domingo, 13 de setembro de 2020

Roteiro da exposição feita no debate sobre 40 anos do PT: balanço e perspectivas

Boa tarde a todos e a todas.

Como foi dito inicialmente pela Natalia, nosso objetivo aqui é contribuir para o balanço dos 40 anos da história do Partido dos Trabalhadores, uma contribuição na perspectiva de quem deseja debater o futuro do PT, da esquerda e da classe trabalhadora brasileira.

E estamos fazendo isso, tomando como ponto de partida as resoluções do 6º Congresso do PT, realizado em 2017.

Este congresso foi realizado nos dias 1, 2 e 3 de junho de 2017. E já no dia 12 de julho foi publicado, no site do Partido, o caderno com as resoluções aprovadas.

Para efeito de comparação: estamos em setembro de 2020 e até hoje não foram publicadas as resoluções do 7º Congresso, realizado em novembro de 2019.

As resoluções do 6º congresso tomaram como ponto de partida, não as teses das tendências, mas sim projetos de resolução apresentados por uma comissão de sistematização composta por Artur Henrique, Breno Altman, Carlos Henrique Árabe, Cícero Balestro, Isabel dos Anjos, Luiz Soares Dulci, Marco Aurélio Garcia, Markus Sokol, Renato Simões, Rui Falcão, Selma Rocha, Valter Pomar e Vivian Farias.

Os projetos de resolução debatidos nesta comissão e submetidos ao congresso tratavam dos seguintes temas: situação internacional; situação nacional; balanço de uma experiência histórica; estratégia e programa; estrutura e funcionamento partidário.

Uma proposta sobre o tema “combate à corrupção” foi deixada de lado, por não obter consenso. Além disso foram apresentadas diretamente ao Congresso duas resoluções especiais, uma sobre a violência contra a mulher e outra de combate ao racismo.

O que dizia a “resolução sobre Estrutura e Funcionamento Partidário”? Por qual motivo, na sua fala de abertura deste seminário, a Natália Sena afirmou que esta teria sido a “resolução que não houve”? Será certo dizer, como ela disse, que este foi um dos pontos sobre os quais a comissão de teses não conseguiu apresentar, ao 6º Congresso, uma resolução orgânica, com uma visão de conjunto? Procede dizer que isso teria tido relação direta com o que veio em seguida, ou seja, a “construção interrompida” da reformulação da ação do Partido?

Na minha opinião, sim.

Vale lembrar, antes de mais nada, que o 6º Congresso foi tenso, com pesadas acusações de fraude na eleição das delegações. O que acabou levando a aprovação de um acordo, o de remeter para um plebiscito interno a decisão sobre como se elegeriam as futuras direções partidárias, já que o chamado PED era questionado por amplos setores. Este plebiscito não ocorreu até hoje.

Vale lembrar, também, que um setor do Partido –estava bastante incomodado com a sistemática adotada para elaborar as resoluções. Incomodo que se traduziu, por exemplo, numa demarcação pública, feita no plenário do congresso, especialmente contra a resolução sobre estratégia e programa.

Sendo este o contexto, havia uma expectativa de que o 6º Congresso, além das resoluções estritamente políticas, enfrentasse o debate sobre os seguintes temas: a) a relação do PT com as classes trabalhadoras brasileiras; b) a relação do PT com as diferentes organizações, políticas e sociais, destas classes trabalhadoras; c) a estrutura organizativa e os métodos de funcionamento do Partido, em particular os métodos de direção, d) as nossas organizações de base e sua relação cotidiana com as classes trabalhadoras, e) as nossas práticas de mobilização e luta de massa, f) as nossas políticas e instrumentos de cultura, comunicação e formação política; g) a política de financiamento da atividade partidária, envolvendo neste ponto tanto o balanço sobre as relações mantidas anteriormente com o financiamento empresarial privado, quanto o debate sobre a nossa posição acerca do financiamento público da atividade partidária e da atividade eleitoral, bem como as políticas de financiamento militante.

Entretanto, quando lemos as resoluções aprovadas, fica clara a discrepância: as resoluções sobre balanço, programa, estratégia e tática são muito mais profundas, do que a resolução organizativa. E isto não ocorreu porque o tema fosse menos importante, ou fosse menos complexo. Ocorreu, na minha opinião, porque em questões estratégicas é mais fácil transformar uma resolução em letra morta. Já nas questões organizativas, é mais difícil evitar os desdobramentos práticos de uma resolução. E, por isso, houve maior resistência a aprovar resoluções que efetivamente pusessem o dedo na ferida.

A própria resolução admite isso, quando remete o tema para um novo congresso: “fica pautado para toda a militância do PT, sob coordenação da nova Direção Nacional eleita e tendo como horizonte de decisão o próximo Congresso, quando teremos a oportunidade de discutir, especificamente, nossa vida partidária”.

Como já foi dito, o 7º Congresso não fez isto. E os problemas organizativos descritos pelo 6º Congresso se agudizaram desde então. Aliás, tampouco se implementou a maior parte das demais resoluções organizativas aprovadas pelo 6º Congresso.

Uma destas resoluções determinava à Comissão de Ética nacional que “examinasse todos os casos analisados pela CEN e/ou pela Câmara de Recursos, no quais uma destas instâncias tenha deliberado a anulação total ou parcial dos resultados do PED de 9 de abril de 2017 e/ou dos Congressos Estaduais, devido à ocorrência de fraudes”. A Comissão de Ética deveria “analisar estes casos e abrir processo ético contra filiados e filiadas que sejam acusados e ou suspeitos de responsabilidade por estas fraudes”. O resultado de cada um destes processos, com as devidas sanções, deveria “ser remetido ao DN, que deliberará pelas medidas e punições cabíveis. Esta deliberação e a aplicação das devidas sanções deve ocorrer antes da elaboração da lista de filiados e filiadas que participarão do plebiscito que decidirá sobre o processo de eleição das direções”. Como sabemos e como já foi dito, nada disto foi feito. Não admira, pois, que o Congresso de 2019 tenha sido novamente marcado por denúncias de fraude. Afinal, como sabemos, crime sem pena é um estímulo.

Outra resolução conclamava o “conjunto dos filiados e das filiadas a vencer o desafio de ampliar nossa fonte própria de recursos financeiros para além dos obtidos através do Estado (Fundo Partidário) e de contribuições de detentores de mandatos, gestores (as) e assessorias, bem como a manter a determinação de estrito cumprimento de vedação ao recebimento de recursos de empresas”.

Na prática, nada mudou: o Partido segue dependendo do fundo público, como antes dependia deste e do financiamento empresarial. E -- sempre me espanto ao reler isto-- o projeto de resolução remetia para debate e deliberação posterior a “conveniência de ampliar a obrigatoriedade de quitação de obrigações financeiras de filiados e filiadas, para que exerçam o direito de voto nas eleições internas do PT”. 

Cabe lembrar quem em 2015, o 5º Congresso do PT decidiu que a contribuição financeira militante não era mais condição universal para que um filiado pudesse votar e ser votado. Ou seja: a classe dominante já estava marchando em direção ao golpe e nosso congresso partidário dizia para os filiados que não era imprescindível sustentar financeiramente o seu partido.

Fica confirmado, portanto, que a resolução organizativa do 6º congresso foi a que "não houve", "não houve" porque não se resolveu o que se deveria, e porque não se implementou nem mesmo o que foi resolvido.

Isto posto, quais são as questões que devemos enfrentar, se quisermos preencher esta lacuna? Vou citar algumas.

Primeiro: a forma de organizar a luta da classe trabalhadora deve corresponder a um determinado momento da luta de classes em um determinado país.

E se é verdade que estamos em um momento da luta de classes profundamente diferente do que prevaleceu entre 1989 e 2014, temos que mudar nossa forma de organização. Mudar no sentido de termos um partido mais militante, mais disciplinado, mais combativo e com vínculos mais orgânicos (e menos institucionais) com as classes trabalhadoras. Um partido preparado para estes tempos de guerra da classe dominante contra a classe trabalhadora.

Segundo: a classe trabalhadora precisa construir (e reconstruir, atualizando-a o tempo todo) uma interpretação própria acerca da luta de classes no terreno internacional e nacional, portanto acerca do desenvolvimento capitalista em geral e de cada formação social nacional. Se é verdade que estamos em um novo momento da luta de classes, é preciso produzir uma interpretação adequada a isto.

Embora haja no Partido muita gente que gosta de citar o Gramsci, a verdade é que não se leva muito à sério a ideia de que o Partido deva ser um intelectual coletivo. Estamos falando de construir uma “contra-elite intelectual”, vinculada organicamente à classe trabalhadora, capaz tanto de enfrentar o pensamento dominante quanto de construir uma visão de mundo adequada aos interesses da nossa classe.

A debilidade da nossa intelectualidade orgânica fica clara no caso do debate econômico travado no período em que fomos governo nacional: parte dos petistas incorporou o credo neoliberal (lembre-mo-nos de Palocci); outra parte combate o neoliberalismo a partir do credo keynesiano. Aliás, a própria ilusão de que os “economistas profissionais” são os mais habilitados para discutir e elaborar nossas alternativas é por si mesmo reveladora.

Outro exemplo de debilidade da nossa intelectualidade orgânica está na maneira como interpretamos a estrutura de classes da sociedade brasileira.

Há entre nós desde aqueles que abandonaram a luta de classes como vertebradora, tanto da ação quanto da compreensão da realidade; passando por aqueles que acreditam na luta, mas não acreditam no caráter central do conflito entre a classe trabalhadora e os capitalistas; até aqueles que corretamente reconhecem o papel central da luta de classes e do conflito capital versus trabalho, mas não atualizaram seu conhecimento da realidade, muito embora a composição de cada classe e do conjunto da estrutura social brasileira tenha sofrido mudanças importantes desde os anos 1980; ou trabalham com noções simplificadas do que é a classe trabalhadora, que é síntese de múltiplas determinações, tem uma diversidade cuja compreensão é decisiva.

No período 1989-2014, a esquerda brasileira como um todo e o PT em especial ampliaram como nunca sua influência política e institucional, mas carregando uma bagagem teórica e ideológica debilitada e as vezes parcialmente emprestada dos seus adversários. O que ajuda a explicar a perplexidade de alguns, frente ao que está ocorrendo desde o dia seguinte ao segundo turno de 2014.

Ganhamos 4 eleições presidenciais, mas sem consolidar uma maioria político-cultural a favor de mudanças estruturais. E seguimos até hoje com uma compreensão teórica extremamente defasada, muitas vezes atrapalhada pela predominância de paradigmas enferrujados e as vezes totalmente incorretos quando se trata da interpretação do capitalismo do século XXI, do balanço das tentativas de construção do socialismo no século XX e das formulações estratégicas.

Em terceiro lugar, precisamos de um partido organizado para ser poder, não para ser apenas governo.

O PT foi abrindo mão da luta pelo poder e se contentando em lutar pelo governo. Para depois de quatro eleições presidenciais, descobrirmos o óbvio: enquanto a classe dominante controlar os fatores fundamentais de poder, ela continuará dispondo dos meios seja para virar o jogo a seu favor, seja para limitar de modo estrutural nossos avanços.

Ao não entendermos nem tratarmos corretamente o tema do poder , acabamos na teoria fazendo um discurso liberal sobre ética & cidadania, ao mesmo tempo em que na prática baixamos a guarda, nos acomodamos ao modo tradicional de fazer política e – além disso—introduzimos em nosso Partido métodos inadequados de luta interna, alguns dos quais baseados na mesma mercantilização eleitoral que condenamos na sociedade.

Aceita a tese de que precisamos de um partido organizado para lutar pelo poder, é preciso enfrentar três temas vinculados: o que é o poder, quem deve conquistar o poder, como conquistar o poder.

No caso do Brasil, fazer esta discussão exige remover várias camadas de confusão. De cara, vivemos num país onde nunca houve uma grande revolução político-social, pelo menos não algo similar às várias revoluções ocorridas na França entre 1789 e 1870, nem similar a guerra de independência dos EUA e a posterior guerra civil que acabou com a escravidão, nem similar ao que ocorreu na Rússia, ou na China, ou em Cuba.

O outro lado da moeda é que nossa classe dominante aposta na modernização conservara, no acordo por cima, no pacto das elites.

Quando o PT surgiu, ele enfrentou esta tradição de conciliação e pacto; mas ao longo do tempo, fomos nos habituando, nos conformando, nos adaptando, nos domesticando – para usar uma expressão que foi notabilizada noutros tempos pelo Rui Falcão.

Hoje o PT precisa recuperar sua “indignação com tudo isto que está aí”, recuperar sua capacidade de expressar a insatisfação popular, a rebeldia plebeia, o protesto proletário. Pois se não fizermos isto, se não formos também expressão da insatisfação e rebeldia social, nos converteremos num “partido da ordem”, no sentido estrutural da palavra.

Nos anos 1990, alguns intelectuais do PT entraram na onda de estigmatizar Lenin e desidratar Gramsci, ao ponto de converterem a noção de disputa de hegemonia em “interlocução” institucional. E no lugar da visão clássica da esquerda sobre o Estado, grande parte do PT foi adotando o famoso “republicanismo”, que tem seu melhor exemplo no comportamento passivo do governo frente à atitude golpista que prevaleceu no judiciário, no Ministério Público Federal, na Polícia Federal e nas forças armadas.

De uma crítica parcialmente justa à confusão entre Partido e Estado vigente nos países socialista, alguns avançaram paradoxalmente para uma crítica ao papel dirigente do Partido frente ao Estado e terminaram subordinando o Partido ao Estado.

Esta discussão sobre a “separação entre Partido e Estado” estava em curso, no Brasil do final dos anos 1980 e nos anos 1990, no mesmo momento em que a esquerda brasileira tinha como um de seus objetivos conquistar governos. E quando chegávamos a uma prefeitura, a um governo estadual e mesmo ao governo nacional, ganhavam destaque os problemas na relação entre partido e governo. Problemas para os quais a “definição teórica” segundo a qual partido é partido, governo é governo, Estado é Estado, demonstrou-se absolutamente insuficiente. E, na prática, parcelas crescentes do PT se subordinaram aos seus governos e através deles, ao Estado.

A esquerda foi chegando ao governo e foi deixando de lado as tentativas de transformar a estrutura do Estado (leia-se: aquelas estruturas e regras de funcionamento que definem a quem o Estado realmente serve). Basta ver o que aconteceu com o orçamento participativo e mesmo as limitações de nossas conferências nacionais e conselhos, para perceber do que estou falando. Ou, então, ver o que ocorreu na relação entre nossos governos e as polícias.

Um governo é por definição refém do Estado. E quando um partido tem como única orientação estratégica disputar e vencer eleições, ele torna-se refém do governo, que é refém do Estado.

Dito de outro jeito: o Partido tende a deixar de ser uma instituição cujo objetivo é subverter a ordem, e tende a converter-se numa instituição paraestatal. Ou seja, a conversão de parcelas crescentes do partido em organismo paraestatal, organismo de um Estado construído por e a serviço de nossos inimigos de classe.

Grande parte das discussões sobre a “burocratização” do Partido, sobre sua crescente irrelevância depois que chegamos a um governo, sobre sua subordinação ao governo, assim como sobre a relação entre movimentos, partido e governo, estão relacionados a este processo de fundo, de “estatização” do Partido.

Em reação a este processo de estatização da vida partidária, há os que dizem que o problema estaria em disputar eleições e/ou que o antídoto estaria nos movimentos sociais.

Em relação ao primeiro argumento, podemos dizer que – enquanto estivermos na atual situação histórica — ele equivale a pedir para parar o mundo, para que possamos descer.

Afinal, não existe possibilidade – ao menos nas atuais condições históricas – de “escolher” não disputar eleições ou de “escolher” não dar importância para a luta de classes que se trava no terreno das instituições de Estado.

A questão está em como participar ou, de maneira mais geral, no “lugar” que a disputa eleitoral ocupa no conjunto da estratégia. O que nos conduz ao tema das lutas e movimentos sociais.

Quando o PT surgiu, dava-se uma ênfase enorme ao papel dos movimentos sociais e ao mesmo tempo havia uma subestimação do papel da luta institucional. Hoje, muitos voltam a fazer um discurso enfático sobre o papel estratégico dos movimentos sociais, como um antídoto aos nossos problemas.

Esta defesa do que alguns chamam de “volta às origens”, esconde uma armadilha lógica. A saber: se nós defendíamos exatamente aquilo mas deu nisto, por qual razão defender de novo aquilo daria agora noutro resultado, resolveria agora o problema? Dito de outro jeito, temos que responder porque “aquilo” deu “nisto”?

Não temos tempo nem espaço para apresentar aqui uma resposta adequada à tal questão, mas é possível indicar onde está um dos núcleos “teóricos” do problema.

Trata-se da confusão que se faz entre três níveis diferentes de questões: 1) o movimento social enquanto movimento real de setores ou do conjunto da classe trabalhadora; 2) o movimento social enquanto organizações, "estruturas" que expressam de maneira permanente determinados setores da classe trabalhadora; 3) o papel jogado, nos movimentos sociais, pelos militantes políticos (integrantes ou não de partidos formais) que atuam e dirigem o movimento real e/ou as organizações permanentes.

Evidente que não há caminho para o êxito da classe trabalhadora sem o concurso articulado destes três níveis. Mas, atenção, a cada tarefa seu instrumento. Olhando para a experiência histórica, não há absolutamente nenhum caso em que os “movimentos sociais” tenham resolvido o problema do “poder de Estado”, nem mesmo conquistado governos. Quem faz isto são os partidos. O exemplo da Bolívia, para tristeza de quem tem uma visão ingênua sobre o papel dos movimentos sociais, talvez seja um dos melhores exemplos disto.

Parte da confusão pode ser desfeita quando percebemos a relação que existe entre o “partido” no sentido amplo e o partido no sentido estrito da palavra. Apenas uma minoria da “militância dos movimentos sociais”, ou seja, apenas uma minoria daquelas pessoas que dirigem as organizações e os movimentos sociais, são filiadas a partidos políticos no sentido estrito da palavra. Mas todos e todas que são “militantes sociais” integram o partido no sentido amplo da palavra, ou seja, compõem o setor de vanguarda da classe trabalhadora. Em determinados momentos da história de um país, um “partido no sentido estrito” hegemoniza o “partido no sentido amplo”.

Em certa medida isto aconteceu com o PCB no período 1945/1964 e com o PT no período 1989/2014. Noutros momentos da nossa história, não houve um partido hegemônico, ou este partido estava em crise e a militância social vivia em estado de crescente dispersão.

Nestes outros momentos surge a tendência a tratar como absolutamente distintas e até antagônicas a “militância partidária” e a “militância social”. Surge também uma tendência a atribuir aos “militantes sociais” e/ou aos “movimentos sociais” tarefas de partido.

O fato é que, quando os partidos falham, apelar aos “movimentos” pode ser apenas uma maneira de não responder por qual motivo os partidos falham.

Assim, há um conjunto de questões a responder de forma articulada: qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto luta real e concreta), e qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto organizações permanentes) e qual o lugar que os militantes dos movimentos sociais têm na estratégia global de transformação do Brasil?

No fundo, só consideramos acertado falar que a “salvação está nos movimentos sociais” no sentido de que nossa estratégia só terá êxito se tiver apoio no movimento real da classe trabalhadora, se soubermos combinar formas de luta, se por exemplo estimularmos a construção de um poder alternativo e paralelo, que possibilite termos um governo que não seja refém do Estado, que permita termos um partido que não seja refém do governo.

Ou seja, a “salvação” está também nos movimentos sociais, a depender de como se articule –no contexto de uma estratégia geral– a ação do movimento real da classe, a ação das organizações da classe, a ação dos militantes que atuam nos movimentos sociais (partido amplo), a ação dos militantes partidários (partidos no sentido estrito). 

Trata-se no fundo de compreender a necessidade de organizar um contrapoder popular, algo que vai muito além da ação e luta dos movimentos sociais.

Em quarto lugar, quero falar do papel dos líderes.

Os indivíduos, especialmente as lideranças, têm um papel na história, maior ou menor. A questão é saber que tipo de relação se estabelece entre o indivíduo e o coletivo, entre as lideranças, o partido, a classe e a maioria do povo. Como tantas outras questões que tratamos aqui, não há uma resposta única, nem que seja válida para todos os tempos e situações. E, para falar a verdade, embora haja acertos, os erros cometidos a respeito disto são monstruosos.

No caso do Brasil, temos uma peculiaridade: nas últimas décadas, o processo de formação de líderes e o processo de formação de uma liderança coletiva passou, em grande medida, pelas disputas eleitorais e pelo exercício de mandatos eletivos, o que resultou em determinado tipo de relação entre as lideranças, o partido e a classe.

Como não criamos antídotos, foi crescendo o poder unipessoal dos que estão em executivos e também o cretinismo no parlamento (para citar um cidadão conhecido, o cretinismo parlamentar consistia “numa espécie de delírio que acometia as suas vítimas, as quais acreditavam que todo o mundo, o seu passado e o seu futuro se governavam por uma maioria de votos ditada por aquela assembleia (…) e tudo o que se passava fora daquelas quatro paredes muito pouco ou nada significavam ao lado dos debates importantes“).

Isto nos remete a discussão sobre como garantir a democracia no interior do Partido. O tema inclui o controle da direção pelas bases, o controle dos mandatários pela direção, as estruturas, o funcionamento e o financiamento do Partido, sua relação com a militância social, com a classe e com a maioria do povo.

Há um imenso debate a respeito de como fazer isto, envolvendo questões como partido de massas e de quadros, partido de vanguarda e “centralismo democrático”, papel das direções e direito de tendências, existência e papel de funcionários e profissionalizados (o que no caso da atual esquerda brasileira envolve não apenas a burocracia partidária, mas também a sindical, parlamentar e governamental), funções e poderes dos organismos de base (núcleos, setoriais, células), formação e comunicação partidárias etc. Trata-se de um debate tão apaixonante, pelo menos para os que somos dirigentes na ativa ou na reserva, que é comum perdermos de vista a natureza essencialmente política do problema.

Um dos partidos mais interessantes da Europa no século XX foi o Partido Comunista Italiano. Viveu experiências tremendas (revolução, ascensão do fascismo, guerra de guerrilhas, lutas sociais e parlamentares), construiu uma interpretação acerca da Itália e do mundo (vide Gramsci), possuía uma vida interna pujante, base de massas, força na classe trabalhadora… e desapareceu, suicidou-se. 

A tragédia é detalhadamente descrita no livro O alfaiate de Ulm, de Lucio Magri. Livro que deveria ser leitura obrigatória para todo petista. Até porque nos permite perceber algo muito interessante: a crise de um partido que tem enorme importância não é um fenômeno singular, faz parte da crise mais geral de todo um sistema político.

Nosso PT tem infinitos problemas organizativos, alguns muito superiores aos de outros partidos que desapareceram na poeira da história. Dou como exemplo a situação de nossa comunicação, o déficit de formação política, o esfacelamento dos núcleos de base, o enfraquecimento da ligação de parcelas de nosso partido com a vida e a luta cotidiana dos trabalhadores, a dependência frente aos recursos financeiros públicos etc. Esta situação nos empurra, como é óbvio, a dar aos problemas organizativos um papel destacado; mas por “problemas organizativos” não devemos entender apenas ou principalmente temas técnicos, administrativos, regras e estatutários.

A questão organizativa é uma questão política. Como dizia o velho russo, a organização é política concentrada. Noutros termos, os problemas organizativos do PT não serão resolvidos, se não resolvermos nossos problemas políticos. O Partido precisa de uma nova estratégia política, no sentido amplo da palavra. E esta nova estratégia precisa se materializar em outro padrão de funcionamento e organização do Partido. Que recupere nossos vínculos com a classe e nossa condição de partido militante. Socialista e revolucionário.

Obrigado

 

 

 

 

 

 

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