domingo, 18 de agosto de 2024

Venezuela: a diplomacia segundo Zero

Um amigo me recomendou ler um texto de Marcelo Zero, intitulado “A diplomacia do Brasil está correta”.

O texto é de 11 de agosto e está disponível aqui:

Marcelo Zero: A diplomacia do Brasil está correta - Viomundo

A parte inicial do texto de Zero reclama da “quantidade de bobagens que se escreve hoje sobre a política externa brasileira”.

Diz que “essas volumosas sandices se concentravam à direita do espectro ideológico”. Mas que, agora, “surgem críticas à diplomacia brasileira por parte de alguns setores da esquerda, em razão, essencialmente, do conflito na Venezuela”.

Sem entrar no mérito de quem comete as tais sandices, pois afinal falar besteira não é monopólio de ninguém, a síntese acima transcrita corresponde aos fatos, ao menos tais como eu os vejo.

O que não corresponde aos fatos é o que vem a seguir.

Segundo Zero: “Alguns acusam o Brasil de não reconhecer, de imediato, os resultados das eleições venezuelanas e de apoiar a “intervenção imperialista” naquele país. Outros acusam o Brasil de não respeitar a soberania daquele vizinho, ao fazer algumas críticas à condução do processo eleitoral da Venezuela. Ora, tais acusações não têm o menor fundamento nos fatos”.

Pois bem: vamos lembrar de um fato.

O governo cavernícola rompeu relações com a Venezuela. O governo Lula reatou relações. Mas o Itamaraty só indicou uma nova embaixadora para a Venezuela em 13 de novembro de 2023.

Dez meses e treze dias.

Convenhamos, esta demora não combina com a atitude de quem “desde o início do terceiro governo Lula” faz um “combate negociado e paciente contra o isolamento da Venezuela e as sanções draconianas impostas pelos EUA e a Europa ao povo venezuelano”.

Conclusão: uma coisa são as nossas diretrizes de política externa. Outra coisa é a execução desta política.

A execução é diferente por diversos motivos. Entre eles, o seguinte: a “diplomacia brasileira”, como Minas, são muitas. E uma parte desta diplomacia, especialmente a que cabe ao Itamaraty é fortemente influenciada pelo modo tucano de ver o mundo.

Infelizmente, um bom exemplo deste modo tucano está no texto de Zero.

Refiro-me à seguinte afirmação: o governo Bolsonaro “cometeu o grosseiro erro estratégico de transformar a América do Sul em palco da disputa geopolítica entre EUA, Rússia e China”.

Convenhamos: não foi Bolsonaro que nos transformou em “palco” de uma disputa geopolítica. A verdade é outra.

Nossa região é “palco” de disputas geopolíticas desde a época dos impérios coloniais. Seguiu sendo assim no século XIX, depois na época das duas guerras mundiais e na chamada guerra fria. E segue sendo “palco” agora. E assim seguirá, até que tenhamos pleno êxito no projeto da integração regional.

Bolsonaro não queria integração regional, queria ser coadjuvante dos Estados Unidos. Foi uma opção estratégica, um “erro” do nosso ponto de vista, mas acertada do ponto de vista de um setor da classe dominante brasileira.

Esta opção, como é óbvio, fez o Brasil perder protagonismo. Um de nossos objetivos é reverter isso. Mas há maneiras e maneiras de recuperar protagonismo.

O modo tucano pensa que um dos requisitos para recuperar protagonismo é através do não alinhamento no conflito entre China e Estados Unidos. Nas palavras de Zero: “Não temos de escolher entre nenhum dos lados da nova Guerra Fria. Entre um e outro, o Brasil escolhe o lado do Brasil”.

Sem dúvida nenhuma, como lembra Paulo Nogueira Batista Jr., o Brasil não cabe no quintal de ninguém. Temos objetivos e interesses próprios e, portanto, não devemos nos alinhar automaticamente com ninguém.

Mas isto não significa que os dois lados em disputa possam ser vistos, por nós, como sendo simétricos. Por inúmeros motivos, a nós interessa a derrota dos Estados Unidos. Como nos interessava, na Segunda Guerra, a derrota da Alemanha Nazista.

O modo tucano conduz a diferente tipo de conclusão. Fala em não alinhamento, mas na prática conduz a recauchutagem do velho alinhamento.

Segue algo mais a respeito do tema:

https://www.brasil247.com/blog/o-brasil-deve-se-alinhar-a-um-dos-polos-da-nova-guerra-fria

Valter Pomar: Mercadante, Zero e o que precisamos enterrar

https://m.youtube.com/watch?v=5z6cpEZC4WY

Feito este preâmbulo, vejamos o caso da Venezuela.

Zero diz que “o apoio do Brasil ao Acordo de Barbados, firmado entre o governo e as oposições da Venezuela, obedeceu à estratégia de pacificar o conflito interno daquele país, levantar as violentas sanções e reintroduzir a Venezuela como membro pleno do Mercosul, bloco estratégico para o País. Tal apoio impõe algumas obrigações ao Brasil. Uma delas é a de solicitar transparência e lisura no pleito democrático. A outra é a de continuar a investir em diálogo e negociações. Infelizmente, o compromisso de plena transparência nas últimas eleições não parece, até agora, ter sido satisfeita, o que impede o Brasil de reconhecer os resultados”.

Curiosamente, o único compromisso citado como não satisfeito é o que diz respeito ao governo da Venezuela.

Pergunto: e os demais envolvidos, cumpriram sua parte?

Segundo disse o próprio Celso Amorim, criticando a União Europeia, alguns não cumpriram. Sendo assim, não estaria havendo uma cobrança seletiva, muito forte em relação ao governo da Venezuela e extremamente suave em relação a outros?

Zero salienta que “todas as outras eleições venezuelanas realizadas durante o período chavista primaram pela transparência e pela lisura”. E diz que, agora, a publicação dos resultados desagregados “tornou-se tão morosa quanto cágados analógicos acometidos pela Doença de Parkinson”.

Sem entrar no mérito da imagem escolhida, suponhamos que Zero estivesse certo.

Pergunto: isto autorizaria cobrar “atas”? Isto autorizaria opinar sobre as instâncias do poder judiciário venezuelano? Isto autorizaria fazer especulações públicas sobre convocação de novas eleições?

A diplomacia brasileira pode considerar que os Acordos de Barbados não estão sendo cumpridos e, portanto, não reconhecer os resultados eleitorais. Mas não pode extrapolar, nem na forma, nem no conteúdo, como ocorreu diversas vezes desde o dia 29 de julho.

Quero lembrar, como faz o próprio Zero, que “o povo venezuelano, assim como o povo brasileiro, fez uma opção soberana pela democracia e a instituiu em uma notável Constituição”. E essa Constituição prevê um ordenamento jurídico e eleitoral, que nos cabe respeitar. A não ser que, no fundo, concordemos com a tese de uma parte da oposição venezuelana, segundo a qual eles não apenas teriam vencido, mas também que sua vitória teria um significado constituinte.

Zero faz em seu artigo uma série de perguntas retóricas, cujo objetivo aparente é reforçar que a “cautela” seria a melhor política. De fato, às vezes é mesmo bom ter cautela. Acontece que, no caso das eleições da Venezuela, uma das coisas que está faltando, em alguns do Brasil, é cautela.

Para dar um exemplo: o companheiro Celso Amorim estava na Venezuela para acompanhar o processo eleitoral. Entre outras declarações à imprensa, Celso disse que foi dormir quando a oposição estaria liderando e acordou com um resultado oposto. Na prática, reforçou a ideia de que teria havido fraude.

Acontece que a “liderança” da oposição não era na apuração, mas em certos meios de comunicação, em algumas pesquisas e nos corredores do departamento de Estado dos EUA.

Dou como exemplo esta declaração, mas houve inúmeras outras, que não foram marcadas por absolutamente nenhuma cautela.

A verdade é que uma parte da diplomacia brasileira parece convicta de que houve fraude. E vem operando com base neste pressuposto.

Um exemplo disso são as perguntas retóricas que Zero faz em seu texto.

Vou citar: “Não poderia estar o governo Maduro em contradição com alguns valores e princípios da revolução chavista?  Não poderia estar o governo Maduro em conflito, do mesmo modo, com a integração regional? O governo Maduro estaria a fazer uma aposta geopolítica de sustentar-se apenas com o apoio de potências extrarregionais, como Rússia e China, e prescindir da aliança com países amigos da região, como Brasil, Colômbia e México? Isso não teria um efeito disruptivo na região?”

Quem escolhe as perguntas, condiciona as respostas.

Imaginemos, por exemplo, que as perguntas fossem as seguintes: “Não poderia uma parte do Itamaraty estar operando com base em informações equivocadas? Não poderíamos estar contribuindo, inadvertidamente, para estimular a oposição de extrema direita na Venezuela? Não estaríamos, na prática, contribuindo para que a situação interna na Venezuela se deteriore ainda mais? Não existiria uma semelhança entre o modus operandi do golpe na Bolívia contra Evo e o que a oposição tentou fazer na Venezuela?”

Zero conclui seu artigo fazendo uma série de elogios à diplomacia brasileira. Alguns elogios são merecidos e adoraria que fosse tudo verdade. Mas, como Zero mesmo lembra, a realidade “é muito complexa e não admite análises binárias e simplistas”.

Basta lembrar das venturas e desventuras envolvendo o acordo União Europeia-Mercosul.

Do meu ponto de vista, nesta questão da Venezuela nossa diplomacia errou e segue errando. Espero que o erro seja corrigido e que não se repita, proximamente, no caso do Cinturão e Rota.  

E aos que falam de atas, sugiro ter olhos também para os mapas. Pois o que está acontecendo em nossa região é um cerco. Maduro é só a bola da vez.

 

 

 

 

 

 

 

 

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