segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Aula de abertura do curso capitalismo e luta pelo socialismo no século XXI

 (texto sem revisão)

Aula de abertura do curso

Boa noite a todos.

Boa noite a todas.

Boa noite a quem está nos acompanhando aqui, nesta sala zoom.

Boa noite a quem estiver nos assistindo on-line.

Cumprimento também a quem nos assistir em outro momento.

Meu nome é Valter Pomar.

Sou professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC.

E integro a equipe de professores voluntários da Escola Latinoamericana de história e política.

Hoje vamos dar início a mais um curso da Elahp.

Este curso intitula-se “O capitalismo e a luta pelo socialismo no século XXI”.

O curso será oferecido em três módulos independentes, que para vários efeitos serão cursos autônomos entre si:

-um sobre o capitalismo, com 6 aulas;

-outro sobre o capitalismo latino-americano, com 7 aulas;

-e outro sobre capitalismo e a luta pelo socialismo no século XXI, também com 7 aulas.

Ao todo, portanto, 20 aulas, cada uma com 2 horas de duração.

Em cada aula se espera que haja cerca de uma hora e meia de palestra e meia hora para debater com os alunos.

O objetivo geral do curso é discutir o capitalismo e a luta pelo socialismo; noutras palavras, discutir em detalhe a situação, as contradições e as perspectivas do capitalismo em cada momento de sua história, e as implicações que isto trouxe e segue trazendo para a luta pelo socialismo.

Embora certamente vocês já tenham lido, ainda assim considero necessário falar para vocês do que pretendemos tratar em cada aula e, também, sobre quem serão nossos professores e professoras.

Hoje, dia 14 de setembro, além de fazer uma apresentação geral do curso, eu também vou fazer uma introdução ao tema, falando de “O capitalismo: história, situação, contradições e perspectivas”.

Nos dias 15 e 16 de setembro, o Mateus Santos e o Breno Altman falarão da “geopolítica do capitalismo”.

O Mateus, historiador formado pela UFBA, abordará o período que se estende dos séculos XI ao XVIII.

Já o Breno falará da “geopolítica do capitalismo em sua fase imperialista”.

No dia 17 de setembro contaremos com a professora Joana Salen.

Sua aula versará sobre a “sociologia do capitalismo: capitalistas, assalariados e outros setores sociais”, ou seja, sobre classes sociais e capitalismo.

No dia 18, o Victor Schincariol – professor de economia da UFABC -- falará da “dinâmica do capitalismo: finanças, bens de capital, bens de consumo, tecnologia”.

No dia 19, eu voltarei a dar aula, desta vez sobre “a economia política e a crítica da economia política”.

E nesse ponto encerraremos o curso ou módulo 1 e daremos início ao curso ou módulo 2, que abordará o capitalismo latino-americano.

No dia 21 de setembro, o professor Ramon Vicente Garcia Fernandez falará sobre “a economia política clássica e a América Latina”. O professor Ramon é nosso colega na UFABC.

No dia 22 de setembro, a professora Olivia Carolino, da PUC-SP, falará sobre Marx, Engels e a América Latina.

No dia 23 de setembro, a professora Virginia Fontes, da Universidade Federal Fluminense, falará acerca do debate sobre o imperialismo e a América Latina.

No dia 24 de setembro, estava prevista uma aula da professora Cristina Reis, da UFABC, mas tivemos que fazer uma substituição e por indicação da própria Cristina, aceitou muito gentilmente contribuir com o nosso curso, para falar do capitalismo pós-Segunda Guerra, o keynesianismo e a América Latina, o professor Guilherme Magacho, Doutor pela Universidade de Cambridge, Economista na Agence Française de Développement (Agencia Francesa de Desenvolvimento) e Professor do PPGE da UFABC.

No dia 25 de setembro, a professora Laura Tavares abordará o neoliberalismo e a América Latina.

No dia 26 de setembro, as Teorias latino-americanas do desenvolvimento, do subdesenvolvimento e da dependência serão tratadas pela Profa. Fernanda Cardoso, também da UFABC.

E no dia 27 de setembro, o Breno Altman encerrará o segundo curso, ou segundo módulo, falando da “experiência dos governos progressistas no século XXI”.

Começará então o curso III: “o capitalismo e luta pelo socialismo no século XXI”

A primeira aula, no dia 28 de setembro, está a cargo da economista Juliane Furno, que falará da “crise dos anos 1970 e o surgimento do capitalismo neoliberal”.

No dia 29 de setembro, nosso tema será o fim da URSS e seu impacto na luta pelo socialismo. O tema estará a cargo do Breno Altman.

No dia 30 de setembro, será a vez do socialismo de mercado chinês e seu impacto na luta pelo socialismo. O tema estará a cargo da Profa. Valéria Lopes Ribeiro, da Federal do ABC.

No dia 1 de outubro, o professor Arturo Guillen nos falará, diretamente do México, sobre a crise de 2008 e o debate sobre o presente e o futuro do capitalismo. 

 

No dia 2 de outubro, será a vez de debatermos as “Alternativas capitalistas ao capitalismo”, tema que estará sob responsabilidade da Profa. Maria Carlotto.

 

No dia 3 de outubro, a professora Monica Bruckman tratará da economia política do capitalismo contemporâneo e as perspectivas da América Latina.

 

E no dia 4 de outubro, eu darei a aula final do curso, tratando das “ Alternativas socialistas ao capitalismo”.

 

Destaco, como sempre, que cada professor da Elahp tem total liberdade acadêmica para tratar dos assuntos.

 

O que na prática significa que – embora todos façamos parte de um mesmo campo político e teórico, a oposição de esquerda e os que reconhecem o marxismo como uma referência fundamental para a luta da classe trabalhadora – não necessariamente coincidimos na interpretação dos temas que serão tratados em cada uma das aulas deste curso.

 

*

Isto posto, gostaria de abrir o curso, falando do capitalismo: história, contradições, situação e perspectivas.

 

O capitalismo é produto de uma longa evolução histórica; portanto, mais cedo ou mais tarde, sob formas que podemos imaginar ou que podem nos surpreender, o capitalismo também será superado historicamente por outro modo de produção e reprodução da vida social.

 

Entretanto, mesmo que seja chover no molhado, considero essencial começar por aí, pois como amante da ficção e da fantasia científica, sei bem o quanto é forte a hegemonia do capitalismo.

 

Forte e insidiosa: é mais fácil encontrarmos obras onde desaparecem o mundo e a civilização, do que obras onde o capitalismo desaparece.

 

Há várias explicações para esta hegemonia ideológica do capitalismo, mas uma delas me parece importante citar no início desta aula.

 

A evolução da humanidade está diretamente ligada à produtividade do trabalho, ou seja, à capacidade da humanidade transformar a natureza (inclusive transformar a própria humanidade) através do trabalho prático, das descobertas científicas e das revoluções tecnológicas.

 

Da primeira ferramenta ao mais sofisticado computador, o desenvolvimento dos meios de produção é elemento central não só no aumento da produtividade, como na transformação da própria sociedade.

 

Por óbvio, o aumento da produtividade é o elemento central no aumento da riqueza material.

 

O capitalismo coloca um dreno e um bloqueio neste processo: o aumento da produtividade e da riqueza material converte-se, para o capitalismo, em um meio para a valorização e acumulação de capital, ao mesmo tempo que descarta, de forma crescente, o trabalho vivo do processo produtivo.

 

Observado deste ponto de vista, o capitalismo parece se confundir inteiramente com o progresso humano, ou seja, parece se confundir com o processo histórico que faz a humanidade se diferenciar da natureza.

 

Essa confusão é tão grande, que gera -- em alguns críticos do capitalismo – uma postura crítica ao progresso em geral, como se o único progresso possível fosse o de tipo capitalista; e como se o capitalismo fosse mesmo idêntico ao progresso.

 

Assim como gera, por outro lado, o fenômeno que comentei antes: nas ficções e nas fantasias científicas, o capitalismo sobrevive sempre, mesmo que seja como morto vivo, sob a forma de uma rede de máquinas postas a explorar os seres humanos.

 

O interessante é que a identidade entre progresso e capitalismo é real, mas é em si mesma histórica.

 

Ou seja, o capitalismo efetivamente foi – durante um bom tempo – um modo de produção que ampliou o progresso humano, com os custos e com as formas abomináveis que conhecemos.

 

Mas com o passar do tempo, o processo de expansão do capitalismo começa a entrar em crescente contradição com o progresso da humanidade, inclusive porque o capitalismo descarta do processo produtivo parcelas crescentes da humanidade, os impedindo inclusive de participar da dinâmica capitalista estrito senso.

 

Como em qualquer processo real, esta contradição existe desde há muito, vai se manifestando com cada vez mais intensidade, até que gera crises brutais, através das quais vão emergindo soluções para esta contradição, soluções que não fazem a contradição desaparecer automaticamente da face da terra, que pelo contrário vão criando novas contradições e assim por diante.

 

O fio vermelho da “economia política socialista” – melhor seria dizer, o fio vermelho da crítica marxista à economia política burguesa – é exatamente o estudo destas contradições.

 

Ao contrário dos utópicos, que condenam o capitalismo desde fora, a partir de crenças as mais diversas; e ao contrário da teoria econômica vulgar, que projeta uma acumulação capitalista eterna; a tradição marxista descobre que o capitalismo está historicamente condenado por suas próprias contradições internas, assim como descobre – este é o lado bom desta história – que o capitalismo também gera a solução para suas próprias contradições.

 

Noutros termos, as forças produtivas têm a capacidade de atender a todas as necessidades sociais e as relações de produção impedem o acesso a tal capacidade.

 

Dissemos que a tradição marxista descobre que o capitalismo está historicamente condenado por suas próprias contradições internas, mas não dissemos que a tradição marxista “prova”, porque a prova neste caso será dada se e quando o capitalismo for efetivamente superado por outro modo de produção e reprodução da vida social.

 

O emocionante no caso é que quando mais perto chegamos desta superação, mais perto chegamos também de uma outra alternativa posta a qualquer “organismo vivo”. Neste caso, estamos falando da “destruição das classes em luta”, a destruição do capitalismo e da humanidade, a destruição da humanidade pelo capitalismo.

 

Dito de outra forma, a superação do capitalismo por outro modo de produção é possível, na exata medida em que as contradições do capitalismo se tornam cada vez mais explosivas, impedindo a sua reprodução e, com isso, causando crises cada vez mais profundas, que por um lado tornam necessário uma superação comunista e, por outro lado, tornam possível a catástrofe mais absoluta, a “incineração universal” tão comum na science fiction (e em certas tradições religiosas).

 

Menos emocionante, mas certamente paradoxal, é o fato de que as vitórias parciais dos que lutam contra o capitalismo, têm como efeito contribuir para reduzir temporariamente a intensidade daquelas contradições e, com isso, aumentar a sobrevida do capitalismo.

 

A existência do socialismo de tipo soviético, por exemplo, foi fundamental para a redução das contradições intercapitalistas entre 1945 e 1991; assim como a existência do socialismo de mercado chinês contribuiu para a dinâmica supostamente virtuosa da economia global em alguns momentos do período 1991-2008.

 

E, de maneira mais geral, a luta dos trabalhadores por maiores salários, menores jornadas e melhores direitos constitui um acicate permanente para o capitalismo avançar.

 

Esta dinâmica –de uma tendência principal e várias contratendências— é que constitui a base da famosa afirmação segundo a qual “nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém”.

 

Ou, noutra versão da mesma ideia, aquela segunda a qual o limite do Capital é o próprio Capital.

 

Isto posto, afirmado o caráter histórico e o caráter contraditório do capitalismo, em que situação estamos e quais as perspectivas?

 

O primeiro que devemos reconhecer é que nunca o mundo foi tão capitalista quanto hoje. Pois mesmo na China, no Vietnã e em Cuba, há forte presença das relações capitalistas de produção. Não falo aqui da Republicar Popular e Democrática da Coreia, pois para a grande maioria das pessoas, aquela sociedade é uma ilustre desconhecida (recomendo, a respeito, o curso recentemente concluído, na Elahp, sobre a chamada Coréia do Norte). Mas seja como for, isto não altera o argumento.

 

O segundo ponto que devemos reconhecer é que, hoje, parte importante da acumulação capitalista se dá na dinâmica financeiro. Isto é um sintoma de que a riqueza acumulada é tão grande, que se for totalmente reaplicada no processo de produção de mercadorias, reduziria a rentabilidade global.

 

Notem que esta situação é um sinal da dissociação extrema existente, hoje, entre a exploração do trabalho & valorização do capital vis a vis a ampliação da produtividade & da riqueza material.

 

A valorização do capital é, naquele sentido explicado antes, um bloqueio sistêmico, um freio de mão puxado que reduz a marcha da ampliação da produtividade global. Novamente, o desenvolvimento das forças produtivas entra em choque com as relações de produção.

 

Decorre desta situação uma pressão extraordinária sobre a classe trabalhadora, sobre as nações periféricas e sobre os chamados recursos naturais. Pois para aplicar produtivamente massas tão grandiosas de capital, é preciso reduzir a limites mínimos o valor da força de trabalho e voltar a certos métodos que foram tão úteis na acumulação primitiva.

 

Visto de conjunto, se constitui uma situação paradoxal: os problemas são cada vez mais globais, existem os recursos e os meios para resolver estes problemas, mas o capitalismo impõe crescentes limites para a solução desses problemas que ele mesmo gera.

 

O que é equivalente a dizer, repito, que a expansão das forças produtivas entra em choque com as relações de produção, abrindo uma era de revolução social.

 

Ou, se quisermos usar um termo mais “moderno” e menos comprometedor, abrindo um momento de crise sistêmica.

 

Isso que chamamos de “crise sistêmica” -- ou seja, a conjugação orgânica de inúmeras crises: ambiental, sanitária, social, econômica, política, nacional, geopolítica, cultural – é a crise sistêmica de uma sociedade capitalista, ou seja, de uma sociedade organizada pela dinâmica da acumulação de capital.

 

O núcleo desta crise sistêmica é a crise de acumulação, ou seja, a crescente dificuldade que o capitalismo enfrenta para se reproduzir de forma ampliada.

 

Essa crescente dificuldade não impede que haja acumulação e inclusive expansão do capital, mas gera contra tendências muito poderosas.

 

Por conta disso, cada ciclo de acumulação do capital exige um esforço relativamente maior, para produzir um resultado proporcionalmente menor, gerando ao mesmo tempo resíduos cada vez mais tóxicos.

 

A crise ambiental, a crise sanitária, a crise social, a crise política, a crise geopolítica e inclusive a crise cultural que nós estamos experimentando são, a rigor, desdobramentos diretos ou indiretos desta dinâmica de acumulação de capital.

 

Claro que o capitalismo é um modo de produção “crísico”, que evolui graças e através de suas contradições internas.

 

Neste sentido, a crise, o desequilíbrio, a desarmonia, são o estado permanente do capitalismo.

 

Entretanto, mais ou menos como acontece numa usina nuclear, em condições normais a explosão é evitada por contra tendências, tais como a existência de novas fronteiras de expansão, a existência da competição intercapitalista e, inclusive, as conquistas da classe trabalhadora.

 

Entretanto, estes fatores evitam a explosão apenas temporariamente, produzindo uma ameaça futura ainda maior.

 

Mas há circunstâncias históricas em que ocorre um “efeito cascata”, uma sequência de acontecimentos que neutraliza as contra tendências e empurra o sistema para uma espécie de “crise perfeita”, a tal crise sistêmica.

 

Foi o que aconteceu na primeira metade do século XX e que incluiu a Grande Guerra de 14-18, a crise de 29, a ascensão do nazifascismo e a Segunda Guerra Mundial.

 

Hoje, está ocorrendo algo parecido, com a diferença que o capitalismo se globalizou muito mais e é predominante em quase todos os países. Ou seja: estamos diante de uma crise sistêmica mundial mesmo.

 

Considerando a história pregressa, existem três desfechos possíveis para este tipo de situação.

 

O primeiro deles é o colapso geral da sociedade, uma espécie de Armagedon laico.

 

O segundo desfecho possível é que, da atual crise sistêmica, brote um novo ciclo de experiências socialistas. O que inclusive poderia gerar dinâmicas como as citadas anteriormente, em que a existência do socialismo em partes do planeta contribui, paradoxalmente, para prolongar o tempo de vida do capitalismo noutras partes do planeta.

 

O terceiro desfecho possível é um novo ciclo longo de expansão capitalista. Lembrando que os anteriores ciclos longos de expansão, no capitalismo, não foram tão longos assim.

 

1850-1900, 1946-1970, 1980-2008.

 

Entretanto, para que ocorra este terceiro desfecho, um novo ciclo longo, não basta o que já está acontecendo, não basta aprofundar a concentração e centralização de capitais, não basta aprofundar a exploração da classe trabalhadora, não basta aprofundar a exploração das periferias pelos centros, não bastam as mudanças tecnológicas que já vem ocorrendo.

 

Tudo isto que já está ocorrendo, é neste momento fator causante da crise sistêmica. As mudanças tecnológicas, por exemplo, incrementam as contradições capitalistas.

 

Para que ocorra um novo ciclo longo de expansão, seria necessário OU bem a abertura de uma nova fronteira de investimentos (como a exploração do fundo do mar, a exploração do espaço); OU bem uma reconstrução em larga escala (o que, por sua vez, pressuporia uma grande destruição prévia, ao estilo do que foi a Segunda Guerra).

 

Isto é possível?

 

A Guerra é plenamente possível e cada vez mais provável.

 

Uma nova fronteira de expansão é possível, mas é menos provável.

 

Agora, atenção: quando falamos que existem três grandes desfechos possíveis, podemos passar a impressão de que estamos diante de variantes que se excluem.

 

Ou a barbárie absoluta, ou o capitalismo, ou o socialismo.

 

Mas do ponto de vista histórico, é possível e talvez seja correto dizer que é provável que estas variantes, ou algo parecido com elas, coexistam simultaneamente.

 

Ou seja, ao mesmo tempo que parte da humanidade é empurrada para um capitalismo com cada vez mais barbárie, outra parte esteja buscando realizar uma transição socialista com cada vez menos capitalismo.

 

Noutros termos, o capitalismo pode sobreviver em condições de cada vez maior barbárie social. Seria uma confirmação de que a vida imita a arte, pois é disso que fala boa parte da ficção e da fantasia científica produzida nas últimas décadas.

 

Portanto, não devemos esperar que o capitalismo algum dia desapareça, como fazem os Jedi quando são mortos, abrindo espaço para que no day after, numa terra livre de todos os males, possamos construir outra ordem social.  

Esse tipo de visão idílica, que nos empurra a considerar possível e desejável um mundo sem contradições de nenhum tipo, onde não resta nada da herança do passado, fez muito mal e segue fazendo muito mal à tradição socialista.

 

Cabe lembrar que o capitalismo não é uma coisa, não é um objeto.

 

O capitalismo é uma relação social entre capitalistas e assalariados, entre proprietários de trabalho morto e proprietários de trabalho vivo.

 

Esta relação social não vai ser abolida, ela pode (e acreditamos que vá) se extinguir.

 

Mas esta relação social só será superada quando aqueles seres humanos que são produtores das riquezas, criarem as condições para decidir o que produzir, como produzir, quando produzir, quanto produzir e como distribuir as riquezas.

 

Ou seja, uma relação social será superada por outra relação social.

 

E há duas pré-condições para que este novo tipo de relação social, baseada na livre associação dos produtores, possa se materializar:

1/a natureza coletiva do processo produtivo e

 

2/o aumento da produtividade humana.

 

Não tem como existir gestão coletiva, numa sociedade de pequenos produtores independentes entre si, de aldeias que vivem isoladas umas das outras.

 

O capitalismo, ao tornar cada vez mais interdependente o processo produtivo, tornou possível a gestão coletiva deste processo.

 

Ao mesmo tempo, ao fomentar de maneira permanente o aumento da produtividade, o capitalismo criou a possibilidade de que a humanidade possa se libertar da escassez absoluta, possa trabalhar cada vez menos, tenha o tempo e os meios necessários para reorganizar a vida social de uma maneira cada vez mais humana.

 

Portanto, o capitalismo contribui na criação das duas pré-condições de sua própria superação: a natureza coletiva do processo produtivo e o aumento da produtividade humana.

 

Vale sempre lembrar que, no capitalismo, estas duas pré-condições estão vinculadas contraditoriamente entre si e se materializam, ao menos em parte, nas características concretas do chamado proletariado, seja na sua força de trabalho, na sua capacidade produtiva, na sua organização coletiva, seja também no lado B do proletariado, ou seja, tanto naqueles traços que caracterizavam “o povo do abismo”, no livro O tacão de ferro de Jack London; quanto no comportamento individualista de algumas camadas melhor remuneradas.

 

Faço esta referência para deixar claro que as duas pré-condições da superação do capitalismo -- a natureza coletiva do processo produtivo e o aumento da produtividade humana -- não são condições sobrenaturais, nem estritamente técnicas ou materiais. São pré-condições humanas, portanto sociais e, portanto, históricas,

 

Por óbvio, o capitalismo cria estas pré-condições de maneira... capitalista, ou seja, com um enorme custo social, ambiental, psíquico, com enorme desperdício de recursos, humanos e materiais, criando contradições imensas, que desembocam por exemplo em desemprego estrutural, em guerras, em devastação ambiental.

 

Como dissemos no início, a natureza coletiva do processo produtivo coexiste com uma anarquia cada vez mais brutal na sociedade; e o aumento da produtividade coexiste com efeitos colaterais que desperdiçam parte importante da produtividade potencial.

 

Até por isso, para superar o capitalismo, não basta a presença daquelas duas pré-condições.

 

É preciso, também e principalmente, que apoiada naquelas pré-condições se construa, na sociedade capitalista, mas contra o capitalismo, uma contramola com a disposição e a energia necessárias para reorganizar a vida social.

 

E mesmo que esta contramola triunfe politicamente, será necessário um determinado tempo, será necessário um processo histórico para superar plenamente as relações capitalistas; um processo histórico de transição, que em alguns casos sabemos como começou e noutros casos podemos supor como pode começar, mas que não temos como prever quando tempo durará, que formas poderá assumir e nem mesmo sabemos como terminará.

 

Em resumo, o capitalismo não será superado pela sua própria crise; o capitalismo não será superado num dia mágico; o capitalismo só poderá ser superado no curso de uma revolução social de longa duração, no curso daquilo que se convencionou chamar de transição socialista, onde continuarão existindo, por um longo tempo, relações capitalistas de produção.

 

Estas relações capitalistas sobreviventes podem estar encobertas, como no socialismo soviético; podem ser explícitas, como no socialismo de mercado chinês; ou podem aparecer sob outras formas, a depender das diferentes modalidades de transição socialista que ainda venham a surgir.

 

Sendo evidente que só estaremos diante de uma transição socialista, se estas relações capitalistas sobreviventes forem submetidas a um crescente controle social, que inicialmente e por bom tempo será feito através do Estado, sob comando socialista.

 

O que é algo similar, mas com sentido diferente, ao que ocorreu, desde o século 18, com as relações não capitalistas de produção, que foram submetidas a crescente controle social por parte dos capitalistas, também utilizando para isto o Estado, neste caso sob comando dos capitalistas.

 

Vale lembrar que foi graças a revolução socialista que países como Rússia e China conseguiram eliminar os obstáculos (feudais, coloniais, imperiais etc.) que travavam o desenvolvimento das forças produtivas, inclusive das forças produtivas capitalistas.

 

Daí decorre que a essência da luta contra o capitalismo, a essência da luta pelo socialismo, está na luta política, está na luta da classe trabalhadora pelo poder, com o objetivo de usar este poder para controlar os meios de produção, para alterar as relações sociais, e tudo que isso implica em termos de igualdade, liberdade e atendimento a todas as necessidades da sociedade humana.

 

Se é verdade que a superação do capitalismo é um longo processo revolucionário, o ponto de partida desta revolução social, o fio condutor desse processo de transformação estrutural, é uma revolução política.

 

Por isso, os que negam e os que minimizam a necessidade da revolução política, não estão escolhendo um caminho supostamente mais lento para chegar ao socialismo.

 

Os que negam ou minimizam o papel da revolução política na luta pelo socialismo, estão na verdade escolhendo um caminho que não levará ao socialismo.

 

Estão abrindo mão – consciente ou inconscientemente – da luta pelo socialismo.

 

Mas a luta política em si mesma se dá a partir das condições objetivas e subjetivas existentes; e, portanto, voltamos ao ponto de partida: em que situação estamos?

 

Responder a esta pergunta é responder qual o grau de desenvolvimento capitalista existente, não apenas no mundo como um todo, mas também em cada sociedade em particular. Afinal, se não resta dúvida de que a luta contra o capitalismo é uma luta mundial, tampouco resta dúvida de que o ponto de partida desta luta mundial são revoluções que, ao menos num primeiro momento, são nacionais. Lembrando que compreender o nacional é, também, compreender o lugar de cada sociedade particular na divisão social do trabalho.

 

E neste ponto deparamos com um paradoxo: as revoluções socialistas, no século XX, não ocorreram onde o capitalismo estava mais desenvolvido materialmente. E isto ocorreu assim, porque as

pré-condições objetivas e subjetivas de uma transição socialista não evoluem de maneira sincronizada.

 

Esta não era a visão predominante, entre os partidos da socialdemocracia (1889-1914).

 

A visão predominante era a de que a transição socialista ocorreria primeiro onde o capitalismo estivesse mais desenvolvido materialmente, onde não apenas existissem melhores condições objetivas para implantar a propriedade social dos meios de produção, mas também onde existiria uma classe dos trabalhadores assalariados que seria maioria na sociedade.

 

Portanto, se fosse necessário usar a “mão dura” contra os capitalistas, isso seria expressão da vontade democrática da maioria contra a resistência de uma minoria, minoria que devia ser impedida de voltar a ser dominante, opressora e exploradora.

 

E como, supostamente, o capitalismo já teria desenvolvido previamente as forças produtivas, a transição socialista cuidaria apenas da socialização da propriedade e da adequada distribuição das riquezas.

 

Ademais, como os países mais desenvolvidos eram exatamente aqueles que mais faziam guerra contra os demais, o progresso da revolução socialista causaria também a ampliação da paz mundial.

 

Em resumo, seria “tudo de bom”: uma revolução essencialmente democrática e uma transição socialista extremamente rápida, em condições de crescente paz.

 

Acontece que, como já dissemos, esta concepção não foi confirmada pelos acontecimentos do século XX.

 

A revolução não aconteceu naqueles países onde o capitalismo era mais desenvolvido.

 

A revolução não aconteceu naqueles países onde a classe trabalhadora assalariada era maioria.

 

A revolução não aconteceu naqueles países que concentravam os maiores recursos bélicos.

 

Pelo contrário, no século XX as revoluções ocorreram e foram vitoriosas onde o capitalismo era relativamente menos desenvolvido, onde a classe trabalhadora assalariada era minoria numérica e em países que, durante e depois da revolução, foram submetidos a cerco, a sabotagem e a guerras, contribuindo assim para transições socialistas cheias de defeitos, imperfeições e problemas.

 

Defeitos, imperfeições e problemas que estão vinculadas a algo muito simples: foram estas revoluções socialistas que conseguiram eliminar as travas que impediam o desenvolvimento das relações capitalistas de produção; neste sentido, foi a transição socialista que fez aquilo que deveria ter sido feito, no mundo da teoria abstrata, por revoluções capitalistas. Por exemplo, a expansão do assalariamento e da industrialização.

 

Este percurso imprevisto produziu, no movimento socialista, dois tipos fundamentais de reação:

 

1/os que consideravam que um socialismo deste tipo não seria socialismo, pois não correspondia ao que está previsto “no livro” e, como sabemos, “contra argumentos, não há fatos” (um jeito de pensar dogmático típico das religiões);

 

2/os que consideravam que aquele tipo de socialismo era o verdadeiro socialismo, modelo para os demais (convertendo a heterodoxia em nova ortodoxia, numa dinâmica mental que é pouco marxista e, como nos referimos antes, muito religiosa).

 

Mais de 100 anos depois da primeira revolução socialista vitoriosa, uma das questões postas sobre a mesa é exatamente: em que ponto a corrente capitalista-imperialista poderá romper outra vez? Será que, desta próxima vez, as nações mais desenvolvidas do ponto de vista econômico serão afetadas?

 

Notem que esta questão está ligada a outra: a extensão, a profundidade, as características e as alternativas que estão sendo gestadas, durante a presente crise sistêmica, para garantir a sobrevivência do capitalismo.

 

Notem, também, que batalha geopolítica e geoeconômica que está em curso, protagonizada por Estados Unidos e China, introduz elementos novos – especialmente devido ao nível de desenvolvimento da China.

 

Seja como for, quero frisar algo que pode parecer óbvio: não é a clarividência intelectual, nem o engajamento militante, que geram rupturas sistêmicas. Tais rupturas são, no fundamental, produto das próprias contradições do sistema, dos limites objetivos do próprio capitalismo.

As vanguardas antisistêmicas são decisivas para definir o desfecho, mas não para produzir o processo.

 

Nesse sentido, boa parte do curso está organizado para pensar em que situação objetiva estamos, em que pé estão as contradições do capitalismo.

 

Comecei e agora vou terminar chovendo no molhado mais uma vez.

 

Se existe um bom momento para iniciar novas tentativas de transição socialista, é exatamente em momentos de crise sistêmica, em que o capitalismo demonstra todos os seus problemas.

 

Aliás, não conheço um único caso em que revoluções socialistas vitoriosas tenham ocorrido em condições ótimas de temperatura e pressão.

 

Assim como não conheço nenhuma transição socialista que tenha iniciado em tempos de funcionamento normal e exitoso do capitalismo.

 

Neste sentido, o que vamos debater ao longo deste curso não é uma questão para deleite acadêmico, é uma questão com imensas implicações práticas.

 

Obrigado pela atenção e agora vamos as perguntas e ao debate.

 

 

 

 

 

 

 

 

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