domingo, 4 de dezembro de 2022

Crítica da resolução aprovada pelo diretório estadual do PT SP

O Diretório Estadual do PT paulista aprovou, em reunião realizada em novembro de 2022, um texto de “BALANÇO ELEITORAL”.

O texto “inicia o processo de avaliação das campanhas Lula Presidente e Haddad Governador no Estado de São Paulo, abrindo o debate a ser aprofundado em seminário no início de 2023, com o objetivo de planejar a atuação do PT no próximo período”.

Para contribuir com este debate, além das opiniões apresentadas na reunião do Diretório e além das emendas propostas ao texto, a direção estadual da tendência petista Articulação de Esquerda apresenta o texto a seguir, composto de duas partes.

A primeira parte faz uma crítica do “BALANÇO ELEITORAL” aprovado pela direção estadual do PT SP.

A segunda parte apresenta nosso ponto de vista, também inicial, sobre o tema.

CRÍTICA AO TEXTO DA DIREÇÃO ESTADUAL DO PT SP

Nossa primeira diferença em relação ao texto divulgado pela direção está no destaque dado a chamada frente ampla.

O texto afirma: “O êxito eleitoral que garantiu a vitória de Lula no 2º turno se dá não somente pela consolidação da frente ampla, acertada aliança democrática na derrota do fascismo nas urnas, mas também pelo imenso esforço e dedicação das lideranças e militantes que estiveram nas ruas e nas redes em uma eleição disputadíssima”.

Claro que numa disputa tão apertada, todo voto conta, todo apoio é importante. Mas os dados são inegáveis: quem garantiu a vitória foi o eleitorado tradicional da esquerda. A contribuição eleitoral oriunda dos aliados de centro-direita e direita foi marginal.

Ou seja: pode ter sido certo ou pode ter sido errado fazer a “frente ampla”, mas é propaganda enganosa dizer que foi a frente ampla com eles que “garantiu a vitória de Lula”.

Que eles mesmos digam isso, é compreensível. Que nós acreditemos e ainda difundamos esta mentira, é um erro imenso, que na prática resulta em dar a eles um peso desproporcional no futuro governo.

Nossa segunda diferença em relação ao texto divulgado pela direção estadual está na atitude frente a força revelada pelo cavernícola, pela extrema-direita e pelo neofascismo.

Evidente que devemos comemorar e muito a nossa vitória. Mas não podemos confundir comemoração com análise. A análise precisa reconhecer nossos pontos fortes e fracos, assim como apontar os pontos fortes e fracos do nosso inimigo. E a verdade é que nosso inimigo fez um governo de merda, por quatro anos, conquistou 58 milhões de votos, cresceu mais do que nós no segundo turno, elegeu forte bancada de parlamentares e governadores.

Este desempenho não é devidamente destacado no documento da direção estadual do PT SP. O documento reconhece que “o bolsonarismo, ainda que derrotado nas urnas, está enraizado na sociedade, portanto nossa construção democrática nessa disputa deve ser orgânica e permanente”. Certamente os autores do documento reconhecem que dizer isso e dizer nada é praticamente o mesmo. Ademais, nada se fala acerca da derrota que sofremos na disputa para o senado, saindo vencedor um energúmeno.

Nossa terceira diferença: talvez como resultado do torcicolo analítico citado anteriormente – os fatos bons a gente destaca, os fatos ruins a gente esconde – o documento faz um balanço sobre São Paulo que oculta o lado B da situação.

O documento afirma o seguinte: “O PT ganhou na capital e na região metropolitana, retomando “cinturão vermelho” (...) evoluímos de 32,03% (7.212.132) para 44,76% (11.519.882) dos votos válidos (...) Ganhamos a eleição na Grande São Paulo e perdemos no interior, todavia, cabe registrar que a participação dos do estado de São Paulo no total dos votos nacionais evoluiu de 15,30% (2018) para 19,09% nesta eleição”.

O documento afirma também que a “votação do PT foi a maior de toda sua história nas disputas estaduais”, pela “primeira vez desde 2002 conseguimos colocar nossa candidatura no segundo turno para governador”, “embora tenhamos sofrido uma derrota eleitoral, obtivemos uma vitória política”.

Tudo isto é verdade e deve ser comemorado. Mas o documento não se contenta em comemorar os fatos e dá um passo além, afirmando o seguinte: “O resultado conquistado no estado foi decisivo para a vitória de Lula e Alckmin”. Isto é um exagero. Afinal, nós perdemos em São Paulo e Bolsonaro ganhou em São Paulo. O que pode e deve ser dito, isto sim, é que o trabalho feito em São Paulo contribuiu para impedir que Bolsonaro virasse o jogo a seu favor. Mas o que foi “decisivo” mesmo foram as vantagens conquistadas nos estados do nordeste do Brasil.

Reconhecer isto não é uma tolice regional, é um desafio político: temos que entender por quais motivos no sul e sudeste do país a extrema direita demonstrou ser eleitoralmente tão forte. E não vamos nos dar ao trabalho de entender isto, se não aceitarmos que o problema existe.

O documento da direção estadual não parece acreditar que o problema existe. Chega a comemorar as “decisões políticas acertadas que possibilitaram a votação do Partido no Estado crescer 12,7 pontos percentuais em comparação a 2018, sendo este o maior crescimento do país. Mesmo com a diminuição da votação do PT em alguns estados do Norte e Nordeste, o crescimento em São Paulo, e em todo o Sudeste, foi decisivo para a vitória de Lula”.

A verdade é: São Paulo em 2018 foi um desastre completo. Crescer em relação aquele ano não deveria ser uma surpresa. E a votação do bolsonarismo no sudeste – com exceção de MG – foi decisiva para eles terem chegado com 58 milhões de votos. Não reconhecer este fato é quase um negacionismo estatístico.

Nossa quarta diferença em relação ao documento está contida na seguinte afirmação: “Os dados demonstram a importância do PT ampliar sua inserção nos interiores, fortalecer os diretórios municipais e  potencializar a construção política junto a diversos agentes políticos nos  movimentos sociais, das lutas de bairro, culturais, por moradia e organizações sindicais. É necessário promover a formação de quadros, impulsionar candidaturas ao legislativo e executivo nos municípios a partir de uma acumulação tática e estratégica, capilarizando o partido pelo estado”.

Claro que concordamos com tudo isto. Mas a pergunta é: onde está a novidade? Por qual motivo nada disto foi feito? Por que a direção estadual do Partido deixou chegarmos a um ponto tal, em que o Partido praticamente desapareceu como força organizada em grande número de cidades? Ao falar do que deve ser feito e não explicar por quais motivos não foi feito, o documento sinaliza para o seguinte: nada será feito.

Nossa quinta diferença em relação ao documento está relaciona ao que é dito na frase: “A Política de defesa da candidatura do Haddad aos ataques do candidato Rodrigo Garcia, que buscava nos tirar do segundo turno, mostrou-se acertada, pois o risco da polarização nacional com Bolsonaro, como foi constatado, poderia impulsionar a campanha de Tarcísio, acarretando no risco de não irmos para o segundo turno”.

O texto falha, de saída, em não desenvolver o raciocínio todo. Uma parte do nosso partido imaginava que iriamos para o segundo turno em primeiro lugar e que seria mais “fácil” derrotar Tarcísio do que derrotar Garcia. Esse cálculo se baseava num pressuposto falso: o de que o eleitorado do PSDB votaria maciçamente contra a extrema direita. Não foi nada disto que aconteceu. O eleitorado tradicional do PSDB optou por Tarcísio, parte já no primeiro turno e outra parte no segundo turno.

Isto posto, a conclusão é: a tática adotada na eleição em São Paulo, frente a duas candidaturas de direita, pode ter sido (ou não) eleitoralmente “acertada”, mas isto não muda o seguinte: não se derrotará o bolsonarismo em São Paulo nas eleições, se antes ele não for derrotado na luta política e social. O que inclui fazer oposição de verdade na Assembleia Legislativa...

Nossa sexta e principal diferença em relação ao documento está contida no seguinte trecho: “O PT de São Paulo sai fortalecido, como o maior partido de oposição no estado, e mais preparado para enfrentar os desafios de sustentação do governo Lula e assim criar alternativas de enfrentamento dessa extrema-direita em São Paulo, preparando-se para as próximas disputas políticas e eleitorais”.

Certamente o PT de SP saiu destas eleições eleitoralmente melhor do que entrou. Mas o tom – “o PT de SP sai fortalecido” – não corresponde a realidade, salvo é claro para quem acha que a força se define pelo número de mandatos parlamentares. A verdade é que nossa força vem do enraizamento organizado na classe trabalhadora e nesse quesito estamos muito pior do que estávamos. Reconhecer isto sem meias palavras é essencial para mudar a situação.

CONTRIBUIÇÃO PRELIMINAR DA AE

A eleição de Lula, no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, é um fato de imensa importância. Do ponto de vista mundial, permite engajar o Brasil na construção de uma ordem baseada na paz, no desenvolvimento e no atendimento às necessidades dos povos. Do ponto de vista continental, permite retomar, ainda que em novas bases, o processo de integração regional que estava em curso antes da crise de 2008 e da ofensiva das forças de direita. Do ponto de vista nacional, torna possível interromper o retrocesso e cria melhores condições para lutarmos por transformações profundas em nossa sociedade, em benefício das classes trabalhadoras. E do ponto de vista imediato, impede o que aconteceria em caso de vitória da extrema-direita: uma escalada repressiva e violenta contra as forças democráticas, populares e socialistas.

A grande responsável por nossa vitória no segundo turno foi a militância que foi às ruas defender a eleição de Lula e das demais candidaturas das forças democráticas e populares, em particular das candidaturas petistas. Por isso, constitui uma obrigação dirigir o mais profundo agradecimento a cada militante, assim como a cada eleitor e eleitora que no dia 30 de outubro compareceu às urnas para votar 13. Foram estas pessoas, na sua maioria pobres, negros e negras, mulheres, moradores da periferia, trabalhadores e trabalhadoras com consciência de classe, residentes em todos os cantos de nosso país, mas especialmente na região nordeste, que nos permitiram conquistar esta vitória. É graças a todos e todas que hoje podemos dizer: vencemos!

Tão logo foi proclamada a vitória, ao mesmo tempo que a militância se dirigia aos pontos de concentração para comemorar, uma parcela minoritária da extrema direita iniciou o bloqueio nas estradas e as concentrações em frente aos quartéis, pedindo – as vezes explicitamente, as vezes disfarçadamente – um golpe militar. No momento, esta mobilização da extrema-direita não tem força para converter-se numa ameaça imediata. Entretanto, convocamos todos e todas a se manter de prontidão, pois está evidente que seguem vivas, atuantes, perigosas e armadas as forças que deram o golpe de 2016, que praticaram a fraude de 2018, que sustentaram as políticas neofascistas e neoliberais do governo cavernícola, entre 2019 e 2022. Dentre as muitas lições que é preciso tirar do processo iniciado em 2016 – processo que nossa vitória em 2022 deve servir para começar a enterrar – está a de que não devemos nunca subestimar nosso inimigo, a de que não devemos nunca superestimar o compromisso democrático das chamadas “instituições” e da direita gourmet e, acima de tudo, a de que não devemos temer esta gente, pois como demonstramos várias vezes, as elites e seus serviçais podem ser derrotados.

Mas, para que esta derrota seja efetiva e completa, muito ainda precisa ser feito. E para isto, é necessário tirar todas as lições do período 2016-2022, a começar pelo ocorrido nas eleições deste ano. Neste sentido, é preciso que as direções do campo democrático-popular – em todos os níveis, das organizações de base até as organizações nacionais –realizem um balanço detalhado do processo eleitoral, com o objetivo de aprender com o ocorrido, de verificar os pontos acertados e os pontos errados das diferentes linhas políticas implementadas, de corrigir práticas e procedimentos. Ou aprendemos com o passado, ou ele continuará a nos assombrar.

Neste sentido, orientamos nossa militância a cobrar das direções setoriais e municipais, assim como do Diretório Estadual do PT, que convoquem reuniões presenciais de balanço do processo eleitoral. Não como um processo rápido, burocrático, com o objetivo de aprovar resoluções autocongratulatórias, mas como um processo real de estudo e debate. Orientamos nossa militância, também, a contribuir com este processo de balanço partidário, convocando reuniões abertas de balanço, produzindo estudos e textos, estimulando que todo o Partido faça o mesmo.

Isso é particularmente importante de ser realizado na região sudeste, em especial no estado de São Paulo. Da votação obtida por Lula no segundo turno, o maior número de votos absolutos veio de residentes nos estados do sudeste: 22.793.826. Sem este resultado, Lula não teria sido eleito. Entretanto, quando consideramos as proporções, fica evidente que o maior número de votos em Lula em proporção ao eleitorado total foi obtido na região Nordeste. De eleitores residentes no nordeste, Lula recebeu 22.534.967 votos, sendo que no Nordeste está 26,63% do eleitorado total. Já no sudeste, onde está 43,38% do eleitorado total, recebemos os já citados 22.793.826.

Nos quatro estados do Sudeste, o resultado de Lula no segundo turno foi o seguinte:

-foi o mais votado em Minas Gerais (50,20% dos votos válidos)

-ficou em segundo lugar em São Paulo (44,76% dos votos válidos)

-ficou em segundo lugar no Rio de Janeiro (43,47% dos votos válidos)

-ficou em segundo lugar no Espírito Santo (41,96% dos votos válidos)

Nos quatro estados do sudeste, também fomos derrotados nas eleições para governador e senador, com exceção do Espírito Santo, onde Renato Casagrande (PSB) foi reeleito. Mesmo em Minas Gerais, onde Lula foi o mais votado nos dois turnos, o bolsonarismo triunfou na eleição para governo e senado.

No Espírito Santo, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, o PT não teve candidatura própria ao governo do estado. O PT teve candidadura própria ao Senado no Rio de Janeiro, embora esta fosse uma candidatura muito contestada, por sua postura no mínimo dúbia em relação ao governador bolsonarista Cláudio Castro. E teve candidatura própria ao governo no estado de São Paulo, com o companheiro Fernando Haddad. Por estes e outros motivos, cada estado da região sudeste merece uma análise em separado.

No caso de São Paulo, é importante destacar que – pela primeira vez desde 2002 – conseguimos colocar nossa candidatura no segundo turno para governador. Neste sentido, embora tenhamos sofrido uma derrota eleitoral, obtivemos em certo sentido uma vitória política.

Tanto no primeiro quanto no segundo turno, nossa candidatura conseguiu vencer em cidades importantes, a começar pela capital São Paulo. Olhando de conjunto a situação, era possível vencer, era possível eleger pela primeira vez o governador de São Paulo. Cabe, portanto, analisar os motivos que não tornaram isso possível.

Entre os motivos que explicam nossa derrota eleitoral, citamos os seguintes:

-debilidades estruturais do PT no estado de São Paulo, acumuladas há muitos anos, entre as quais destacamos: a desaparição dos diretórios do Partido em muitas cidades e a parlamentarização da vida partidária;

-debilidades na campanha eleitoral propriamente dita, como por exemplo a relação entre as campanhas proporcionais e a campanha para governador;

-ilusões na força de nossos aliados (Márcio França, Geraldo Alckmin);

-subestimação da força de nossos inimigos (Rodrigo Garcia, Tarcísio de Freitas)

Estavam corretos os que diziam que as eleições de 2022 se dariam num momento de máxima fragilidade do tucanato. São exemplos disso o fato de Alckmin ter saído do PSDB, ido para o PSB e se convertido em vice de Lula; e o fato de Dória ter renunciado a sua candidatura a presidente, deixado de ser candidato a governador e depois saído do PSDB. Havia a expectativa de que, nesse cenário, a opção por fazermos uma aliança com a principal expressão do tucanato paulista – o ex-governador Geraldo Alckmin – e com o ex-governador Márcio França ampliaria muito nossas chances de vitória. Pelo mesmo motivo, havia a crença de que a vitória seria mais fácil se o segundo turno fosse contra Tarcísio de Freitas, inclusive pelo fato de o candidato da extrema-direita não ter vida política anterior no estado de São Paulo.

Os resultados eleitorais mostram que as supracitadas expectativas eram infundadas ou, no mínimo, exageradas. Na disputa pelo Senado, Márcio França foi derrotado pelo astronauta. E na disputa para governador, Tarcísio terminou em primeiro lugar tanto no primeiro quanto no segundo turno. E não há sinais de que o acréscimo eleitoral de Alckmin e Márcio para Haddad tenha sido expressivo. Evidentemente, isto não quer dizer que outra tática e outra política de alianças teriam obtido melhor resultado eleitoral. Mas não temos dúvida de que o resultado não confirmou os discursos grandiloquentes feitos em defesa da chapa Lula-Alckmin, segundo os quais esta chapa seria o passaporte para nossa vitória em São Paulo.

De toda maneira, o PT de São Paulo saiu desta eleição maior do que entrou, seja em número de deputados eleitos na Assembleia Legislativa, seja no desempenho de nossa candidatura a governador. Mas isto não pode servir de pretexto para não avaliarmos no detalhe nossos erros, em particular no que diz respeito ao funcionamento do Partido, especialmente de nosso Diretório estadual.

Este balanço e a devida correção de rumos é indispensável para o êxito de nossa oposição ao governo Tarcísio de Freitas. Não devemos subestimar a vitória deste bolsonarismo tecnocrático e miliciano no estado de São Paulo, combinado a presença de governadores de tipo similar em Minas Gerais e no Rio de Janeiro.

 

 

O Estadão não falha

O companheiro Bruno Elias me chamou a atenção para um excelente editorial publicado no dia 30 de novembro de 2022, pelo jornal O Estado de S. Paulo.

O texto (ver link e miniatura abaixo) faz algumas afirmações que parecem ter saído da pena de um "petista infiltrado", fazendo recordar uma história segundo a qual Júlio de Mesquita Filho, um dos donos do Estadão, teria dito durante a ditadura: “Com meus comunistas ninguém mexe, deles cuido eu”.

Mas outras afirmações atestam o verdadeiro pedigree do editorial. Entre elas, destaco duas:

*"o bolsonarismo apostou em uma sociedade quase feudal";

*"cabe perguntar como Bolsonaro conquistou quase metade dos votos na disputa presidencial, bem como refletir sobre o que isso revela sobre as noções brasileiras de cidadania e coesão social".

Como se pode ver, a classe dominante não perde o hábito: deu merda, socializemos as responsabilidades e os prejuízos.

Ao contrário do que diz O Estado de São Paulo, as "noções de cidadania e coesão social" que levaram quase metade dos eleitores ativos a votar no cavernícola não são "brasileiras", são de uma parte dos brasileiros.

Aquela parte que governou o Brasil durante quase toda sua existência como nação.

Aquela parte que foi derrotada em quatro eleições presidenciais, entre 2002 e 2014.

Aquela parte que apelou para o golpe em 2016 e para a fraude em 2018.

Aquela parte que é comandada pela classe dominante, O Estado de São Paulo incluído.

Se os "feudais" perderam a eleição presidencial de 2022, foi graças a tudo que O Estado de São Paulo sempre combateu.

Perderam, graças aos trabalhadores pobres, as mulheres trabalhadoras, os negros e negras com consciência de raça e classe, a intelectualidade democrática, os que lutam contra o fundamentalismo e contra todo tipo de preconceito, os povos indígenas e os quilombolas, a juventude combativa, ao “nordeste" geográfico e ao nordeste político-cultural” que existe em cada canto de nosso Brasil.

Ademais, ao contrário do que O Estado de São Paulo dá a entender, a "sociedade quase feudal" não é defendida apenas por Bolsonaro.

Para começo de conversa, este "país varonil" em que vivemos nunca viveu uma revolução burguesa das boas, daquelas que cortam as cabeças da aristocracia.

Por isso, nossa democracia é constrangida pela oligarquia, nossa soberania é limitada pela dependência, nosso desenvolvimento conserva e amplia a riqueza e o poder de quem já tem muito, por isso a cabeça de nossa classe dominante é feudal, quando muito tecnofeudal.

E o que já era ruim, ficou pior ainda com a onda neoliberal.

Bolsonaro, nesse quesito, surfou na onda inaugurada pela direita gourmet.

Muito antes de Bolsonaro, foi esta direita que, para defender o estado de coisas, se lançou na privataria, na terceirização, na farra da dívida e no desmonte das (poucas) políticas que o Estado oferecia ao povo.

E é exatamente esta direita gourmet que, passada a eleição presidencial, se esforça por limpar algumas das digitais que deixou na cena do crime e, ao mesmo tempo, tenta impor limites às mudanças profundas que o Brasil precisa.

No fundo, no fundo, o editorial do Estadão - ironicamente intitulado "Os inimigos do Estado" - deve ter sido escrito por um descendente do Tancredi de Il Gattopardo: "Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi".


Segue o link e a imagem do editorial citado acima.

https://www.pressreader.com/brazil/o-estado-de-s-paulo/20221130/281608129452363





Artur Lira é o cara

Quem acompanha os Vingadores da Marvel conhece o truque: o super bandido é derrotado, todo mundo relaxa, mas logo em seguida ele reaparece mais forte do que antes.

É mais ou menos o que estamos assistindo agora com Arthur Lira, o "cobandido" do orçamento secreto, recebendo o apoio de parlamentares da Federação Brasil Esperança.

Qual o preço de fazer um acordo do tipo te-pago-agora-e-você-me-paga-depois com um superbandido? Isso se descobrirá logo, logo. Sabendo que, como a história inclui outros super-bandidos, podem ocorrer reviravoltas surpreendentes.

Havia alternativa? Exceto para quem desistiu, sempre há alternativa, embora elas de fato sejam todas muito difíceis. 

Seja como for, a questão mais importante é como evitar que se instale um semi-parlamentarismo de fato?

Se essa questão não for respondida, o que nos ameaça é uma combinação perversa de tutela militar e de tutela do Centrão. 

E aí só faltaria Artur Lira se converter, tipo um metamorfo, no Eduardo Cunha Segundo.







quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Tarso, Xandão e a reconciliação

Alguém já disse que nossa memória é curta.

Pensei nisso ao reler os textos escritos pelo Reinaldo Azevedo, na Veja, atacando o PT.

Penso nisso, também, quando vejo muita gente boa vibrando com os ministros do Supremo, especialmente com Xandão, em particular depois da multa aplicada ao PL.

Até aí, compreensível.

Difícil mesmo é quando passam da vibração para a "teorização".

Foi o que, assim me parece, tentou fazer o companheiro Tarso Genro, em artigo publicado recentemente no Sul 21.

O texto citado está aqui: Xandão é o ‘Filho do Século’ do Estado de Direito (por Tarso Genro) - Sul 21

Nele Tarso afirma que “muitas pessoas de dentro das instituições do Estado – aqui quero me referir a estas sem compará-las com aquelas que na sociedade civil e nos partidos lutaram heroicamente para sustar o avanço do fascismo – merecerão serem lembradas ao longo da nossa história por não desistirem da democracia, num momento de avanço do fascismo em nosso país”.

Realmente, é melhor não comparar, pois se compararmos será inevitável lembrar que “muitas pessoas de dentro das instituições” merecerão ser lembradas por terem traído as liberdades democráticas e terem contribuído para o avanço do fascismo.

Inclusive vários ministros do STF.

Tarso também afirma que Bolsonaro se apressou em montar estruturas paralelas junto ao crime organizado e armar civis para disputar o monopólio da força e das armas com as próprias instituições militares. No episódio atual, portanto, Bolsonaro – o “mito” – tentou formar o “partido militar” depois da eleição, buscando cooptar centenas de militares para cargos de Governo, mas sem conseguir dominar a caserna”.

Não foram centenas, mas milhares de nomeados para cargos.

Não houve disputa do monopólio da violência, porque as forças armadas apoiaram o armamento em massa dos setores ricos.

E a caserna não foi dominada, pelo simples motivo de que é a caserna (ou melhor, o alto comando da caserna) quem domina. Bolsonaro é "apenas" uma das muitas expressões do partido militar.

Tarso diz que Bolsonaro é um “um político medíocre” que pretendia fazer “uma corrosão do sistema “por dentro” das instituições. E ele o faz com o apoio majoritário do Congresso e ergue o fascismo – sem o apoio expresso ou o estímulo das instituições militares – à condição de uma alternativa política concreta, quase consagrada num processo eleitoral de reeleição, no qual ele lutou até o fim para fraudar”.

Sem o apoio expresso dos militares?

Sem o estímulo dos militares?

A verdade é outra: a cúpula das forças armadas foi um dos principais agentes do golpe de 2016 e do que veio depois.

E foi nas forças armadas que se constituiu o núcleo duro das concepções bolsonaristas (ou seja, do atual “fascismo” à brasileira).

Por quais motivos Tarso subestima o papel dos militares na ascensão do bolsonarismo?

Um dos motivos é óbvio: fingindo que eles são menos perigosos do que são, fica mais fácil convencer as pessoas de que devemos (re)conciliar com eles.

Por exemplo, nomeando um ministro da Defesa “escolhido” pelos milicos.

É esta lógica – fazer de Bolsonaro um paraquedista e poupando a responsabilidade das instituições – que leva Tarso a afirmar que o ascenso de Mussolini teria sido o “ascenso da vontade contra a força das instituições”.

A verdade é outra, como demonstra o mesmo Tarso Genro nas linhas seguintes de seu texto, ao falar dos “namoros dos velhos políticos liberais italianos com o autoritarismo” e da “cínica postura dos monárquicos”.

Na Itália fascista, na Alemanha nazista e no Brasil do cavernícola, as “instituições” se dividiram, mas predominou a conciliação com a extrema-direita.

Mais adiante, Tarso afirma o seguinte:

O filho do século, no protofascismo brasileiro, todavia, não estava próximo às estruturas do Estado, nos lugares onde se reproduzia o golpismo bolsonárico (Congresso e Executivo), nem na sociedade civil, que as lideranças fascistas tentavam se organizar com dinheiro e com as promessas utópicas da volta ao passado medieval. Nem era um partido de oposição, nem um mito, nem um grupo; nem era um político de vulto e de responsabilidade como Lula. O filho do século não estava fascinado em observar diretamente o “fascismo societal” em curso, pois era “por dentro do Estado”, submetendo Executivo e as representações do Parlamento que o golpe poderia prosperar. Não tremeu de medo nem vacilou: usou e usa capa preta e não tem vínculos ideológicos com a esquerda. “Xandão”, sem se impressionar com os blefes golpistas e suas ameaças de morte, é o nosso Filho do Século nas instituições do Estado, de modo inverso ao de Mussolini, descrito por Scuratti: sua arma foi e é a Constituição e sua vontade corajosa dentro do STF, foi a maior de todas, desde que a Constituição de 88 foi proclamada por Ulysses Guimarães, que tinha ”nojo da ditadura” e de todos os ditadores”.

A construção dos raciocínios e os elogios a Xandão chegam a ser engraçados, de tão tortuosos e exagerados. Por exemplo: sua arma “foi e é a Constituição”, omitindo que o procedimento de Xandão foi e é "customizado".

Mas o mais interessante é o duplo sentido da afirmação segundo a qual Xandão seria “o nosso Filho do Século nas instituições do Estado, de modo inverso ao de Mussolini”.

Nesta passagem de seu texto, se é que entendi o que ele quis dizer, Tarso atirou no que viu e acertou no que não viu. Ou no que esqueceu de ter visto, pois ontem mesmo Moro e antes dele Barbosa já haviam feito testes para o personagem que – segundo Tarso – Xandão estaria interpretando: o do bonapartista judicial.

Tarso encerra dizendo que provisoriamente, a democracia venceu, mas agora temos que vencer o ódio que os fascistas disseminaram como uma peste medieval, cuja vacina – desdobrada no tempo – deve ser mais democracia, mais comida na mesa, mais educação, liberdade e reconciliação com um futuro de segurança e paz: sem armas e sem gangues de assassinos daqueles “filhos do século” que cultuam a morte e a violência infinita”.

Neste palavrório, o termo chave é “reconciliação”. 

E, ao contrário do que diz Tarso, a verdade é a seguinte: se a "reconciliação" vencer, se a conciliação vencer novamente, se a ilusão nas "instituições" seguir predominante em certas cabeças, o "fascismo" também terá vencido, pouco importando que artista encarnará o "filho do século".

 

 


segunda-feira, 28 de novembro de 2022

GARANTIR A POSSE E INICIAR IMEDIATAMENTE AS TRANSFORMAÇÕES

 Texto debatido na reunião da Dnae realizada dia 27 de novembro.

1.Como dissemos na resolução “SOBRE A TRANSIÇÃO, A POSSE, O NOVO GOVERNO E SUAS MEDIDAS”, a coalizão que venceu as eleições presidenciais, assim como parte importante de nossa base militante e eleitoral, está com suas atenções voltadas para os trabalhos da comissão de transição instalada no CCBB, assim como para a discussão sobre a posse e o futuro governo. Não se dando a devida atenção para o ambiente internacional; para a ação dos neofascistas; para a chantagem dos neoliberais; e para o pano de fundo do processo, a saber, a desindustrialização do país e todos os seus efeitos.

2.Cabe a direção nacional do PT reunir-se imediatamente, definir uma política para a transição, definir suas prioridades para a composição e primeiras medidas do futuro governo. Ao mesmo tempo, devemos dedicar parte de nossa atenção para: i/concluir o balanço do conjunto do processo eleitoral; ii/definir o conjunto de nossa política nacional e internacional para o período aberto com a vitória eleitoral; iii/adotar as medidas organizativas decorrentes, no plano do Partido, das frentes e dos movimentos.

3.O balanço das eleições não é algo trivial. Trata-se de analisar o resultado da eleição presidencial, mas também das eleições para governos estaduais e das eleições parlamentares. Com esta finalidade, além de estimular que o Partido faça tal balanço, começaremos nós mesmos em dezembro um ciclo de seminários sobre o tema.

4.A definição de nossa política nacional e internacional para o período aberto com a vitória eleitoral vai muito além da discussão sobre a transição, a posse e o futuro governo. E exige, como ponto de partida, entender que 2023 não é 2003.

5.A situação internacional segue tempestuosa. A guerra entre Ucrânia e Rússia é parte integrante da guerra estratégica entre Estados Unidos e China. Esta guerra possui dimensões militares, políticas, sociais, econômicas, ambientais e ideológicas. E repercute de diferentes maneiras em cada região do planeta. O governo brasileiro que toma posse no dia 1 de janeiro de 2023 precisará de uma política nacional e internacional que nos permita, no contexto desta guerra global, converter nossa região num dos polos do mundo. E para isso não basta prestígio diplomático, nem tampouco basta ser um grande exportador de primários; para ser um dos polos do mundo, é necessário poder real, o que inclui capacidade científica, tecnológica, industrial. O que nos remete para a transição. Não para aquela transição sediada no CCBB, mas para a outra, a “grande transição” que começou em 1980 e não terminou até hoje.

6.Em 1980 o Brasil estava a caminho para converter-se numa grande potência industrial. Então tivemos a crise da dívida externa, a transição conservadora e os governos dos dois fernandos neoliberais. Como resultado, o país foi se desindustrializando fortemente. Aí vieram os governos Lula e Dilma, que tentaram colocar um freio e até reverter o processo de desindustrialização. Tivemos então o golpe de 2016, os governos “temer” e cavernícola. E de quase potência industrial viramos potência agroexportadora e minérioexportadora, além de paraíso do capital financeiro, o país do "agro é pop, deus, tudo".

7.Essa “grande transição” afetou tudo: mudou a composição da classe dominante, mudou a composição e as condições de vida da classe trabalhadora, mudou o ambiente político e cultural no Brasil. Foi nesse ambiente que os neoliberais vieram e seguem atuando e chantageando. Foi em reação a esse ambiente que a esquerda encabeçada pelo PT ganhou quatro eleições presidenciais entre 2002 e 2014 e agora ganhou novamente. Foi também nesse ambiente que os neofascistas vieram e ainda não foram embora.

8.Na eleição de 2022 impusemos uma derrota eleitoral aos neofascistas. Mas falta muito por fazer. Os neofascistas, seus nomeados e seus aliados continuam ocupando espaços importantes na administração federal (como é o caso da presidência do BC); governam estados importantes (como é o caso de RJ, MG e SP); controlam parte importante do Congresso nacional, sem falar de prefeituras pelo país afora. Por isso, não basta a vitória eleitoral de 2022: se faz necessário impor uma derrota política completa aos neofascistas, o que supõe vencermos as batalhas eleitorais de 2024 e de 2026.

9.Não apenas derrotar politicamente, também é necessário impor uma derrota militar ao neofascismo: trata-se, por exemplo, de desarmar os grupos paramilitares e trata-se, também, de estabelecer outros comandantes, outra cultura e outro padrão de funcionamento às forças armadas e às polícias que foram colonizadas pelo neofascismo.

10.Não apenas derrotar política e militarmente, também é necessário impor uma derrota cultural ao neofascismo: trata-se de construir, na maioria da nossa população, uma cultura democrática, popular, socialista, ao mesmo tempo nacionalista e internacionalista, antiimperialista e latinoamericanista.

11.Não apenas derrotar política, militar e culturalmente, mas também estrutural e institucionalmente: a maneira como funciona o Estado brasileiro e seus marcos constitucionais foram incapazes de impedir o surgimento do neofascismo; mais do que isso, chegaram a estimular a onda neofascista, na exata medida em que estimularam o neoliberalismo. Ou alteramos a atual institucionalidade e o conjunto da sociedade, ou a ameaça neofascista continuará presente, como aliás o golpismo militarista esteve presente em toda a história republicana brasileira.

12.Neste sentido, não cabe enxergar no bonapartismo judicial uma alternativa idônea contra o neofascismo. Não haverá superação do neofascismo, enquanto não houver superação do neoliberalismo, uma nova institucionalidade, uma nova sociedade. E nada disso será produzido pelo caminho da judicialização da política.

13.Por tudo isso e muito mais, uma grande questão é saber se o governo que tomará posse no dia 1 de janeiro de 2023 será capaz de servir de ponto de partida para uma nova “grande transição”, desta vez de subpotência agro-minério-exportadora para uma verdade potência industrial de novo tipo.

14.Para que isso ocorra, há muitas batalhas a serem vencidas e muitas decisões a serem tomadas, entre elas a já citada definição de uma política internacional que aposte na integração regional e nos BRICS; a definição de uma política adequada para enfrentar a hegemonia ora neoliberal, ora neofascista, nas chamadas instituições (STF, BC, Congresso, grande mídia, forças armadas, grande empresariado); medidas práticas e imediatas que nos permitam consolidar e ampliar apoios nos setores populares; e, de imediato, a batalha da posse.

15.Sobre isso, seguem em curso as manifestações da extrema direita, até agora sob o olhar cúmplice dos comandantes de boa parte das forças de segurança e defesa. Não há, por enquanto, sinais de que as manifestações possam converter-se em efetivo golpe.  Mas mesmo não havendo golpe, se nada for feito, a posse não será um passeio; e a ameaça golpista continuará assombrando a política nacional, servindo como instrumento para a chantagem tanto das forças armadas, quanto dos neoliberais, todos interessados em manter a impunidade e o usufruto das benesses e lucros acumulados desde pelo menos 2016.

16.Todas as questões políticas tratadas anteriormente dependem, no limite, de ampliar os níveis de consciência, organização, mobilização e disposição de luta da classe trabalhadora. Noutras palavras, a política depende da organização e vice-versa. Cabe, portanto, debater um conjunto de medidas organizativas no plano do Partido, das frentes e dos movimentos.

17.Teremos pela frente uma longa disputa contra o neofascismo e contra o neoliberalismo. Seguiremos enfrentando imensos desafios de natureza orgânica, que dizem respeito a maneira como nos vinculamos com a classe trabalhadora e que, correlatamente, dizem respeito a maneira como nos organizamos.

18.Afinal, se por um lado o PT mais uma vez reafirmou sua condição de partido de massas, sem o qual não haveria vitória contra o neofascismo; por outro lado também é verdade que em nosso Partido, mas também em todas as organizações de esquerda, há sintomas de degeneração, fadiga de material e desorientação política e ideológica, que se expressam numa contaminação neoliberal e num relaxamento socialdemocrata. Contra isso, é preciso adotar um conjunto de medidas, inclusive organizativas.

19.A primeira dessas medidas: estimular a criação de núcleos presenciais do Partido nos locais de trabalho, nos locais de estudo, nos locais de moradia, nos espaços de cultura e lazer. Não basta ter presença nas redes, é preciso ter presença física na vida cotidiana da classe trabalhadora, participar de suas lutas, de suas entidades. Todo militante deve estar ligado a algum organismo de massa e a algum organismo do Partido. É preciso elaborar, implementar e avaliar de forma contínua um plano cotidiano de trabalho junto as nossas bases sociais e eleitorais. Este é um dos caminhos para que tenhamos um partido de militantes, não um partido de filiados ou de eleitores.

20.Como parte da reconstrução de um partido militante, é preciso lutar para que o PT retome a contribuição financeira militante. E é preciso, para além desta medida essencialmente política, tenhamos iniciativas que nos permitam dispor de mais recursos, tornando possível ter centros culturais e outras iniciativas de massa em cada cidade

21.É preciso que as direções funcionem, em âmbito nacional, em todos os estados, municípios e setores de atuação: reuniões periódicas, análise da situação, divisão de tarefas, balanço do realizado. Este método por si só não garante nada. Mas sem ele, nenhum dos problemas será efetivamente resolvido.

22.É preciso impulsionar nossas atividades de formação e comunicação, de forma a atingir o conjunto da base partidária, social e eleitoral. Se quisermos ampliar a influência do PT, é preciso ter presença institucional, é preciso ter presença nos movimentos sociais, é preciso ter funcionamento adequado da máquina partidária, mas é preciso também e até principalmente ter presença na batalha de ideias. E, como base para isto tudo, é preciso que tenhamos mais capacidade coletiva de formulação acerca dos grandes problemas do mundo, do continente e do Brasil.

23.Finalmente, é preciso enfrentar caso a caso, com paciência e método, os problemas políticos e organizativos que impedem nosso crescimento e/ou que reduzem nossa influência em vários estados e cidades.

24.Nosso partido atua, no mais das vezes, em um ambiente que geralmente é hostil para as posturas militantes e socialistas. Anos de vida eleitoral e institucionalização partidária, as dificuldades dos movimentos sociais, a influência de concepções neoliberais e desenvolvimentistas-conservadoras, a perda da memória e da prática da vida coletiva, agravada pela profissionalização de atividades que antes eram realizadas de forma militante, tudo isso junto e misturado só será superado se houver um trabalho de “retificação” do funcionamento do nosso Partido e, no que couber, das demais organizações da esquerda partidária e social, com quem devemos buscar um trabalho cada vez mais frentista.

25.A experiência prática confirmou todos os problemas existentes na chamada “federação”. O resultado colhido pelo PSB, pelo PDT, pelo PSOL, pelo PCdoB, por organizações como a UP, o PCB e o PSTU, assim como a tática adotada pelo MST e a cisão na chamada Consulta Popular, reafirmaram o papel do Partido dos Trabalhadores como principal referência partidária dos trabalhadores com consciência de classe. Mas é preciso transformar referência em organização, o que inclui convidar para ingressar no PT tanto militantes recém-chegados, quando militantes que se deram conta dos limites dos projetos em que estão atualmente engajados. Neste espírito, damos início agora a uma campanha nacional de filiação ao Partido dos Trabalhadores.

26.Nossa campanha presidencial de 2022 foi vitoriosa porque recebemos o apoio dos trabalhadores pobres, das mulheres trabalhadoras, dos negros e negras com consciência de raça e classe, da intelectualidade democrática, dos que lutam contra o fundamentalismo e contra todo tipo de preconceito, dos povos indígenas e dos quilombolas, da juventude que ocupou um maravilhoso espaço em todas as nossas manifestações, do “nordeste político-cultural” que existe não apenas na região geográfica que chamamos de nordeste, mas no “nordeste” que existe em cada região, estado e cidade de nosso país.

27.Nosso Partido precisa transformar essa base social e eleitoral, que se mobilizou para conquistarmos o governo, em base militante não apenas para defender o governo, mas também para conquistar o poder.

28.Defendemos que o Partido debata a fundo cada uma destas questões e tantas outras que não citamos aqui. No que nos diz respeito, enquanto tendência petista, dedicaremos a estas questões o nosso 8º Congresso Nacional. E, acima de tudo, conclamamos os setores populares a sair às ruas, não apenas na posse, mas principalmente na luta permanente por nossas reivindicações imediatas e históricas.

SOBRE A TRANSIÇÃO, A POSSE, O NOVO GOVERNO E SUAS MEDIDAS

Texto debatido na reunião da Dnae realizada no dia 28 de novembro.

1.Acerca do tema da transição, posse e futuro governo, a direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda realizou duas reuniões nacionais, a primeira no dia 9 de novembro e a segunda no dia 17 novembro de 2022. Também dedicamos aos temas transição, posse e futuro governo a edição do programa Antivírus que foi ao ar no dia 21 de novembro. Os temas também foram tratados na reunião que a direção nacional fez, no dia 23 de novembro, com nossa bancada federal e assessores. Integrantes da Dnae também realizaram reuniões com outros setores do partido, inclusive com as maiores chapas que compõem a executiva nacional do PT. Além disso, nossos militantes, assim como militantes de outros setores do Partido estão se mobilizando e debatendo a transição, a posse e o futuro governo federal, nas bancadas, nos governos estaduais e municipais, nos estados, nos setoriais e nos movimentos sociais. A resolução a seguir busca sistematizar nossa opinião preliminar a respeito.

2.Os integrantes da coalizão que venceu as eleições presidenciais, assim como parte importante de nossa base militante e eleitoral, acompanha com atenção os trabalhos da comissão de transição instalada no CCBB, assim como vem discutindo a posse e o futuro governo.

3.Entretanto, nem sempre se está dando a devida atenção para o ambiente internacional; para a ação dos neofascistas; para a chantagem dos neoliberais; e para o pano de fundo do processo, a saber, a desindustrialização do país e todos os seus efeitos. Tratamos destes temas na resolução de conjuntura debatida, no dia 27 de novembro, pela direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda. Nesta resolução nos focamos na transição, na posse e na composição do futuro governo.

4.Sobre a transição estrito senso, lembramos que ela se fundamenta na Lei 10.609/2002. A primeira transição foi de FHC para Lula. Não há transição em caso de reeleição, motivo pelo qual ela só voltou a ocorrer em 2010, de Lula para Dilma. Por motivos óbvios, não houve transição depois do golpe de 2016. Voltou a haver transição em 2018, de “temer” para o cavernícola. A atual transição começou oficialmente depois do pronunciamento do cavernícola, admitindo (ainda que sem admitir) a derrota, quando o ministro Ciro Nogueira falou que se faria a transição na forma da lei.

5.A transição em curso tem Geraldo Alckmin como coordenador, uma escolha equivocada, que decorre e potencializa o erro decorrente de sua indicação para vice. Registre-se que o presidente Lula disse explicitamente que Alckmin é o coordenador, mas que não será ministro, uma vez que ele é vice-presidente. Apesar disso ou por causa disso, o vice-presidente se sentiu à vontade para dizer recentemente, em palestra num evento denominado “fórum esfera”, que “não tem reformas a serem desfeitas. A reforma trabalhista é importante. Não vai voltar imposto sindical nem legislado sobre acordado”.  

6.A coordenação da transição é composta, além do vice Alckmin, por mais quatro pessoas: Gleisi Hoffmann, que é a coordenadora de relações institucionais (também chamada de “articulação política”); Aloizio Mercadante, coordenador dos grupos temáticos; Rosângela Lula da Silva, mais conhecida como Janja, coordenadora da posse presidencial; e Floriano Pesaro, coordenador executivo. Pesaro, atualmente no PSB, foi vereador em SP e foi deputado federal pelo PSDB, tendo um forte histórico de antipetismo.

7.Vale lembrar que o presidente Lula tem dito, reiteradamente, que estar na transição é uma coisa, estar no governo e ser indicado como ministro é outra. Ou seja, não necessariamente quem está na transição estará no governo. Mas, seja para colaborar na transição, seja para disputar espaço no futuro governo, houve e segue havendo uma forte pressão – vinda de todos os lados, cores e sabores – para participar da transição e/ou para ter contato com quem está na transição.

8.Até o momento, para compor os 31 grupos técnicos que foram criados, foram oficialmente indicados mais de 300 nomes. A maioria desses nomes é de pessoas que foram indicadas para trabalho voluntário.

9.A lei prevê que a equipe oficial, que é nomeada para cargos comissionados remunerados, pode ter até 50 nomes. Os 31 grupos temáticos são os seguintes: 1-Agricultura, pecuária e abastecimento; 2-Cidades; 3-Ciência e tecnologia; 4-Comunicação; 5-Comunicação social; 6-Cultura; 7-Desenvolvimento agrário; 8-Desenvolvimento social; 9-Desenvolvimento regional; 10-Direitos humanos; 11-Economia; 12-Educação; 13-Esporte; 14-Igualdade racial; 15-Indústria e comércio; 16-Infraestrutura; 17-Infância; 18-Justiça e segurança pública; 19-Juventude; 20-Meio ambiente; 21-Minas e energia; 22-Mulheres; 23-Pesca; 24-Planejamento, orçamento e gestão; 25-Povos originários; 26-Previdência social; 27-Relações exteriores; 28-Saúde; 29-Trabalho; 30-Transparência, integridade e controle; 31-Turismo.

10.Em alguns dos grupos temáticos, a composição expressa mais ou menos corretamente o sentido programático do voto dado pela maioria do eleitorado, nos dois turnos da eleição presidencial. Noutros grupos temáticos, há uma representação desproporcional de setores empresariais, neoliberais, conservadores e neoaliados. Além disso, no conjunto da obra há baixa presença de negros e negras, de quadros políticos oriundos do Nordeste e de representações das organizações populares de uma forma geral. Portanto, nesses casos estão subrepresentadas visões importantes, de concepções, de perspectivas de mérito que devem ser levadas em conta na montagem de um governo popular e de esquerda. A baixa participação desses setores na transição, além de passar um sinal ruim, prejudica o mérito do trabalho que irá subsidiar o início do nosso futuro governo.

11.Registramos que não existe um grupo temático sobre Defesa e Forças Armadas. Repete-se, portanto, o gravíssimo erro já cometido desde o debate do Plano de Reconstrução e Transformação, que não diz absolutamente nada sobre o tema; pelo contrário, se decidiu não reafirmar as posições históricas do Partido. Este erro se torna ainda mais grave neste momento, em que os atuais comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército soltaram uma nota afirmando que as manifestações pedindo, direta ou indiretamente, "intervenção militar" constituiriam, na opinião deles, algo protegido pela Constituição. Que os atuais comandantes não entendam que forças armadas existem para defender a soberania nacional, não para interferir na política nacional, é mais uma prova de que a caserna está em estado de sedição. A inexistência de um grupo temático expressa a ausência de política para as forças armadas ou a opção por uma política que não pode ser explicada ou defendida de público.

12.Para além do trabalho de transição propriamente dito – parte do qual já está consubstanciado em um detalhado relatório do TCU – a comissão instalada no CCBB está servindo para diálogos sobre o futuro governo, suas políticas e integrantes.

13.Um dos temas mais importantes, no curto prazo, é a questão do orçamento, resumido na chamada PEC da transição. Nesta batalha já estão visíveis alguns dos problemas de fundo que nosso governo enfrentará, desde as diferenças internas sobre o mérito e procedimentos, até as dificuldades oriundas de um Congresso conservador. Aliás, já fica a questão: o que faremos na eleição das mesas da Câmara e do Senado? Em nossa opinião, a política acertada é não se submeter, nem se comprometer, com o Centrão.

14.Outro problema de fundo, mais estratégico, é qual o protagonismo do PT no futuro governo. Na comissão de transição, segundo levantamento feito pela Folha, há 1/3 de petistas. A conta não inclui o próprio Lula; mas o presidente eleito já disse que “o governo não será petista”. Obviamente isso é verdade. Mas também é verdade que o PT precisa definir qual relação terá com o governo que toma posse dia 1 de janeiro de 2023.

15.No período 2003-2016, os partidos de esquerda, o sindicalismo, os movimentos populares e a intelectualidade democrática se dividiram entre os que faziam oposição (supostamente de esquerda) aos nossos governos, os que apoiavam de maneira acrítica e os que apoiavam ao mesmo tempo que disputavam os rumos. A postura que predominou em amplos setores do PT, durante a maior parte do tempo, foi a de apoiar de maneira acrítica. Um dos exemplos disso foi o ocorrido em 2015, quando 55% dos delegados e delegadas ao congresso partidário realizado em Salvador (BA) avalizaram a política econômica do governo, política econômica cujos efeitos contribuíram objetivamente para o sucesso do golpe de 2016.

16.Hoje, precisamos ter claro o seguinte: se o governo é de coalizão, cabe ao presidente da República arbitrar e cabe ao PT apoiar o governo e ao mesmo tempo liderar a esquerda partidária e social na disputa pelos rumos do governo. Fazer isso (apoiar e disputar) exige capacidade de elaboração, exige debate, exige divisão de trabalho, exige política fina. E nada disso vai existir se pelo menos a direção nacional do Partido não se reunir.

17.Dentro dos limites estreitos do que cabe a uma tendência petista, nós da AE temos feito isso. Nosso principal objetivo é garantir que a transição, a composição e as medidas imediatas do novo governo correspondam ao sentido do voto popular que elegeu Lula presidente. Na prática, trata-se de: a) seguir derrotando a extrema-direita; b) bloquear a chantagem dos setores neoliberais; c) garantir o protagonismo do PT, partidos e movimentos sociais da esquerda democrática, popular e socialista.

18.Em relação a extrema-direita, é preciso manter sob vigilância, denunciar e reprimir as manifestações golpistas; manter as medidas de preservação da vida pessoal e coletiva; e, ao mesmo tempo que devemos estimular o comparecimento popular à festa do dia 1 de janeiro, em Brasília, cabe tomar medidas efetivas de proteção ao deslocamento das caravanas e também a manifestação da posse.

19.Como sempre dissemos, frente a extrema-direita não devemos subestimar, nem devemos ter medo. Para derrotar o neofascismo, é preciso ampliar a mobilização e ampliar a organização. Embora as manifestações da extrema direita sejam repletas de matéria-prima para memes cômicos, é um erro naturalizar (mesmo que através do humor) o que está ocorrendo. Não é coincidência, por exemplo, que o atirador assassino que matou várias pessoas no Espírito Santo, fosse um bolsonarista e estivesse usando a suástica. Assim como não é coincidência que, para ilustrar a matéria que falava deste crime cometido por um jovem branco, o jornal O Estado de São Paulo tenha colocado a foto de uma mão negra segurando uma arma.

20.Episódios de violência política seguem ocorrendo em todo o país, assim como seguem os episódios de racismo, os feminicídios, as violências baseadas no fundamentalismo e no preconceito, as ações criminosas de policiais contra as populações pobres, pretas e periféricas. A tendência é que isto prossiga e inclusive se acentue, não apenas antes e durante a posse, mas inclusive depois, pois está evidente que a extrema direita fará oposição da seguinte forma: uma pata na institucionalidade, outra pata nas ruas e o rabo no crime. E é como criminosos que devem ser tratados, desde ontem, os que ameaçam a posse do dia 1 de janeiro, seja com ameaças de atentados, seja com bloqueios promovidos por empresários de transporte.

21.Em relação aos neoliberais, é preciso: a) denunciar e pressionar pela correção dos desequilíbrios existentes na chamada comissão de transição; b) evitar as armadilhas que tendem a nos colocar sob tutela do Centrão. Por incrível que possa parecer, só agora amplos setores de nossa militância, de nossa base social e eleitoral estão se apercebendo das decorrências das alianças feitas no primeiro turno, com destaque para o papel concedido para um cidadão que – a vida demonstrou – teve seu peso eleitoral superestimado. Nos cabe fazer o maior esforço possível para impedir que esta superestimação se traduza em espaço governamental e em políticas públicas.

22.Em relação ao protagonismo da esquerda, é preciso: a) manter a pressão, para que o governo inicie cumprindo o programa, especialmente aquele voltado aos setores mais populares; b) ampliar a representação dos setores democrático populares no processo de transição; c) orientar os movimentos sociais e sindicais a fazerem pressão direta sobre a chamada comissão de transição.

23.Especificamente em relação ao PT, é preciso que as instâncias partidárias (diretórios municipais e estaduais, setoriais e núcleos em todos os níveis, bancadas e governantes municipais/estaduais) se reúnam e aprovem resoluções sobre o tema transição/composição/medidas imediatas, resoluções que devem ser encaminhadas ao Diretório Nacional e ao conjunto do Partido.

24.A militância e as instâncias municipais, estaduais e nacional da tendência petista Articulação de Esquerda devem contribuir para este processo de “ressureição” das instâncias partidárias e canalizar, através das instâncias, nossas propostas e nossas indicações.

25.Lembramos que em processos anteriores, a composição de governo envolveu convites individuais; indicações de instâncias partidárias, de movimentos e organizações; e consultas mais ou menos formalizadas às tendências. Mas o processo atual possui várias diferenças em relação ao ocorrido em 2002, 2006, 2010 e 2014. Uma destas diferenças é a seguinte: o espaço do conjunto do PT não está garantido. Inclusive por isso, é mais produtivo – para cada setor do PT – que se busque agir coletivamente, enquanto Partido. Portanto, especialmente neste momento, o essencial é lutar para garantir o protagonismo do PT nas definições sobre transição/medidas imediatas/composição.

26.Devemos seguir pressionando para que se realizem imediatamente as reuniões presenciais da Executiva Nacional e do Diretório Nacional do PT; e também para que se constitua oficialmente uma comissão partidária para acompanhar a comissão de transição, comissão partidária que também possa servir de canal através do qual possam ser apresentadas propostas e indicações do PT.

27.Nos espaços partidários, defendemos que pelo menos os seguintes ministérios e áreas sejam dirigidos por militantes de esquerda, de preferência por petistas: Fazenda, Desenvolvimento Agrário, Defesa, Relações exteriores, Trabalho, Saúde, Educação, Cultura, Combate ao racismo, Mulheres, Juventude, Direitos Humanos, Indígenas. Consideramos fundamental, também, que desde a transição até o exercício do governo, a esquerda invista nos mecanismos de participação popular, como os conselhos, conferências e a questão do Orçamento Participativo.

28.Também nos espaços partidários, apoiamos as indicações dos companheiros Edegar Pretto e Célio Moura para compor o governo; assim como apoiaremos as demais indicações que nos sejam apresentadas pelas direções estaduais e setoriais da tendência que se reunirem e formularem propostas, que devem ser encaminhadas para as respectivas direções estaduais e setoriais do PT, com cópia para a Dnae. Também buscaremos apoiar as indicações apresentadas pelas tendências que integram nossa chapa, bem como por movimentos sociais com os quais mantemos forte relação, como o MNLM, a UNE, o MST e a CUT.

29.Finalmente, reiteramos ao conjunto da tendência que a dinâmica predominante na comissão de transição, na composição de governo e na definição das primeiras medidas ainda não é a que gostaríamos. Nos preocupa, em particular, a inexistência de métodos e procedimentos claros, o que acaba estimulando um “reunionismo” improdutivo. Neste sentido, reiteramos que nosso esforço principal segue sendo o de buscar o pleno funcionamento das instâncias e métodos transparentes. E reafirmamos que o Diretório Nacional do PT deve se reunir imediatamente.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Sobre a transição, a outra

Grande parte da coalizão que venceu as eleições presidenciais está atenta à composição e aos trabalhos da comissão de transição instalada no CCBB. 

Entretanto, é preciso atenção também para outras dinâmicas que seguem em curso, por exemplo: o ambiente internacional; a ação dos neofascistas; a chantagem dos neoliberais; e o pano de fundo do processo, a saber, a desindustrialização do país e todos os seus efeitos. 

A definição de nossa política nacional e internacional para o período aberto com a vitória eleitoral exige, como ponto de partida, entender que 2023 não é 2003. 

A situação internacional segue tempestuosa. A guerra entre Ucrânia e Rússia é parte integrante da guerra estratégica entre Estados Unidos e China. Esta guerra possui dimensões militares, políticas, sociais, econômicas, ambientais e ideológicas. E repercute de diferentes maneiras em cada região do planeta. O governo brasileiro que toma posse no dia 1 de janeiro de 2023 precisará de uma política nacional e internacional que nos permita, no contexto desta guerra global, converter nossa região num dos polos do mundo. E para isso não basta prestígio diplomático, nem tampouco basta ser um grande exportador de primários; para ser um dos polos do mundo, é necessário poder real, o que inclui capacidade científica, tecnológica, industrial.

O que nos remete para a transição. Não aquela sediada no CCBB, mas a outra, a “grande transição” que começou em 1980 e não terminou até hoje. 

Em 1980 o Brasil estava a caminho de converter-se numa grande potência industrial. 

Então tivemos a crise da dívida externa, a transição conservadora e o fernandismo neoliberal. 

Como resultado, o país foi se desindustrializando fortemente. 

Aí vieram os governos Lula e Dilma, que tentaram colocar um freio e até reverter este processo de desindustrialização. 

Então tivemos o golpe de 2016, os governos “temer” e cavernícola. 

E de quase potência industrial viramos subpotência agroexportadora e minério exportadora, além de paraíso do capital financeiro, o país do "agro é pop, deus, tudo".

Essa “grande transição” afetou tudo: mudou a classe dominante, mudou a classe trabalhadora, mudou o ambiente político e cultural no Brasil. 

Foi nesse ambiente que os neoliberais vieram e ainda não foram embora. Foi em reação a esse ambiente que nós ganhamos quatro eleições presidenciais entre 2002 e 2014 e agora novamente. Foi também nesse ambiente que os neofascistas vieram e também ainda não foram embora.

Na eleição de 2022 impusemos uma derrota eleitoral aos neofascistas. Mas é preciso concluir o processo. 

Os neofascistas, seus nomeados e seus aliados continuam ocupando espaços importantes na administração federal (como é o caso da presidência do BC); governam estados importantes (como é o caso de RJ, MG e SP); controlam parte importante do Congresso nacional, sem falar de prefeituras por todo lado.

Por isso, não basta a vitória eleitoral de 2022: se faz necessário impor uma derrota política completa aos neofascistas. 

Não apenas derrota política, mas também militar: trata-se de desarmar os grupos paramilitares e trata-se de estabelecer outros comandantes, outra cultura e outro padrão de funcionamento às forças armadas e às polícias que foram colonizadas pelo neofacismo. 

Não apenas derrota política e militar, mas também derrota cultural: trata-se de construir na maioria da nossa população uma cultura democrática, popular e socialista, ao mesmo tempo nacionalista, antiimperialista e latinoamericanista. 

Não apenas derrota política, militar e cultural, mas também institucional: a maneira como atualmente funciona o Estado brasileiro e seus marcos constitucionais não apenas foram incapazes de impedir o surgimento do neofascismo, como também acabaram estimulando a onda neofascista, na exata medida em que promoveram o neoliberalismo. 

Neste sentido, não cabe confiar no bonapartismo judicial como alternativa idônea contra o neofascismo. Não haverá superação do neofascismo, enquanto não houver superação do neoliberalismo e, também, uma nova institucionalidade.

Portanto, a grande questão é saber se o governo que tomará posse no dia 1 de janeiro de 2023 será capaz de servir de ponto de partida para uma nova “grande transição”, desta vez de subpotência agro-minério-exportadora para uma verdadeira potência industrial de novo tipo. 

Para que isso ocorra, há muitas batalhas a serem vencidas e muitas decisões a serem tomadas, entre elas a já citada definição de uma política internacional que dobre a aposta na integração regional e nos BRICS; a definição de uma política adequada para enfrentar a hegemonia ora neoliberal, ora neofascista, nas chamadas instituições (STF, BC, Congresso, grande mídia, forças armadas, polícias, organizações do grande empresariado, além das empresas-sem-fé); medidas práticas e imediatas que nos permitam consolidar e ampliar apoios nos setores populares; e a batalha da posse.

Sobre isso, seguem em curso as manifestações da extrema direita, até agora sob o olhar cúmplice dos comandantes de boa parte das forças de segurança e defesa. Não há até agora sinais de que as manifestações possam converter-se em golpe. Mas mesmo não havendo golpe, se nada for feito, a posse não será um passeio. 

Neste sentido, ao mesmo tempo que devemos estimular o comparecimento popular à festa do dia 1 de janeiro em Brasília, cabe tomar medidas efetivas de proteção ao deslocamento das caravanas e também à manifestação da posse.

Todas as questões políticas tratadas anteriormente dependem, no limite, de ampliarmos muito os níveis de consciência, organização, mobilização e disposição de luta da classe trabalhadora. 

Noutras palavras, a boa política depende da organização e vice-versa. 

Cabe, portanto, debater um conjunto de medidas organizativas no plano do Partido dos Trabalhadores, das frentes de esquerda e dos movimentos.

Teremos pela frente uma longa disputa contra o neofascismo e contra o neoliberalismo. E seguiremos enfrentando imensos desafios de natureza orgânica, que dizem respeito a maneira como nos vinculamos com a classe trabalhadora e que, correlatamente, dizem respeito a maneira como nos organizamos.

Afinal, se por um lado o PT mais uma vez reafirmou sua condição de partido de massas, sem o qual não haveria vitória contra o neofascismo; por outro lado também é verdade que em nosso Partido, mas também em todas as organizações de esquerda, há sintomas de degeneração, fadiga de material e desorientação política e ideológica, que se expressam numa contaminação neoliberal e num relaxamento socialdemocrata. 

Contra isso, é preciso adotar um conjunto de medidas, inclusive organizativas. 

A primeira dessas medidas: estimular a criação de núcleos presenciais do Partido nos locais de trabalho, nos locais de estudo, nos locais de moradia, nos espaços de cultura e lazer. Não basta ter presença nas redes, é preciso ter presença física na vida cotidiana da classe trabalhadora, participar organizada e coletivamente de suas lutas, de suas entidades. Todo militante deve estar ligado a algum organismo de massa e a algum organismo do Partido. É preciso elaborar, implementar e avaliar de forma contínua um plano cotidiano de trabalho junto as nossas bases sociais e eleitorais. Este é um dos caminhos para que tenhamos um partido também de militantes, não apenas um partido de filiados ou de eleitores. 

É preciso que as direções funcionem, em âmbito nacional, em todos os estados, municípios e setores de atuação: reuniões periódicas, análise da situação, divisão de tarefas, balanço do realizado. Este método por si só não garante nada. Mas sem ele, nenhum dos problemas será efetivamente resolvido. 

É preciso impulsionar exponencialmente nossas atividades de formação e comunicação, de forma a atingir o conjunto da base partidária, social e eleitoral. Se quisermos ampliar a influência do PT, é preciso ter presença institucional, é preciso ter presença nos movimentos sociais, é preciso ter funcionamento adequado da máquina partidária, mas é preciso também e até principalmente ter presença na batalha de ideias. E, como base para isto tudo, é preciso que tenhamos mais capacidade coletiva de formulação acerca dos grandes problemas do mundo, do continente e do Brasil.

Acrescentamos outra medida: é preciso lutar para que o PT retome a contribuição financeira militante. E é preciso, para além desta medida essencialmente política, termos iniciativas que nos permitam dispor de mais recursos, tornando possível ter sedes & centros culturais e outras iniciativas de massa em cada cidade.

Finalmente, é preciso enfrentar caso a caso, com paciência e método, os problemas políticos e organizativos que impedem nosso crescimento e/ou que reduzem nossa influência em vários estados e cidades. 

Nosso partido atua num ambiente que geralmente é hostil para as posturas militantes e socialistas; anos de vida eleitoral e institucionalização partidária, as dificuldades dos movimentos sociais, a influência de concepções neoliberais e desenvolvimentistas-conservadoras, a perda da memória e da prática da vida coletiva, agravada pela profissionalização de atividades que antes eram realizadas de forma militante, tudo isso junto e misturado só será superado se houver um trabalho de “retificação” do funcionamento do nosso Partido e, no que couber, das demais organizações da esquerda partidária e social com quem devemos buscar um trabalho cada vez mais frentista.

Nossa campanha presidencial de 2022 foi vitoriosa essencialmente porque recebemos o apoio dos trabalhadores e trabalhadoras pobres, destacadamente as mulheres trabalhadoras, negros e negras com consciência de raça e classe, da intelectualidade democrática, dos que lutam contra o fundamentalismo e contra todo tipo de preconceito, dos povos indígenas e dos quilombolas, da juventude que ocupou um maravilhoso espaço em todas as nossas manifestações, do “nordeste político-cultural” que existe não apenas na região geográfica que chamamos de nordeste, mas no “nordeste” que existe em cada região, estado e cidade de nosso país. 

Nosso Partido precisa transformar essa base social e eleitoral que se mobilizou para conquistarmos o governo, em base militante para conquistar o poder. Aí, quem sabe, a outra transição saia do papel.

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