dar lições.
Isto posto,
proponho olhar a situação de conjunto. Gostemos ou não gostemos, o mundo está
mudando. Os Estados Unidos estão declinando. Outras nações estão ascendendo. A
questão de fundo é: o Brasil quer ser uma dessas nações? Ou quer dar um abraço
de afogado nos Estados Unidos?
O empresariado
brasileiro já fez sua escolha. A China é o principal parceiro comercial do
Brasil. Mas a escolha do empresariado aprofunda o modelo primário-exportador.
Se queremos outro modelo, é preciso colocar a política no comando. E isso
implica em ter relações partido-partido, não apenas governo-governo.
Na China, o núcleo
do poder é o Partido Comunista. Que, pasmem senhores defensores da democracia-ao-estilo-ocidental,
valoriza a relação com os partidos políticos de todo o mundo, inclusive os
partidos de direita. É outra das ironias
dos tempos modernos: enquanto nas democracias ocidentais os partidos políticos
vivem um péssimo momento, os comunistas chineses seguem valorizando essa
instituição criada na grande revolução burguesa de 1789.
Esta é a
situação de conjunto: precisamos ter relações com a China, precisamos mudar o
conteúdo dessa relação, precisamos ter relações com o Partido Comunista da
China.
Até aí, como
diria o grande Hobsbawn, acho que até os cientistas políticos seriam capazes de
entender.
A questão
seguinte é: vamos lá para dar lições aos comunistas chineses? Explicar que não
é assim que se faz? Explicar que eles estão fazendo tudo errado desde 1949? Que
o modelo que funciona é o nosso? Que o sucesso do Brasil, o esplendor dos
Estados Unidos e a maravilhosa Europa constituem o farol da humanidade?
Na boa, essa
atitude professoral e arrogante é simplesmente ridícula.
Eu já estive
muitas vezes na China e sei o impacto que causa. Sei que as vezes o impacto é
tão grande, que resulta em exageros verbais, bem como no apagamento de problemas
e contradições que os próprios chineses reconhecem. Por exemplo: só agora os
chineses conseguiram eliminar a pobreza absoluta. Ou seja: eles mesmo admitem que
durante mais de 60 anos, o socialismo realmente existente na China convivia com
a pobreza absoluta.
Ademais, a
opção que os comunistas chineses fizeram - de usar o mercado capitalista, da
forma e na escala que eles utilizam - produz pelo menos três efeitos
colaterais: a desigualdade social, a corrupção e o individualismo. A combinação
dos três tende a enfraquecer e desmoralizar a autoridade do Partido. Sem
Partido, o Estado e o plano perdem força e o mercado pode deixar de ser
variável subordinada, produzindo desigualdades e podendo, no limite, fazer o
socialismo se converter em capitalismo.
Agora, qual
seria a alternativa? O socialismo-da-pobreza? O socialismo-de-caserna? Outras
alternativas, que vislumbramos, que desejamos, mas que ainda não conseguimos
materializar? Podemos ter qualquer opinião a respeito, mas o que não podemos é
desconhecer o fato de que a China se tornou, ainda bem, uma variável predominantemente
positiva na atual situação mundial.
Isto posto,
vamos ao grão: do ponto de vista da Miriam Leitão e, também, do ponto de vista
dos Estados Unidos, a China seria uma ditadura. Isso procede?
Depende. No sentido
brasileiro do termo, certamente a China não é uma ditadura. Basta comparar a
ditadura militar e a ditadura Vargas, com a China, para perceber as imensas
diferenças. Então a China seria uma democracia? No sentido brasileiro do termo,
também não. Aliás, os Estados Unidos são uma democracia? Quem realmente manda
nos Estados Unidos: "nós, o povo"? Ou uma plutocracia que literalmente compra os
processos eleitorais?
Acusar a
China de ser uma ditadura não é uma análise, mas também não é apenas um xingamento.
Prestem atenção na forma de raciocinar da Miriam Leitão: segundo ela, dizer que
o encontro entre PT e PCCh foi “inspirador” faria o jogo da extrema direita. Supondo
que isso fosse verdade, faço a seguinte pergunta: dizer que a China seria uma “ditadura”
faz o jogo de quem? A resposta é: interessa aos Estados Unidos e a seus
aliados, que dividem o mundo entre eles e os “autoritários”.
Segundo
Miriam, não faria sentido “sugerir” que há uma “irmandade com um partido que
governa a China com mão de ferro há 75 anos, que destrói qualquer oposição que
apareça, que controla tudo, a imprensa, as redes sociais, as empresas, as
artes. Um governo que, na última vez em que houve uma insurgência popular, em
1989, reagiu com um massacre em praça pública, e reprime ou reverte qualquer
tentativa de abertura. Como acontece agora em que Xi Jinping colocou mais um
ferrolho na porta em favor da sua permanência no poder”.
De fato, o
Partido Comunista da China tem um imenso controle, o que não quer dizer que controle
“tudo”. Aliás, não tem nenhuma teoria mais desmoralizada do que a do “totalitarismo”:
em toda parte, inclusive na China, há contradições, há disputas, há conflitos,
há luta de classe, como se viu em 1989, aliás. Paraíso não existe, pelo menos
não na Terra. Mas, no caso chinês, vale a famosa frase do Galileu: eppur
si muove. A China, com todas as suas contradições, avança. E é esse
avanço, não as contradições e problemas inevitáveis, que perturba os gringos.
Miram Leitão
diz que a China não “pode ser classificada como país socialista. A economia é
dominada pelo capitalismo de Estado e uma elite cada vez mais bilionária de
empresários que aceitam a simbiose de suas empresas com o regime. Visitar os
colossos chineses de diversas áreas, como a Huawei, é interessante para
qualquer pessoa. Estranho é achar que isso é socialismo”.
A frase de
Miriam Leitão sintetiza o ponto de vista de muita gente, inclusive de muita gente
de esquerda, para quem socialismo e capitalismo seriam incompatíveis. Se tem
um, não tem o outro.
Quem pensa
isso, mas ainda é de esquerda, deveria renunciar definitivamente ao socialismo.
Pois as coisas não mudam do dia para a noite. Uma sociedade capitalista não vai
virar uma sociedade não-capitalista por ato de mágica, instantaneamente. Faz-se
necessário um processo, uma transição. Nessa transição, durante algum tempo continuará
a existir capitalismo. Essa concepção, vale dizer, não foi inventada pelos comunistas
chineses. Suas premissas estão nos textos de Marx e Engels, por exemplo num textinho
genial chamado “Crítica ao programa de Gotha”.
Agora, quem
quiser perceber a diferença prática entre o capitalismo e o socialismo-com-presença-de-capitalismo,
basta comparar a evolução da China e da Índia, desde a década de 1940 até hoje.
Nos dois países há bilionários, nos países esses bilionários se associam com o
Estado, mas na China o comando está no Estado e o efeito disto se vê na elevação
continuada da vida material e espiritual da população. Aliás, quando é mesmo
que a Índia vai acabar com a pobreza absoluta de sua população?
Claro, a
China não corresponde ao socialismo-de-manual onde alguns talvez tenham estudado
quando foram militantes do Partido Comunista, como Miriam Leitão aliás foi,
algo pelo qual ela merece todo o nosso respeito.
Mas isto faz
tempo. Hoje, para Miriam, “o comunismo, como se sabe, não existe”. Eu diria
algo parecido, mas diferente: “o comunismo, como sociedade, ainda não
existe. Mas existe como movimento e existe como necessidade.”
Existem, no
mundo inteiro, muitas pessoas que defendem o comunismo. E existe a necessidade:
as imensas capacidades (produtivas e destrutivas) criadas na sociedade moderna
precisam ser colocadas sob controle comum, ou vão nos destruir.
Entretanto, concordo
com Miriam Leitão que a extrema-direita (e, também, uma parte da direita
gourmet) usa o comunismo como espantalho. No que divirjo dela é como combater
isso. Explico: o PT não fez um governo radical, mas mesmo assim a direita
gourmet (Miriam inclusive) e a extrema-direita nos acusaram disso. Ou seja: para
esta gente, inclusive para Miriam, não é a realidade que conta. Por isso, não
adiantaria nada a Gleisi Hoffmann queimar uma efígie de Marx; correríamos aliás
o risco dela ser acusada de “melancia” (verde por fora e vermelha por dentro).
Assim, o que
devemos fazer é falar a verdade. E a verdade é que interessa ao Brasil
aprofundar a cooperação com os chineses, interessa ao Brasil que esta
cooperação ajude na nossa reindustrialização, para isso precisamos manter
ótimas relações com o Partido Comunista da China.
Além de
dizer que a China seria uma ditadura, que a China não seria socialista, que o comunismo
não existiria, Miriam Leitão também reclama das críticas feitas pelo PT contra os
Estados Unidos.
Segundo ela,
fazer críticas aos EUA é natural, mas “fazer críticas em tom mais alto do que
os chineses é ser mais realista do que o rei”. Fico na dúvida, ao ler isso,
sobre o continente em que vive Miriam Leitão. Cá entre nós: se amanhã a China
vencer os EUA, os EUA vão continuar existindo. E vão usar toda a força que
tiverem para manter um controle ainda maior sobre o continente americano. Por
isso, tanto hoje quanto amanhã, os EUA constituem um problema maior para nós do Brasil
do que para a China. O que torna ainda mais necessário, para o Brasil,
buscar uma aliança com a China. O que não nos impedirá de usar, a nosso favor,
as contradições que existem dentro da elite dos EUA, por exemplo entre Biden e
Trump.
Miriam
Leitão acha que isso é “antiamericanismo estudantil” e “alinhamento com uma
potência ditadorial”, quando não passa da boa e velha geopolítica. Acontece que
Miriam Leitão tem lado nessa geopolítica. Por isso, onde nós preferimos
destacar a pressão dos EUA e da OTAN sobre a Rússia, ela prefere destacar a “culpa”
do “autocrata do Kremlin”. Por isso ela lembra do Biden presidente que reconheceu nossa
vitória em 2022, enquanto nós também fazemos questão de lembrar do Biden vice-presidente que ajudou o golpe de 2016
contra a democracia brasileira.
Por fim: não
sei onde foi que Miriam Leitão leu que “os Estados Unidos têm o monopólio da
geração de crises no planeta”. Seguramente não foi num texto aprovado pelo PT.
O que certamente ela pode ter lido, em algum texto do PT, é que o capitalismo em geral e os Estados
Unidos em particular estão no centro da crise sistêmica vivida pelo mundo,
neste santo ano de 2024. Para chegar a essa constatação não se faz necessário ter
um “pensamento internacional mais sofisticado”, tão ao gosto dos tucanos. Basta o “rudimentar” método de
adotar a prática como critério da verdade.
Termino por
aqui, pedindo desculpas pela falta de revisão, pois em Xiamen já são 6h12 da
manhã e o chá está quente.
ps. já estava desligando o computador, quando vi que Luis Favre escreveu que o artigo de Leitão é "excelente", "uma aula". Como se vê, o lobo perde o pelo, mas não o vício. Espero ansioso o dia em que alguém escreva a biografia do Favre, pois ele merece. Tá aqui: (2) Luis Favre - Excelente artigo de Miriam Leitão. Uma aula. LF... | Facebook
Segue o
texto comentado
Míriam
Leitão
PT ajuda a
versão do adversário ao defender que tem a mesma proposta do PC Chinês
Gleisi
Hoffmann vai a Pequim e declara que PC Chinês e seu partidos têm afinidades
Por Míriam
Leitão
14/04/2024
04h30 Atualizado há 12 horas
A China é
uma ditadura. O PT sempre governou o Brasil democraticamente. Tudo o que a
extrema direita golpista quer é vincular o PT ao autoritarismo, apesar de ter
sido essa mesma direita que tentou golpear as instituições democráticas. Nos
últimos dias, na esteira do histrionismo de Elon Musk, parlamentares
brasileiros ligados a Jair Bolsonaro têm gritado no exterior a sandice de que o
Brasil é uma ditadura. Por que mesmo, num contexto assim, a presidente do PT,
Gleisi Hoffmann, vai a Pequim declarar que seu partido e o PC Chinês têm
afinidades, e afirmar que foi “inspirador" o encontro dos dois partidos?
Visitar a
China, ter bom relacionamento com as autoridades chinesas, ter relações com o
partido governante daquela potência, fazer acordos, isso é natural. O que não
faz sentido é sugerir que há uma irmandade com um partido que governa a China
com mão de ferro há 75 anos, que destrói qualquer oposição que apareça, que
controla tudo, a imprensa, as redes sociais, as empresas, as artes. Um governo
que, na última vez em que houve uma insurgência popular, em 1989, reagiu com um
massacre em praça pública, e reprime ou reverte qualquer tentativa de abertura.
Como acontece agora em que Xi JinPing colocou mais um ferrolho na porta em
favor da sua permanência no poder.
A deputada
Gleisi Hoffmann disse, segundo relato do jornalista Marcelo Ninio: “É o
predomínio do capitalismo que gera um cenário internacional de instabilidade,
crises, guerras e revoltas. Nossos partidos, o PT e o PC Chinês defendem que o
socialismo é essa alternativa. Um de nossos maiores desafios é exatamente de
tornar o socialismo mais influente e mais poderoso em nossos países e também em
escala mundial”.
A propósito,
a China não pode ser classificada como país socialista. A economia é dominada
pelo capitalismo de Estado e uma elite cada vez mais bilionária de empresários
que aceitam a simbiose de suas empresas com o regime. Visitar os colossos
chineses de diversas áreas, como a Huawei, é interessante para qualquer pessoa.
Estranho é achar que isso é socialismo.
O comunismo,
como se sabe, não existe. Apesar disso, tem sido o espantalho eterno de quem
tem intenções ditatoriais no Brasil. Foi essa ameaça que brandiram os golpistas
de 1964, e repetem agora Bolsonaro e seus seguidores. O delírio do risco
comunista é apresentado por pastores de má-fé nas suas igrejas. Falas como a da
presidente do PT serão usadas como prova de que disseram a verdade.
Os Estados
Unidos têm um enorme telhado de vidro e criticá-los também é natural. Fazer
críticas em tom mais alto do que os chineses é ser mais realista do que o rei.
Concluir que os Estados Unidos são o epicentro de todas as crises
internacionais é simplificar o complexo. A boa política externa entende as
complexidades desse mundo há muito tempo multipolar. A Rússia invadiu a Ucrânia
levando uma guerra para dentro da Europa. Isso é conflito gerado pelo fato de
os Estados Unidos não aceitarem a própria decadência? O ditador Vladimir Putin
é também um resultado da crise do capitalismo? Nenhuma culpa recai sobre o
autocrata do Kremlin?
O governo de
Joe Biden parabenizou o presidente Lula meia hora depois de o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) ter declarado a vitória do atual presidente no dia 30 de
outubro. Jair Bolsonaro levou 38 dias para reconhecer a vitória de Biden.
Bolsonaro conspirou para tentar impedir a posse do eleito, o que culminou na
tentativa de golpe de 8 de janeiro. A direita trumpista tinha feito ataque
semelhante ao Capitólio, dois anos antes, em 6 de janeiro de 2021, para tentar
impedir a posse de Biden. Como tudo isso cabe dentro da visão de mundo de que
os Estados Unidos têm o monopólio da geração de crises no planeta?
Há uma
doença infantil da qual o Partido dos Trabalhadores nunca se curou. Somando-se
os tempos, ele governou o Brasil por quase 15 anos. Já poderia ter desenvolvido
um pensamento internacional mais sofisticado, sem alinhamento com uma potência
ditatorial, e que evitasse o antiamericanismo estudantil. Aqui no Brasil
partido é partido, governo é governo —ao contrário da China, aliás — mas o que
a presidente do PT diz será usado pelos que querem rotular o atual governo de
ditatorial, ou dizer que o espectro do comunismo ronda o Brasil.
Eu acho que vocês petistas podem aprender muito com os chineses.
ResponderExcluirConfucionistas, taoistas, budistas, maoistas, denguistas ou sambistas...
https://m.facebook.com/Resenhadosambars/videos/agora-os-chineses-passaram-dos-limites-at%C3%A9-roda-de-samba-eles-est%C3%A3o-falsificando/393903221398509/?locale=pt_BR
Foi o chá quente responsável pelo sutil bom humor?
ResponderExcluir“...dar um abraço de afogado nos Estados Unidos?”, “democracia-ao-estilo-ocidental”, “Basta o “rudimentar” método de adotar a prática como critério da verdade.”, “vamos ao grão...”, “Gleisi Hoffmann acusada de melancia”.
Adocicou o amargo texto de Miriam Leitão que na largada, rotulou a China de Ditadura e finaliza dizendo que é a fala de Gleici que será usada pelos que querem rotular o atual governo de ditatorial.
Incoerente contradição.