A Folha de S. Paulo publicou, no dia 29 de março, um artigo onde Aldo Fornazieri afirma que Lula “acerta ao vetar atos em memória dos 60 anos do golpe”.
O artigo citado está aqui: Lula acerta ao vetar atos em memória dos 60 anos do golpe? SIM - 29/03/2024 - Opinião - Folha (uol.com.br)
Conheço Aldo Fornazieri desde os anos 1980, quando ele era um importante dirigente do Partido Revolucionário Comunista.
Aldo mudou muito desde então. Mas, em algumas coisas,
ele continua fundamentalmente igual. Por exemplo, na atitude de deduzir a política, não da análise
dos fatos, mas sim de fórmulas teóricas.
Por exemplo: “Um presidente da República deve se conduzir no
mais alto grau pela ética da responsabilidade. Como o mais importante
magistrado, ele preside todo o povo. Deve ser o ponto de convergência da
unidade nacional e agir para que ela se efetue ao máximo possível, dados os
conflitos diversos inerentes à sociedade”.
Algumas dessas frases caberiam numa apostila preparatória para concursos, mas não têm nada que ver com a realidade. Afinal, há uma distância imensa entre o “dever ser” e o que de fato é.
Na luta política real existem poderes fáticos, existe uma oposição golpista de extrema-direita, existe um centrão que busca impor um parlamentarismo de fato.
Ademais, Lula não é apenas chefe de Estado, é também chefe de governo.
Em decorrência desses e de outros fatores, um
presidente de esquerda precisa assumir posição nas grandes e nas pequenas
disputas.
Aldo diz que “o jogo das aparências é um elemento
constitutivo da política. Mesmo sabendo que tem adversários e inimigos, o
presidente deve guiar-se pela máxima de que ‘o príncipe guerreiro e
incrédulo deve proclamar incessantemente a paz e a fé’.” Seria isto, diz Fornazieri,
que Lula estaria fazendo.
Nada contra enganar e confundir os inimigos. O problema é, nesse mister, enganar a si mesmo, nomeando inimigos, acreditando em inimigos, promovendo inimigos e elogiando inimigos, como fez Lula - por exemplo - ao confraternizar com o almirante Alfredo Karam, um dos nomes denunciados pela Comissão Nacional da Verdade.
Sem falar do ministro da Defesa, que nunca deveria ter sido nomeado e
que precisa ser demitido.
Sem falar de inúmeros outros.
Depois dos enunciados teóricos de boa vontade, Aldo diz que “outro (sic!) ponto a ser considerado é a conjuntura”.
CQD: primeiro vem a doutrina, depois a análise da realidade.
Acerca da conjuntura, Aldo diz que “o país ainda está enredado com a fracassada tentativa de golpe e com o alto grau de polarização política”.
Frente a isso, Aldo propõe a “despolarização”, que - segundo
entendi - é uma tradução erudita do dito popular segundo o qual “quando um não
quer, dois não brigam”.
Na vida real, só tem um jeito de derrotar um golpe: com um contragolpe.
Noutras palavras, só polarizando pela esquerda se derrotará a polarização pela extrema-direita.
Por isso, o esforço de “deslocar grupos polarizados para um campo despolarizado” – Aldo cita explicitamente militares e evangélicos – é um esforço fadado ao fracasso.
O único jeito de enfrentar os grupos
polarizados de militares e de evangélicos, é combatendo-os e derrotando-os,
usando para isso instrumentos legais, políticas de comunicação, de educação e
mobilização, entre outras. É polarizando que se pode produzir “adesão” ou “neutralização”.
Também está fadado ao fracasso “fechar as portas para o pronunciamento político da caserna, orientando-a para as missões profissionais e constitucionais”.
O único jeito de orientar os militares para as missões profissionais previstas na Constituição, é politizando-os a favor do desenvolvimento com liberdades, bem-estar e soberania.
Do
contrário, pode até não haver ordem do dia elogiando o golpe neste dia 31 de março de 2024, mas nos
quartéis e nas escolas militares continuarão ensinando, nos outros 364 dias
do ano, as velhas lições segundo as quais cabe aos militares tutelar a
sociedade.
Por isso, o certo mesmo teria sido o presidente, que é o Comandante Supremo das Forças Armadas, mandar ler, em todos os quartéis, uma ordem do dia em favor da democracia.
E fazer um pronunciamento nacional de mesmo teor.
Só ganhando
a sociedade, inclusive a maioria das forças armadas, para uma “nova doutrina”, é que poderemos “colocar um ponto final na intervenção militar”.
Aldo fala, também, da necessidade de “vedação legal e punição exemplar, pelo Judiciário, dos envolvidos na tentativa de golpe”.
Ele
parece não perceber que a atitude que aplaude - “vetar atos em memória dos
60 anos do golpe” – tem uma decorrência prática que vai no sentido oposto a punição exemplar que ele mesmo defende.
Ainda mais “curiosamente”, vindo de quem tem mínima informação
sobre as internas do PT, Aldo diz que “quando o atual ministro da Defesa e o
comandante do Exército propuseram uma lei que vedasse o envolvimento eleitoral
e partidário de militares da ativa e de sua participação em ministérios,
setores do PT, a exemplo do senador Jaques Wagner (BA), sugeriram não levar
adiante o último ponto. Os parlamentes de esquerda, depois da redemocratização,
não se preocuparam em fechar legalmente as portas da participação dos militares
na vida política e partidária”.
Nessa questão acima, rogo que o Teco de Aldo dialogue com o Tico de Fornazieri.
Existem, efetivamente, parlamentares e setores do PT que
defendem a mesma posição que Aldo Fornazieri no caso "atos oficiais sobre 1964". É o caso de Jaques Wagner. Que, pelo mesmo motivo, resiste contra várias medidas que visam “enquadrar” os militares. E há outros setores do Partido e outras parlamentares do Partido que são favoráveis a “enquadrar” os militares. E, coerentemente, são também favoráveis a atos oficiais para marcar o aniversário do golpe. Nesse jogo de posições, quem não exibe coerência é Aldo Fornazieri.
Mas a passagem mais ilustrativa de que o Tico-não-conversa-com-Teco do texto de Aldo
é quando ele diz que “a decisão de Lula de vetar atos no âmbito do governo não
tem o sentido de compor com os militares nem de cooptá-los, mas sim de poder
comandá-los segundo a Constituição e de imprimir uma nova orientação
profissional e modernizadora a sua formação. Não conseguirá fazer isso se
estimular divisões”.
Por óbvio, se criticar o golpe de 64 “estimula divisões”, é porque há golpistas nas forças armadas. E como combater estes golpistas? Segundo Fornazieri, fazendo o que os golpistas desejam, ou seja, não criticando o golpe!
Noutras palavras: ser comandante, para Fornazieri, é abrir mão de dar sua opinião,
porque isto contrariaria a opinião dos comandados!
Como, apesar de tudo, Fornazieri acha que o golpe merece ser criticado, ele atribui esta missão à sociedade civil, aos movimentos sociais e aos partidos políticos. E diz que “a impressão que fica é que as esquerdas querem terceirizar os protestos contra o golpe para o governo”.
De fato, tem setores da esquerda que agem e pensam mais ou menos como diz Aldo, especialmente no combate ao bolsonarismo.
Mas a recíproca também é parcialmente verdadeira: tem setores do governo que querem terceirizar para a sociedade tarefas que são do governo. Afinal, um governo construído em torno da consigna de “defender a democracia contra a extrema-direita” tem a obrigação moral, política e legal de tomar posição frente aos acontecimentos de 1964.
Até porque não há escapatória: não falar nada é, em si mesmo, tomar uma
posição.
Ao “vetar atos em memória dos 60 anos do golpe”, o governo está tomando posição. Uma posição escandalosamente errada.
Aldo diz que, se promovesse atos em memória dos 60 anos do golpe, o governo estaria confundindo seu papel com o papel dos partidos políticos. Pode parecer incrível, mas ouvi exatamente esse mesmo argumento quando Lula convocou um ato para marcar 1 ano do golpe de 2023. Segundo a Jovem Pan (!!), o governo estaria "partidarizando o tema".
Fica a pergunta para Aldo: foi certo ou errado convocar um ato para condenar a intentona de 2023? Se foi certo, porque o que valeria no caso da intentona, não valeria também no caso do golpe de 1964??
Aldo defende que o governo Lula reforce “o discurso em defesa da democracia e dos benefícios que ela pode suscitar para a sociedade, para a justiça social e para a liberdade”, isto porque o “confronto de negações excludentes” seria “mais apropriado aos partidos”.
Mais próprio dos governos, diz Aldo, seria “a construção positiva de direção e sentido”.
Teoricamente, isto é uma tese. Politicamente, é um suicídio.
Na correlação de forças em que estamos, se o governo Lula não cumprir um papel muito
ativo na disputa política-ideológica, mais cedo ou mais tarde a extrema-direita voltará a controlar o governo federal e, com isso, poderá fazer “negações excludentes” contra nós.
Por isso, com o perdão de Weber e ao contrário do que diz Aldo Fornazieri, não deveríamos nos preocupar com a “ética da responsabilidade".
Devemos nos preocupar, isto sim, com a “ética da falta de responsabilidade", presente na atitude de não enfatizar, nem enfrentar, os vínculos entre o golpismo de agora e o golpismo de 1964.
Foi a atitude da maioria dos integrantes do Diretório Nacional do PT, em 2022, ao não tratar da questão militar no programa do Partido, da Federação e da Coligação.
Foi a atitude do governo eleito, ao não tratar da questão na transição.
É a atitude do governo, hoje, ao não realizar atos oficiais para tratar do golpe de1964 e da ditadura militar que ali começou.
Há tempo de corrigir esta atitude. Mas o tempo corre contra nós, cada vez mais rápido.
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