Recomendo a leitura do discurso feito pelo novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, no dia 28 de setembro.
Não me refiro à introdução, nem ao trecho que ele próprio intitulou de “gratidão”, extensiva à “Presidenta Dilma Rousseff, que me indicou para o cargo da forma mais republicana que um presidente pode agir: não pediu, não insinuou, não cobrou”.
Como sabemos, a recíproca não foi verdadeira, mas deixo isso fica por conta das
“muitas vidas em uma só” de que se gaba o ministro.
Quando digo que o discurso de posse deve ser lido, me refiro principalmente à segunda parte, dedicada ao poder judiciário.
Começo pela
frase: “Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da
política e trazê-la para o direito. Essa é a causa da judicialização ampla da
vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional”.
Ou seja, na opinião do ministro Barroso, a “judicialização” da política (e a simétrica partidarização da justiça) teria como causa a própria Constituição.
Ir contra a judicialização seria ir contra a Constituição.
Tese ousada, entre outros
motivos porque, talvez inadvertidamente, reforça a tese dos que – pela esquerda
ou pela direita – defendem a convocatória de uma Assembleia Nacional
Constituinte.
Afinal, aceita a tese de Barroso, o poder judiciário seria uma mistura perfeita de moderação com tutela, Dom Pedro II e as Forças Armadas numa só instituição, instituição que não é eleita pelo povo.
Mas este parece, para Barroso, um detalhe de pouca monta, se considerarmos o cúmulo de elogios que
Barroso dedica a si próprio, a seus pares e ao sistema judiciário.
Segundo o
novo presidente do STF, “o Judiciário brasileiro é dos mais independentes e
produtivos do mundo. Independente porque, para alguém se tornar juiz, o que se
exige é haver cursado uma Faculdade de Direito e ter sido aprovado em um
disputado concurso público. Não deve favor a ninguém. É certo que nos tribunais
superiores há um componente político, como é em todo o mundo. Mas o DNA de
independência não se perde”.
O DNA eu não sei, mas o pedigree certamente não se perde.
Barroso
considera “imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os
outros Poderes e a sociedade”, pois “numa democracia não há Poderes hegemônicos.
Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros
institucionais pelo bem do Brasil”.
Autocontenção certamente é uma qualidade fundamental para quem se julga todo-poderoso.
Mas
como vivemos numa democracia, existe sim um “poder hegemônico”, que é a
soberania popular, a quem o ministro cita como apenas um de múltiplos "valores" que
compõem o que ele chama de “democracia constitucional” (de quem ele, como agora
presidente do STF, é o supremo guardião).
Neste jogo de palavras cuidadosamente escolhidas, Barroso afirma que a “democracia constitucional viveu momentos de sobressalto”, mas que “as instituições venceram”.
Vide: não foi a democracia, nem o povo, foram as “instituições”, tendo “a seu lado” a “presença indispensável da sociedade civil, da Imprensa e do Congresso Nacional. E, justiça seja feita, na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo”.
Justiça seja feita, sem o devido processo legal, mas com absolvição garantida.
Genial, não!?
A soberania popular
é rebaixada a condição de variável, a vitória foi das instituições e – “na hora
decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo”.
Como se pode
ver, as “instituições” se protegem.
Mas Barroso não parou por aí.
Entre os culpados de sempre ele cita o “extremismo”, o “autoritarismo”
e... o “populismo”, palavrinha que na América Latina é imputada pela direita a
nove em cada dez projetos de esquerda.
Já disse alguém que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.
Talvez por isso, Barroso reconheça que “as democracias contemporâneas precisam equacionar
e vencer os desafios da inclusão social, da luta contra as desigualdades
injustas e do aprimoramento da representação política”.
Esta última frase contém uma aula, pois por detrás dela está a ideia de que a “democracia constitucional” e a “democracia real” não andam necessariamente juntas, muito antes pelo contrário.
Motivo pelo qual tantos neoliberais são sinceros quando enchem a boca para
falar de “democracia” e “Estado de direito”, mesmo que na porta da sua casa
tenha gente desempregada, passando fome e morando na rua.
Como é óbvio, Barroso não quer muito; ele se contenta com uma “reserva mínima” em termos de “liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”.
É nessa passagem que começa o melhor trecho do seu discurso, em favor dos direitos das mulheres, da população negra, da
comunidade LGBTQIA+, dos povos indígenas, das pessoas com deficiência e, também, em favor da proteção ambiental.
Barroso reconhece que são vitórias “inacabadas, mas na vida devemos saborear os avanços e as vitórias”.
E
aproveita para dizer que não considera que estas sejam “são causas
progressistas”, mas sim “causas da humanidade, da dignidade humana, do respeito
e consideração por todas as pessoas”.
Graças a esta
cuidadosa demarcação semântica, fica mais difícil denominar Barroso de “progressista
neoliberal”.
Neoliberal?
Exagero??
Leiam o que
vem a seguir: “O Judiciário deve ser técnico e imparcial, mas não isolado da
sociedade. (...) O Poder Judiciário, o Direito em geral, gravita em torno de
dois grandes valores: a justiça e a segurança. (...) segurança jurídica,
segurança democrática e segurança humana. Segurança jurídica para que haja um bom
ambiente para o desenvolvimento da economia e dos negócios no país, com
incentivo ao empreendedorismo, ao investimento e à inovação. Sem surpresas.
Precisamos superar a desconfiança que ainda existe no Brasil em relação à livre
iniciativa e ao sucesso empresarial. É daí que vem o emprego, a ascensão social
e o progresso”.
É incrível
como a essa altura do campeonato haja gente disposta – contra todas as
evidências – a acreditar que o “emprego”, a “ascensão social” e o “progresso” surgem da “livre iniciativa”.
Principalmente na periferia do mundo capitalista, valeria dizer: "é o Estado, estúpidos". Sem ele não tem nada, não tem emprego, nem tem ascensão, não tem progresso, não tem nem mesmo "livre iniciativa".
Detalhe: para Barroso, a segurança democrática é “não menos importante” do que a segurança jurídica em favor da livre iniciativa.
A democracia
é “não menos importante” do que a empresa privada: eis aqui a palavra de ordem
do humanista Barroso.
Poliana diria: mas ele também disse que, como princípio e fim, “também” está a “segurança humana”.
Pois é. Ocorre que nesse pacote ele inclui “o combate à pobreza, às
desigualdades injustas e à criminalidade, com segurança pública e valorização
das polícias”.
Quer algo mais revelador que juntar, numa mesma sentença, pobreza com polícia?
Mas, claro, polícias
treinadas “numa imprescindível cultura de respeito à cidadania e aos direitos
humanos”.
Coisas
sérias à parte, chega a ser engraçado ler no discurso de Barroso a frase “poucas
derrotas do espírito são mais tristes do que alguém se achar melhor do que os
outros”, para logo depois ler também o seguinte: “meus queridos colegas deste Tribunal: o Universo
nos reuniu aqui porque temos uma missão”.
O Universo,
com “U” maiúsculo, reuniu Barroso e os demais ministros.
Guardiões da Galáxia na veia.
Barroso concluiu seu discurso com um capítulo sobre “o Brasil que queremos”, uma “agenda para o Brasil”, claro que com base na Constituição: “(i) combate à pobreza; (ii) desenvolvimento econômico e social sustentável; (iii) prioridade máxima para a educação básica; (iv) valorização da livre iniciativa, bem como do trabalho formal; (v) investimento em ciência e tecnologia; (vi) saneamento básico; (vii) habitação popular; e (viii) liderança global em matéria ambiental”.
Tirante as platitudes e o pedigree, chama a atenção a ignorância náutica: há muito se sabe que,
nos naufrágios, assim como nas catástrofes ditas naturais, os efeitos não se
abatem igualmente sobre todas as vítimas.
Ainda neste parte final do seu discurso, Barroso reafirmou seus valores políticos fundamentais: “educação”, “igualdade”, “trabalho” e “livre iniciativa”.
E terminou dizendo que “a história é uma marcha contínua na direção do bem, da justiça e do avanço civilizatório. Basta olhar através dos tempos: viemos de épocas de sacrifícios humanos, despotismos cruéis, inquisições e holocaustos até a era dos direitos humanos. Ainda não plenamente concretizados, mas vitoriosos na maior parte dos corações e mentes”.
Como ele mesmo reconhece, é um equilibrista, que sabe que “está se equilibrando” e que “na vida real não tem rede”.
Talvez por isso ele termine pedindo que seja “abençoado” para cumprir bem sua “missão”.
Como de benção não entendo, pulo esta parte.
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