Um amigo me recomendou ler um texto de Marcelo Zero, intitulado “A diplomacia do Brasil está correta”.
O texto é de 11 de agosto e está disponível aqui:
Marcelo
Zero: A diplomacia do Brasil está correta - Viomundo
A parte inicial do texto de
Zero reclama da “quantidade de bobagens que se escreve hoje sobre a política
externa brasileira”.
Diz que “essas volumosas sandices
se concentravam à direita do espectro ideológico”. Mas que, agora, “surgem
críticas à diplomacia brasileira por parte de alguns setores da esquerda, em
razão, essencialmente, do conflito na Venezuela”.
Sem entrar no mérito de
quem comete as tais sandices, pois afinal falar besteira não é monopólio de
ninguém, a síntese acima transcrita corresponde aos fatos, ao menos tais como
eu os vejo.
O que não corresponde aos
fatos é o que vem a seguir.
Segundo Zero: “Alguns
acusam o Brasil de não reconhecer, de imediato, os resultados das eleições venezuelanas
e de apoiar a “intervenção imperialista” naquele país. Outros acusam o Brasil
de não respeitar a soberania daquele vizinho, ao fazer algumas críticas à
condução do processo eleitoral da Venezuela. Ora, tais acusações não têm o
menor fundamento nos fatos”.
Pois bem: vamos lembrar de um fato.
O governo cavernícola
rompeu relações com a Venezuela. O governo Lula reatou relações. Mas o Itamaraty
só indicou uma nova embaixadora para a Venezuela em 13 de novembro de 2023.
Dez meses e treze dias.
Convenhamos, esta demora
não combina com a atitude de quem “desde o início do terceiro governo Lula” faz
um “combate negociado e paciente contra o isolamento da Venezuela e as sanções draconianas
impostas pelos EUA e a Europa ao povo venezuelano”.
Conclusão: uma coisa são
as nossas diretrizes de política externa. Outra coisa é a execução desta política.
A execução é diferente
por diversos motivos. Entre eles, o seguinte: a “diplomacia brasileira”, como
Minas, são muitas. E uma parte desta diplomacia, especialmente a que cabe ao Itamaraty é fortemente
influenciada pelo modo tucano de ver o mundo.
Infelizmente, um bom exemplo
deste modo tucano está no texto de Zero.
Refiro-me à seguinte afirmação:
o governo Bolsonaro “cometeu o grosseiro erro estratégico de transformar a
América do Sul em palco da disputa geopolítica entre EUA, Rússia e China”.
Convenhamos: não foi
Bolsonaro que nos transformou em “palco” de uma disputa geopolítica. A verdade
é outra.
Nossa região é “palco” de
disputas geopolíticas desde a época dos impérios coloniais. Seguiu sendo assim no século XIX, depois na
época das duas guerras mundiais e na chamada guerra fria. E segue sendo “palco”
agora. E assim seguirá, até que tenhamos pleno êxito no projeto da integração regional.
Bolsonaro não queria
integração regional, queria ser coadjuvante dos Estados Unidos. Foi uma opção
estratégica, um “erro” do nosso ponto de vista, mas acertada do ponto de vista de
um setor da classe dominante brasileira.
Esta opção, como é óbvio,
fez o Brasil perder protagonismo. Um de nossos objetivos é reverter isso. Mas
há maneiras e maneiras de recuperar protagonismo.
O modo tucano pensa que um
dos requisitos para recuperar protagonismo é através do não alinhamento no conflito entre
China e Estados Unidos. Nas palavras de Zero: “Não temos de escolher entre
nenhum dos lados da nova Guerra Fria. Entre um e outro, o Brasil escolhe o lado
do Brasil”.
Sem dúvida nenhuma, como
lembra Paulo Nogueira Batista Jr., o Brasil não cabe no quintal de ninguém. Temos
objetivos e interesses próprios e, portanto, não devemos nos alinhar automaticamente
com ninguém.
Mas isto não significa
que os dois lados em disputa possam ser vistos, por nós, como sendo simétricos.
Por inúmeros motivos, a nós interessa a derrota dos Estados Unidos. Como nos interessava,
na Segunda Guerra, a derrota da Alemanha Nazista.
O modo tucano conduz a diferente tipo de conclusão. Fala em não alinhamento, mas na prática conduz a recauchutagem do velho alinhamento.
Segue algo mais a respeito do tema:
https://www.brasil247.com/blog/o-brasil-deve-se-alinhar-a-um-dos-polos-da-nova-guerra-fria
Valter Pomar: Mercadante, Zero e o que precisamos enterrar
https://m.youtube.com/watch?v=5z6cpEZC4WY
Feito este preâmbulo, vejamos o caso da Venezuela.
Zero diz que “o apoio do
Brasil ao Acordo de Barbados, firmado entre o governo e as oposições da
Venezuela, obedeceu à estratégia de pacificar o conflito interno daquele país,
levantar as violentas sanções e reintroduzir a Venezuela como membro pleno do
Mercosul, bloco estratégico para o País. Tal apoio impõe algumas obrigações ao
Brasil. Uma delas é a de solicitar transparência e lisura no pleito
democrático. A outra é a de continuar a investir em diálogo e negociações. Infelizmente,
o compromisso de plena transparência nas últimas eleições não parece, até agora,
ter sido satisfeita, o que impede o Brasil de reconhecer os resultados”.
Curiosamente, o único compromisso
citado como não satisfeito é o que diz respeito ao governo da Venezuela.
Pergunto: e os demais envolvidos, cumpriram sua parte?
Segundo disse o próprio Celso
Amorim, criticando a União Europeia, alguns não cumpriram. Sendo assim, não
estaria havendo uma cobrança seletiva, muito forte em relação ao governo da
Venezuela e extremamente suave em relação a outros?
Zero salienta que “todas
as outras eleições venezuelanas realizadas durante o período chavista primaram pela
transparência e pela lisura”. E diz que, agora, a publicação dos resultados desagregados
“tornou-se tão morosa quanto cágados analógicos acometidos pela Doença de
Parkinson”.
Sem entrar no mérito da imagem escolhida, suponhamos que Zero estivesse certo.
Pergunto: isto autorizaria cobrar “atas”? Isto autorizaria opinar sobre as instâncias do poder
judiciário venezuelano? Isto autorizaria fazer especulações públicas sobre
convocação de novas eleições?
A diplomacia brasileira pode
considerar que os Acordos de Barbados não estão sendo cumpridos e, portanto, não
reconhecer os resultados eleitorais. Mas não pode extrapolar, nem na forma, nem no conteúdo, como ocorreu
diversas vezes desde o dia 29 de julho.
Quero lembrar, como faz o
próprio Zero, que “o povo venezuelano, assim como o povo brasileiro, fez uma
opção soberana pela democracia e a instituiu em uma notável Constituição”. E
essa Constituição prevê um ordenamento jurídico e eleitoral, que nos cabe
respeitar. A não ser que, no fundo, concordemos com a tese de uma parte da
oposição venezuelana, segundo a qual eles não apenas teriam vencido, mas também que
sua vitória teria um significado constituinte.
Zero faz em seu artigo uma série de perguntas retóricas, cujo objetivo aparente é reforçar que a “cautela” seria a melhor política. De fato, às vezes é mesmo bom ter cautela. Acontece que, no caso das eleições da Venezuela, uma das coisas que está faltando, em alguns do Brasil, é cautela.
Para dar um exemplo: o companheiro
Celso Amorim estava na Venezuela para acompanhar o processo eleitoral. Entre
outras declarações à imprensa, Celso disse que foi dormir quando a oposição estaria liderando e acordou com um resultado oposto. Na prática, reforçou a
ideia de que teria havido fraude.
Acontece que a “liderança”
da oposição não era na apuração, mas em certos meios de comunicação, em algumas
pesquisas e nos corredores do departamento de Estado dos EUA.
Dou como exemplo esta
declaração, mas houve inúmeras outras, que não foram marcadas por absolutamente
nenhuma cautela.
A verdade é que uma parte
da diplomacia brasileira parece convicta de que houve fraude. E vem operando com
base neste pressuposto.
Um exemplo disso são as
perguntas retóricas que Zero faz em seu texto.
Vou citar: “Não poderia
estar o governo Maduro em contradição com alguns valores e princípios da
revolução chavista? Não poderia estar o
governo Maduro em conflito, do mesmo modo, com a integração regional? O governo
Maduro estaria a fazer uma aposta geopolítica de sustentar-se apenas com o
apoio de potências extrarregionais, como Rússia e China, e prescindir da
aliança com países amigos da região, como Brasil, Colômbia e México? Isso não
teria um efeito disruptivo na região?”
Quem escolhe as
perguntas, condiciona as respostas.
Imaginemos, por exemplo,
que as perguntas fossem as seguintes: “Não poderia uma parte do Itamaraty estar
operando com base em informações equivocadas? Não poderíamos estar contribuindo,
inadvertidamente, para estimular a oposição de extrema direita na Venezuela?
Não estaríamos, na prática, contribuindo para que a situação interna na Venezuela
se deteriore ainda mais? Não existiria uma semelhança entre o modus operandi do golpe na Bolívia contra Evo e o que a oposição tentou fazer na Venezuela?”
Zero conclui seu artigo fazendo uma série de elogios à diplomacia brasileira. Alguns elogios são merecidos e adoraria
que fosse tudo verdade. Mas, como Zero mesmo lembra, a realidade “é
muito complexa e não admite análises binárias e simplistas”.
Basta lembrar das
venturas e desventuras envolvendo o acordo União Europeia-Mercosul.
Do meu ponto de vista, nesta questão da Venezuela nossa diplomacia errou e segue errando. Espero que o erro seja corrigido e que não se repita, proximamente, no caso do Cinturão e Rota.
E aos que falam de atas, sugiro ter olhos também para os mapas. Pois o que está acontecendo em nossa região é um cerco. Maduro é só a bola da vez.
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