Segue abaixo artigo publicado na página eletrônica da Folha de S.Paulo, disponível no endereço abaixo: Democracia, soberania e ingerência - 09/08/2024 - Ilustrada - Folha (uol.com.br)
Democracia, soberania e ingerência
Valter
Pomar
No artigo “Democratas de conveniência”, o professor Wilson Gomes acusa Lula, Gleisi, Stédile, Breno e toda a executiva nacional do PT de serem “democratas de conveniência”, equivalentes nesse quesito ao agronegócio, Bolsonaro, o PL, Filipe Martins e Paulo Guedes.
A
acusação é mera cortina de fumaça para ocultar que é ele, Gomes, quem está
defendendo, sobre a Venezuela, a mesma posição da extrema-direita e de boa
parte da direita gourmet.
O
pano de fundo do debate é a relação entre democracia e soberania. Os Estados
Unidos atacam as liberdades e os direitos humanos mundo afora, mas Cuba segue
mantendo relações com governos Democratas e Republicanos. O governo da Itália é
dirigido por uma neofascista, mas não se fala em pendurar ninguém de cabeça
para baixo. Macron previu guerra civil em caso de vitória da Nova Frente
Popular ou do Reagrupamento Nacional e desconheceu o resultado das recentes
eleições parlamentares francesas, mas o Itamaraty não proibiu o consumo de croissants,
mesmo sendo óbvia a superioridade do pão de queijo. Israel é um estado serial
killer mas, apesar disso, segue contando com a cumplicidade ativa e passiva
de inúmeros autoproclamados “democratas”.
Nas
relações internacionais, uma coisa é o que achamos, outra o que podemos e
devemos fazer. Essa diferença é aceita por quase todo mundo, exceto quando o
alvo é um governo encabeçado pela esquerda. Neste caso, há quem se julgue no
direito de atropelar a soberania, as instituições, a constituição, a cultura
política, o bom senso e até mesmo o bom gosto, tudo em nome da “democracia e
dos direitos humanos”.
A
Venezuela é apenas a mais recente vítima dessa ingerência seletiva. Desde 1999
até hoje, aconteceram naquele país cerca de trinta grandes processos
eleitorais. Quando ganhou, a direita sempre tomou posse; quase todas as vezes
em que perdeu, a direita berrou “fraude”.
No
último período, um Guaidó se autoproclamou presidente e a ficção foi
reconhecida por quem sabia tratar-se de uma fraude. A Venezuela teve suas
empresas e contas no exterior roubadas e o país foi submetido a pesadas
sanções. A piora nas condições de vida e a onda migratória resultantes foram
integral e cinicamente debitadas na conta de Maduro. Realizadas nesse contexto,
as recentes eleições presidenciais obviamente quase deram vitória à oposição.
Mas como o TSE local declarou a vitória de Maduro – também obviamente por muito
pouco - a reação da extrema-direita e dos EUA foi a costumeira.
Provaram
que houve fraude? Não. E, como a Vaza Jato já nos ensinou, “indício” não é
prova, “convicção” não gera pena e berrar não dá razão. Apesar disso, muita
gente segue com legítimas dúvidas e outros com absoluta certeza de que houve
fraude. Entre estes últimos, há pessoas progressistas e de esquerda, que
entretanto compartilham a posição de Trump, Milei, Vox, Bolsonaro et caterva.
Quiçá
para livrar-se do incômodo causado pelas más companhias, o professor Gomes
tenha apelado para uma velha técnica retórica, cuja versão popular é o “pega
ladrão”. Isso não faz dele um “democrata
de conveniência”, apenas confirma que o mundo é mais complexo do que certas
lacrações acadêmicas fazem supor. Em tempo: gostem ou não, Maduro venceu.
Valter Pomar, 58 anos, é professor da UFABC e diretor de cooperação internacional da Fundação Perseu Abramo.
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