domingo, 11 de agosto de 2024

Venezuela: Democracia, soberania e ingerência


 Segue abaixo artigo publicado na página eletrônica da Folha de S.Paulo, disponível no endereço abaixo: Democracia, soberania e ingerência - 09/08/2024 - Ilustrada - Folha (uol.com.br)

Democracia, soberania e ingerência

Valter Pomar

No artigo “Democratas de conveniência”, o professor Wilson Gomes acusa Lula, Gleisi, Stédile, Breno e toda a executiva nacional do PT de serem “democratas de conveniência”, equivalentes nesse quesito ao agronegócio, Bolsonaro, o PL, Filipe Martins e Paulo Guedes.

A acusação é mera cortina de fumaça para ocultar que é ele, Gomes, quem está defendendo, sobre a Venezuela, a mesma posição da extrema-direita e de boa parte da direita gourmet. 

O pano de fundo do debate é a relação entre democracia e soberania. Os Estados Unidos atacam as liberdades e os direitos humanos mundo afora, mas Cuba segue mantendo relações com governos Democratas e Republicanos. O governo da Itália é dirigido por uma neofascista, mas não se fala em pendurar ninguém de cabeça para baixo. Macron previu guerra civil em caso de vitória da Nova Frente Popular ou do Reagrupamento Nacional e desconheceu o resultado das recentes eleições parlamentares francesas, mas o Itamaraty não proibiu o consumo de croissants, mesmo sendo óbvia a superioridade do pão de queijo. Israel é um estado serial killer mas, apesar disso, segue contando com a cumplicidade ativa e passiva de inúmeros autoproclamados “democratas”.

Nas relações internacionais, uma coisa é o que achamos, outra o que podemos e devemos fazer. Essa diferença é aceita por quase todo mundo, exceto quando o alvo é um governo encabeçado pela esquerda. Neste caso, há quem se julgue no direito de atropelar a soberania, as instituições, a constituição, a cultura política, o bom senso e até mesmo o bom gosto, tudo em nome da “democracia e dos direitos humanos”.

A Venezuela é apenas a mais recente vítima dessa ingerência seletiva. Desde 1999 até hoje, aconteceram naquele país cerca de trinta grandes processos eleitorais. Quando ganhou, a direita sempre tomou posse; quase todas as vezes em que perdeu, a direita berrou “fraude”.

No último período, um Guaidó se autoproclamou presidente e a ficção foi reconhecida por quem sabia tratar-se de uma fraude. A Venezuela teve suas empresas e contas no exterior roubadas e o país foi submetido a pesadas sanções. A piora nas condições de vida e a onda migratória resultantes foram integral e cinicamente debitadas na conta de Maduro. Realizadas nesse contexto, as recentes eleições presidenciais obviamente quase deram vitória à oposição. Mas como o TSE local declarou a vitória de Maduro – também obviamente por muito pouco - a reação da extrema-direita e dos EUA foi a costumeira.

Provaram que houve fraude? Não. E, como a Vaza Jato já nos ensinou, “indício” não é prova, “convicção” não gera pena e berrar não dá razão. Apesar disso, muita gente segue com legítimas dúvidas e outros com absoluta certeza de que houve fraude. Entre estes últimos, há pessoas progressistas e de esquerda, que entretanto compartilham a posição de Trump, Milei, Vox, Bolsonaro et caterva.

Quiçá para livrar-se do incômodo causado pelas más companhias, o professor Gomes tenha apelado para uma velha técnica retórica, cuja versão popular é o “pega ladrão”.  Isso não faz dele um “democrata de conveniência”, apenas confirma que o mundo é mais complexo do que certas lacrações acadêmicas fazem supor. Em tempo: gostem ou não, Maduro venceu.

Valter Pomar, 58 anos, é professor da UFABC e diretor de cooperação internacional da Fundação Perseu Abramo.

 

 


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