Uma confissão inicial: é difícil ser educado quando o oponente causa repulsa.
A degeneração fede como carcaça.
Isto posto, é inescapável tratar da mais recente do senhor Quaquá.
Refiro-me à entrevista por ele concedida à revista Veja.
Tal entrevista foi publicada no dia 1 de setembro de 2023 e pode ser lida aqui:
https://veja.abril.com.br/brasil/a-esquerda-esta-muito-fundamentalista-diz-vice-presidente-do-pt
Veja começa perguntando sobre o voto de Quaquá a favor da absolvição de bolsonaristas na comissão de ética na Câmara dos Deputados.
A resposta publicada (se ele disse outra coisa e a revista omitiu, cabe a ele dizer) poderia estar na boca de alguém da direita.
Isto porque, além de generalidades e miudezas, o que se destaca na resposta é um ataque contra nós: “A esquerda está muito dogmática, fundamentalista”.
Veja afirma, em seguida, ter havido um “movimento” para que Quaquá “fosse retirado da Executiva do PT”.
Se houve o movimento, não sei.
Mas enquanto não for retirado da direção, Quaquá seguirá causando danos ao PT.
E a responsabilidade primeira por isso é da chapa que o colocou no DN e na CEN.
Jabuti, como se sabe, não sobe em árvore.
Ao invés de falar do tal “movimento” e de suas causas, Quaquá apela para a demagogia.
Palavras dele: “Tenho 52 anos de idade, entrei no PT aos 14 anos, cresci na favela, e aí vem alguém de classe média, que nunca fez nada por ninguém, que fica o dia inteiro numa rede social: “Ah, mas a militância…” Que militância? Tenho o direito de discordar”.
A demagogia, no caso, é tripla.
Primeiro: nascimento não bota banca e águas passadas não movem moinho. Aliás, faz tempo que Quaquá tem um padrão de vida muito diferente daquele que gosta de proclamar quando está sob crítica.
Segundo: as críticas à Quaquá vem de tudo quanto é canto, não apenas de quem é de “classe média” ou empresário como ele.
Terceiro: ninguém está privando Quaquá do “direito de discordar”. O que se questiona é o “direito” dele de - a partir de cargos para os quais foi nomeado pelo
PT - causar danos ao Partido.
Quaquá tem todo o direito de achar que seus críticos jogam “para a plateia”.
Mas vejamos um caso concreto: a política implementada pelo ministro Pazuello.
Nas palavras do companheiro Marcos Jakoby, “quando Pazuello assumiu o ministério em 16 de maio de 2020, o Brasil acumulava 15.633 mortes associadas à covid-19. No dia 15 de março de 2021, quando foi substituído, o número de mortes se aproximava de 280 mil, com o país ocupando o segundo lugar entre as nações com mais óbitos na pandemia. Recusa de vacinas, estímulo uso e distribuição de cloroquina, colapso em Manaus devido ao desabastecimento de oxigênio nos hospitais, manipulação e ocultação dos números reais das vítimas da pandemia e negacionismo são algumas das marcas da gestão de Pazuello frente ao Ministério da Saúde”.
Pergunto: falar disto seria “jogar para a plateia dentro do PT, uma plateia de classe média, lacerdista, udenista e de esquerda”???
Falar disso seria comportar-se como a “UDN de macacão”?
Ou como a “UDN de sunguinha”??
(Deixo aqui registrado: a obsessão de Quaquá por certas imagens é algo que só Freud explica.)
Quaquá, evidentemente, tem outra opinião sobre Pazuello, que ele descreve assim: “Pazuello tem a cabeça de militar, pode ser até que pague alguma coisa pelos erros do governo Bolsonaro, mas não é um fascista que estava lá para matar. Vamos com calma. Ele é uma pessoa agradável, gosta de samba, é um malandro carioca”.
“Malandro carioca”, como se sabe, é a etiqueta que Quaquá gruda em todo bolsonarista de quem ele se aproxima.
Mas, malandro ou não, Pazuello é direta e indiretamente responsável pelo assassinato de muitas pessoas.
Relativizar isto é inaceitável para qualquer um que tenha um mínimo senso de decência.
Quaquá pode ter “zero problemas em ter amigos de direita”. Mas a questão é saber se um deputado do PT pode ser “amigo” de um dos operadores do genocidio.
O passo seguinte de Quaquá, na entrevista, foi atacar a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann.
Quaquá reconhece ter “divergências, muitas públicas” com Gleisi.
E acusa Gleisi de ser “estreita” em relação a alianças.
Isso apesar dela e dele terem votado do mesmíssimo jeito acerca da política nacional de alianças em 2020 e em 2022, inclusive em Waguinho para prefeito e em Alckmin para vice.
Vista de quem votou contra ambos, a principal divergência entre Quaquá e Gleisi não é acerca do “pragmatismo”, mas acerca de limites.
Gleisi tem limites, o que merece nosso aplauso. Quaquá não tem limites. E, em um partido de de esquerda, isso faz toda a diferença.
Perguntado sobre “qual avaliação o senhor faz do PT?”, Quaquá arromba porta aberta.
Diz que vai “fazer uma pesquisa para provar que a nossa base social não é a classe média de Zona Sul”.
Quaquá pode poupar seus recursos: a base eleitoral e social do PT é, como demonstraram mais uma vez as eleições de 2022, majoritariamente composta pelos setores mais pobres da classe trabalhadora, pelas mulheres, negros e negras, moradores da periferia.
Mas Quaquá não para aí.
Segundo ele, “o povo que gosta do PT e do Lula (…) é um povo mais conservador, inclusive nos costumes”.
Será mesmo?
E se for, como deveríamos lidar com isso?
A resposta de Quaquá a esta segunda pergunta consiste, essencialmente, em atacar os “exageros na pauta comportamental”.
Num país como o nosso, “o que mais mata pessoas trans e travestis em todo o mundo”, o reducionismo de Quaquá é grotesco.
Assim como é grotesca surdez dizer que “a esquerda está assumindo o discurso da Zona Sul. Eu não ouço mais um movimento de mulheres para falar de creche para as crianças”.
Mostrando que sua aproximação com o ponto de vista cavernícola vai além das amizades, Quaquá afirma que “precisamos tirar da mão do Ibama e do Ministério Público a decisão sobre os grandes investimentos do país”.
Independente da posição que tenhamos sobre o caso da foz do Amazonas, “não tem cabimento” atacar o Ibama ou o MMA, atribuindo a eles o mesmo que os bolsonaristas, ou seja, a disposição de “atrapalhar” o desenvolvimento do país.
Quem atrapalha o desenvolvimento do país é, em primeiro lugar, o agronegócio e o capital financeiro.
Quaquá diz ser de um tempo em que “essas pautas eram importantes, mas nunca foram prioritárias para o PT. A esquerda inverteu as prioridades. Não é à toa que o velho eleitor do PT tem abandonado o partido nas periferias, vem se afastando de nós por conta de uma pauta comportamental que virou prioridade e não deveria ser”.
Quaquá inventou um espantalho e o espanca, impiedosamente.
Certamente há eleitores que se afastaram do partido nas periferias.
Mas é simplesmente risível dizer que isso ocorre por conta da “pauta comportamental” ou ambiental.
No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, há motivos mais, digamos, comezinhos para este afastamento.
E está ligado a maneira como Quaquá se refere a “esquerda”, nessa entrevista, a saber: se colocando fora dela.
Nisso, aliás, ele tem razão.
Afinal, as posições que Quaquá defende são cada vez mais populistas e cada vez menos de esquerda.
E, o que é muito mais grave, a forma como ele as defende causa cada vez mais dano ao Partido.
Quando tempo mais isso será tolerado pelo PT?
Ou será que acontecerá com ele o que aconteceu, no passado recente, com outro ilustre entrevistado de Veja, o então petista Cândido Vacarezza?
Enquanto a resposta não vem, aguardemos o livro!
Segue a íntegra da entrevista criticada:
O senhor foi criticado pelo PT por ter chancelado a absolvição de dois deputados bolsonaristas no Conselho de Ética. Por que votou assim? Defendi que nenhuma representação fosse admitida. O plenário da Casa não é um picadeiro de circo para o deputado fazer palhaçada, como o Nikolas Ferreira (PL-MG) fez ao vestir uma peruca loira, mas isso não é motivo para cassar o mandato. A esquerda está muito dogmática, fundamentalista.
Esse posicionamento resultou num movimento para que o senhor fosse retirado da Executiva do PT. Tenho 52 anos de idade, entrei no PT aos 14 anos, cresci na favela, e aí vem alguém de classe média, que nunca fez nada por ninguém, que fica o dia inteiro numa rede social: “Ah, mas a militância…” Que militância? Tenho o direito de discordar. O PT é, até que se prove o contrário, um partido democrático. Tem gente que joga para a plateia dentro do PT, uma plateia de classe média, lacerdista, udenista e de esquerda. O Brizola chamava isso de “UDN de macacão”. Temos hoje uma UDN de sunguinha, aquele militante da Praia de Ipanema.
O senhor também gerou controvérsia ao aparecer numa foto ao lado do ex-ministro Eduardo Pazuello. O Pazuello tem a cabeça de militar, pode ser até que pague alguma coisa pelos erros do governo Bolsonaro, mas não é um fascista que estava lá para matar. Vamos com calma. Ele é uma pessoa agradável, gosta de samba, é um malandro carioca. Eu, inclusive, o convidei para entrar em uma frente parlamentar para tratar da logística com Cuba. Ele entende de logística. Tenho zero problemas em ter amigos de direita.
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, já lhe deu alguns puxões de orelha? Nós temos divergências, muitas públicas, o que é natural, mas acho que a gente, para sustentar o governo Lula, tem de ter uma base ampla no Congresso, em especial fazendo uma aliança com o Lira e com o Centrão, que nos entregam a maioria para fazer as políticas que queremos. É pragmatismo político. A visão da Gleisi é estreita em relação a alianças, às relações políticas. E eu já disse isso para o Lula e para ela.
Qual avaliação o senhor faz do PT? Vou fazer uma pesquisa para provar que a nossa base social não é a classe média de Zona Sul. O povo que gosta do PT e do Lula é o mais pobre deste país, é um povo mais conservador, inclusive nos costumes. Por exemplo: querem igualar a questão do preconceito ao LGBTQIA+ ao racismo. Isso não tem cabimento. O racismo não é um problema de comportamento, é uma chaga estrutural. Você não pode querer comparar uma pessoa que muda de sexo com a história de toda uma população negra que sofreu tantas agruras. Existem exageros na pauta comportamental que isolam a esquerda das pessoas.
O PT não tem de prestar contas a esse eleitorado de esquerda? Mas será que o travesti de esquerda, que está na favela passando fome, tem a mesma pauta das meninas de classe média da Zona Sul? A esquerda está assumindo o discurso da Zona Sul. Eu não ouço mais um movimento de mulheres para falar de creche para as crianças. Todo dia eu vejo gente pedindo creche, porque a mãe precisa trabalhar. É o básico.
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Que outra postura da esquerda incomoda o senhor? Precisamos tirar da mão do Ibama e do Ministério Público a decisão sobre os grandes investimentos do país. Por exemplo, no caso da foz do Amazonas, não tem cabimento o que a ministra Marina Silva está fazendo. Talvez seja uma das maiores jazidas de petróleo do mundo, que pode levar o Brasil a outro patamar, melhorando sobremaneira a vida do povo, e a ministra fica atrapalhando o desenvolvimento do país. Ninguém aguenta um país desse jeito.
O que o senhor contará no livro sobre a esquerda que pretende lançar? Vou escrever sobre esses exageros que estão sendo cometidos. Eu faço política, não fundamentalismo religioso. Sou de um tempo em que essas pautas eram importantes, mas nunca foram prioritárias para o PT. A esquerda inverteu as prioridades. Não é à toa que o velho eleitor do PT tem abandonado o partido nas periferias, vem se afastando de nós por conta de uma pauta comportamental que virou prioridade e não deveria ser.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857
Nem rir (que difícil) nem chorar, compreender...
ResponderExcluirPT no RJ foi destruído e isso abriu o campo para a ocupação bolsonarista. Tráfico e milícias fizeram a população carioca diminuir segundo o censo.
PT agora vai apoiar o Boulos com talvez uma não petista de vice e se auto engana novamente. Tem coisa mais importante pra resolver que cair em provocação
E não é burocraticamente também
A democracia petista precisa reunificar institucionalmente a esquerda. Nenhuma alternativa ao petismo construiu um poder real e organizativo. Só aumentou a fragmentação com polêmicas secundárias.
É um xadrez, Quaquá e um peão