(texto sem revisão)
Aula de
abertura do curso
Boa noite a
todos.
Boa noite a
todas.
Boa noite a quem
está nos acompanhando aqui, nesta sala zoom.
Boa noite a
quem estiver nos assistindo on-line.
Cumprimento também
a quem nos assistir em outro momento.
Meu nome é
Valter Pomar.
Sou professor
de relações internacionais na Universidade Federal do ABC.
E integro a
equipe de professores voluntários da Escola Latinoamericana de história e
política.
Hoje vamos
dar início a mais um curso da Elahp.
Este curso
intitula-se “O capitalismo e a luta pelo socialismo no século XXI”.
O curso será
oferecido em três módulos independentes, que para vários efeitos serão cursos
autônomos entre si:
-um sobre o
capitalismo, com 6 aulas;
-outro sobre
o capitalismo latino-americano, com 7 aulas;
-e outro
sobre capitalismo e a luta pelo socialismo no século XXI, também com 7 aulas.
Ao todo,
portanto, 20 aulas, cada uma com 2 horas de duração.
Em cada aula
se espera que haja cerca de uma hora e meia de palestra e meia hora para debater
com os alunos.
O objetivo
geral do curso é discutir o capitalismo e a luta pelo socialismo; noutras
palavras, discutir em detalhe a situação, as contradições e as perspectivas do
capitalismo em cada momento de sua história, e as implicações que isto trouxe e
segue trazendo para a luta pelo socialismo.
Embora certamente
vocês já tenham lido, ainda assim considero necessário falar para vocês do que
pretendemos tratar em cada aula e, também, sobre quem serão nossos professores
e professoras.
Hoje, dia 14
de setembro, além de fazer uma apresentação geral do curso, eu também vou fazer
uma introdução ao tema, falando de “O capitalismo: história, situação,
contradições e perspectivas”.
Nos dias 15 e
16 de setembro, o Mateus Santos e o Breno Altman falarão da “geopolítica do
capitalismo”.
O Mateus,
historiador formado pela UFBA, abordará o período que se estende dos séculos XI
ao XVIII.
Já o Breno
falará da “geopolítica do capitalismo em sua fase imperialista”.
No dia 17 de
setembro contaremos com a professora Joana Salen.
Sua aula versará
sobre a “sociologia do capitalismo: capitalistas, assalariados e outros setores
sociais”, ou seja, sobre classes sociais e capitalismo.
No dia 18, o Victor
Schincariol – professor de economia da UFABC -- falará da “dinâmica do
capitalismo: finanças, bens de capital, bens de consumo, tecnologia”.
No dia 19, eu
voltarei a dar aula, desta vez sobre “a economia política e a crítica da
economia política”.
E nesse ponto
encerraremos o curso ou módulo 1 e daremos início ao curso ou módulo 2, que abordará
o capitalismo latino-americano.
No dia 21 de
setembro, o professor Ramon Vicente Garcia Fernandez falará sobre “a economia
política clássica e a América Latina”. O professor Ramon é nosso colega na
UFABC.
No dia 22 de
setembro, a professora Olivia Carolino, da PUC-SP, falará sobre Marx, Engels e
a América Latina.
No dia 23 de
setembro, a professora Virginia Fontes, da Universidade Federal Fluminense,
falará acerca do debate sobre o imperialismo e a América Latina.
No dia 24 de
setembro, estava prevista uma aula da professora Cristina Reis, da UFABC, mas tivemos
que fazer uma substituição e por indicação da própria Cristina, aceitou muito
gentilmente contribuir com o nosso curso, para falar do capitalismo pós-Segunda
Guerra, o keynesianismo e a América Latina, o professor Guilherme Magacho, Doutor
pela Universidade de Cambridge, Economista na Agence Française de Développement
(Agencia Francesa de Desenvolvimento) e Professor do PPGE da UFABC.
No dia 25 de
setembro, a professora Laura Tavares abordará o neoliberalismo e a América
Latina.
No dia 26 de
setembro, as Teorias latino-americanas do desenvolvimento, do subdesenvolvimento
e da dependência serão tratadas pela Profa. Fernanda Cardoso, também da UFABC.
E no dia 27
de setembro, o Breno Altman encerrará o segundo curso, ou segundo módulo,
falando da “experiência dos governos progressistas no século XXI”.
Começará então
o curso III: “o capitalismo e luta pelo socialismo no século XXI”
A primeira
aula, no dia 28 de setembro, está a cargo da economista Juliane Furno, que
falará da “crise dos anos 1970 e o surgimento do capitalismo neoliberal”.
No dia 29 de setembro, nosso tema será o fim da URSS e seu impacto na luta pelo socialismo. O tema
estará a cargo do Breno Altman.
No dia 30 de setembro, será a vez do socialismo de mercado chinês e seu impacto na luta pelo socialismo. O
tema estará a cargo da Profa. Valéria Lopes Ribeiro, da Federal do ABC.
No dia 1 de outubro, o professor Arturo Guillen nos
falará, diretamente do México, sobre a crise de 2008 e o debate sobre o
presente e o futuro do capitalismo.
No dia 2 de outubro, será a vez de debatermos as “Alternativas
capitalistas ao capitalismo”, tema que estará sob responsabilidade da Profa.
Maria Carlotto.
No dia 3 de outubro, a professora Monica Bruckman tratará
da economia política do capitalismo contemporâneo e as perspectivas da América
Latina.
E no dia 4 de outubro, eu darei a aula final do
curso, tratando das “ Alternativas socialistas ao capitalismo”.
Destaco, como sempre, que cada professor da Elahp
tem total liberdade acadêmica para tratar dos assuntos.
O que na prática significa que – embora todos
façamos parte de um mesmo campo político e teórico, a oposição de esquerda e os
que reconhecem o marxismo como uma referência fundamental para a luta da classe
trabalhadora – não necessariamente coincidimos na interpretação dos temas que
serão tratados em cada uma das aulas deste curso.
*
Isto posto, gostaria de abrir o curso, falando do capitalismo: história, contradições,
situação e perspectivas.
O capitalismo é produto de uma longa evolução
histórica; portanto, mais cedo ou mais tarde, sob formas que podemos imaginar
ou que podem nos surpreender, o capitalismo também será superado historicamente
por outro modo de produção e reprodução da vida social.
Entretanto, mesmo que seja chover no molhado,
considero essencial começar por aí, pois como amante da ficção e da fantasia
científica, sei bem o quanto é forte a hegemonia do capitalismo.
Forte e insidiosa: é mais fácil encontrarmos obras
onde desaparecem o mundo e a civilização, do que obras onde o capitalismo desaparece.
Há várias explicações para esta hegemonia ideológica
do capitalismo, mas uma delas me parece importante citar no início desta aula.
A evolução da humanidade está diretamente ligada à
produtividade do trabalho, ou seja, à capacidade da humanidade transformar a
natureza (inclusive transformar a própria humanidade) através do trabalho prático, das
descobertas científicas e das revoluções tecnológicas.
Da primeira ferramenta ao mais sofisticado
computador, o desenvolvimento dos meios de produção é elemento central não só no aumento
da produtividade, como na transformação da própria sociedade.
Por óbvio, o aumento da produtividade é o elemento
central no aumento da riqueza material.
O capitalismo coloca um dreno e um bloqueio
neste processo: o aumento da produtividade e da riqueza
material converte-se, para o capitalismo, em um meio para a valorização e
acumulação de capital, ao mesmo tempo que descarta, de forma crescente, o
trabalho vivo do processo produtivo.
Observado deste ponto de vista, o capitalismo parece
se confundir inteiramente com o progresso humano, ou seja, parece se confundir
com o processo histórico que faz a humanidade se diferenciar da natureza.
Essa confusão é tão grande, que gera -- em alguns críticos
do capitalismo – uma postura crítica ao progresso em geral, como se o único progresso
possível fosse o de tipo capitalista; e como se o capitalismo fosse mesmo idêntico
ao progresso.
Assim como gera, por outro lado, o fenômeno que comentei
antes: nas ficções e nas fantasias científicas, o capitalismo sobrevive sempre,
mesmo que seja como morto vivo, sob a forma de uma rede de máquinas postas a
explorar os seres humanos.
O interessante é que a identidade entre progresso e
capitalismo é real, mas é em si mesma histórica.
Ou seja, o capitalismo efetivamente foi – durante um
bom tempo – um modo de produção que ampliou o progresso humano, com os custos e
com as formas abomináveis que conhecemos.
Mas com o passar do tempo, o processo de expansão do
capitalismo começa a entrar em crescente contradição com o progresso da humanidade,
inclusive porque o capitalismo descarta do processo
produtivo parcelas crescentes da humanidade, os impedindo inclusive de participar
da dinâmica capitalista estrito senso.
Como em qualquer processo real, esta contradição existe
desde há muito, vai se manifestando com cada vez mais intensidade, até que gera
crises brutais, através das quais vão emergindo soluções para esta contradição,
soluções que não fazem a contradição desaparecer automaticamente da face da terra,
que pelo contrário vão criando novas contradições e assim por diante.
O fio vermelho da “economia política socialista” – melhor
seria dizer, o fio vermelho da crítica marxista à economia política burguesa –
é exatamente o estudo destas contradições.
Ao contrário dos utópicos, que condenam o
capitalismo desde fora, a partir de crenças as mais diversas; e ao contrário da
teoria econômica vulgar, que projeta uma acumulação capitalista eterna; a
tradição marxista descobre que o capitalismo está historicamente condenado por
suas próprias contradições internas, assim como
descobre – este é o lado bom desta história – que o capitalismo também gera a
solução para suas próprias contradições.
Noutros termos, as forças produtivas têm a capacidade
de atender a todas as necessidades sociais e as relações de produção impedem o acesso
a tal capacidade.
Dissemos que a
tradição marxista descobre que o capitalismo está historicamente condenado por
suas próprias contradições internas, mas não dissemos
que a tradição marxista “prova”, porque a prova neste caso será dada se e
quando o capitalismo for efetivamente superado por outro modo de produção e reprodução
da vida social.
O emocionante no caso é que quando mais perto
chegamos desta superação, mais perto chegamos também de uma outra alternativa
posta a qualquer “organismo vivo”. Neste caso, estamos falando da “destruição das
classes em luta”, a destruição do capitalismo e da humanidade, a destruição da
humanidade pelo capitalismo.
Dito de outra forma, a superação do capitalismo por
outro modo de produção é possível, na exata medida em que as contradições do
capitalismo se tornam cada vez mais explosivas, impedindo a sua reprodução e,
com isso, causando crises cada vez mais profundas, que por um lado tornam necessário uma superação
comunista e, por outro lado, tornam possível a catástrofe mais
absoluta, a “incineração universal” tão comum na science fiction (e em certas
tradições religiosas).
Menos emocionante, mas certamente paradoxal, é o
fato de que as vitórias parciais dos que lutam contra o capitalismo, têm como
efeito contribuir para reduzir temporariamente a intensidade daquelas contradições
e, com isso, aumentar a sobrevida do capitalismo.
A existência do socialismo de tipo soviético, por
exemplo, foi fundamental para a redução das contradições intercapitalistas
entre 1945 e 1991; assim como a existência do socialismo de mercado chinês contribuiu
para a dinâmica supostamente virtuosa da economia global em alguns momentos do
período 1991-2008.
E, de maneira mais geral, a luta dos trabalhadores
por maiores salários, menores jornadas e melhores direitos constitui um acicate
permanente para o capitalismo avançar.
Esta dinâmica –de uma tendência principal e várias
contratendências— é que constitui a base da famosa afirmação segundo a qual “nenhuma
formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas
que ela contém”.
Ou, noutra versão da mesma ideia, aquela segunda a
qual o limite do Capital é o próprio Capital.
Isto posto, afirmado o caráter histórico e o caráter
contraditório do capitalismo, em que situação estamos e quais as perspectivas?
O primeiro que devemos reconhecer é que nunca o mundo foi tão capitalista
quanto hoje. Pois mesmo na China, no Vietnã e em Cuba, há forte
presença das relações capitalistas de produção. Não falo aqui da Republicar
Popular e Democrática da Coreia, pois para a grande maioria das pessoas, aquela
sociedade é uma ilustre desconhecida (recomendo, a respeito, o curso recentemente
concluído, na Elahp, sobre a chamada Coréia do Norte). Mas seja como for, isto
não altera o argumento.
O segundo ponto que devemos reconhecer é que, hoje, parte importante da acumulação capitalista
se dá na dinâmica financeiro. Isto é um
sintoma de que a riqueza acumulada é tão grande, que se for totalmente reaplicada
no processo de produção de mercadorias, reduziria a rentabilidade global.
Notem que esta situação é um sinal da dissociação extrema
existente, hoje, entre a exploração do trabalho & valorização do capital vis
a vis a ampliação da produtividade & da riqueza material.
A valorização do capital é, naquele sentido
explicado antes, um bloqueio sistêmico, um freio de mão puxado que reduz a
marcha da ampliação da produtividade global. Novamente, o desenvolvimento das forças
produtivas entra em choque com as relações de produção.
Decorre desta situação uma pressão extraordinária sobre
a classe trabalhadora, sobre as nações periféricas e sobre os chamados recursos
naturais. Pois para aplicar produtivamente massas tão grandiosas de capital, é
preciso reduzir a limites mínimos o valor da força de trabalho e voltar a certos
métodos que foram tão úteis na acumulação primitiva.
Visto de conjunto, se constitui uma situação
paradoxal: os problemas são cada vez mais globais, existem os recursos e os
meios para resolver estes problemas, mas o capitalismo impõe crescentes limites
para a solução desses problemas que ele mesmo gera.
O que é equivalente a dizer, repito, que a expansão
das forças produtivas entra em choque com as relações de produção, abrindo uma
era de revolução social.
Ou, se quisermos usar um termo mais “moderno” e
menos comprometedor, abrindo um momento de crise sistêmica.
Isso que chamamos de “crise sistêmica” -- ou seja, a
conjugação orgânica de inúmeras crises: ambiental, sanitária, social,
econômica, política, nacional, geopolítica, cultural – é a crise sistêmica de
uma sociedade capitalista, ou seja, de uma sociedade organizada pela dinâmica
da acumulação de capital.
O núcleo desta crise sistêmica é a crise de
acumulação, ou seja, a crescente dificuldade que o capitalismo enfrenta para se
reproduzir de forma ampliada.
Essa crescente dificuldade não impede que haja
acumulação e inclusive expansão do capital, mas gera contra tendências muito
poderosas.
Por conta disso, cada ciclo de acumulação do capital
exige um esforço relativamente maior, para produzir um resultado
proporcionalmente menor, gerando ao mesmo tempo resíduos cada vez mais tóxicos.
A crise ambiental, a crise sanitária, a crise
social, a crise política, a crise geopolítica e inclusive a crise cultural que
nós estamos experimentando são, a rigor, desdobramentos diretos ou indiretos
desta dinâmica de acumulação de capital.
Claro que o capitalismo é um modo de produção “crísico”,
que evolui graças e através de suas contradições internas.
Neste sentido, a crise, o desequilíbrio, a
desarmonia, são o estado permanente do capitalismo.
Entretanto, mais ou menos como acontece numa usina
nuclear, em condições normais a explosão é evitada por contra tendências, tais
como a existência de novas fronteiras de expansão, a existência da competição
intercapitalista e, inclusive, as conquistas da classe trabalhadora.
Entretanto, estes fatores evitam a explosão apenas
temporariamente, produzindo uma ameaça futura ainda maior.
Mas há circunstâncias históricas em que ocorre um
“efeito cascata”, uma sequência de acontecimentos que neutraliza as contra
tendências e empurra o sistema para uma espécie de “crise perfeita”, a tal
crise sistêmica.
Foi o que aconteceu na primeira metade do século XX
e que incluiu a Grande Guerra de 14-18, a crise de 29, a ascensão do
nazifascismo e a Segunda Guerra Mundial.
Hoje, está ocorrendo algo parecido, com a diferença
que o capitalismo se globalizou muito mais e é predominante
em quase todos os países. Ou seja: estamos diante de uma crise sistêmica
mundial mesmo.
Considerando a história pregressa, existem três
desfechos possíveis para este tipo de situação.
O primeiro deles é o colapso geral da sociedade, uma
espécie de Armagedon laico.
O segundo desfecho possível é que, da atual crise
sistêmica, brote um novo ciclo de experiências socialistas. O que inclusive poderia
gerar dinâmicas como as citadas anteriormente, em que a existência do
socialismo em partes do planeta contribui, paradoxalmente, para prolongar o
tempo de vida do capitalismo noutras partes do planeta.
O terceiro desfecho possível é um novo ciclo longo
de expansão capitalista. Lembrando que os anteriores ciclos longos de expansão,
no capitalismo, não foram tão longos assim.
1850-1900, 1946-1970, 1980-2008.
Entretanto, para que ocorra este terceiro desfecho, um
novo ciclo longo, não basta o que já está acontecendo, não basta aprofundar a concentração
e centralização de capitais, não basta aprofundar a exploração da classe
trabalhadora, não basta aprofundar a exploração das periferias pelos centros,
não bastam as mudanças tecnológicas que já vem ocorrendo.
Tudo isto que já está ocorrendo, é neste momento
fator causante da crise sistêmica. As mudanças
tecnológicas, por exemplo, incrementam as contradições capitalistas.
Para que ocorra um novo ciclo longo de expansão,
seria necessário OU bem a abertura de uma nova fronteira de investimentos (como
a exploração do fundo do mar, a exploração do espaço); OU bem uma reconstrução
em larga escala (o que, por sua vez, pressuporia uma grande destruição prévia,
ao estilo do que foi a Segunda Guerra).
Isto é possível?
A Guerra é plenamente possível e cada vez mais
provável.
Uma nova fronteira de expansão é possível, mas é menos
provável.
Agora, atenção: quando falamos que existem três
grandes desfechos possíveis, podemos passar a impressão de que estamos diante
de variantes que se excluem.
Ou a barbárie absoluta, ou o capitalismo, ou o
socialismo.
Mas do ponto de vista histórico, é possível e talvez
seja correto dizer que é provável que estas variantes, ou algo parecido com
elas, coexistam simultaneamente.
Ou seja, ao mesmo tempo que parte da humanidade é
empurrada para um capitalismo com cada vez mais barbárie, outra parte esteja
buscando realizar uma transição socialista com cada vez menos capitalismo.
Noutros termos, o capitalismo pode sobreviver em
condições de cada vez maior barbárie social. Seria uma confirmação de que a
vida imita a arte, pois é disso que fala boa parte da ficção e da fantasia científica
produzida nas últimas décadas.
Portanto, não devemos esperar que o capitalismo
algum dia desapareça, como fazem os Jedi quando são mortos, abrindo espaço para
que no day after, numa terra livre de todos os males, possamos construir outra
ordem social.
Esse tipo de visão idílica, que nos empurra a
considerar possível e desejável um mundo sem contradições de nenhum tipo, onde
não resta nada da herança do passado, fez muito mal e segue fazendo muito mal à
tradição socialista.
Cabe lembrar que o capitalismo não é uma coisa, não
é um objeto.
O capitalismo é uma relação social entre
capitalistas e assalariados, entre proprietários de trabalho morto e proprietários
de trabalho vivo.
Esta relação social não vai ser abolida, ela pode (e
acreditamos que vá) se extinguir.
Mas esta relação social só será superada quando
aqueles seres humanos que são produtores das riquezas, criarem as condições
para decidir o que produzir, como produzir, quando produzir, quanto produzir e
como distribuir as riquezas.
Ou seja, uma relação social será superada por outra
relação social.
E há duas pré-condições para que este novo tipo de
relação social, baseada na livre associação dos produtores, possa se
materializar:
1/a natureza coletiva do processo produtivo e
2/o aumento da produtividade humana.
Não tem como existir gestão coletiva, numa sociedade
de pequenos produtores independentes entre si, de aldeias que vivem isoladas
umas das outras.
O capitalismo, ao tornar cada vez mais interdependente
o processo produtivo, tornou possível a gestão coletiva deste processo.
Ao mesmo tempo, ao fomentar de maneira permanente o
aumento da produtividade, o capitalismo criou a possibilidade de que a humanidade
possa se libertar da escassez absoluta, possa trabalhar cada vez menos, tenha o
tempo e os meios necessários para reorganizar a vida social de uma maneira cada
vez mais humana.
Portanto, o capitalismo contribui na criação das
duas pré-condições de sua própria superação: a natureza coletiva do processo
produtivo e o aumento da produtividade humana.
Vale sempre lembrar que, no capitalismo, estas duas
pré-condições estão vinculadas contraditoriamente entre si e se materializam,
ao menos em parte, nas características concretas do chamado proletariado, seja
na sua força de trabalho, na sua capacidade produtiva, na sua organização coletiva,
seja também no lado B do proletariado, ou seja, tanto naqueles traços que
caracterizavam “o povo do abismo”, no livro O tacão de ferro de Jack London;
quanto no comportamento individualista de algumas camadas melhor remuneradas.
Faço esta referência para deixar claro que as duas
pré-condições da superação do capitalismo -- a natureza coletiva do processo
produtivo e o aumento da produtividade humana -- não são condições sobrenaturais,
nem estritamente técnicas ou materiais. São pré-condições humanas, portanto
sociais e, portanto, históricas,
Por óbvio, o capitalismo cria estas pré-condições de
maneira... capitalista, ou seja, com um enorme custo social, ambiental,
psíquico, com enorme desperdício de recursos, humanos e materiais, criando contradições
imensas, que desembocam por exemplo em desemprego estrutural, em guerras, em
devastação ambiental.
Como dissemos no início, a natureza coletiva do
processo produtivo coexiste com uma anarquia cada vez mais brutal na sociedade;
e o aumento da produtividade coexiste com efeitos colaterais que desperdiçam parte
importante da produtividade potencial.
Até por isso, para superar o capitalismo, não basta a
presença daquelas duas pré-condições.
É preciso, também e principalmente, que apoiada naquelas
pré-condições se construa, na sociedade capitalista, mas contra o capitalismo,
uma contramola com a disposição e a energia necessárias para reorganizar a vida
social.
E mesmo que esta contramola triunfe politicamente,
será necessário um determinado tempo, será necessário um processo histórico
para superar plenamente as relações capitalistas; um processo histórico de
transição, que em alguns casos sabemos como começou e noutros casos podemos supor
como pode começar, mas que não temos como prever quando tempo durará, que
formas poderá assumir e nem mesmo sabemos como terminará.
Em resumo, o capitalismo não será superado pela sua
própria crise; o capitalismo não será superado num dia mágico; o capitalismo só
poderá ser superado no curso de uma revolução social de longa duração, no curso
daquilo que se convencionou chamar de transição socialista, onde continuarão
existindo, por um longo tempo, relações capitalistas de produção.
Estas relações capitalistas sobreviventes podem
estar encobertas, como no socialismo soviético; podem ser explícitas, como no
socialismo de mercado chinês; ou podem aparecer sob outras formas, a depender
das diferentes modalidades de transição socialista que ainda venham a surgir.
Sendo evidente que só estaremos diante de uma
transição socialista, se estas relações capitalistas sobreviventes forem
submetidas a um crescente controle social, que inicialmente e por bom tempo
será feito através do Estado, sob comando socialista.
O que é algo similar, mas com sentido diferente, ao
que ocorreu, desde o século 18, com as relações não capitalistas de produção,
que foram submetidas a crescente controle social por parte dos capitalistas,
também utilizando para isto o Estado, neste caso sob comando dos capitalistas.
Vale lembrar que foi graças a revolução socialista
que países como Rússia e China conseguiram eliminar os obstáculos (feudais,
coloniais, imperiais etc.) que travavam o desenvolvimento das forças
produtivas, inclusive das forças produtivas capitalistas.
Daí decorre que a essência da luta contra o capitalismo,
a essência da luta pelo socialismo, está na luta política, está na luta da
classe trabalhadora pelo poder, com o objetivo de usar este poder para
controlar os meios de produção, para alterar as relações sociais, e tudo que
isso implica em termos de igualdade, liberdade e atendimento a todas as
necessidades da sociedade humana.
Se é verdade que a superação do capitalismo é um
longo processo revolucionário, o ponto de partida desta revolução social, o fio
condutor desse processo de transformação estrutural, é uma revolução política.
Por isso, os que negam e os que minimizam a necessidade
da revolução política, não estão escolhendo um caminho supostamente mais lento
para chegar ao socialismo.
Os que negam ou minimizam o papel da revolução
política na luta pelo socialismo, estão na verdade escolhendo um caminho que
não levará ao socialismo.
Estão abrindo mão – consciente ou inconscientemente
– da luta pelo socialismo.
Mas a luta política em si mesma se dá a partir das
condições objetivas e subjetivas existentes; e, portanto, voltamos ao ponto de
partida: em que situação estamos?
Responder a esta pergunta é responder qual o grau de
desenvolvimento capitalista existente, não apenas no mundo como um todo, mas também
em cada sociedade em particular. Afinal, se não resta dúvida de que a luta
contra o capitalismo é uma luta mundial, tampouco resta dúvida de que o ponto
de partida desta luta mundial são revoluções que, ao menos num primeiro momento,
são nacionais. Lembrando que compreender o nacional é, também, compreender o lugar
de cada sociedade particular na divisão social do trabalho.
E neste ponto deparamos com um paradoxo: as revoluções
socialistas, no século XX, não ocorreram onde o capitalismo estava mais desenvolvido
materialmente. E isto ocorreu assim, porque as
pré-condições objetivas e subjetivas de uma
transição socialista não evoluem de maneira sincronizada.
Esta não era a visão predominante, entre os partidos
da socialdemocracia (1889-1914).
A visão predominante era a de que a transição
socialista ocorreria primeiro onde o capitalismo estivesse mais desenvolvido
materialmente, onde não apenas existissem melhores condições objetivas para
implantar a propriedade social dos meios de produção, mas também onde existiria
uma classe dos trabalhadores assalariados que seria maioria na sociedade.
Portanto, se fosse necessário usar a “mão dura”
contra os capitalistas, isso seria expressão da vontade democrática da maioria
contra a resistência de uma minoria, minoria que devia ser impedida de voltar a
ser dominante, opressora e exploradora.
E como, supostamente, o capitalismo já teria desenvolvido
previamente as forças produtivas, a transição socialista cuidaria apenas da
socialização da propriedade e da adequada distribuição das riquezas.
Ademais, como os países mais desenvolvidos eram
exatamente aqueles que mais faziam guerra contra os demais, o progresso da
revolução socialista causaria também a ampliação da paz mundial.
Em resumo, seria “tudo de bom”: uma revolução essencialmente
democrática e uma transição socialista extremamente rápida, em condições de
crescente paz.
Acontece que, como já dissemos, esta concepção não
foi confirmada pelos acontecimentos do século XX.
A revolução não aconteceu naqueles países onde o
capitalismo era mais desenvolvido.
A revolução não aconteceu naqueles países onde a classe
trabalhadora assalariada era maioria.
A revolução não aconteceu naqueles países que
concentravam os maiores recursos bélicos.
Pelo contrário, no século XX as revoluções ocorreram
e foram vitoriosas onde o capitalismo era relativamente menos desenvolvido,
onde a classe trabalhadora assalariada era minoria numérica e em países que,
durante e depois da revolução, foram submetidos a cerco, a sabotagem e a
guerras, contribuindo assim para transições socialistas cheias de defeitos,
imperfeições e problemas.
Defeitos, imperfeições e problemas que estão
vinculadas a algo muito simples: foram estas revoluções socialistas que conseguiram
eliminar as travas que impediam o desenvolvimento das relações capitalistas de
produção; neste sentido, foi a transição socialista que fez aquilo que deveria ter
sido feito, no mundo da teoria abstrata, por revoluções capitalistas. Por
exemplo, a expansão do assalariamento e da industrialização.
Este percurso imprevisto produziu, no movimento
socialista, dois tipos fundamentais de reação:
1/os que consideravam que um socialismo deste tipo
não seria socialismo, pois não correspondia ao que está previsto “no livro” e,
como sabemos, “contra argumentos, não há fatos” (um jeito de pensar dogmático
típico das religiões);
2/os que consideravam que aquele tipo de socialismo era
o verdadeiro socialismo, modelo para os demais (convertendo a heterodoxia em
nova ortodoxia, numa dinâmica mental que é pouco marxista e, como nos referimos
antes, muito religiosa).
Mais de 100 anos depois da primeira revolução
socialista vitoriosa, uma das questões postas sobre a mesa é exatamente: em que
ponto a corrente capitalista-imperialista poderá romper outra vez? Será que, desta
próxima vez, as nações mais desenvolvidas do ponto de vista econômico serão
afetadas?
Notem que esta questão está ligada a outra: a extensão,
a profundidade, as características e as alternativas que estão sendo gestadas,
durante a presente crise sistêmica, para garantir a sobrevivência do capitalismo.
Notem, também, que batalha geopolítica e geoeconômica
que está em curso, protagonizada por Estados Unidos e China, introduz elementos
novos – especialmente devido ao nível de desenvolvimento da China.
Seja como for, quero frisar algo que pode parecer óbvio:
não é a clarividência intelectual, nem o engajamento militante, que geram rupturas
sistêmicas. Tais rupturas são, no fundamental, produto das próprias
contradições do sistema, dos limites objetivos do próprio capitalismo.
As vanguardas antisistêmicas são decisivas para
definir o desfecho, mas não para produzir o processo.
Nesse sentido, boa parte do curso está organizado
para pensar em que situação objetiva estamos, em que pé estão as contradições
do capitalismo.
Comecei e agora vou terminar chovendo no molhado mais
uma vez.
Se existe um bom momento para iniciar novas
tentativas de transição socialista, é exatamente em momentos de crise
sistêmica, em que o capitalismo demonstra todos os seus problemas.
Aliás, não conheço um único caso em que revoluções
socialistas vitoriosas tenham ocorrido em condições ótimas de temperatura e
pressão.
Assim como não conheço nenhuma transição socialista
que tenha iniciado em tempos de funcionamento normal e exitoso do capitalismo.
Neste sentido, o que vamos debater ao longo deste
curso não é uma questão para deleite acadêmico, é uma questão com imensas
implicações práticas.
Obrigado pela atenção e agora vamos as perguntas e
ao debate.
Nenhum comentário:
Postar um comentário