Boa noite a todos, boa noite a todas.
Na divisão de trabalho desta
homenagem, me coube falar da relação entre o David e o PT. E farei isto sempre
que possível com base no que o próprio David disse ou escreveu.
Começo falando de um evento
que ocorreu entre os dias 20 e 24 de novembro de 1987: o seminário internacional
sobre os 70 anos de tentativas de construção do socialismo, organizado pelo
Instituto Cajamar.
Foi um evento muito
importante, que contou com a participação entre outros de Lula e de Prestes.
Terminado o seminário, editamos
um livro com as atas do seminário.
20 anos depois, a Fundação Perseu
Abramo republicou este livro em versão fac-símile.
Vou ler para vocês a fala do
David, onde ele apresenta sua visão sobre o PT.
Apesar de todo o respeito
que devo à memória de meu pai, que dedicou a vida e a morte à luta
revolucionária no PCB, nós temos que, sem nenhuma espécie de reverência, dizer
o seguinte: acabou. PCB, PC do B, a experiência de organização e de atividade
política inspirada na experiência da III Internacional, “acabou”, é hoje uma
expressão residual, não têm mais a menor importância quando se fala de
esquerda, de movimento de massa, de unidade de esquerda. Quando a gente fala
dos problemas da esquerda no Brasil hoje, temos que pensar nos problemas da
organização política que é herdeira de um conjunto muito variado, muito vasto,
muito amplo de experiências e de lutas populares dos trabalhadores de várias
inspirações ideológicas, que é o PT. Até porque as outras correntes que se
possa com muita generosidade chamar de esquerda no país não têm claramente um
projeto partidário que permita uma articulação em termos de militância.É o caso
da corrente pedetista, brizolista. Embora Brizola tenha prestígio, vai
demonstrar isso nas futuras eleições presidenciais, não é uma corrente
estruturada com a qual nós devemos nos medir, competir na disputa das entidades
de massa e da influência política e ideológica no país. Muito menos essas
coisinhas tipo partido socialista, essa coisa chamada esquerda do PMDB. A
organização depositária da possibilidade de desenvolvimento e fortalecimento do
movimento revolucionário, do movimento da classe trabalhadora, do movimento
pelo socialismo no nosso país, é o Partido dos Trabalhadores, as forças, as
correntes e os militantes que estão reunidos no Partido dos Trabalhadores.
existe enorme desafio à frente do PT para que ele se converta efetivamente no
organismo capaz de impulsionar e de dar uma consequência positiva, um final
feliz à luta que todos nós desejamos vitoriosa pela transformação
revolucionária de nossa sociedade.
Uma coisa importante que
não pode faltar no projeto e no desenvolvimento do PT é a consciência do
tamanho do desafio que nós temos que enfrentar, do tipo de sociedade em que nós
vivemos, a reinterpretação daquele verso ufanista, “criança, não verás nenhum
país como este”. Um país onde nós trabalhadores, os de baixo, o povo, nunca
conhecemos o sabor de uma vitória plena. Nunca houve neste país um dia da caça,
nunca.Todos os processos que em outros países levaram a afirmações vitoriosas
de movimentos populares, de movimento de natureza revolucionária, de natureza
rebelde, de cunho popular, aqui foram resolvidos por cima. Foi assim com a
independência, foi assim com todo o processo de industrialização, de
urbanização, de modernização vivida pelo país. Nós temos uma tradição negativa,
uma carga pesada para revirar e para derrotar neste país, uma elite competente,
classes dominantes competentes, que foram capazes de dirigir um processo
rigoroso de transformação econômica do país, de industrialização, de
urbanização, de criação de uma infra-estrutura de transporte e comunicação.
Classes dominantes extremamente ferozes, que jamais hesitaram diante do uso de
toda a sorte de meios para conservar a continuidade de seu poder e de sua
dominação.
Não podemos jamais nos
esquecer disso e incorrer em qualquer consideração a respeito de supostas
facilidades que possamos enfrentar na nossa luta atual e no futuro. Nós vivemos
num país, só para citar um pequeno exemplo, onde as classes dominantes foram
capazes de adiar durante 60 anos uma medida que do ponto de vista da economia
estava madura, como foi a abolição da escravidão, por conveniência política.
Uma elite dominante que foi capaz, para manter a estrutura de poder, a
estrutura social e o latifúndio no Nordeste, de impedir que o processo de
industrialização do Sul do país se fizesse com a mão-de-obra, com o braço do
trabalhador do Nordeste, e patrocinou para isto a importação da mão-de-obra da
Itália, da Espanha e de tantos outros países.
Nós temos uma tradição e
uma carga de ferocidade, de autoritarismo de um Estado que pode se orgulhar de
uma história contínua, durante séculos, que nós nunca conseguimos derrotar,
nunca conseguimos pôr abaixo. E evidentemente temos pela frente toda a herança
desses anos de ditadura. São enormes desafios, enormes tarefas,para que a
classe trabalhadora possa se apresentar como classe dirigente nacional, capaz
de oferecer um rumo para este país. E ela é a única que pode se oferecer como
classe dirigente nacional. Mais que nunca é necessário que nós nos preparemos
para isto, ajudemos, lutemos nessa direção. Para essa tarefa de qualificar a
classe trabalhadora como classe dirigente nacional nós temos de desenvolver
plenamente a extrema originalidade do Partido dos Trabalhadores, originalidade
que, aliás, radica principalmente em ter mais uma vez desafiado certos dogmas.
Um dos dogmas da concepção
leninista, por exemplo, é uma idéia que posso chamar até de iluminista, a idéia
de que temos que partir de um núcleo central, de um programa definido. É por
isso que a esquerda disputa em torno de questões que para o comum dos mortais
parecem bizantinas, parecem quinquilharias. Uma palavra diferente num programa
é motivo de uma cisão, é motivo de racha. Isso tem lógica dentro da concepção
leninista de partido, quando o partido se constrói como núcleo de intelectuais
revolucionários profissionais que vão iluminar e conduzir as massas e vão
transformar suas idéias em força através da adesão das massas trabalhadoras. O
processo do PT é um processo difícil, tumultuoso, novo, porque é de cabeça para
baixo, é a partir da luta, da experiência, a partir do enraizamento no mundo do
trabalho, que vai se construindo esse instrumento de luta e esse instrumento de
libertação. Mesmo sendo este processo invertido, novo, original, é necessário
evidentemente que conquistemos pontes em direção ao mundo do saber, ao mundo da
intelectualidade, em direção às camadas de onde não nasceu primeiramente o Partido
dos Trabalhadores, mas sem as quais não conseguirá a classe trabalhadora se
afirmar como classe dirigente nacional. Até por que a própria classe
trabalhadora, como fruto de todo um processo de revolução técnica e científica,
não vai mais sendo composta apenas do tradicional proletariado industrial, vai
comportando em seu interior novas camadas que podemos classificar, de certa
forma, de trabalhadores intelectuais.
Temos esses desafios pela
frente a partir de nossa limpidez, a partir de nossa transparência, a partir do
nosso radicalismo no sentido bastante saudável e necessário de ir às raízes.
Vamos superar elementos, que temos ainda em nossa prática, de sectarismo, de
intolerância, e construiremos um partido com essas pontes para o mundo do
saber, com essas pontes para as camadas médias, com a condição de intérprete de
uma vocação e de uma capacidade dirigente nacional da classe operária e dos
trabalhadores, um partido que apresente a todos os lutadores a sua imagem de um
partido que ele de fato é e precisa perseverar nesta direção, ideologicamente
pluralista e generoso com todos que se situem no terreno da luta, aceitando a
unidade de ação com todos que queiram brigar, com todos que estejam conscientes
da necessidade de uma luta feroz, de uma luta tenaz, de uma luta difícil para
derrubar essa elite brasileira, esta classe dominante brasileira e construir um
país diferente, um Brasil socialista.
No PT, David foi da executiva
do Partido no estado de SP, exatamente em 1988, quando ganhamos muitas cidades
importantes, entre as quais Santos, onde ele assume a secretaria de Saúde.
Nessa época, ele também contribuiu
ativamente nos debates sobre a crise do socialismo soviético, lutando para não
jogar a criança fora junto com a água suja.
E contribuiu no debate sobre qual
deveria ser a estratégia do PT, após as eleições de 1989.
Em 1993, ele participa da criação
do movimento “A hora da verdade”, defende o presidencialismo e luta para que o PT
se mantenha na oposição ao governo Itamar.
Ele e um companheiro de
Franco da Rocha eram os únicos prefeitos petistas vinculados a este movimento “hora
da verdade”.
E ele era super ativo.
Por exemplo: durante o 9º encontro
estadual do PT em SP, David foi um dos autores de um documento, distribuído a
todos os delegados, intitulado “A Carta aos delegados(as) da Articulação. Em
defesa da verdade”.
O documento dá uma ideia de
como David pensava, neste momento, a luta interna no PT. Segue a íntegra:
Pela primeira vez, a
Articulação se apresenta
dividida num encontro
estadual: duas teses, duas
chapas, dois candidatos a
presidência.
De um lado estão os
defensores da tese Por um
governo democrático e
popular, que lançaram no início do ano o Manifesto A hora da verdade e que
defendem Arlindo Chinaglia
para presidente estadual do PT. De outro lado, estão os signatários da
tese Unidade na Luta.
Essa divisão criou a
expectativa de que o 9º
Encontro Estadual seria
marcado pelo debate
franco das divergências.
Não é isso o que está
acontecendo.
Os mesmos companheiros que
há menos de 60
dias propunham que o PT
namorasse o governo
Itamar, agora fazem
discursos de inflamada oposição.
Os mesmos que defendiam
uma política de
alianças baseada em
negociações eleitoreiras,
agora disputam para ver
quem ataca mais o
PSDB.
Os mesmos “notáveis” que
ainda ontem tentavam dirigir o partido através da imprensa, agora
se apresentam como os
campeões da democracia
interna.
Os mesmos que hoje dizem
defender a unidade
da Articulação, ontem
propunham formar uma
tendência reunindo a
Articulação com o Projeto
para o Brasil, dos
deputados José Genoíno e Eduardo Jorge, na conhecida Operação Comodoro.
Os mesmos que criticam a
Articulação Hora
da Verdade por buscar a
unidade da esquerda
petista, já consumaram um
acordo político e eleitoral com a direita petista. Acobertam aqueles
que defendiam a ida do
Partido para o governo
Itamar. Absorvem os que
propunham aproximar
nosso partido do governo
Fleury. Protegem aqueles que chamaram a militância de burra, por ter
optado maciçamente pelo
presidencialismo. Defendem aqueles que querem levar o PT para a
socialdemocracia.
Esta atitude dos que
dirigem a Unidade na
Luta está impedindo a
discussão política no Encontro. Este jogo de cena, este oportunismo de
palanque, destina-se a
confundir os delegados e a
garantir o controle da
direção partidária.
Nós, militantes da
Articulação, signatários da
tese Por um governo
democrático e popular, entendemos que a apresentação leal das divergências faz
parte da ética na política. Repudiamos os
conchavos de que participa
um pequeno número
de dirigentes. Preferimos
deixar claro o que pensamos.
Achamos que para dirigir a
campanha Lula e
a ação partidária, num
momento em que a burguesia tenta desqualificar nosso partido e nosso
candidato a presidente, é
necessária uma direção
firme, que recuse as
ambiguidades e as vacilações.
Uma direção que busque
atrair e dirigir nossos aliados, e não seguir a seu reboque. Uma direção que
tenha a ousadia de proclamar a falência
das elites dirigentes do
país, a necessidade de reformas profundas, e que tenha a coragem de assumir os
enfrentamentos que a mudança vai exigir
de um governo democrático
e popular.
Com base nesse programa e
num partido democratizado, coerente e revitalizado, se tornará possível
realizar uma campanha eleitoral de
massas, um verdadeiro
movimento por reformas
estruturais, que ganhe
milhões não apenas para
votar mas principalmente
para apoiar ativamente um governo comprometido com o fim do apartheid social e
com a luta pelo socialismo.
Esses são os motivos pelos
quais apresentamos
nossa tese, nossa chapa,
nossos candidatos. Evitando os acordos de cúpula, garantiremos que a
decisão seja realmente dos
delegados, das bases.
Para que a unidade seja
realmente construída na
luta.
Neste 9º encontro, David fez
uma fala memorável sobre a política de alianças, lembrando que ele como
prefeito de Santos fazia alianças amplas, mas não se subordinava aos aliados de
direita, mas sim os mantinha “na ponta do chicote”.
Aliás, o David era um orador
poderoso.
A esquerda ganhou o encontro
de SP, assim como ganhou o 8º encontro nacional do PT.
Nessa época, a revista Teoria
e Debate publicou uma longa entrevista com dona Maria Augusta Capistrano,
onde obviamente o pai de David e o próprio David foram muito citados.
Aliás, é um capítulo
particular a influência, na personalidade de David, tanto do David pai, quanto
da mãe.
Na citada entrevista, dia 1/12/1993,
Maria Augusta diz o seguinte:
Fiquei muito satisfeita
quando meu filho foi para o PT, porque eu acho que é o caminho certo para
qualquer cidadão de esquerda. O PT é o partido em que as pessoas se encontram
para tentar acertar. O PT hoje é o herdeiro das lutas da classe operária
brasileira, o partido que defende os interesses da classe operária dentro de
uma formulação de acordo com uma época que está se vivendo. Por isso, eu apóio
o PT.
Em 1994 houve uma prévia para
escolher a candidatura do PT ao governo de SP.
De um lado estavam os apoiadores
de Dirceu.
De outro lado estavam os
apoiadores de Telma.
David apoiou Telma, entendo
que basicamente por razões internas a Santos.
Dirceu foi vitorioso, num
processo muito duro, que incluiu uma reunião da CEE em que um cidadão compareceu
armado.
Ficamos de fora do segundo
turno estadual e David esteve entre os que defenderam apoiar Mário Covas contra
Rossi, no segundo turno.
Passada a eleição, no 10º
encontro nacional do PT em Guarapari, a esquerda do partido perdeu a maioria que
tinha no Diretório Nacional do Partido.
Perdemos por 2 votos na chapa
e por 16 votos na presidência.
Naquele encontro ocorreram
vários episódios bizarros, entre os quais a crítica feita por Cesar Benjamin
contra José Dirceu, no momento em que se faziam as defesas das duas
candidaturas a presidência nacional do PT, de um lado o candidato da esquerda
do Partido, o Hamilton Pereira (Pedro Tierra) e de outro lado o José Dirceu.
Sem entrar em detalhes, a
coisa quase transformou-se em pancadaria generalizada.
Depois do encontro, David foi
uma das pessoas que conversou com César Benjamim, privadamente.
David censurou Cesar Benjamin,
entre outras coisas por não ter informado, previamente, o que diria no discurso.
Na conversa, César reconheceu
que havia errado.
Mas logo depois, sem avisar
previamente ninguém, César saiu do PT, comunicando isto através de um artigo
publicado na Folha de SP.
A esquerda perdeu a direção
nacional e a direção estadual de São Paulo.
Depois disso, veio a fase final
do governo de David em Santos.
David era uma pessoa muito
inteligente, muito culta e muito ativa.
E sua maneira de tratar as
pessoas era muito peculiar.
Ele era capaz de te criticar publicamente
de maneira quase ofensiva.
Mas também era capaz de se
preocupar sinceramente contigo, no plano pessoal.
É também por isso, creio, que
algumas pessoas guardem do David lembranças aparentemente antagônicas.
Do ponto de vista político, David
não tinha absolutamente nada de sectário.
Estabelecido o objetivo, construía
as alianças que fossem necessárias para aquele objetivo.
E do ponto de vista administrativo,
era um cara muito interessante.
Ele era verdadeiramente
animado pela ideia de que cabia ao poder público melhorar a vida das pessoas.
E colocava toda a sua energia
e criatividade a serviço disso.
No ano de 1996, tivemos
prévias para escolher a candidatura do PT à prefeitura de Santos.
Houve prévias entre Telma de
Souza e uma outra companheira.
David não apoiou Telma.
O processo foi duríssimo, com
direito novamente a diversas situações bizarras, entre as quais pessoas armadas
na sede do Partido.
Telma venceu e, na campanha, ela
manteve distância de David.
Como é óbvio que aconteceria,
a divisão levou a nossa derrota.
Aliás, um registro.
Recentemente, nosso candidato
a prefeito de Santos, o companheiro Douglas, respondendo a uma pergunta
provocativa, denunciou como xenofobia e fascismo a atitude dos que, em Santos,
diziam que David e outros eram “gafanhotos”, vindos de fora.
Infelizmente, não foi só na
direita que se falava de gafanhotos. Mas sobre isso Douglas já disse o que
teria que ser dito e recomendo a todos que vejam no YouTube o que ele disse.
O final do governo de David foi
muito difícil. Outras pessoas aqui podem falar melhor deste período, bem como
do que veio depois, essa fase da saúde família em São Paulo, com o Jatene.
No dia de seu enterro, foi emocionante
ver as sirenes das ambulâncias tocando em sua homenagem, quando o cortejo
passou em frente a um hospital em Santos.
Na cerimônia anterior a
cremação, uma oração infelizmente não foi longa o suficiente para fazer David
ressuscitar (de irritação).
David era uma pessoa
singular, muito especial, muito capaz, muito trabalhador, muito politizado.
David teria sido um ótimo ministro
da Saúde.
David teria sido um ótimo presidente
nacional do PT.
E seguramente estaria
comandando, dentro e fora do PT, a luta contra o social-liberalismo, a
socialdemocracia e também contra certo “esquerdismo de redes sociais”.
E, principalmente, acho que
ele estaria animando as pessoas, contra o baixo astral, contra a desesperança.
Tudo o que eu falei aqui, eu
testemunhei pessoalmente. Outras situações que eu testemunhei, ficam para outra
ocasião.
Quero terminar dizendo que
ele era muito gozado, muito divertido. Por exemplo, dizia que não gostava de
ver certos filmes sobre derrotas que sofremos na luta revolucionária, porque
ele chorava.
David foi embora muito novo. Faz
muita falta.
https://www.youtube.com/watch?v=3EHFMnp_7Ug&feature=youtu.be
sim, lembro disso, sentei no meio fio da rua e chorei. Pois o partido se dividiu e com isso, perdeu as eleições. Não é de hoje que as coisas são assim. Triste demais.
ResponderExcluirO melhor prefeito de Santos de todos os tempos. O PT não capitalizou isso!...
ResponderExcluirO melhor prefeito de Santos de todos os tempos. O PT não capitalizou isso!...
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