domingo, 17 de março de 2024

Marcha da Família com Deus pela Liberdade: uma sexagenária cheia de vida?

Roteiro do programa Contramola de 18/3/2024

No dia 18 de março de 1964, o jornal Folha de S.Paulo publicou um anúncio muito especial.

Vou ler trechos do referido anúncio:

“O nosso direito de amar a Deus, e a liberdade e a dignidade de nossos maridos, filhos e irmãos, estão ameaçados pelos comunistas, primários em seus instintos e brutos em seus sentimentos”.

“Eles se acham em plena marcha para submeter o Brasil à escravidão da sua ditadura retrógrada, anti-humana, anti-cristã e fracassada na quase faminta Rússia e na faminta China”.

“Explorando condições difíceis que eles próprios ajudaram artificialmente a criar neste País da Esperança e do Futuro, os comunistas, altamente acumpliciados, preparam-se para o assalto final às Igrejas de todos os credos e a todas as liberdades de todos os cidadãos”.

“Vamos para as ruas, antes que os inimigos cheguem às nossas Igrejas!

“Compareça à “Grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade” que será realizada dia 19, partindo Às 16 horas da Praça da República para a Praça da Sé”.

O anúncio era assinado por dezenas de entidades.

Abrindo a lista de signatários, estavam a União Cívica Feminina (UCF) e o Movimento de Arregimentação Feminina (MAF).

Outros dos signatários foram:

Fraterna Amizade Cristã Urbana e Rural
Círculos Operários Católicos
Associações Cristãs de Moços
Associação Comercial de São Paulo
Sociedade Rural Brasileira
Clube dos Diretores Lojistas
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
Centro das Indústrias do Estado de São Paulo

Como já dissemos, o anúncio foi publicado no dia 18 de março de 1964; no dia seguinte, no dia 19 de março, uma quinta-feira, aconteceu a primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

Digo a primeira, porque aconteceram muitas, entre os dias 19 de março e 8 de junho de 1964.

A Marcha de São Paulo foi a precursora.

A Marcha do Rio de Janeiro, no dia 2 de abril, foi a mais concorrida, pois comemorava a vitória do golpe, iniciado no dia 31 de março e consumado no dia 1 de abril.

Aliás, o dia apropriado: o da mentira!

A Marcha de 19 de março e as seguintes foram concebidas como uma resposta ao comício realizado na sexta-feira, dia 13 de março de 1964, em frente à Estação Central do Brasil, comício no qual discursaram João Goulart e Leonel Brizola, entre outros.

O discurso feito por Leonel Brizola está disponível, na íntegra, no seguinte endereço:

https://upassos.wordpress.com/2011/04/18/o-discurso-de-brizola-no-comcio-da-central-do-brasil-13-de-maro-de-1964/

O discurso feito por João Goulart está disponível, na íntegra, no seguinte endereço:

https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/03/discurso-de-jango-na-central-do-brasil-em-1964]

Vou citar uns trechos do discurso de Jango:

Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro.

O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.

É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particularmente a que diz respeito à nossa realidade agrária.

O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.

Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranquilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.

O discurso de Jango tem outros trechos muito importantes.

De conjunto, o discurso sinalizou que o governo ia acelerar o passo em direção às reformas de base.

No seu discurso, Jango sinalizou, também, a expectativa de que as Forças Armadas apoiariam a ação do governo.

Frente ao Comício de 13 de março, a reação da direita foi acelerar as providências para o golpe.

O golpe não foi uma reação ao comício, nem foi uma reação ao esquerdismo de Jango, como reza uma lenda que foi recentemente endossada pelo jornalista Azedo, num artigo publicado no Correio Braziliense, dia 13 de março de 2024, artigo que no fundo reforça a tese segundo a qual “a culpa é da vítima”.

O artigo de Azedo está aqui: Análise: um comício que marcou a história do Brasil (correiobraziliense.com.br)

O golpe de 1964, sempre é bom lembrar, foi uma continuação do golpe tentado e frustrado em 1954.

Por esses e por outros motivos, o golpe de 1964 não foi uma reação ao comício. Mas, isto sim, o golpe foi acelerado pelo comício.

Algo parecido ocorreu no Chile, em 1973.

Pinochet era comandante do Exército e fingia ser um defensor da Constituição.

Quando Allende contou a Pinochet que convocaria um plebiscito, para o povo decidir sobre a continuidade ou não do governo da Unidade Popular, Pinochet pisou no acelerador e antecipou o golpe de Estado.

Dito isto, voltemos à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ou melhor, voltemos uns dias antes, ao Comício do 13 de março de 1964.

Os líderes da direita acompanharam atentamente o comício.

E estavam preocupados, principalmente aqueles que sabiam de fato confirmado por sondagens feitas na época, mas não publicadas, a saber, sabiam que o governo Jango tinha o apoio da maioria do povo.

Mais detalhes sobre a aprovação do governo Jango, ler aqui:

https://www.camara.leg.br/noticias/429807-jango-tinha-70-de-aprovacao-as-vesperas-do-golpe-de-64-aponta-pesquisa/

Por isso, para o golpe ter sucesso, não bastava ter apoio clerical, midiático, parlamentar, militar e empresarial; era preciso, também, passar a impressão de que os golpistas tinham o apoio da maioria da população.

É também por isso que líderes da direita encamparam uma iniciativa de setores católicos anticomunistas; mas ao mesmo tempo aqueles líderes decidiram dar caráter mais amplo à iniciativa, para que ela não ficasse restrita a uma denominação religiosa.

Aqueles setores católicos anticomunistas tinham ficado particularmente irritados com a seguinte passagem do discurso de Jango:

(...) Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo (...) O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados”.

Na época, se dizia que uma “Irmã” chamada Ana de Lurdes teria sugerido “convocar as mulheres às ruas”, para “castigar” Goulart “pela ofensa que fizera ao “Santo Rosário”!

Aqui vale destacar três coisas.

Primeiro: destacar que na época havia um forte movimento de mulheres católicas, conservadoras e anticomunistas.

Num texto publicado na época, pode-se ler o seguinte:

“Alguém te dirá um dia, porventura, que a revolução brasileira foi uma arrancada de ricos contra pobres, de patrões contra operários. Por este livro saberás o quanto isso é falso. A revolução autêntica não se deu a 31 de março, mas a 19 de março. Foi tua mãe quem a fez, pensando em ti, para que tu continuasses livre e em regime de livre iniciativa pudesses construir o futuro esplendoroso do grande Brasil de amanhã”.

Segundo: destacar que na época havia um movimento chamado “Cruzada do Rosário em Família”, movimento criado nos Estados Unidos, nos anos 1940, por um padre chamado Patrick Peyton, com o objetivo de combater o “materialismo ateu” e a “deformação dos costumes”, garantindo assim a “unidade da família” e salvando “sua formação moral e cristã”.

O lema da “Cruzada do Rosário” era “família que reza unida, permanece unida”.

Na época, se dizia que as manifestações lideradas pelo Padre Peyton teriam reunido 600 mil pessoas em Recife, em 1961; e cerca de um milhão de pessoas, na cidade do Rio de Janeiro, em 1962; e um milhão e meio de pessoas, em São Paulo capital, no mês de agosto de 1964, depois do golpe.

Dizem os especialistas que a Cruzada tinha o apoio da CIA e que não se limitava a realizar estas atividades multitudinárias: também fazia trabalho de base nos locais, nas paróquias.

Terceiro, destacar que os marchantes mobilizaram também o mito da Revolução Constitucionalista.

Esse foi um dos motivos pelos quais a Marcha com Deus começou na Praça da República.

Como diz um texto também da época:

“MMDC – Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo – é um poema da vida brasileira, escrito numa placa de mármore, na praça da República, onde caíram varados a bala, os primeiros quatro mártires da Revolução de 32. Eles jogaram e perderam, na batalha pela liberdade de ser, liberdade de existir. Dali partiu a marcha, reencetando a batalha perdida da outra vez. Na lembrança daqueles mortos, encontrará o paulista vigor e fé para nova batalha, após cada batalha perdida”.

A Marcha do dia 19 de março começou com uma exibição musical da banda da Força Pública, matriz da atual Polícia Militar.

A Marcha chegou na Praça da Sé, recebida pelo badalar de sinos das igrejas.

E, claro, ao som do hino de 32!

Na marcha foi distribuído um "Manifesto ao Povo do Brasil".

E os marchantes carregavam muitas faixas e repetiam palavras de ordem, por exemplo:

“Reformas sim, comunismo não”.

“Tá chegando a hora de Jango ir embora”.

“Reformas sociais sim, comunismo não”.

“Vermelho bom, só batom”.

“Democracia sim, comunismo não”.

“Verde e amarelo, sem foice nem martelo”.

“Queremos um governo cristão”.

“Defendamos a Constituição”.

Entre as faixas, havia uma que dizia também: “Instituto Braile de Santos”.

Na Praça da Sé, houve vários discursos, entre os quais os do senador Audo de Moura Andrade, aquele que presidiria a sessão do Congresso que, no dia 1 de abril, proclamaria vaga a presidência da República.

Também discursaram o deputado Herbert Levy, mais conhecido por conta da Gazeta Mercantil; o senador Padre Calazans, da UDN; a deputada estadual paulista Conceição da Costa Neves; Lino de Matos, do Partido Trabalhista Nacional; Plínio Salgado, do Partido da Representação Popular; Gama e Silva, reitor da USP; o deputado Antonio Silva da Cunha Bueno; e Miguel Reale!!

Sim, teve um Miguel Reale na lista de oradores da Marcha de 19 de março, mostrando que quem sai aos seus não degenera, exceto se...

Um dos mais ilustres participantes da Marcha foi o Marechal Dutra, ex-presidente, que declarou à Folha de S. Paulo o seguinte:

Não posso me furtar a fazer um apelo à lucidez e ao tradicional bom senso dos meus compatriotas, no sentido de que se unam aos democratas, enquanto é tempo, a fim de evitar o advento de condições que lancem o Brasil no desastre da irremediável secessão interna. O respeito à Constituição é a palavra de ordem dos patriotas. A fidelidade à lei é o compromisso sagrado dos democratas perante a nação. (...) Nada de bom se resolve no clima do desentendimento, e é impossível sobreviver democraticamente na subversão”.

Outra ilustre participante foi dona Leonor de Barros, esposa do governador Ademar de Barros.

A reação da esquerda a Marcha? Foram várias.

Destaco as que desmereceram a Marcha como um ato “religioso” e de “classe média”.

Mesma atitude adotada por alguns, frente à manifestação de golpistas realizada no dia 25 de fevereiro de 2024.

Teve um elemento religioso? Teve.

Teve presença da chamada classe média? Teve.

Mas apesar disso ou por isso mesmo, as Marchas – foram ao todo 69, realizadas entre 19 de março e 1 de junho, incluindo nesta conta muitas Marchas realizadas em cidades do interior do estado de São Paulo – atingiram o objetivo: criar a aparência de que o golpe tinha respaldo majoritário na população.

Aliás, cá entre nós, sugiro responder a seguinte questão: se os golpistas de 1964 tinham maioria nas Forças Armadas e tinha, também, maioria no Congresso e no STF da época, por quais motivos gastaram tempo fazendo movimentação de rua?

As respostas para a questão acima ajudam a entender, também, por quais motivos a esquerda de 2024 - sem maioria no Congresso, sem maioria nas Forças Armadas, com um STF neoliberal e que sabemos o que fez no verão passado - precisa necessariamente mobilizar as ruas.

A extrema-direita, tanto em 1964 quanto em 2024, não teve nem tem dúvidas a respeito da importância de ocupar as ruas.

Hoje, mobilizam muita gente que não tinha nascido em 1964, mas que usa com prazer um figurino parecido com a da Marcha sexagenária.

O figurino é vintage, mas não está deslocado. Pois os dilemas de fundo do Brasil seguem muito parecidos, sessenta anos depois.

Infelizmente, uma parte da esquerda resiste a tirar as devidas consequências deste fato.

Um último comentário.

Um dos temas da Marcha era a defesa do Congresso e da Constituição, contra a suposta ameaça de Jango e dos comunistas.

Menos de 15 dias depois, o Ato Institucional número 1, assinado pelo autoproclamado “Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica”, afirmou o seguinte:

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.

(...)

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.

O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

Moral da história: a época empurrava grande parte das forças políticas para uma ruptura. A esquerda defendia que esta ruptura exigiria uma nova Constituição, elaborada pelo povo. Já a direita primeiro afirmou defender a Constituição, depois deu um golpe e, em seguida, rasgou a Constituição, tudo isso sem e contra o povo.

Apesar disso, Luiz Carlos Azedo, no texto já citado, diz queem vez de apostar num “dispositivo militar”, era mais importante respeitar as decisões do Congresso e convencer a sociedade de que as reformas eram necessárias. E não as impor”.

Vamos por partes.

Na época do governo Goulart, a esquerda estava tendo êxito em convencer a sociedade de que as reformas eram necessárias. E a maioria do povo apoiava o governo, segundo o Ibope. Como é óbvio, o golpe ocorreu exatamente porque os golpistas temiam perder as eleições presidenciais de 1965, assim como Pinochet temia perder o plebiscito convocado por Allende.

O governo Goulart não desrespeitou as decisões do Congresso. Aliás, no discurso de 13 de março de 1964, Jango diz que para fazer mais, seria preciso mudar a Constituição. Logo, quem “impôs” algo foi o golpe, não o governo Goulart. Claro, os golpistas acusavam o governo Jango de atentar contra a Constituição. E os golpistas de 64 também diziam que eles é que defendiam a democracia. Mas deixemos para a direita a tarefa de repetir, sessenta anos depois, essa “história alternativa”.

O verdadeiro dilema que o governo Jango experimentava, como experimenta qualquer um que tenta fazer reformas num marco institucional hostil, é: como furar o cerco?

A decisão do governo Jango foi a de apelar para a mobilização popular. E para se convencer da necessidade de mobilização, Jango não precisa ser emprenhado pelo ouvido por Prestes, como afirma Azedo, em mais uma versão de “a culpa é do PT”, digo, “dos comunistas”. Cá entre nós, o trabalhismo daquela época tinha no seu meio gente que viveu tanto 1930, quanto a Cadeia da Legalidade.

Seja como for, só é possível fazer mobilização popular, se ela for acompanhada de medidas práticas, que mostrem ao povo de que lado o governo realmente está, não apenas na retórica, mas na ação.

O problema não residia, portanto, em “respeitar” ou não respeitar “as decisões do Congresso”; o problema residia em aceitar ou não a correlação de forças congressual como sendo o limite do que o governo podia, ou não podia, fazer.

Ao decidir ultrapassar este limite, o governo sabia que viriam reações ainda maiores. E foi este, na minha opinião, o erro fatal: não estar preparado para estas reações.

Portanto, diferente do que diz Azedo, o problema não foi a disposição de usar um dispositivo militar, para combater o golpismo. O problema foi confiar num “dispositivo” fake, de araque, que não existia de verdade. O erro foi confiar que havia, naquelas forças armadas, efetiva disposição de combater os golpistas e seus aliados estrangeiros.

No final de seu discurso, dia 13 de março de 1964, Jango disse: “só conquistaremos a paz social pela justiça social”.

Faltou, em nome da paz, se preparar para fazer a guerra contra os patrocinadores e beneficiários da injustiça social.


ps 1. acusei outra pessoa de ser culpada pelo que disse Azedo. Na versão acima, está corrigido. Mil agradecimentos ao Gilberto Maringoni, pelo alerta. 

ps 2. quem quiser ler mais a respeito, sugiro as obras citadas abaixo, onde está parte das informações comentadas no texto.

PRESOT, Aline Alves. As Marchas da família com Deus pela liberdade e o golpe de 1964. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.

RODEGHERO, Carla Simone. Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n.44, p. 463-487, 2002.

CORDEIRO, Janaína Martins. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo: direitas, participação política e golpe no Brasil, 1964. Rev. hist. (São Paulo), n.180, a01720, 2021, http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2021.167214

 

Um comentário:

  1. A história se repete e o combate sempre é contra o Comunismo abstendo-se de esclarecer a falência do capitalismo. O mesmo discurso da Folha lemos hj nas entrelinhas diariamente. O caminho será dar uma repaginada no Comunismo p quem sabe podermos nos fazer entender, ou entendem e combatem c a única intenção de manter a exploração capitalista comprovadamente destrutiva e mortal?

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